SEXTO  BRINDE

 

 

 

 

Amanhã

 

O amanhã que me perfilo

É bom que eu veja o sentido

Que tem:

O amanhã é sempre aquilo

Que nunca está prometido

A ninguém...

 

 

 

Em toda a oportunidade

Lê o pessimista

Uma dificuldade.

 

Em toda a dificuldade

Lê o optimista

Uma oportunidade.

 

É o que abona

O que o fado aqui joga:

Quem vem à tona,

Quem afoga.

 

 

Derrotado

 

Derrotado

É apenas o que não fracassa.

Derrota é guerra, batalha, conflito em que hei falhado;

Fracasso, não deixando lutar,

Deixa-me de alma escassa,

Tolhido no lugar.

 

Derrota é não lograr

O que muito quiser.

Fracasso, não permitindo sonhar,

É não desejar para não sofrer.

 

A derrota finda quando me empenho

Em novo combate.

O fracasso não finda: dele o desenho

É escolher minha vida para abate.

 

 

Cicatrizes

 

Cicatrizes são medalhas

Na carne a ferro e fogo.

O inimigo com que calhas

Assustado deixam logo:

 

São a evidência

De que quem ante ele se abate

Tem muita experiência

De combate.

 

Disto conta dar

Muitas vezes é o requisito

Para o diálogo procurar

Em lugar do conflito.

 

Fala mais alto a cicatriz

Que a lâmina que a talhou em meu cariz.

 

 

Solidão

 

Para os que não findem assustados

Pela solidão reveladora de mistérios

Todos os traslados

Terão, de repente,

Os sabores sidéreos

Escondidos no coração de toda a gente.

 

Na solidão

O amor escondido

Descobrirão

Que poderia brotar despercebido.

 

Da solidão no cortante fio

Compreenderão

O amor que partiu

E respeitá-lo-ão.

 

Irão decidir

Se que regresse

Vale a pena pedir

Ou antes deverão permitir

Para cada qual um novo caminho,

A plantar nova messe,

A entrelaçar novo ninho.

 

Na solidão aprendem

Que dizer não,

Que não se rendem,

Nem sempre é a faculdade

Da desilusão,

Da falta de generosidade.

 

E que dizer sim

Às vezes nos ilude,

Pois nem sempre, assim,

É uma virtude.

 

 

Perder

 

Ao perder uma batalha

Ou o que creio possuir,

Logo me atrapalha

A tristeza do devir.

 

Depois a nuvem passa

E descubro a força ignota

Que por nós grassa

E nos surpreende com a nota

De tomarmos a peito

Por nós próprios o respeito.

 

Olhamos em redor:

- Sobrevivi!

Alegra-nos o teor

Do frenesi.

 

Só quem a força não reconhece

Dirá: - Perdi!

E fica triste e se esquece.

E por dentro de si

Apodrece, apodrece, apodrece...

 

 

Ciclos

 

Nos ciclos vividos

Não há vencedores nem vencidos,

 

Meras etapas seguidas

Que deverão ser cumpridas.

 

Quando o coração isto entende,

Fica livre e se rende.

 

Os momentos difíceis acolhe sem pesar

E não se deixa enganar

 

Pela vitória

Dos momentos de glória.

 

Vão passar ambos,

Um ao outro sucedendo nos escambos.

 

E o ciclo continua

Até da carne nos libertarmos da pua

 

E nos encontrarmos um dia

Com a infinda fonte da Energia.

 

Quando o lutador estiver na arena,

Por escolha ou do fado por alguma pena,

 

Alegre-se do combate a travar.

Se em dignidade e honra se elevar.

 

Pode perder o combate enfrentado

Mas jamais é derrotado

 

Porque, de facto,

O imo dele findará intacto.

 

 

Ganho

 

Dirão, orgulhosos:

- Nunca perdi uma batalha!

Nunca, porém, gozosos:

- Uma ganho quando calha!

