SÉTIMO BRINDE
Boa
Boa coisa é ser criança.
Se alguém requer um favor,
Junto os méritos que alcança
A servirem de penhor.
Miúdos que méritos têm?
Basta-lhes arguir apenas:
- Sou eu, o filho de alguém...
(Mais tens quão mais alto acenas).
Ora, na vida interior,
Os meus laços como os teus
Ligam-me a um grande senhor:
- Eu sou um filho de Deus!
Bate
Miúdo que bate à porta
Bateu uma, duas vezes...
Ninguém atende? Que importa?
Bate mais, nem que o desprezes.
Quem vai abrir, ofendido,
É pela simplicidade
Desarmado do atendido:
- E assim Deus se persuade!
Mães
Não sentes na tua mão
A mão de ninguém lá perto?
Mas as mães da terra não
Viste, com o abraço aberto,
Delas seguindo os pequenos
Quando tentam, receosos,
Passos débeis nos terrenos
Sem auxílios onerosos?
Podes não sentir ajuda.
Porém, de ti lá bem dentro,
Muito há sempre quem te acuda:
- Vê só o fundo de teu centro.
Burrico
O burrico anda na nora,
Perene nas mesmas voltas,
Um dia e outro demora,
Todos iguais, sem revoltas.
Sem isto não haveria
Maturidade nos frutos
Nem nas hortas louçania
Nem o aroma dos produtos.
Assim é de toda a vida,
Fora ou dentro em nós vivida.
História
Presa na memória,
A cruzá-la exorta
Uma boa história.
É como uma porta:
Quando é necessário,
Abres o sacrário,
Esqueces problemas
Mais a realidade
E outros negros temas.
Volta a tenra idade
E podes voltar
Quanta vez calhar.
Bicicleta
A vida é uma bicicleta
Das de dez velocidades.
Ninguém vantagem completa
Tira de oportunidades
Tantas com que o dia enceta,
Tanto excedem as idades
Da vida, mesmo repleta.
Razão
Ninguém logra compreender
Inteiramente a razão
Porque há-de sentir quenquer
De repente o empurrão
Que, ao invés doutro qualquer,
O trepa pela subida
Dum dado rumo de vida.
Escolhas
Todas as nossas escolhas,
Mesmo da inércia os motivos,
Fecham portas a que colhas
Futuros alternativos.
Cada passo que nós damos
Do destino no cancelo
É a morte dos demais ramos
De mundos em paralelo.
Casa
Ninguém vai sentir-se em casa,
Qualquer que seja o lugar,
Porque o lar que nos abrasa
Em lugar algum é o lar:
Sempre o meu lar adorado
É de espírito um estado.
Sentir-me em casa deveras
É sentir-me ao colo, imbele,
Não das cósmicas esferas,
Mas dentro da minha pele.
Toda a vida tenho andado
Buscando-o em lugar errado.
Questionar
Questionar não é doença.
Obedecer cegamente
Sem questionar a sentença
É que é doença presente
E doença contagiosa:
Quanta morte se lhe agrega,
História além, tenebrosa,
Como vírus que se pega!
Cair
Cair em desgraça aquele
Que trepou ao pedestal
Mais alto é o que logo impele
As multidões que assinale:
De admirar o lado obscuro
É uma inveja, combinada
Com desilusão, que apuro
Se vulgar fica, à chegada,
O ídolo entronizado
Do vulgo desmiolado.
Necessidades
Necessidades de sábio
Poucas são e satisfeitas
Podem sê-lo facilmente.
Mas aspirações que o lábio
Diz que implacáveis ajeitas
- Poder e riqueza em mente –
Estas levam as pessoas
A nunca alcançar a paz,
São auto-reprodutivas:
Quanto mais temos, mais broas
Lhes tendemos nós atrás,
Ficam-nos as mãos cativas.
E após vai o coração:
- Logo nos vão ter na mão.
Mudança
Um processo de mudança
É libertar energia
Gerando transformação.
É o que a morte nos alcança:
É uma energética via
Que a cada vem pôr à mão,
No derradeiro momento,
Dele o novo nascimento.
Invisível
A invisível maravilha!
O visível é uma imagem
Longínqua que me espartilha
Do invisível a focagem
Que aqui sempre me rodeia
E aquele apenas ameia.
Solidão
Sem a solidão o amor
Nunca permanece muito:
Requer de repouso um ror
Para correr o circuito
De viajar pelos céus
Tirando ao mistério os véus.
Complemento
Solidão não é ausência
De amor mas o complemento.
Da companhia um pendor,
É meu aquele momento
Em que o imo a liberdade
Tem de conversar comigo,
Decidir o que persuade
Na vida por onde sigo.
Condição
Amor: condição divina.
Solidão: humana sina.
Ambos convivem, contudo,
Sem conflitos, na medida
Em que o milagre sortudo
Entendo que é sempre a vida.
