SEXTO BRINDE
Amanhã
O amanhã que me perfilo
É bom que eu veja o sentido
Que tem:
O amanhã é sempre aquilo
Que nunca está prometido
A ninguém...
Lê
Em toda a oportunidade
Lê o pessimista
Uma dificuldade.
Em toda a dificuldade
Lê o optimista
Uma oportunidade.
É o que abona
O que o fado aqui joga:
Quem vem à tona,
Quem afoga.
Derrotado
Derrotado
É apenas o que não fracassa.
Derrota é guerra, batalha, conflito em que hei falhado;
Fracasso, não deixando lutar,
Deixa-me de alma escassa,
Tolhido no lugar.
Derrota é não lograr
O que muito quiser.
Fracasso, não permitindo sonhar,
É não desejar para não sofrer.
A derrota finda quando me empenho
Em novo combate.
O fracasso não finda: dele o desenho
É escolher minha vida para abate.
Cicatrizes
Cicatrizes são medalhas
Na carne a ferro e fogo.
O inimigo com que calhas
Assustado deixam logo:
São a evidência
De que quem ante ele se abate
Tem muita experiência
De combate.
Disto conta dar
Muitas vezes é o requisito
Para o diálogo procurar
Em lugar do conflito.
Fala mais alto a cicatriz
Que a lâmina que a talhou em meu cariz.
Solidão
Para os que não findem assustados
Pela solidão reveladora de mistérios
Todos os traslados
Terão, de repente,
Os sabores sidéreos
Escondidos no coração de toda a gente.
Na solidão
O amor escondido
Descobrirão
Que poderia brotar despercebido.
Da solidão no cortante fio
Compreenderão
O amor que partiu
E respeitá-lo-ão.
Irão decidir
Se que regresse
Vale a pena pedir
Ou antes deverão permitir
Para cada qual um novo caminho,
A plantar nova messe,
A entrelaçar novo ninho.
Na solidão aprendem
Que dizer não,
Que não se rendem,
Nem sempre é a faculdade
Da desilusão,
Da falta de generosidade.
E que dizer sim
Às vezes nos ilude,
Pois nem sempre, assim,
É uma virtude.
Perder
Ao perder uma batalha
Ou o que creio possuir,
Logo me atrapalha
A tristeza do devir.
Depois a nuvem passa
E descubro a força ignota
Que por nós grassa
E nos surpreende com a nota
De tomarmos a peito
Por nós próprios o respeito.
Olhamos em redor:
- Sobrevivi!
Alegra-nos o teor
Do frenesi.
Só quem a força não reconhece
Dirá: - Perdi!
E fica triste e se esquece.
E por dentro de si
Apodrece, apodrece, apodrece...
Ciclos
Nos ciclos vividos
Não há vencedores nem vencidos,
Meras etapas seguidas
Que deverão ser cumpridas.
Quando o coração isto entende,
Fica livre e se rende.
Os momentos difíceis acolhe sem pesar
E não se deixa enganar
Pela vitória
Dos momentos de glória.
Vão passar ambos,
Um ao outro sucedendo nos escambos.
E o ciclo continua
Até da carne nos libertarmos da pua
E nos encontrarmos um dia
Com a infinda fonte da Energia.
Quando o lutador estiver na arena,
Por escolha ou do fado por alguma pena,
Alegre-se do combate a travar.
Se em dignidade e honra se elevar.
Pode perder o combate enfrentado
Mas jamais é derrotado
Porque, de facto,
O imo dele findará intacto.
Ganho
Dirão, orgulhosos:
- Nunca perdi uma batalha!
Nunca, porém, gozosos:
- Uma ganho quando calha!
O que também não lhes importa.
Vivem num plano
Em que nada lhes
atinge a porta:
Das injustiças fecham os olhos ao dano,
O sofrimento é um engano,
Seguros por não ter de lidar
Com o desafio quotidiano
Que tem de enfrentar
O que arrisca palpites
De ir além dos limites.
Dum adeus nunca viram o traço
Nem dum “eis-me de volta”,
Nem o sabor dum abraço
De quem se havia perdido
E retorna da pegada à solta
À nova jornada emprestando sentido.
Ensinam
Ensinam aos filhos:
“Não se metam em sarilhos,
Que só terão a perder.
