DA RIMA AO RITMO
Concorde
Manter a paz pela força,
Não:
Qual da música o acorde?
Só quando o coração
Por ela torça
Com os mais concorde.
Aí talvez a multidão
Acorde.
Ricos
Os ricos não são problema,
São um tema.
O problema são os picos
Que nos ferem e que não dobres
Na jornada:
O problema é que os ricos
Não querem saber dos pobres
Para nada.
Receita
É a receita protocolar
Que conviria que todos apanhem:
- Para ganhar
Importa que os mais também ganhem.
Da empresa familiar
À multinacional,
Do palácio ao lupanar,
Do mundo ocidental
Ao terceiro mundo que teima escravizar...
E é porque explorar é dominante
Que todos perderemos,
A montante e a jusante,
Adiante,
Seja qual for o tempo que o adiemos.
Luz
Todas as coisas ao ver
À luz de Deus,
A luz de Deus leva a entrever
Em todas as coisas.
Bons ou maus sejam embora os fóruns teus,
Ali repoisas.
Então a Luz, qualquer que seja o revés,
Serás de vez.
Excessiva
Dor excessiva não dura.
Cada qual
Integra o mal
E se habitua:
O tempo é a cura
Do veneno da pua.
Entulho
Há tanto entulho
A entulhar de quenquer
A vida toda!
Sinto tanto orgulho
Em nada saber
Do que estiver na moda!...
Máquina
Por estranho que pareça,
Nos bons e nos maus harpejos,
O mundo é uma máquina travessa
De cumprir desejos.
O que creio que a isto se esquiva,
Esquisito,
É só por não vê-lo na perspectiva
Do Infinito.
Dom
A vida é um dom,
Não requer nada em troca.
Mas é tão bom,
Apesar de tanto mal que nos faz,
Que me choca
Não retribuir de modo capaz.
Temo o meu esquecimento,
Portanto retribuo
Ou, ao menos, tento:
- Então, lúcido, actuo.
Reverso
Eis o reverso
Quando na pedra topemos
Que nos rasga a pele:
Por vezes o Universo
Quer que reparemos
Nele.
Herói
O culto do herói traz
A medida mais rara
Ao coração.
Ora, maior herói nem é o que faz,
É o que naquele repara:
- É quem, afinal, presta atenção.
Ambição
A ambição humana
Jamais sacia o sonho:
Eternamente de nós emana
Que quanto aqui componho
Sempre o poderei propor
De novo e melhor.
- Tamanho é o grito,
Em nós, do Infinito.
Escondida
A maior parte de nossa vida,
Mesmo de quem vemos todo o dia,
Anda escondida,
Nunca ninguém a desfia.
E o mais estranho desta venda
É que nem a nós se nos desvenda.
Visão
A visão
Que cada qual tem do passado
É tão estreita e aguda na selecção
Do traslado
A que tudo reduz
Que o que nuns é escuridão
Noutros luz.
Introspecção
A introspecção reflectida
Conduz à honestidade
Connosco e, de seguida,
Com os mais.
A esta luz, a opacidade
Dos vitrais
De nossa vida
Devém magicamente colorida.
Montanhas
O que mais estranhas
Das vidas
Nos escolhos
É que as melhores montanhas
Estão sempre escondidas
Mesmo à frente de nossos olhos.
Identidade
Todos os amantes
Da identidade procuram a ilusão.
Mas a amorosa ligação
É, no correr dos instantes,
Quase só imaginação:
O amor, além do que for agora, é também
Recordar o que foi,
Imaginar o que vem.
E todo exalta. E todo dói.
A mente
É uma constante
Impaciente:
Num instante
Imagina a totalidade fabulosa
Duma ligação amorosa.
A gralha
É que há sempre uma falha.
Ausência
O sentido da vida,
Abertura ao Infinito,
É uma eterna ausência por que grito,
Realidade desmedida
Por que meu imo anseia
E que jamais alcança,
De tão longe e fundo nos ameia...
- Então é uma perene esperança.
Desumanidade
A estrela
Da Natividade
Revela
A humanidade de Deus
E a nossa desumanidade:
Somos o curral da divindade.
- Como é que nos diremos filhos seus?...