Natureza
A natureza diz: muda!
E os que não temem a sorte
Entendem que o que nos gruda
Terá sempre este recorte.
Preciso é seguir em frente,
Apesar do medo insano,
Da dúvida em toda a gente,
Das ameaças e do engano.
Ao rasgar-me a pele, o grito
Em mim é voz do Infinito.
Queixar-nos
Não fechamos nossos olhos
Ao Universo. O que apuro
É queixar-nos dos abrolhos:
“Escuro, está muito escuro.”
Mantemos olhos abertos
Sabendo que aquela luz
Nos pode levar, incertos,
Ao que, impensado, seduz:
Algo é, seja lá o que for,
Que fará parte do amor.
Sozinho
Se sozinho estou na cama,
Achego-me da janela,
Do céu olho a infinda trama
E a certeza o peito sela:
Nada me rouba o que gira
Dentro a me acalmar a sanha,
- A solidão é mentira,
Todo o Cosmos me acompanha.
Sucesso
O que apenas procurar
O sucesso raramente
O há-de na vida encontrar.
Não é um fim a ter em mente,
É deveras, por essência,
Uma mera consequência.
Força
A força do amor reside
Dele nas convoluções:
Porque muda no que envide
O preservo de senões,
Não de estável o manter
Sem desafios quaisquer.
Milagres
Os milagres são assim:
Rasgam véus e mudam tudo
Mas não deixam ver, no fim,
Por trás dos véus de cetim,
Aquilo com que me iludo
E a que de vez eu me grudo.
Enfrentar
Todos de enfrentar teremos
Muito adversário na vida
E o mais difícil que vemos
De derrotar, em seguida,
É o que, vão, em vão tememos.
Todos teremos rivais
No que quer que nós façamos
E os perigosos demais
São quantos acreditamos
Serem amigos leais.
Armas
Das armas mais destrutiva
Do que a lança ou o canhão
(Que o corpo em ferida viva
E a muralha derruirão)
- É a palavra que é capaz
De arruinar uma vida
E nem sangue deixa atrás
Nem cicatriza a ferida.
Sorte
A sorte não é injusta com ninguém.
Todos a liberdade para amar
Temos, ou detestar, se não convém
Aquilo que faremos por obrar.
Se amarmos, encontramos, ao agir,
Mesmo no quotidiano, uma alegria
Idêntica à daqueles que partir
Rumando ao sonho foram algum dia.
Manifesta
Manifesta o trabalho todo o amor
A unir humanos seres sem valor.
Por ele constatamos que não somos
Capazes de viver, nem nunca fomos,
Sem o outro e que o outro, simplesmente,
Precisará de nós para ser gente.
Generoso
Ser generoso, para a maioria,
Consiste em dar, mas receber é igual
Acto de amor, já que permitiria
Que outrem alcance este feliz final:
Aquilo é quanto, sem que a tal apele,
O deixará feliz também a ele.
Água
Como água será o amor
Que em nuvem se transmudou:
Aos céus elevada, o voo
Ao longe ver vai propor
Consciente de que um dia
Terá de voltar à terra.
O amor é a nuvem que avia
A muda em chuva e aterra
Atraída pela brisa
E o campo então fertiliza.
Contradições
São sempre as contradições
Que fazem o amor crescer.
Os conflitos, os senões
O amor levam a viver,
De passo embora trocado,
Aqui sempre ao nosso lado,
Se um degrau acima o liga
Ao que ele era antes da briga.
Pergunta
A pergunta do sentido
Muitos aceitam fazer.
Não lhe sabem responder?
Vão ler o que outrem há lido,
Que enfrentou o desafio
E, de repente, eis o fio:
Encontram uma resposta
Que arvoram logo em correcta.
Tornam-se escravos da meta,
Agrilhoados na aposta.
Criam leis, obrigam todos
A acolher seus mil e um modos.
Erguem templos a apontá-los
E tribunais que condenem
Quantos outro rumo acenem,
Pois não suportam abalos
Que venham pôr em disputa
A tal verdade absoluta.
Pobre
Pobre do que disser: “ eu não sou belo,
Que o amor não bateu à minha porta.”
O amor bateu. Contudo, em paralelo,
Ninguém abriu, parece a casa morta.
Ninguém estava ali já preparado
Para o vir receber apaixonado.
Um amor geraria ali, fecundo.
Perdeu-se uma aventura doutro mundo.
Imperfeito
O que parece imperfeito
É o que nos assombra, atrai.
Os cedros olho a direito,
Não penso que o galho vai
Ter todo a mesma medida.
Ao invés, penso: ele é forte!
Vejo a serpente estendida
Sem pensar: tem no seu porte
De rastejar pelo chão
E eu vou de cabeça erguida.