 

O que também não lhes importa.

Vivem num plano

Em que nada lhes atinge a porta:
Das injustiças fecham os olhos ao dano,

O sofrimento é um engano,

 

Seguros por não ter de lidar

Com o desafio quotidiano

Que tem de enfrentar

O que arrisca palpites

De ir além dos limites.

 

Dum adeus nunca viram o traço

Nem dum “eis-me de volta”,

Nem o sabor dum abraço

De quem se havia perdido

E retorna da pegada à solta

À nova jornada emprestando sentido.

 

 

Ensinam

 

Ensinam aos filhos:

“Não se metam em sarilhos,

 

Que só terão a perder.

As dúvidas que houver

 

Guardem-nas, são vossos temas,

E não terão problemas.

 

Se alguém vos agredir,

Que ninguém ofendido se vá sentir

 

Nem se rebaixe, a cada baque,

Tentando responder ao ataque.

 

Há meta mais subida

Com que preocupar-se na vida.”

 

De noite enfrentam, em gestas temerárias,

Mil batalhas imaginárias:

 

 

Um sonho irrealizado qualquer,

Injustiça que fingiram não entender,

 

Momentos de cobardia

Disfarçada cada dia

 

(Se todo o mundo engana,

Ao próprio apenas dana),

 

Um amor predestinado

Sem coragem de ser abordado...

 

“Amanhã será diferente” – cada qual avisa.

Mas o amanhã chega, afinal,

Com a pergunta que tudo paralisa:

“E se tudo correr mal?”

 

Então, na estrada,

Nunca mais farão mais nada.

 

 

Benditos

 

Benditos os que não

Temeram

A solidão.

Com a própria companhia

Não se assustam nem desesperam:

Buscam uma fantasia

Com que se ocupar, divertir, julgar

Qualquer ninharia

A par.

 

Quem nunca estiver só, de si se esquece

E já se não conhece.

 

Quem se não conhece, no desvio,

Desata a temer o vazio.

 

Ora, o vazio não existe.

Há um mundo interminável,

Em nosso imo escondido,

Que persiste, inescapável,

À espera de ser descoberto,

No fim do trilho perdido,

Agora aberto.

Ali está, paisagem de maravilhas,

Com a força intacta

De infinitas trilhas,

Tão nova, poderosa, tumefacta

Que tememos acatar-lhe a evidência

Da existência.

 

Pois descobrir quem somos, quem,

Obriga-nos a aceitar

Que poderemos navegar muito além

Do que costumamos singrar.

 

É o que nos assusta.

É melhor não arriscar tanto,

Que tanto custa!

 

Poderemos justificar:

“Não fiz o que precisava, porquanto

Não me deixaram operar.”

 

É mais confortável,

Mais seguro na rota seguida.

Porém, ao mesmo tempo, insofismável,

É renunciar à vida.

 

Triste do que prefere,

Na vacuidade,

Perder a vida a dizer:

“Não tive oportunidade...”

 

Cada dia se afunda mais

No poço dos limites

Até ao momento em que jamais

Terá força para os desquites,

 

Para trepar dele e reencontrar

A luz que brilha

Na abertura a cintilar

Por cima da cabeça que o envencilha.

 

Benditos, ao invés, os que dirão:

“Não tenho coragem.”

A tremer, então,

Reagem,

Agem,

E em frente, timoratos, seguirão.

 

 

Cura

 

Deus nem sempre cura,

Mas sempre responde:

Sim, não, espera, procura,

Tu sabes onde...

 

A mulher de Gandhi

Comenta um dia ao marido:

“A pedir e jejuar continuas para aí

Mas Deus não responde a teu pedido...”

 

Ele olha-a lá donde

Jejuava e rebateu, chão:

“Claro que responde.

Diz-me: não!”

 

É que Deus não tem mesmo meio

De não responder, em seu seio.

 

 

Corrente

 

Encontramo-nos dentro da corrente.