As dúvidas que houver
Guardem-nas, são vossos temas,
E não terão problemas.
Se alguém vos agredir,
Que ninguém ofendido se vá sentir
Nem se rebaixe, a cada baque,
Tentando responder ao ataque.
Há meta mais subida
Com que preocupar-se na vida.”
De noite enfrentam, em gestas temerárias,
Mil batalhas imaginárias:
Um sonho irrealizado qualquer,
Injustiça que fingiram não entender,
Momentos de cobardia
Disfarçada cada dia
(Se todo o mundo engana,
Ao próprio apenas dana),
Um amor predestinado
Sem coragem de ser abordado...
“Amanhã será diferente” – cada qual avisa.
Mas o amanhã chega, afinal,
Com a pergunta que tudo paralisa:
“E se tudo correr mal?”
Então, na estrada,
Nunca mais farão mais nada.
Benditos
Benditos os que não
Temeram
A solidão.
Com a própria companhia
Não se assustam nem desesperam:
Buscam uma fantasia
Com que se ocupar, divertir, julgar
Qualquer ninharia
A par.
Quem nunca estiver só, de si se esquece
E já se não conhece.
Quem se não conhece, no desvio,
Desata a temer o vazio.
Ora, o vazio não existe.
Há um mundo interminável,
Em nosso imo escondido,
Que persiste, inescapável,
À espera de ser descoberto,
No fim do trilho perdido,
Agora aberto.
Ali está, paisagem de maravilhas,
Com a força intacta
De infinitas trilhas,
Tão nova, poderosa, tumefacta
Que tememos acatar-lhe a evidência
Da existência.
Pois descobrir quem somos, quem,
Obriga-nos a aceitar
Que poderemos navegar muito além
Do que costumamos singrar.
É o que nos assusta.
É melhor não arriscar tanto,
Que tanto custa!
Poderemos justificar:
“Não fiz o que precisava, porquanto
Não me deixaram operar.”
É mais confortável,
Mais seguro na rota seguida.
Porém, ao mesmo tempo, insofismável,
É renunciar à vida.
Triste do que prefere,
Na vacuidade,
Perder a vida a dizer:
“Não tive oportunidade...”
Cada dia se afunda mais
No poço dos limites
Até ao momento em que jamais
Terá força para os desquites,
Para trepar dele e reencontrar
A luz que brilha
Na abertura a cintilar
Por cima da cabeça que o envencilha.
Benditos, ao invés, os que dirão:
“Não tenho coragem.”
A tremer, então,
Reagem,
Agem,
E em frente, timoratos, seguirão.
Cura
Deus nem sempre cura,
Mas sempre responde:
Sim, não, espera, procura,
Tu sabes onde...
A mulher de Gandhi
Comenta um dia ao marido:
“A pedir e jejuar continuas para aí
Mas Deus não responde a teu pedido...”
Ele olha-a lá donde
Jejuava e rebateu, chão:
“Claro que responde.
Diz-me: não!”
É que Deus não tem mesmo meio
De não responder, em seu seio.
Corrente
Encontramo-nos dentro da corrente.
Querer saber onde pôr o pé
Para a próxima pegada segura em frente
É ir contra o que a vida é,
Navegar contra a natureza,
O plano de Deus, o fito do Universo.
Custa mais e quanto pesa
No caminho entortado e tão disperso!
Se nos deixarmos ir
E que a corrente para nós trabalhe,
Tudo é mais fácil a seguir,
A vogar por onde calhe.
Deus é a corrente para além
De nossa imaginação
Do que nos convém
Nas leiras deste chão.
Operará apenas
Se nos deixarmos ir,
Permitindo as grandes e pequenas
Obras que pretenda urdir.
Porque Deus nunca se impõe:
Pese embora a enormidade a quanto orça
Do que propõe,
Nunca se impõe pela força.
Crise
Pode ser um deslize
Ou alguns tormentos
Ou os sonhos todos a se esbarrondarem:
Às vezes é preciso uma crise
Para os verdadeiros sentimentos
Se revelarem.
Sonho
O meu sonho
Em tuas mãos deponho,
Tuas mãos de sol-nascer e de sol-pôr.
Meu sonho
Em tuas mãos deponho:
É o amor,
Meu amor.