Penso que é pequena, então,
Mas tem pele colorida
E um movimento elegante
Nos esses com que aprendeu
A caminhar adiante
- E tem mais poder do que eu!
Beleza
A beleza exterior
Apenas viabiliza
O que for nela interior.
É que esta se exterioriza
Pela luz que sai dos olhos
De cada qual frente ao mundo.
Pouco importam os escolhos,
Um mal vestido, no fundo,
Não obedece aos padrões
Do tido por elegante,
Nem sequer preocupações
Tem de impressionar adiante.
Os olhos, espelhos de alma,
Reflectem quanto ande oculto.
E mais espelham, com calma,
Aquele que em frente, inulto,
Ali os ande a admirar.
Se seu imo for escuro,
A fealdade há-de olhar
Que retraçar em seu muro.
Os olhos a cada qual
Devolverão o reflexo
Do próprio rosto, tal qual
Seja côncavo ou convexo.
Dificuldade
Dificuldade, o instrumento
De ajudar a definir
Quem sou a cada momento.
A religião, ao vir,
Ensina que a fé e a muda
É o único trilho a ir,
A cola que a Deus nos gruda.
A fé nos mostra, entretanto,
Que o dia que nos acuda
Não nos deixa a sós ao canto:
A transformação ajuda
Do mistério a amar o encanto.
Curva
Cada curva do caminho,
Mais e mais amedrontado,
Surpreendo-me sozinho
A andar de passo trocado:
À medida que me integre
Mais forte irei, mais alegre.
Alegria, a principal
Bênção em pleno deserto.
Se estou alegre, é sinal
De que vou no rumo certo.
O medo aos poucos se afasta,
Ficou-lhe a importância gasta.
Reproduzes
Perguntei à flor do campo:
“Tu só reproduzes flores,
És inútil se isto estampo?”
E ela respondeu: “as cores
São o que eu sou e sou bela
E a beleza em si apenas
É na vida a minha estrela.”
E ao rio de águas serenas:
“Tu na mesma direcção
Sempre corres. Não te sentes
Inútil do ramerrão?”
E diz-me ele: “tu me mentes
Se útil julgas que ser tento,
Já que tento ser um rio.”
Neste mundo não há invento
Que não teça o próprio fio.
Nem uma folha que cai,
Nem um brilho de cabelo,
Nem o insecto que se vai
Morto em cima do escabelo.
Seja o que for ou quenquer,
Tudo tem razão de ser.
Não é pela utilidade
Que se pauta a realidade.
Abençoado
Abençoado o que diz:
“Eu nunca tenho coragem.”
Compreendeu de raiz
Que a culpa, nesta viagem
Não é doutrem. E mais cedo
Ou mais tarde encontrará
A fé requerida ao credo
Com a qual enfrentará,
Em gestos breves e sérios,
A solidão e os mistérios.
Derrotado
Só o derrotado conhece
Deveras o que é o amor.
No reino do amor se tece
Na prima luta, em suor,
A derrota em que perdemos.
Quem nunca foi derrotado?
Aqueles que todos vemos:
- Os que jamais hão lutado.
Alguém
É preciso ver alguém
Amando por vezes algo
Para saber eu também
Amá-lo em degraus que galgo,
Tal se doutrem o carinho
É que me aponta o caminho.
Relação
O indivíduo pouco importa,
O que importa é a relação
Que a todos nos abre a porta
Do Infindo buscado em vão.
Vemos as coisas, não vemos
A cola que as mantém juntas
Num todo que sempre temos
No que assunto e no que assuntas.
Contra
Contra tudo e contra todos
É o nosso lema do herói.
- A vida, em todos os modos,
É só luta e sempre o foi?
Porque nunca o questionei,
Permaneço em vigilância,
Pronto a enfrentar (esta é a lei)
Qualquer gigante, com ânsia.
No trabalho como em casa,
Entre amigos, conhecidos...
- É o caminho que me arrasa,
Onde há só passos mentidos.
Interacção
Nossa interacção no mundo
É conversa, não monólogo:
Um observador, no prólogo,
Muda o que observa, do fundo,
Como um observado muda
O observador que se gruda.
Impulso
Nosso impulso natural
De com os mais nos fundirmos
Leva a querer ser igual
A eles, ao juntos irmos.
Nossos relacionamentos
A atomização do Eu
Distanciam por momentos
Rumo ao Todo além no céu.
Indutoras
As pessoas indutoras
De estados de alma serão
Ambulantes, sem demoras,
E os estados passarão
Aos que encontrarem diante,
Que os irão passar à frente
Ao primeiro viandante
Na interminável corrente.
Sintonizados
Somos tão sintonizados
Com a emocional paisagem
Que nos cerca pelos lados
Que um ambiente de imagem
Positiva ou negativa
Afecta ao corpo a função:
É mais forte ou mais esquiva
Pelo que ali tenha à mão.