Querer saber onde pôr o pé

Para a próxima pegada segura em frente

É ir contra o que a vida é,

 

Navegar contra a natureza,

O plano de Deus, o fito do Universo.

Custa mais e quanto pesa

No caminho entortado e tão disperso!

 

Se nos deixarmos ir

E que a corrente para nós trabalhe,

Tudo é mais fácil a seguir,

A vogar por onde calhe.

 

Deus é a corrente para além

De nossa imaginação

Do que nos convém

Nas leiras deste chão.

 

Operará apenas

Se nos deixarmos ir,

Permitindo as grandes e pequenas

Obras que pretenda urdir.

 

Porque Deus nunca se impõe:

Pese embora a enormidade a quanto orça

Do que propõe,

Nunca se impõe pela força.

 

 

Crise

 

Pode ser um deslize

Ou alguns tormentos

Ou os sonhos todos a se esbarrondarem:

Às vezes é preciso uma crise

Para os verdadeiros sentimentos

Se revelarem.

 

 

Sonho

 

O meu sonho

Em tuas mãos deponho,

Tuas mãos de sol-nascer e de sol-pôr.

Meu sonho

Em tuas mãos deponho:

É o amor,

Meu amor.

 

Em tuas mãos de luar

Concito

Meu grito

De guerrear:

- De semear

O Infinito.

 

 

Miragem

 

Miragem

Da vida no desatino,

Uma viagem

É o destino:

Tanto fado que nos fada

Como sonho de chegada.

 

 

Certa

 

Numa altura certa,

Certa a melodia

E a poesia aberta,

Qualquer alma curaria.

Tal nada, mais o desperta?

- Parece mesmo magia!

 

 

Acusador

 

O diabo é acusador:

Que a paciência tem limites,

Que o perdão tem prazo, para ter valor...

De Deus no armazém,

Porém,

Nunca se esgotam os desquites,

Sejam quais forem os nossos palpites.

 

 

Apoio

 

Os que a adversidade enfrentaram

Encontram apoio e força autêntica

Naqueles que passaram

Por conjuntura idêntica.

 

O melhor conselheiro

É o que entende o que ando a suportar,

Não o que toda a resposta, pioneiro,

Tem para dar.

 

A pista

É ser verdadeiro

E não, ser especialista.

 

 

Exequível

 

É deveras exequível

Que um dia te consagres

A mistérios que não desaparecem,

Pois o que há de mais incrível

Nos milagres

É que eles acontecem.

 

 

Criminoso

 

O criminoso

É o artista criador

Perante quem o detective invernoso

É mero crítico sem fulgor.

Pena é

Que vá por aquele pé...

 

 

Qual

 

Para onde quer que fora,

Mantinha de forçadas um harém,

Torturava escravos noite fora,

Amontoava oiro vergonhoso sempre além...

E, fiel, teria dito, porém,

Com olhar firme e sedutor,

Que era tudo para glória do Senhor!

 

E era verdade, por sinal,

Pois a pergunta que tudo isto de vez entrava

Ninguém lhe perguntava:

- Mas qual Senhor, qual?

 

 

Sábio

 

Onde é que um sábio uma folha esconderia?

Numa floresta.

E se floresta não havia?

Então ele a criaria,

Presta.

E se a folha fora morta?

Morta a floresta engendraria,

Ao cruzar da porta.

Tal como esconderia um seixo?

Sim, na praia,

Com um desvelo e um desleixo

Que a mão alheia de todo distraia.

 

 

Penedias

 

Os que oram na montanha, nas altas penedias,

Olham para baixo, para o mundo,

Aprendem a menosprezá-lo todos os dias,

Formigueiro infecundo,

- Em lugar de, rasgando o véu,

Olharem para cima, para o céu.

 

 

Humanidade

 

A humanidade,

Quando um dia o logre ser,

Não é a totalidade de habitantes que houver,

Mas a infinita unidade

De reciprocidades que entretecer.