Em tuas mãos de luar
Concito
Meu grito
De guerrear:
- De semear
O Infinito.
Miragem
Miragem
Da vida no desatino,
Uma viagem
É o destino:
Tanto fado que nos fada
Como sonho de chegada.
Certa
Numa altura certa,
Certa a melodia
E a poesia aberta,
Qualquer alma curaria.
Tal nada, mais o desperta?
- Parece mesmo magia!
Acusador
O diabo é acusador:
Que a paciência tem limites,
Que o perdão tem prazo, para ter valor...
De Deus no armazém,
Porém,
Nunca se esgotam os desquites,
Sejam quais forem os nossos palpites.
Apoio
Os que a adversidade enfrentaram
Encontram apoio e força autêntica
Naqueles que passaram
Por conjuntura idêntica.
O melhor conselheiro
É o que entende o que ando a suportar,
Não o que toda a resposta, pioneiro,
Tem para dar.
A pista
É ser verdadeiro
E não, ser especialista.
Exequível
É deveras exequível
Que um dia te consagres
A mistérios que não desaparecem,
Pois o que há de mais incrível
Nos milagres
É que eles acontecem.
Criminoso
O criminoso
É o artista criador
Perante quem o detective invernoso
É mero crítico sem fulgor.
Pena é
Que vá por aquele pé...
Qual
Para onde quer que fora,
Mantinha de forçadas um harém,
Torturava escravos noite fora,
Amontoava oiro vergonhoso sempre além...
E, fiel, teria dito, porém,
Com olhar firme e sedutor,
Que era tudo para glória do Senhor!
E era verdade, por sinal,
Pois a pergunta que tudo isto de vez entrava
Ninguém lhe perguntava:
- Mas qual Senhor, qual?
Sábio
Onde é que um sábio uma folha esconderia?
Numa floresta.
E se floresta não havia?
Então ele a criaria,
Presta.
E se a folha fora morta?
Morta a floresta engendraria,
Ao cruzar da porta.
Tal como esconderia um seixo?
Sim, na praia,
Com um desvelo e um desleixo
Que a mão alheia de todo distraia.
Penedias
Os que oram na montanha, nas altas penedias,
Olham para baixo, para o mundo,
Aprendem a menosprezá-lo todos os dias,
Formigueiro infecundo,
- Em lugar de, rasgando o véu,
Olharem para cima, para o céu.
Humanidade
A humanidade,
Quando um dia o logre ser,
Não é a totalidade de habitantes que houver,
Mas a infinita unidade
De reciprocidades que entretecer.
Obscurantismo
O obscurantismo da linguagem
É a máscara atrás da qual se perfilarão
As garras da espoliação:
Pretendem, com a camuflagem,
Arrebatar ao povo, num golpe de magia,
Os próprios bens e a soberania.
Puras
Não há mãos puras,
Inocentes. Nem cândidos espectadores.
Todos tentamos meter as unhas inseguras
De nosso húmus nos pântanos geradores,
No tremendo abismo incongruente
De nossa mente.
Qualquer espectador
É um cobarde ou um traidor.
Medida
A felicidade não é o mundo
À nossa medida,
Não é acordar no alvor jucundo,
De cara convencida,
Cheio de mim, mouco
Daquilo com que me iludo,
Tendo tão pouco
E a crer que tenho tudo.
É a divergência, a adversidade
Superar, de maneira
Que a leira
Que eu grade
Me acabe por levar
Aonde pretender chegar:
A uma felicidade
Mais pura e mais inteira,
Em que felizes são quantos arroteiam,
- Eu e os homens todos que me rodeiam.
Aceitar
O contratempo ao aceitar,
A inesperada conjuntura
Que a vida nos jogar,
Temos a oportunidade segura
De nos descentrar
E de então, de repente,
Poder em redor olhar
De modo cada vez mais abrangente.
Astúcia
É inteligente
Quem
Um cérebro contém.
É esperto um ente,
Porém,
Se for quenquer
Que, para além,
Astúcia tiver.
Pode criar uma ilusão,
A surpresa admirada.
Tal é qualquer arte em função,
Magia arrebatada,
Música viva,
Ficção,
Narrativa...
É o olho interior
Projectado em acção
Para o exterior
Pela imaginação.