Amigos
Aqueles de quem me cerco,
Com que contacto por norma,
Amigos que encontro e perco,
São os que, de qualquer forma,
Determinam o matiz
De quanto, ao fim, sou feliz.
Instinto
Nosso instinto natural
De uns aos outros nos ligarmos
Leva ao desejo de dar.
Muito mais que dominar,
O mais premente, afinal,
É de uns aos outros chegarmos.
E leva a que isto se aplique
Mesmo que nos prejudique.
Feitos
Fomos feitos para bem
Nos sentirmos praticando
O bem que melhor convém
Ao que parece ir brotando
Do instinto mais basilar:
O de aos outros nos ligar.
Desejo
Nosso desejo automático
De dar inaugura o rumo
De uniões, no mundo prático,
Procurar como ideal sumo.
Ser abnegado uma opção
Bem egoísta ao fim também
Há-de ser que tenho à mão,
Pois dar sabe muito bem.
Altruístas
Os altruístas cultivam
Amigos em grupos vários.
São capazes, onde vivam,
De o todo ver, dos contrários
E semelhantes além
Visando o que em comum têm.
Capazes
Os altruístas capazes
São de ver a sociedade
Como um integrado todo,
De ver além das tenazes
Da diferença que invade
A vida, roubando o bodo.
Etnia ou religião
Que importam num mundo são?
Desigual
Quanto mais desigual for
Qualquer colectividade,
Menos confiante o sabor:
Menos membros persuade.
Não sobrevive num mundo
Desigual a confiança:
A competição, se o inundo,
Mata a união que então já cansa.
Confiar
Confiar requer um todo,
Um nós maior do que nós.
Quando alguém, como um apodo,
Eu rotular de outro, a sós,
Reforço a separação.
Já não há necessidade
De jogar em união:
Cumprir regras quem persuade?
Fora
Quando olhamos para o mundo
Lá fora, nem todos vemos
O mesmo, porque, no fundo,
A cultura onde vivemos
Ensina-nos como olhar
E o que ver, ao perpassar.
Reconhecê-lo é a visão
Maior e mais abrangente
Começar a ter no vão
Que se abrir à minha frente.
Até que em mim todo o mundo
Encontre campo fecundo.
Histórias
As histórias que contamos
A nós próprios sobre a forma
Como o mundo tece os ramos
Governam em nós, por norma,
Aquilo que percebemos.
Após algum tempo, apenas
Veremos o que aprendemos
A ver dentro de tais cenas.
Todo
Principiar a ver o Todo
Vai além da indicação
Das diferenças do modo
Com que os homens comuns são:
O espaço vemos, fluídos,
Que a todos nos tem unidos.
Idêntico
A ideia de ligação
Procura constantemente
O idêntico que haja à mão.
Tal significa, imprudente,
Que a derradeira medida
Com que outrem avaliamos
Sejamos nós, em seguida,
E o Todo então rejeitamos.
Partilhado
Um sentido partilhado,
Horizonte ideal que assuntas,
Abre a porta, em todo o lado,
Para coexistirem juntas
Diferentes percepções:
Não há um real, há milhões.
Diálogo
O diálogo é um rio
A correr-nos em redor
E através, no desafio
De fermentarmos amor,
A ligação em semente
Reforçando em todo o lado,
Uma cultura coerente
De sentido partilhado,
Gerando então o horizonte
Para o qual seremos ponte.
Pendor
O pendor mais importante
Do diálogo é uma entrega
Ao impulso fundo, instante,
Da plenitude que cega:
Buscar algum berço, algum,
Do sentido que é comum.
Prontidão
A prontidão para dar,
Em nós incondicional,
Nosso impulso natural
Para vínculos criar,
Nos ajuda a dissolver
Fronteiras individuais,
Para além dos tremedais
Permitindo-nos correr,
Nossa individualidade
A saltar para os espaços
Entre nós, a dar abraços
Às portas da Infinidade.
Contágios
Um acto de dar recria
Contágios de doações,
Redes de altruísmo fia,
Aliando retribuições.
O acto de participante
Afecta uma interacção
Futura doutrem adiante,
Da rede ao longo em acção.
Resposta
A melhor resposta
Numa conjuntura
É escolher a aposta
Que melhor se apura
Para nosso apresto
Mais do grupo, ao resto.
Naturalmente
Naturalmente egoísta
É o ser humano – se afirma.
Mas o que hoje a prova alista
É o contrário: o que confirma
É que andamos programados
Para partilhar com todos,
Nos importarem os dados
Que mexem, de quaisquer modos,
Com os mais, mesmo com custos,
Como para sermos justos.
Acto
Por um gesto de bondade
Generosa a um amigo
Retribui ele o que agrade,
Após, aos que tem consigo,
Como estes a outros mais
E assim sem parar jamais.