Indefinidamente
Não é possível o fundamentalismo:
Não se pode crer
Do Infinito no abismo
Sem querer
Ir indefinidamente além
Do que creio, do que vivo – do aqui que às mãos me tem.
Aqui ando sempre fatalmente errado,
Até chegar ao fim de meu fado.
Pecado
Absolutizar o relativo,
Relativizar o absoluto
É o pecado mais esquivo
Das religiões produto,
Além do cultivo duma pureza
Que só da seita se preza:
O que é dos nossos, puro,
Tem o céu seguro;
Os outros, impuros, têm por eterno
Destino o inferno.
Este é que é o pior pecado:
É que é sempre tido por sagrado.
E é a fórmula com que nos mata:
- Assim do Infinito a todos nos desata.
Percorre
Percorre firme tua
Rua.
Talvez sejas alguém
Que, na terra despercebido,
Um dia chegou à Lua
E dalém,
De pé nas alturas subido,
Acenou após
Para todos nós.
Dor
O ódio dói.
Não tivemos já dor suficiente?
O amor não mói,
Dá frescura, paz a toda a gente
E uma tal segurança
Que nem a morte o alcança.
Medo
Tens medo do trovão,
Tens medo da floresta.
Mas não,
Quando o fundo vislumbro que em ti resta,
Tens aí
Apenas medo de ti.
E medo do que vemos, atroz,
Nos outros de nós.
Criar
Criar
É uma bênção e um dom.
Cuidado, porém, para não se tornar
Corrompido.
Há uma fronteira entre paixão
E obsessão,
Limite que nunca pode ser
Transgredido.
Entre ver
E apenas pensar em ver
Tudo muda de sentido.
Entre o arrebol
E a noite
É o mesmo o sol
Mas acolá luz e aqui é um açoite.
Ninguém tal ambiguidade pode ter no rol
Do canto onde se acoite.
Interior
Muitos não vêem a paisagem interior,
Não olham para dentro.
Cuidam que, se é interior, é escura,
Sem luz nem cor,
Não há nada para ver ali ao centro.
Perdem, quando a vida depura
Esta triagem,
O melhor
Da paisagem.
Luta
Quem é que não luta
Por manter o que tem?
- Aquele que desfruta
Dum mais valioso bem:
Família com afecto,
Amigos que lhe dão tecto,
Comunidade lesta
A tornar-lhe a vida em festa.
Pegadas
Os actos dos homens são pegadas
No deserto.
Nas dunas, do vento da vida as rajadas
Põem-lhes termo bem perto.
Nada foi predestinado
A durar eternamente.
Ser nómada é o fado
Universal existente.
Uma Humanidade firme no chão,
Eis a eterna contradição.
Eventos
Os eventos,
Grandes ou pequenos,
Nem sempre seguem os planos
Sedentos
Dos humanos,
Nem sequer os mais plenos
Engodos
Dos mais subtis de todos.
Lume
Dá calor e luz,
O amigo é o lume.
Quando o vejo, o que o traduz
E resume
É a alegria funda
Que me inunda,
Peregrino perdido
No deserto
Que encontra por fim o sentido
Do caminho certo.
Invejoso
O invejoso
Ora tem menos, ora mais
Que o invejado.
O que lhe dá gozo
É do bem o repúdio dos sinais
Nos demais
Com que não se há partilhado.
Quanto mais tem
Ou melhor é
Mais a inveja se mantém
Ali ao pé.
Não alardear
Qualidades nem defeitos,
Eis como não provocar,
Eis como palmilhar
Os trilhos mais direitos.
Religião
A minha religião
Adora Deus em cada semente.
Nas igrejas pouco mais há senão
Flores cortadas onde a vida mente.
Do poder é tal a obsessão
Que em tudo tendem a perder o oriente.
E no fundo, na raiz,
Há uma realidade que praticamente ninguém diz.
Dar
Melhor é dar
Que receber:
Quem der fica a ganhar,
Quem receber fica a perder.
Se não nos bens, na relação
Que é o que nos finda sempre à mão.
Porque o mais, mais ou menos à toa,
Sempre voa.
Cota
Vive como um idiota,
Morres como um miserável.
Vive como um miserável,
Morres como um idiota.
No trilho viável
É, pois, igual a cota.
Ir por aí, afinal,
De que vale?
Surpresas
O pessimista
Só tem surpresas agradáveis,
O optimista,
Só desagradáveis.