Mar
Quando admiro em alguém
A beleza tranquila e cintilante
Do espelho do mar,
Ignoro além
O coração de tigre pulsante
Por baixo a arquejar.
Não me ocorre naturalmente
Que esta pata de veludo
Dissimula, presente,
A garra impiedosa no disfarce felpudo.
Consertados
Nem sempre os indivíduos precisam
De ser consertados.
Avisam,
Por vezes, os mais firmes dados
Que o que requerem é, se calhar,
Que lhes digam de que lado sopra o vento
Para as velas poderem ajustar
A qualquer momento
E lhes ser permitido encontrar,
Adivinho,
O próprio caminho.
Correcto
Faremos, quantas vezes faremos
Algo com o aspecto
Que não queremos
Porque cremos
Que é o correcto!
Escondemos
Guardamos no coração,
Escondemos do mundo
O que, se o não fizermos, então
O risco pisaremos iracundo
De o mundo nos ver nos assomos
Do que deveras somos.
Ora,
Isto é uma hipótese muito assustadora.
Medo
Fugir do medo
Não o faz desaparecer.
Mais tarde ou mais cedo
Ele acaba por vencer,
A não ser que, definitivamente,
O enfrente.
Idade
Por mais idade que tenhamos,
Seremos sempre crianças
Perante quem nos criou.
E nunca de vez libertamos
Ante ele as danças
De nosso próprio voo.
É o perene limite
Contra o qual, perene, me incite.
Até
Que o próprio pé
Me desquite.
Pescador
O pescador sabe que o mar
É perigoso e medonha a tempestade
Mas nunca vai achar
Que por tais perigos há-de
Em terra ficar.
E todos lhe herdamos a costela
Que nos põe a vida a navegar à vela.
Parte
A parte do coração
Que nos leva a amar alguém
Para além
Do que nos haja feito ou não
É a mesma que nos leva a perdoá-lo
Pelo que quer que seja que nos deixa tanto abalo.
Beira-mar
Uma criança à beira-mar,
Uma concha mais bonita que o vulgar...
E o mar infinito da verdade ignota
Diante dela e tão longe da rota!...
E eu aqui, a eterna criança,
Sem reparar no que a vista nem alcança.
Oprimido
Correr a vida oprimido
De ansiedade por mor da morte
É loucura, devido
A ser modo garantido
De deixar que, à sorte,
A vida
Nos escape inacabada e não fruída.
Infligir a outrem, no coração,
Esta ansiedade
É manipulação
E crueldade.
Todos os que com tal tarja se tarjem
Viverão da vida à margem.
Amores
Quando um rapaz e uma rapariga
Se tomam de amores
E tais amores se mostram, na briga,
Coriáceos e resistentes
Ao fogo, de terra aos tremores,
Todas as regras sociais existentes
E leis heráldicas da mais nobre arte
São postas de parte.
E é da frágil haste deste renovo
Que brota o mundo novo.
Fingir
O mal anda sempre a fingir
Que é o bem.
O mal não sabe que é mal,
Porém.
- Até que, a seguir,
Alguém
Lhe arranca a máscara do bem
E vemos que, afinal,
Aquele bem é um mal.
Parece
Nada nem ninguém
É o que parece.
O mais estranho, porém,
Do parecer
É que, da vida na estranha messe,
Ninguém é, sequer,
O que acredita ser.
Sempre de mim por trás
Se esconde outro de mim mais veraz.
É assim com toda a gente
Até ao infinito, sucessivamente.
Desgosto
Da morte o desgosto é trilho solitário,
Requer isolamento.
De sentir cada um tem um modo vário
E nada preenche o esvaziamento.
Mesmo entregando aos céus
Os gritos meus.
Bilateral
O perdão não tem de ser bilateral,
Vem de dentro de alguém.
Não requer, porém,
Nenhum sinal
De envolvimento
Nem reconhecimento,
Nem aceitação
Por parte doutrem a quem se der a mão.
Coragem
Nas vidas há viagem
E há sorte.
E há coragem
Que é ter um medo de morte,
Persistindo, renitente,
Em frente.
Única
Por vezes somos a única entidade
Para enfrentar o mal dos maus.