Qualquer generosidade
Cria a cooperativa
Cascata de actos que invade
Das almas a mais esquiva.
Todo o bem jorra, festivo,
Mais que o mal no fojo esquivo.
Juntos
Ao fazermos algo em grupo,
A alegria que sentimos
Por juntos estarmos nisto,
Permite, quando me ocupo
Com os problemas que vimos,
Resistir a quanto alisto.
A união que faz a força
Também explica a magia
Quando em grupo laboramos
Pelo ideal por que se torça:
Largo uma individual via,
Sou comunhão entre os ramos.
Abrir-me
Ao abrir-me à natureza
Verdadeira que haja em mim,
Que uma derradeira preza
Plenitude em meu confim,
Abro a possibilidade
Da ressonância mais pura
Logo ali da humanidade:
A outrem me unir que cura
De abrir, em sentido algum,
O nosso mapa comum.
Básica
Uma básica pulsão
Para formar parceria,
Gerar cooperação,
Mesmo com dor algum dia,
E não para o egoísmo,
A sobrevivência crua,
- É o intrínseco truísmo
Biológico que actua
Na estrutura do ser vivo.
Todo e qualquer animal
Actua num longo arquivo
Em que o motor principal
É o menos favorecido
Ajudar, mantendo vivo,
No gratuito gesto havido,
O laço cooperativo.
Gera
Gera a natureza a vida
Apenas em relação.
Não reconhecê-lo olvida
Nossa angular concepção.
A imutável e distinta,
Nobre personalidade
São mil relações que pinta
Em seu lastro de verdade:
- Um nó de laços, no fundo,
Nossa ligação ao mundo.
Afectados
Da mesma forma que somos
Afectados pelos mais
De que em volta nós dispomos,
Também somos, como tais,
Vindos das redes às quais
Pertencemos, feitos tomos
Que só delas dão sinais.
As pessoas colectivas
Destas redes para nós
Transbordam, artérias vivas,
Definindo-nos após
Nos derradeiros cipós,
E determinam, furtivas,
A infelicidade atroz
Ou felicidade advinda,
O nosso comportamento,
Ou mesmo a saúde ainda
De que desfrutar ao vento.
São a alegria, o tormento
Que me chegam na bem-vinda
Maré de meu banho lento.
Contagiosa
A felicidade
É contagiosa
Mesmo que o não grade
Aquele que a goza.
De felicidade
Muito aglomerado,
Resulta, em verdade,
De contaminado
Ser naturalmente
Dos que são felizes,
Não que toda a gente
Busque iguais matizes.
Os que andam cercados
De felizes caras
Mais prováveis fados
Terão de horas claras.
A felicidade
É contagiosa,
Luz que tudo invade
Entre quem a goza.
Trama
Na trama social o aspecto
De aves de penas iguais
É semelhança que afecto:
Vínculo gera aos demais.
No vínculo social
De todo o tipo e tamanho,
- Entre os membros do casal,
Qualquer amigo que ganho,
Na informação, no conselho,
Na reunião a que me junto,
Um grupo de apoio velho
A que recorro e pergunto,
- Em todos tendo a escolher
Redes que contenham quem,
Na atitude que tiver,
Se me assemelhe também.
Emoção
Uma emoção, como vírus,
Não apenas se transmite
À gente em quaisquer retiros,
Num circuito inconsciente,
Ciclo infindo de contágio,
Como afecta fundamente
Qual dum negócio o presságio
E a negociação em frente.
Nunca ninguém objectivo
É, no fim, por tal motivo.
Opera
O mundo jamais opera
Por coisas individuais
Mas por ligações que espera
Que entre elas dêem sinais:
Entre as coisas é no espaço
Que as entrelaça em abraço.
O aspecto mais germinal
Da vida não é uma coisa
Isolada e seminal,
Seja a partícula a loisa,
Seja o ser vivo formado:
É a relação que hão criado,
- A inseparável fusão
Na irredutível união.
Derradeiro
O derradeiro objectivo
Dum encontro social
É criar união ao vivo
De nós com qualquer igual.
A imitação automática
De movimentos, da prática,
De figuras de linguagem
Como também de emoções
É desenhada triagem
Para fortes ligações.
Quer nós ou não o queiramos,
Sintonizados andamos
Com a emotiva paisagem
Que em nosso redor se estende.
Qualquer pensamento, imagem,
Qualquer gesto se desprende
Não de nós inteiramente
Mas do campo de semente.
Ignoramos
À medida que ignoramos
Nosso impulso natural,
Contra a natureza obramos,
A plenitude total.
A cada passo adiante
Para alongar-me distante
Da união (direito inato),
Damos outro em direcção
À separação de facto,
À nossa alienação:
Afasto-me do melhor,
Mais vero de me propor.