Contudo, aquele é triste
E este alegre,
Para que o equilíbrio do que existe
Se regre.
Esconder
Podes esconder um facto.
Dele esconder-te, porém,
Não há pacto
Que te liberte,
Dele eternamente refém,
Na mão da memória que nele te aperte.
Peneirada
Aprender
A viver sem guião,
Cada dia escrever
A palavra que vier à mão
Apenas peneirada
Por ser a que nos for mais adequada...
Tudo aceite, todo entregue
Finalmente à paz que me persegue.
Juntos
Juntos permanecermos,
Um ao outro sempre nos amarmos
Até aprendermos,
De modo que, ao amor darmos,
Quão mais amor de mim e de ti desça,
Mais cresça.
Um
Eu e tu, mulher, somos dois,
De todos os mundos no prazer incomum.
Depois
Sobretudo
Somos um.
E um é tudo.
Tudo!
Vivo
Ver quem amo vivo
Abre-me ao mundo:
Terei de viver, assertivo,
Para vivê-lo, jucundo.
Então, a vida com que lido
Aí toma sentido.
Elástico
O corpo é elástico
Mas nunca tão elástico como o tamanho interior
Perifrástico
Que, desde que te vi,
Se me anda a impor
A encher-me inesgotável de ti.
Vens
Vens
E logo me estou nas tintas
Para as fintas
Da vida e dos bens
Que me faltam.
É que em nós os rios correm
E os montes saltam
Mesmo quando morrem.
É que não morrem: connosco em nós concorrem
E na lonjura nos exaltam
Por todas as paisagens que nos faltam.
Sorte
À sorte
Mil trancos e barrancos nos tecem
E voltam a tecer.
Não há morte:
Os indivíduos por aqui acontecem
E deixam de acontecer.
Mais nada,
Tudo apenas as mil curvas da estrada.
Deste lado do caminho,
Que o outro mal adivinho.
Mistério
É o mistério
Que nos torna felizes.
Do vazio dele sob o império
Mergulhamos às matrizes,
Voamos ao voo sidéreo...
Respiro, mundo, os matizes,
Terreno e aéreo,
Do que dizes.
Perco
Quando me perco em teu corpo, em completa derrota,
Sou feliz.
Que vitória trepa a tal cota
Em tudo o que fiz?
Das ideias feitas há sempre um avesso
Em que tropeço:
E tão verdadeiro
É o segundo como o primeiro.
Acidente
Tudo o que importa
Ocorreu por acidente
Ou por amor, o que, evidentemente,
É o mesmo, pela outra porta.
Não é possível, claro,
Mas é o que somos: este bem imprevisível e raro.
Ignora
Quando ignora o que fazer,
A criança sorri.
Quando ignora o que fazer,
O adulto teme.
E logo ali
O mundo inteiro geme.
Quando não há o que deveria haver,
Quem o inventa?
Não há outro remédio: tenta, tenta, tenta!...
Pesa
A tua mão pesa,
Mas não te ter pesa mais,
É o que me segura, presa
Do inferno deste cais.
Quanto mais a dor magoa
Mais o meu amor te doa.
Matrimónio cais de embarque?
Mas há prisão no meu parque!
Porém, o outro lado também...
Ah, meu amor, minha nova mãe!
Retorno
O retorno ao lar
É uma pontinha de céu.
Nada vale nada, senão pelo que permite amar,
Desatar o véu.
O melhor objecto
É o que ao amor ofertar
O melhor tecto.
Um lar, uma família,
Só quando for casa de amar
Perenemente em vigília.
Pior
Amar o mundo é vivê-lo
No que tiver de pior,
O fio da navalha entendê-lo
De tão longe que nem provoca temor,
Ver que da maldade o traço
Nunca desfará o abraço.
Transgredir
Transgredir o limite
É que mantém são.
Há tanta vida além da vida que concite,
Tanto chão além do chão!
Quando te vislumbrei além de todos os limites
É que nos vi livres já de todos os desquites.
Ganhar
Ganhar a vida é ganhar dinheiro?!
Não entende a vida com que lida
Quem tal cuida tão rasteiro
E muito menos entende o que é ganhar, certeiro,
No que à vida nos convida:
- Só há ganho num amor cimeiro.