 

 

Obscurantismo

 

O obscurantismo da linguagem

É a máscara atrás da qual se perfilarão

As garras da espoliação:

Pretendem, com a camuflagem,

Arrebatar ao povo, num golpe de magia,

Os próprios bens e a soberania.

 

 

Puras

 

Não há mãos puras,

Inocentes. Nem cândidos espectadores.

Todos tentamos meter as unhas inseguras

De nosso húmus nos pântanos geradores,

No tremendo abismo incongruente

De nossa mente.

 

Qualquer espectador

É um cobarde ou um traidor.

 

 

Medida

 

A felicidade não é o mundo

À nossa medida,

Não é acordar no alvor jucundo,

De cara convencida,

Cheio de mim, mouco

Daquilo com que me iludo,

Tendo tão pouco

E a crer que tenho tudo.

 

É a divergência, a adversidade

Superar, de maneira

Que a leira

Que eu grade

Me acabe por levar

Aonde pretender chegar:

A uma felicidade

Mais pura e mais inteira,

Em que felizes são quantos arroteiam,

- Eu e os homens todos que me rodeiam.

 

 

Aceitar

 

O contratempo ao aceitar,

A inesperada conjuntura

Que a vida nos jogar,

Temos a oportunidade segura

De nos descentrar

E de então, de repente,

Poder em redor olhar

De modo cada vez mais abrangente.

 

 

Astúcia

 

É inteligente

Quem

Um cérebro contém.

É esperto um ente,

Porém,

Se for quenquer

Que, para além,

Astúcia tiver.

 

Pode criar uma ilusão,

A surpresa admirada.

Tal é qualquer arte em função,

Magia arrebatada,

Música viva,

Ficção,

Narrativa...

 

É o olho interior

Projectado em acção

Para o exterior

Pela imaginação.

 

 

Mar

 

Quando admiro em alguém

A beleza tranquila e cintilante

Do espelho do mar,

Ignoro além

O coração de tigre pulsante

Por baixo a arquejar.

 

Não me ocorre naturalmente

Que esta pata de veludo

Dissimula, presente,

A garra impiedosa no disfarce felpudo.

 

 

Consertados

 

Nem sempre os indivíduos precisam

De ser consertados.

Avisam,

Por vezes, os mais firmes dados

 

Que o que requerem é, se calhar,

Que lhes digam de que lado sopra o vento

Para as velas poderem ajustar

A qualquer momento

 

E lhes ser permitido encontrar,

Adivinho,

O próprio caminho.

 

 

Correcto

 

Faremos, quantas vezes faremos

Algo com o aspecto

Que não queremos

Porque cremos

Que é o correcto!

 

 

Escondemos

 

Guardamos no coração,

Escondemos do mundo

O que, se o não fizermos, então

O risco pisaremos iracundo

De o mundo nos ver nos assomos

Do que deveras somos.

 

Ora,

Isto é uma hipótese muito assustadora.

 

 

Medo

 

Fugir do medo

Não o faz desaparecer.

Mais tarde ou mais cedo

Ele acaba por vencer,

A não ser que, definitivamente,

O enfrente.

 

 

Idade

 

Por mais idade que tenhamos,

Seremos sempre crianças

Perante quem nos criou.

E nunca de vez libertamos

Ante ele as danças

De nosso próprio voo.

 

É o perene limite

Contra o qual, perene, me incite.

Até

Que o próprio pé

Me desquite.

 

 

Pescador

 

O pescador sabe que o mar

É perigoso e medonha a tempestade

Mas nunca vai achar

Que por tais perigos há-de

Em terra ficar.

 

E todos lhe herdamos a costela

Que nos põe a vida a navegar à vela.

 

 

Parte

 

A parte do coração

Que nos leva a amar alguém

Para além

Do que nos haja feito ou não

É a mesma que nos leva a perdoá-lo

Pelo que quer que seja que nos deixa tanto abalo.