Se não pegarmos nos varapaus,
Por muito que nos desagrade,
Quem vai enfrentá-los
Por quem não tem capacidade
E por quem estes amarem no meio dos abalos?
Fugir, não, não suporto isso,
O rabo entre as pernas não quebra o enguiço.
Ocorre muito mal
Aos bons
Sempre, por sinal,
E em todos os tons.
Nunca o esqueças,
Na hora de pedir meças.
Rosto
O mal tem rosto,
Anda às vezes, por aí,
De colarinho branco, mui bem posto,
Com tatuagens aqui e ali,
Coletes à prova de bala,
Farda de polícia,
No púlpito a botar fala,
De juiz numa pérfida carícia...
- Esconde-se por trás
De qualquer disfarce: de todos é capaz!
Independentemente da máscara, o real
É que continua a ser o mal.
Só há uma forma de lidar com ele
Com certeza:
Não é jogar à defesa,
É arrancar-lhe a pele.
Tudo
Tudo o que houver no mundo
E o mundo em si
Não pára: passa, no fundo,
Tal se o nunca houvera aí.
Nesta ausência de demora
É tal como se não fora.
Crescer
Não digo que não trate de crescer,
Mas conheça cada qual aquilo que é
Antes que o que pode vir a ser
Ponha de pé.
Doutro modo, o que demonstro
É que irá devir um monstro.
Entranhas
Conferir entranhas
De quem se não sacrificou
Nem sacrifica
Nem há-de sacrificar
É não querer profetizar:
A verdade findou
Nas matreiras manhas
Por que fica.
É o presente cegar
No que auguro,
Não é acertar
No futuro.
Ancestrais
O nascimento,
Nossos ancestrais,
O que não obrámos por nosso empenhamento,
Não posso,
Deveras, a coisas tais,
Chamar o nosso.
Sou a minha acção,
O resto, não.
Dentro
Descobre no que lavras
Qual é o teu centro:
O som das palavras
Bate-nos fora no ouvido,
O sentido
Encontra-se dentro.
Dinheiro
Quem deveras manda,
No fundo, por inteiro,
É quem com a máquina desanda:
- Os homens do dinheiro.
Por isso
É que de esperança
Resta apenas um chamiço.
Quem o alcança? Quem o alcança?
Quem domina o feitiço
De o acender para a cósmica dança?
A maldição terrena
É o poder do dinheiro.
Que pena,
Que pena não haver outro luzeiro!
Justa
A vida não é justa:
Os responsáveis escapam,
A arraia-miúda fica, paga a custa
E são sempre os corpos dela
Que tapam
Os buracos que restarem da sequela.
Pessimista
O pessimista é quem
Nas presas
Apenas tem
Agradáveis surpresas.
O pior é que insiste
Que nenhuma existe.
Sorrir
Sorrir a todos os momentos
É, de certeza,
Um dos melhores tratamentos
De beleza.
Ainda por cima,
Mesmo fortuito,
Além de melhorar o clima,
É gratuito.
Falhar
Ninguém gosta de falhar,
Mas o falhanço,
Além de vida a rodar,
É aprendizagem que alcanço.
Alguém não sujou o equipamento? Logo,
Não foi a jogo.
Cãs
Coberto de cãs e apaixonado,
Quem o diria sequer
De tal à beira?
Estar coberto de neve o telhado
Não quer dizer
Que não haja fogo na lareira...
Míngua
Quão mais de sentidos à míngua,
Tão mais as leis nos mordem,
Em uniformes ordenados.
Ora, a língua
É o alfabeto em desordem
- E quantos sentidos encontrados
Nos fonemas desordenados!
Inacreditável
O mais inacreditável
É que poder
Leva a que nos fitem:
- Nada como o inimaginável
Para fazer
Com que as gentes acreditem!
Localização
Localização é chave
De êxito para o negócio que se fez,
Para as artes e a própria vida:
Prospero ou murcho na cave,
Conforme a abundância ou escassez
Nutritiva que no ambiente
Regularmente
Me convida.
Sombra
A fé coloca-me ao sol,
Projectando pela alfombra
A minha sombra
Ligeira e mole.
Área de escuridão
A mim agarrada,
Jamais logro sacudi-la de mim, então,
Sempre a espelhar-me, danada.
É a dúvida a me seguir,
Vá para onde for
Desde que me mantenha ao calor
Do sol que perseguir.