Crio económicas crises
E mais políticas lutas,
Mais rupturas, mais deslizes,
Ecológicas disputas
De efeitos calamitosos,
Em vez de futuros gozos.
Cada vez mais altos muros
Erigimos entre nós.
E o demais mundo, em apuros,
Sem lograr erguer a voz...
- E o pior que não entendo
É que nem isto ando vendo.
Comum
Sempre que um grupo trabalha
Num objectivo comum,
O cérebro de quem calha
Opera como só um
No igual comprimento de onda,
- De nenhum é feita a monda,
A união fortalecendo
Dentro do grupo em questão.
Unir-se em grupos, crescendo,
É social coesão
Pela meta superior
Que tem sempre outro valor
Bem para além do dinheiro,
Do trabalho que se tem,
Do tamanho do celeiro
Que à propriedade convém.
Meta comum e alargada
É certa e predestinada
Proximidade instantânea
Em qualquer social ambiente,
Ofertando, coetânea,
A ferramenta excelente
De manter cooperação
No labor, bairro e nação.
Ínfimo
O verdadeiro poder
De deixar algum espaço
A uma individualidade,
Para se unir a quenquer
Enquanto grupo que abraço
Para atingir de verdade
Objectivos superiores,
Provém duma ressonância
Com efeito colectivo:
De ondas cerebrais valores
Se arrastam mútuos, com ânsia
De igualar cada ser vivo.
A eléctrica actividade
De cada membro do grupo
Principia a ressoar
Em onda comum que invade
A todos, tal se me ocupo
Dum coro inteiro a afinar.
Como um grupo de electrões
Que desatou a vibrar
Como de electrões montanha,
Ressoa o grupo em funções
Que efeitos multiplicar
Vão de cada qual que apanha.
Base
A base da relação,
Mudar dum eu” para o “nós”,
Não destrói, na interacção,
Do Direito nenhuns prós,
Nem nunca as capacidades,
As vitórias, liberdades,
Ou propriedades quaisquer
Que um indivíduo detenha.
Nem do dinheiro requer
Abrir mão que quenquer ganha,
Nem dos bens que do suor
Foram o fruto melhor.
Da economia o sistema
Ou democrático vime
Não quer que rejeite ou tema,
Antes que tudo sublime:
Aquilo de que abro mão
É a luta, posta em questão,
Pela individual vitória
À custa doutro qualquer.
A mente que for finória
Lesar sempre alguém requer,
É sempre anti-democrática
E contra todos, na prática.
Os individuais direitos
São sempre pisoteados
Nalguém, naqueles trejeitos
De cenários guerreados
De frutos sabendo a verdes:
- Sempre que eu ganho, tu perdes.
Recriar-me
Recriar-me noutrem busco
Tendo por base o desejo
De certo me afirmar, brusco.
Desperdiço o meu ensejo,
A biológica experiência
Contrario, por essência.
Traio a minha companhia,
Solitária em tais momentos,
E, automático, na via
Invado outrem e os eventos
Derivam de tal maneira
Que escravo outrem finda à beira.
Somos todos afectados
Por actos e pensamentos
Doutrem, por todos os lados,
E eles por nossos intentos,
Mesmo que sentir nenhum
Haja entre nós em comum.
Para o melhor e o pior,
Quer nós queiramos, quer não,
Fundimo-nos ao teor
Daqueles que, em nosso chão,
E qualquer que seja o impacto,
Connosco andam em contacto.
Escuridão
Perante Deus, Moisés não
Olhou a luz que o inunda
Dentro dele, mais que à beira.
Em Deus há uma escuridão
Tão profunda, tão profunda
Que ofusca quanto encegueira.
Amado
És amado e acarinhado,
És amor, base de tudo
No quotidiano fado,
Em tudo aquilo a que acudo.
Amor de cônjuge e filhos,
Até mesmo de animais,
Que prende, nos seus cadilhos,
Do real quaisquer sinais.
Na forma mais poderosa
Não é egoísta nem ciumento,
É incondicional, que entrosa
Nele o cósmico fermento.
Realidade do real,
A verdade das verdades,
Vive e respira, afinal,
No centro de quanto invades.
A compreensão exacta
De quem somos, do que somos
Não se alcança ou desempata
Se isto a tudo não pospomos,
Se o não abraçar, enfim,
Em tudo o que agir por mim.
Obstáculo
Quem vem do mundo da morte
Tem o obstáculo maior
De não ter língua tão forte
Que lhe exprima o vero amor
Que viveu enquanto esteve
Nesse estado, longo ou breve.
Temos sempre a faculdade
De retornarmos a casa,
A ligação que nos há-de
Dar a luz que nos abrasa.
Esquecemo-nos, porém,
De que tal temos também
Porque na física vida
A nossa mente bloqueia
O contexto sem medida,
Cósmico, que infindo ameia,
Tal bloqueia a luz do sol
Das estrelas todo o rol.