 

 

Beira-mar

 

Uma criança à beira-mar,

Uma concha mais bonita que o vulgar...

 

E o mar infinito da verdade ignota

Diante dela e tão longe da rota!...

 

E eu aqui, a eterna criança,

Sem reparar no que a vista nem alcança.

 

 

Oprimido

 

Correr a vida oprimido

De ansiedade por mor da morte

É loucura, devido

A ser modo garantido

De deixar que, à sorte,

A vida

Nos escape inacabada e não fruída.

 

Infligir a outrem, no coração,

Esta ansiedade

É manipulação

E crueldade.

 

Todos os que com tal tarja se tarjem

Viverão da vida à margem.

 

 

Amores

 

Quando um rapaz e uma rapariga

Se tomam de amores

E tais amores se mostram, na briga,

Coriáceos e resistentes

Ao fogo, de terra aos tremores,

Todas as regras sociais existentes

E leis heráldicas da mais nobre arte

São postas de parte.

 

E é da frágil haste deste renovo

Que brota o mundo novo.

 

 

Fingir

 

O mal anda sempre a fingir

Que é o bem.

O mal não sabe que é mal,

Porém.

 

- Até que, a seguir,

Alguém

Lhe arranca a máscara do bem

E vemos que, afinal,

Aquele bem é um mal.

 

 

Parece

 

Nada nem ninguém

É o que parece.

O mais estranho, porém,

Do parecer

É que, da vida na estranha messe,

Ninguém é, sequer,

O que acredita ser.

 

Sempre de mim por trás

Se esconde outro de mim mais veraz.

 

É assim com toda a gente

Até ao infinito, sucessivamente.

 

 

Desgosto

 

Da morte o desgosto é trilho solitário,

Requer isolamento.

De sentir cada um tem um modo vário

E nada preenche o esvaziamento.

Mesmo entregando aos céus

Os gritos meus.

 

 

Bilateral

 

O perdão não tem de ser bilateral,

Vem de dentro de alguém.

Não requer, porém,

Nenhum sinal

De envolvimento

Nem reconhecimento,

Nem aceitação

Por parte doutrem a quem se der a mão.

 

 

Coragem

 

Nas vidas há viagem

E há sorte.

E há coragem

Que é ter um medo de morte,

Persistindo, renitente,

Em frente.

 

 

Única

 

Por vezes somos a única entidade

Para enfrentar o mal dos maus.

Se não pegarmos nos varapaus,

Por muito que nos desagrade,

Quem vai enfrentá-los

Por quem não tem capacidade

E por quem estes amarem no meio dos abalos?

 

Fugir, não, não suporto isso,

O rabo entre as pernas não quebra o enguiço.

 

Ocorre muito mal

Aos bons

Sempre, por sinal,

E em todos os tons.

 

Nunca o esqueças,

Na hora de pedir meças.

 

 

Rosto

 

O mal tem rosto,

Anda às vezes, por aí,

De colarinho branco, mui bem posto,

Com tatuagens aqui e ali,

 

Coletes à prova de bala,

Farda de polícia,

No púlpito a botar fala,

De juiz numa pérfida carícia...

 

- Esconde-se por trás

De qualquer disfarce: de todos é capaz!

 

Independentemente da máscara, o real

É que continua a ser o mal.

 

Só há uma forma de lidar com ele

Com certeza:

Não é jogar à defesa,

É arrancar-lhe a pele.

 

 

Tudo

 

Tudo o que houver no mundo

 E o mundo em si

Não pára: passa, no fundo,

Tal se o nunca houvera aí.

Nesta ausência de demora

É tal como se não fora.

 

 

Crescer

 

Não digo que não trate de crescer,

Mas conheça cada qual aquilo que é

Antes que o que pode vir a ser

Ponha de pé.

Doutro modo, o que demonstro

É que irá devir um monstro.