Apenas
Nenhum intelectual ganha
A felicidade.
A verdade
Que laboriosamente apanha
Não é nunca a sabedoria...
- E apenas esta vive na alegria.
Devir
Uma mulher
Com a cabeça em teu ombro reclinada
O bastante pode ser
Para a vida pequena
Devir desmultiplicada
- E então valer a pena.
Tropeada
Viver
É chorar a morte do que fui
E rir o nascimento que serei.
Ser
É o que eternamente flui
Na cósmica tropeada intérmina da grei.
Inteligente
Viver
Com uma mulher inteligente
Não é humilhação sequer,
É um vulcão permanente,
Um milagre que a vida comande
Que só mentes pequenas não gozam à grande.
Descobertas
Quantas descobertas que o mundo mudariam
Adivinho
Que encontrar se poderiam
Nas bocas fechadas de quem fala sozinho!
Quanto Galileu perdido
Pelas fachadas
Das vidas sem sentido
Que por mim passam ignoradas!
Costas
Custa andar com a vida às costas,
Tantas possibilidades logo levadas
Mesmo quando aproveitadas!
Fica um travo depois das apostas...
Ganhar é curto,
A expectativa
É que é festiva,
Nunca o surto.
A verdade é que quenquer
Não passa dum pré-ser.
Repete
Tudo se repete e não repete, ao fim,
Incompreensível.
Tenho de repetir o irrepetível
Em mim.
Sou o que não sou
E pelo meio vou.
Vitória
Em toda a vitória
Há recantos escuros,
Becos esconsos cuja glória
É que ninguém lhes salta os muros:
Nem os mais furtivos
De lá sairiam vivos.
Nunca a mão que pega
Aí nos chega.
Ferida
Felicidade é sair duma ferida
Pronto a ferir-me outra vez
Porque de vez compensa.
Só o tonto pensa
Que a verdadeira lida
É doutro jaez.
E então a felicidade dispensa.
Caminham
Caminham ambos lado a lado
Rumo ao nada,
Depois de tudo acabado
Na mítica jornada.
Caminhar por dentro do que findou
É andar parado,
Marcar passo. É o que restou
No enganado
Caminho que eventualmente persiste
Rumo ao que não existe.
Extinguir
Querem extinguir a poesia
Que entra por todas as janelas
Abertas ou fechadas todo o dia,
No verão ou na invernia...
- Como extinguir as chamas quando vivo delas?
Sorte
Quem não tem sorte
É porque tem chocolates a mais
E oferecidos.
Sorte é procurá-los, da vida em cada recorte
Escondidos,
E chorá-los com raiva demais.
Então,
Que alegria
Quando a vida dá a mão
No canteiro da fantasia!
Insaciado
O insaciado crónico mutila
A borboleta que em nós murmura.
Já não voa, não cintila
O mundo que ele apura.
Então
Resta-lhe apenas o mundo-não.
Grandeza
A grandeza vemo-la no que é feito
Quando se não gosta.
É tão fácil ferir, tão a jeito!
Só quem é grande tem a faca posta
Para ferir e não fere:
Por isso é grande em tudo o que o afere.
Idade
A idade ensina a ver
Com o passado à frente,
O gesto a amadurecer,
A presença presente...
E, de cada um por toda a ilha,
Tudo então cada vez mais se compartilha.
Belo
O belo, é preciso aprender
Que pouco requer dos olhos,
É com eles fechados que há-de ocorrer
Da vida o bonito aos molhos.
No derradeiro reduto é que, esquiva,
Se vislumbra a alegria primitiva:
Basta cerrar as pálpebras com intensidade
E eis a tua cara toda feita claridade.
Fado
Fado, nosso fado
É a noite, a escuridão
E, ao lado,
A dar,
Discreta, a mão,
A mágica réstea de luar.
Quem julga que nosso fado é o dia
Ainda não entendeu a lei
Milenar da estrada
Da sabedoria:
Apenas sei
Que não sei nada.
Pegadas
As pegadas que faltam
Apagam as que já demos.
Exaltam
As pegadas que não temos
E então não aproveitamos a carne viva
Do que já é do cais da estiva.
Mar
Basta-nos um pouco de mar
Para ser felizes.
Então porque estragar
Tão viscerais matrizes
Por um mar derradeiro
Que nunca às costas carregarei por inteiro?