Nossa visão do Universo
Bem limitada seria
Se não víramos, disperso,
O céu nocturno algum dia.
Só consigo ver a deixa
Que o filtro da mente deixa.
O encéfalo é uma barreira
A conhecer a vivência
Mais alta que se me abeira.
Encruzilhada da essência,
Temos de recuperar
O que nos ande a ocultar.
Parte
Sendo parte do divino,
Então nada, nada mesmo,
Me pode retirar isto.
A suspeita de o destino
Me poder, falso e a esmo,
Separar do Deus que existo
É a raiz de toda a forma
De ansiedade no Universo
E a cura então é a certeza
De que nada que me enforma
Poderá, por mais adverso,
De Deus me afastar na empresa.
Este reconhecimento
Elimina o terror fundo
Que a escuridão me causar.
Permite ver o fermento,
Do Cosmos parte no mundo,
Que nos anda a levedar.
Provas
Os que afirmam que não há
Provas da mente alargada
Apesar dos que, cá e lá,
Testemunham tal jornada
São deliberadamente
Ignorantes: acreditam
Que a verdade têm presente
Sem ver os factos que evitam.
Dores
As nossas dificuldades,
Dores no mundo presente,
Não ferem profundidades,
O maior, o eternal ente
Que nós somos de raiz.
O riso como a ironia
São lembranças da matriz
De que não sou, nenhum dia,
Prisioneiro neste mundo
Mas viajante do fundo.
Desconhecido
Vou para o desconhecido
Mas com fé, com confiança
Absolutas, no sentido
De que Quem cuida me alcança,
Quer companheiros do além,
Quer da Luz o amor que tem.
Como nos foi prometido,
Para onde quer que eu vá
O Céu há-de vir comigo
Em todo o trilho de cá:
- Nunca mais estarei só,
Nem mesmo se feito em pó.
Outra
Nenhum órfão órfão é,
Que temos outra família,
Seres que olham-nos ao pé,
Velam por nós em vigília,
Que ignoramos por momentos
Mas que, se os vemos, atentos,
Deles à presença abertos,
Andam sempre disponíveis,
Para ajudar-nos despertos
Nos dias imprevisíveis
De nossa vida na Terra,
Seja o que for que me aterra.
Não há quem não seja amado,
Todos o somos bem fundo
Por um Criador que, ao lado,
Nos conhece o imo profundo
E acarinha muito além
Da compreensão que se tem.
Partículas
As partículas de mal
Pelo Universo espalhadas
Hão-de somar, no total,
Um grão de areia, nas dadas
Do planeta praias mil,
Do céu no abraço de anil,
Comparadas com bondade,
Esperança ou abundância
Ou amor que tudo invade,
De incondicional instância,
De que repleto o Universo
Se encontra, por mais disperso.
A vivência de que é feita
A vertente alternativa
É um amor que se rejeita,
Aceitação que se esquiva.
A abertura descurada
Então torna-a deslocada.
O livre arbítrio tem preço:
De perder ou me afastar
Do amor sem fim nem começo
E da aceitação a par.
Somos livres mas rodeados
De amor por todos os lados.
Demasiado
Se eu soubera demasiado
Da vida espiritual
Neste momento, tal dado
Minha vida terrenal
Mais difícil tornaria
Do que é já, no dia-a-dia.
Demasiada consciência
Da grandeza, imensidão
Pode-me impedir, na essência,
De lavrar na Terra o chão.
É que tudo é intencional
No Universo sideral.
Tomar a decisão certa
Perante o mal, a injustiça
Que aqui vão de mão aberta,
Do livre arbítrio na liça,
Era bem pouco importante
Se estou do esplendor diante.
Cerebral
Pensamento verdadeiro
Não é cerebral domínio.
Fomos treinados, no apeiro,
A combinar com fascínio
O cérebro ao que pensamos
E a quem somos onde estamos.
Perdeu-se a capacidade
De perceber que nós somos,
Em toda e qualquer idade,
Bem mais que de árvores pomos,
Mais que corpos materiais,
Que de encéfalos sinais.
Pensamento verdadeiro
É pré-físico alimento,
Pensamento por inteiro
Por detrás do pensamento,
Responsável das escolhas
Que fará que tu acolhas.
É pensar que não depende
Da dedução linear,
Raio que instantâneo fende,
Tudo liga, a nivelar:
Além do tempo e do espaço,
Tudo abraça num abraço.
Perante esta inteligência
Liberta em meu interior,
O pensamento é indigência,
Muito lento e sem fulgor.
Aquela é que é descoberta,
Música de nota certa.
É razão subliminar,
Perenemente presente
Quando dela precisar,
Embora frequentemente
O poder de lhe aceder
Perca e o de nela crer.