 

 

Entranhas

 

Conferir entranhas

De quem se não sacrificou

Nem sacrifica

Nem há-de sacrificar

É não querer profetizar:

A verdade findou

Nas matreiras manhas

Por que fica.

 

É o presente cegar

No que auguro,

Não é acertar

No futuro.

 

 

Ancestrais

 

O nascimento,

Nossos ancestrais,

O que não obrámos por nosso empenhamento,

Não posso,

Deveras, a coisas tais,

Chamar o nosso.

 

Sou a minha acção,

O resto, não.

 

 

Dentro

 

Descobre no que lavras

Qual é o teu centro:

O som das palavras

Bate-nos fora no ouvido,

O sentido

Encontra-se dentro.

 

 

Dinheiro

 

Quem deveras manda,

No fundo, por inteiro,

É quem com a máquina desanda:

- Os homens do dinheiro.

 

Por isso

É que de esperança

Resta apenas um chamiço.

Quem o alcança? Quem o alcança?

 

Quem domina o feitiço

De o acender para a cósmica dança?

 

A maldição terrena

É o poder do dinheiro.

Que pena,

Que pena não haver outro luzeiro!

 

 

Justa

 

A vida não é justa:

Os responsáveis escapam,

A arraia-miúda fica, paga a custa

E são sempre os corpos dela

Que tapam

Os buracos que restarem da sequela.

 

 

Pessimista

 

O pessimista é quem

Nas presas

Apenas tem

Agradáveis surpresas.

O pior é que insiste

Que nenhuma existe.

 

 

Sorrir

 

Sorrir a todos os momentos

É, de certeza,

Um dos melhores tratamentos

De beleza.

 

Ainda por cima,

Mesmo fortuito,

Além de melhorar o clima,

É gratuito.

 

 

Falhar

 

Ninguém gosta de falhar,

Mas o falhanço,

Além de vida a rodar,

É aprendizagem que alcanço.

Alguém não sujou o equipamento? Logo,

Não foi a jogo.

 

 

Cãs

 

Coberto de cãs e apaixonado,

Quem o diria sequer

De tal à beira?

Estar coberto de neve o telhado

Não quer dizer

Que não haja fogo na lareira...

 

 

Míngua

 

Quão mais de sentidos à míngua,

Tão mais as leis nos mordem,

Em uniformes ordenados.

Ora, a língua

É o alfabeto em desordem

- E quantos sentidos encontrados

Nos fonemas desordenados!

 

 

Inacreditável

 

O mais inacreditável

É que poder

Leva a que nos fitem:

- Nada como o inimaginável

Para fazer

Com que as gentes acreditem!

 

 

Localização

 

Localização é chave

De êxito para o negócio que se fez,

Para as artes e a própria vida:

Prospero ou murcho na cave,

Conforme a abundância ou escassez

Nutritiva que no ambiente

Regularmente

Me convida.

 

 

Sombra

 

A fé coloca-me ao sol,

Projectando pela alfombra

A minha sombra

Ligeira e mole.

 

Área de escuridão

A mim agarrada,

Jamais logro sacudi-la de mim, então,

Sempre a espelhar-me, danada.

 

É a dúvida a me seguir,

Vá para onde for

Desde que me mantenha ao calor

Do sol que perseguir.

 

 

Falar

 

Falar acerca de falar,

Afinal, tem história:

É que é sempre o lugar

Da memória.

 

Nem que nunca o reconheça

Quem naquilo tropeça,

 

É quem, no fio deste bisturi,

Tropeça, afinal, em si.

 

 

Violência

 

Quem pela violência é apunhalado

Adquire um companheiro

Que o não largará jamais abandonado

Por inteiro:

Suspeita, medo, ansiedade,

Desespero, tristeza – o clima de noite

Que o invade

E jamais lhe deixa onde se acoite.