Alfinete
Um alfinete
Não fere a pele
Que espete,
Fere o homem que interpele:
Quem bem atente
Repara que somos sempre gente.
Honestidade
A honestidade é um utensílio
Do amor e do desastre.
A dose é que abre e fecha o cílio
Do encastre:
À medida, aplaca;
Demais, é a ressaca.
Dói-me
Dói-me a solidão das pessoas
Que anoitecem.
Dormem sozinhas a esmoer as broas
E esmorecem.
Quanto pedaço de morte
Ali jogado à sorte!
E as sinas
Que, à partida, no transporte,
Eram todas divinas,
Ali, desoladas, no recorte
Das esquinas!
Procura
Tantos à procura
Da estabilidade!
A loucura
De fugir à mortalidade...
De repente,
Desolados
E tortos
Dão por eles já mortos
Muito antes dos fados.
Ex-vivos,
Meros números a aumentar arquivos.
Matinais
As mãos matinais estremecem
E aquecem.
Vontade de principiar, fecundo,
De raiz, o mundo.
Em nosso jeito de fâmulo
A vadiar,
Logramo-lo:
- O dia é feito para principiar.
Viagem
A viagem é a felicidade
Iminente.
A lonjura é a interrogação
Duma revelação
Ainda ausente
Mas que, no vislumbrado lugar
Se há-de
Logo, logo revelar.
Doer
Quando choras,
Algo em ti me faz doer.
Que demora a das demoras
De sermos sempre vir-a-ser!
Nunca a plenitude...
- E como o mais desilude!
Velhos
Vamos ser velhos com tanta juventude
Que a morte
Vai ter meramente a virtude
Do transporte.
O mais
Vai ser o sobrevoo alumbrado por todos os locais.
Futuro
O futuro é uma aparência,
Uma simulação.
Quem por ele deste agora escoa a essência
Perdeu-se do chão.
Pode julgar que é
Mas o que tem de pé
É uma ilusão.
Alterar
O futuro é para manter-se ausente,
Para eu o alterar com ousio
Ou por mero desfastio
Quando me aparecer à frente.
Aliás, quando em frente,
Não é futuro, é já presente.
Donos
Somos rei e rainha,
Donos de nosso espaço pequeno
A perder de vista...
Adivinha
Como é pleno,
Como basta e supera quanto exista!
Esconder
Cuidar do próximo passo
É esconder o passo incompleto por dar.
Importa ser náufrago, do momento no laço,
Sem se afogar.
Mesmo sem ideia do que fazer,
Enquanto aqui, é de aqui ser.
Quietude
No fim da quietude
Aprendemos a morte.
Paramos a vida para, lentamente, do que nos ilude
Surpreendermos o recorte:
Serenos, assim,
Desvendamos finalmente o fim.
Rua
Os que dormem na rua, crês
No homem quando os vês?
Se a dor revela,
Então,
Quantos doem, ali à vela,
Numa cama de cartão?
- Para quem adormece
Com o corpo apenas
A noite não fenece,
É o carrasco a executar todas as penas.
Manhã
A manhã
É apenas a madrugada
A caminhar
Devagar,
Louçã
E deslumbrada,
Pelas curvas de magia
Da estrada
De cada dia.
Má
A vida é má,
Que para sempre não é,
E é boa, acolá,
Por raro andar de pé.
E por, nestas matrizes,
Sermos, afinal, felizes.
Ainda
O que somos ainda não se foi.
Falamos, entretanto, do que não importa
Para impedir o que dói
De nos saltar à porta,
A impedir, afinal, quenquer
De ser.
Perda
Muito demorei a descobrir
Que o que não foras tu
Era perda de tempo, a se esvair
Ao mando de qualquer tabu.
Amiúde temos de entender
O que não é
Para chegarmos até
Ao que deve ser.
Nunca
Nunca as palavras fazem
Os indivíduos que as dizem
Mas porventura trazem
Gritos que os avisem.
Os que as traiam
É natural que então caiam.
Fechamos
Fechamos os olhos para ver
O que sentimos,
Para o que nos consome ter
Uma imagem,
Liberto da fundura dos limos,
Na viagem.
Adoramos ver com a emoção
E, no fundo, não há outra forma, não.