Falar
Falar acerca de falar,
Afinal, tem história:
É que é sempre o lugar
Da memória.
Nem que nunca o reconheça
Quem naquilo tropeça,
É quem, no fio deste bisturi,
Tropeça, afinal, em si.
Violência
Quem pela violência é apunhalado
Adquire um companheiro
Que o não largará jamais abandonado
Por inteiro:
Suspeita, medo, ansiedade,
Desespero, tristeza – o clima de noite
Que o invade
E jamais lhe deixa onde se acoite.
Paciência
Só os que têm a paciência
Do simples com perfeição
A ciência
Adquirirão
E a habilidade
Do difícil com facilidade.
Deferimento
Cuidas levar, no deferimento
Do requerido, remédio à lesão
Mais teu aumento
- E pode ser a tua condenação.
Quando despontas,
Ao ir além,
Jamais irás saber o que, no fim de contas,
Deveras te convém.
Pobres
Pobres dos pobres
Que não têm dinheiro
E mais pobres dos ricos feitos nobres
Que nele se fiam por inteiro!
Não vêem, todos enganados,
Que a vida joga sempre noutros tablados.
Achar
A felicidade, às vezes,
Não em achar o que se busca
E nos ofusca
E desejamos meses e meses,
Consiste mas, ao invés, vamo-la encontrar
Apenas em não o achar.
Estreiteza
Dá graças pela estreiteza
De teu pão
À tua mesa.
É que, se todos vão
Tombar à sepultura,
Tu, por comer menos,
Mais tarde chegas, se apura,
Da tumba aos acenos
E, por fim, feito valido,
És até menos comido.
Luz
Quando uma fala exterior
Da interior luz assistida
For,
Diga embora a fala ouvida
O que disser
E diga-o quenquer que seja,
Quenquer,
Isto é ensinar que se veja:
- No íntimo tudo bate,
Tocam sinos a rebate.
Povo
O povo tem as mãos cheias
De calos.
Quem trabalha sem intervalos
Trata de sua vida, não das alheias.
O ocioso é que destas trata,
Do topo das ameias,
E então as maltrata,
Cheio de verdades meias.
Quem labora cuida no que faz,
Fala verdade, as coisas como são.
O ocioso que de nada é capaz,
Então,
Como nada tem para fazer,
Mente,
Porque imagina o que poderá ser
E derruba na infâmia toda a gente.
Gera
O ócio gera a imaginação,
Da imaginação, a suspeita,
Da suspeita, a mentira.
Chão
Em que a vida a tal afeita
Delira.
Torrão
Do enterro, pela vil maleita
Da honra que ali se fira.
Uma
A beleza duma só flor
Muda a solidão e secura do deserto.
A harmonia interior
Muda o Universo inteiro,
A cada aurora mais desperto.
- E do Infinito me abeiro.
Harmonia
A harmonia mora dentro,
Em nosso território interior,
Bem no centro:
Ninguém no-la pode tirar nem dela dispor.
Mesmo que o mundo nos caia aos pés,
Em paz, firme e coerente,
Compreendo as marés
E sigo em frente.
Venda
Com uma venda nos olhos
Dá-te a mão
E dirige-te entre escolhos,
A intuição,
No sentido
Dum lugar desconhecido.
Caminha confiante
Em cada passo que deres,
Que ela caminha adiante
Para te não perderes.
Se pressentires perigo,
Pára.
Era ela a segredar-te ao postigo
Que uma emboscada se te depara.
Aprende a escutá-la
E a caminhar sem ver.
Treina-te a saber,
Humilde e chão,
O que te atrai e o que te abala
Através da intuição.
Louca
Por louca que seja a vida
Que o artista leva,
Um mistério nos convida,
Luminoso em meio à treva,
Proveniente do íntimo do artista
Que a obra nos põe à vista.
Aceita
Aceita ser quem és,
Faz o que adoras,
Por que tens paixão.
Quando isto ocorre, de frente e de través,
Arranjas a quaisquer horas
A fórmula de bem operar em toda a ocasião.
Simplicidade
Quantos biliões de partículas na físsil
Materialidade!
Quantas confusões no milenar míssil
Da história da humanidade!
- Quão difícil
A simplicidade!