 

 

Paciência

 

Só os que têm a paciência

Do simples com perfeição

A ciência

Adquirirão

E a habilidade

Do difícil com facilidade.

 

 

Deferimento

 

Cuidas levar, no deferimento

Do requerido, remédio à lesão

Mais teu aumento

- E pode ser a tua condenação.

 

Quando despontas,

Ao ir além,

Jamais irás saber o que, no fim de contas,

Deveras te convém.

 

 

Pobres

 

Pobres dos pobres

Que não têm dinheiro

E mais pobres dos ricos feitos nobres

Que nele se fiam por inteiro!

Não vêem, todos enganados,

Que a vida joga sempre noutros tablados.

 

 

Achar

 

A felicidade, às vezes,

Não em achar o que se busca

E nos ofusca

E desejamos meses e meses,

Consiste mas, ao invés, vamo-la encontrar

Apenas em não o achar.

 

 

Estreiteza

 

Dá graças pela estreiteza

De teu pão

À tua mesa.

É que, se todos vão

Tombar à sepultura,

Tu, por comer menos,

Mais tarde chegas, se apura,

Da tumba aos acenos

E, por fim, feito valido,

És até menos comido.

 

 

Luz

 

Quando uma fala exterior

Da interior luz assistida

For,

Diga embora a fala ouvida

O que disser

E diga-o quenquer que seja,

Quenquer,

Isto é ensinar que se veja:

- No íntimo tudo bate,

Tocam sinos a rebate.

 

 

Povo

 

O povo tem as mãos cheias

De calos.

Quem trabalha sem intervalos

Trata de sua vida, não das alheias.

 

O ocioso é que destas trata,

Do topo das ameias,

E então as maltrata,

Cheio de verdades meias.

 

Quem labora cuida no que faz,

Fala verdade, as coisas como são.

O ocioso que de nada é capaz,

Então,

Como nada tem para fazer,

Mente,

Porque imagina o que poderá ser

E derruba na infâmia toda a gente.

 

 

Gera

 

O ócio gera a imaginação,

Da imaginação, a suspeita,

Da suspeita, a mentira.

Chão

Em que a vida a tal afeita

Delira.

Torrão

Do enterro, pela vil maleita

Da honra que ali se fira.

 

 

Uma

 

A beleza duma só flor

Muda a solidão e secura do deserto.

A harmonia interior

Muda o Universo inteiro,

A cada aurora mais desperto.

- E do Infinito me abeiro.

 

 

Harmonia

 

A harmonia mora dentro,

Em nosso território interior,

Bem no centro:

Ninguém no-la pode tirar nem dela dispor.

 

Mesmo que o mundo nos caia aos pés,

Em paz, firme e coerente,

Compreendo as marés

E sigo em frente.

 

 

Venda

 

Com uma venda nos olhos

Dá-te a mão

E dirige-te entre escolhos,

A intuição,

No sentido

Dum lugar desconhecido.

 

Caminha confiante

Em cada passo que deres,

Que ela caminha adiante

Para te não perderes.

 

Se pressentires perigo,

Pára.

Era ela a segredar-te ao postigo

Que uma emboscada se te depara.

 

Aprende a escutá-la

E a caminhar sem ver.

Treina-te a saber,

Humilde e chão,

O que te atrai e o que te abala

Através da intuição.

 

 

Louca

 

Por louca que seja a vida

Que o artista leva,

Um mistério nos convida,

Luminoso em meio à treva,

Proveniente do íntimo do artista

Que a obra nos põe à vista.

 

 

Aceita

 

Aceita ser quem és,

Faz o que adoras,

Por que tens paixão.

Quando isto ocorre, de frente e de través,

Arranjas a quaisquer horas

A fórmula de bem operar em toda a ocasião.

 

 

Simplicidade

 

Quantos biliões de partículas na físsil

Materialidade!

Quantas confusões no milenar míssil

Da história da humanidade!

- Quão difícil

A simplicidade!