Leitor
Não é aquilo que escreve
Que faz o melhor
Escritor
Do mundo.
É o leitor que, ignoto e leve,
O semeia de húmus fecundo.
Escritor de génio não há,
O que há é o leitor que o entronize lá.
Príncipe
Mora sempre um príncipe encantado
No meu peito engaiolado
E uma princesa acorrentada
Na torre duma vida ignorada.
O encontro entre os dois
Incendeia tudo depois.
O amor,
Ao calor
Da forja,
Derrete o ferro da gorja.
Libertos então, os prisioneiros
Voam vida fora altaneiros,
Visando das montanhas as alturas
Mais puras,
Embora, dos ventos traiçoeiros,
Inseguras.
É assim que a vida por eles trepa
Cada vez dando mais vinhos de melhor cepa.
Condescendemos
Somos imperfeitos,
Quantas vezes idiotas!
E condescendemos nos trejeitos,
Fazemos batotas,
A fazer de conta
Que nada no-lo aponta.
Agarro o excelente,
Ignoro o mau instante.
Faremos asneiras ao ir para a frente,
Por diante.
Quantas feridas
Em cada ferido!
Sentidas,
Porém, sem perdermos o sentido.
Somos pessoas,
É assim,
Nem más nem boas,
A escolher, desnorteadas, entre não e sim.
Não
Às vezes é a vontade de sofrer,
Perguntar pelo que não,
Procurar pelo que não,
Insistir com o que não,
- Com o que além da raia ninguém pode ver.
Depois vem o suor e o gemido,
A terapia,
O abraço do sentido,
A anestesia...
E o sofrimento
Mudou em prazer o momento.
Escultura
Uma escultura de medo no meio da vida,
Eis a morte,
Ei-la ali no meio da avenida,
Eis-lhe na praça o recorte.
E no meio de mim:
Se estou feliz,
“Olha que vais ter fim”;
Se torço o nariz,
“Andas a perder teu tempo assim...”
Até quando me deito
Sou tão parvo que nem aproveito.
Saber
Saber que somos mortais,
Saber que iremos acabar,
Saber que não podemos jamais
Findar algo assim,
Muito menos no altar
De mim.
Trôpego
Envelhecer não é
Trôpego andar às costas de quenquer,
Vamos envelhecer de pé,
Venha o que vier.
E, se o corpo vergar,
I-lo-emos por dentro ultrapassar.
Chorar
Chorar
É o corpo a ceder,
A se encolher
Até por fim se entregar,
Para poder, com sorte,
Ao repousar,
Vir das lágrimas mais forte.
Primeiro
Primeiro, a emoção,
Senão a razão não tem objecto.
Depois, a razão alçada ao tecto,
Do alto a controlar toda a emoção,
Senão
O sentimento minará todo o trajecto
E o projecto
Logo se esbarronda em ruínas no chão.
Servos
Servos felizes geram melhores
Companheiros,
Agradáveis conversadores,
De negócio parceiros.
Se alguém não gostar de mim,
Ninguém precisa de me avisar
Quando lá de minha herdade no confim
Algum
problema a incendiar:
São livres os meus servos e, por isso, constantemente,
São quem me avisa de qualquer perigo iminente.
Senso
O frio senso comum
É de mais amar
Que a quente, esperançosa generosidade?
Ou há por aí algum
Outro senso invulgar
Que traga à tona a outra e final realidade?
Ensinar
Ensinar
É frustrante
E gratificante,
Ambos a par.
Alternativa que nos diz
Do aprendiz:
Uns são atentos e talentosos,
Outros, não.
Aqueles gratificam uma instrução
Plena de gozos,
Estes só encorajados ou sofrendo punição
Galgarão
Alguns degraus para algo
Tão suficientemente satisfatório que, agarrando-os à mão,
Os galgo.
O bom e o mau
Transpõem lado a lado o rio a vau.
Quantos
Quantos terão mágicos talentos
E nunca os desenvolveram?
Quantos nunca souberam,
Jogados ao sabor dos ventos,
Que os têm?...
- Quanta oportunidade perdida de ir além!
Nunca
O amor nunca reclama,
Sempre dá,
Tolera quem ama,
Jamais se irrita com o que há
E, contra o mundo nesta contradança,
Nunca exerce vingança.