Beleza
Mora a beleza nos olhos
De quem vir e vou pospor
Que o que é mais libertador
É perceber, sem antolhos,
Que és tu que és o observador.
Isolado
Ficar em casa não posso,
De toda a gente isolado,
Durante o tempo em que fosso
No buraco negregado.
Não fui criado a caminho
Para o palmilhar sozinho.
Águas
Ela é sempre as minhas águas
E eu dela sou o moinho:
Apaga o lume das fráguas,
Roda a mó dentro em meu ninho.
Água fiel, inesgotável,
Dócil, a velar calada,
Já lá estava, insofismável,
Do moinho antes da chegada.
Ao princípio, com vigor,
Ao princípio era o amor.
Sonâmbulos
De sonâmbulos povoado,
Vivemos aqui num mundo
Onde vendido e comprado
É tudo, com ar jucundo.
Tal se tudo, precioso,
Menos o tempo, dê gozo.
Esperam o fim da tarde,
O sábado a tomar forma,
As férias, com muito alarde,
E toda a vida a reforma...
- Mundo onde espera quenquer,
Espera, em vez de viver!
Sofrimento
Todo o nosso sofrimento
Arranca da solidão.
Não logro, em nenhum momento,
Juntar-me a ti que amo em vão.
Esta mágoa, esta impotência
É que a Deus gritam de ausência.
Grau
Sabedoria e bondade,
Se num grau bem elevado,
Sabem que amor de verdade
Tão puro é, completo e grado
Que pleno permanecer
Vai, haja lá o que houver.
Ilusão
A ilusão a realidade
Realça, abisma, inseparável.
E amor, na totalidade,
É uma ilusão adorável,
Homem embora e mulher
Precisem bem mais de amor
Que doutra coisa qualquer
Para à vida dar valor.
Belo
O belo fala de Deus:
Na beleza natural
Encontramos termos seus
Do Cosmos universal;
Em arte nós exprimimos
Uma centelha divina
Que, elevando-nos aos cimos,
Em nós arde como sina.
Ciência
A ciência não hesita
Em recorrer à tortura,
À superstição maldita,
Ao defender, com usura,
Que é seu direito, na estrada,
Ali sempre andar errada:
A ciência constituída
Mata a nova a que deu vida.
Segurança
É viável segurança
Contra riscos soerguer,
Mas, se a morte nos alcança,
Muralha não há qualquer.
Ante a morte tudo falha,
Cidade sou sem muralha.
Vive
Vive a morte em cada um.
A contagem decrescente
Principia em toda a gente
Sem fazer sinal algum
Desde o dia em que nascemos
E faz dela a brusca entrada
Sempre em hora inesperada
No instante em que perecemos.
Disposição
Há quem viva a vida inteira
Cantando hinos ao prazer
Do que é má disposição.
O que incómodo encegueira
Não é uma coroa ter
De espinhos no coração,
É que adore tais espinhos
Que embriagam mais que os vinhos.
E que outra coisa não queira
Dele toda a vida à beira.
Descoberta
Há uma ideia simples, clara,
Por detrás do complicado.
A dificuldade rara
Não é do mistério dado:
O aguilhão que nos acerta
É tentar a descoberta.
Pensar
O que é pior é pensar:
Se pensas em quanto é bom,
Ficas com saudade, a par;
Se é no mal, amargurado
Acabas ficando então...
- Bênção maldita, este fado!
Influir
Pensamento e decisão
Podem num acto influir,
Mas nunca decorre a acção
Só do que lhe eu decidir:
Tem independente fonte
De surpresas no horizonte.
Cegueira
A cegueira é o feliz fado
De quem assalta a paixão.
Deixa de ver, alumbrado,
A quem ama, em frente e à mão,
Fita, no abalado sismo,
Dele próprio o fundo abismo.
Mensageiros
Há mensageiros de Deus
Em todo o lado. Aparecem,
Com jeito de corifeus,
Em trejeitos que entretecem
Nosso jeito de lograr
Consegui-los aceitar.
Mais
Quanto mais amamos,
Mais amor a dar.
Sem servos nem amos,
O amor singular
É de Deus assim
Por nós e por mim.
Verdade
A verdade a perseguir,
Longe embora, é sempre à mão,
Mas requer fogo nas fráguas.
A verdade finda a vir
À superfície se não
Enlamearmos as águas.
Difícil
É muito difícil ver
O que poderia ser,
Em que é que tenho esperança,
Tal é a dor que nos alcança.
Tão violenta é a bordoada
Que ficamos sem ver nada.
Se espero o suficiente,
Com suficiente vontade,
Com força bastante em mente,
Tornar-se-á realidade.
Não é sempre, mas às vezes.
Acaso esperança é isso:
A diferença em reveses
À qual não mata um enguiço.
Espera-te
Apesar de nunca ausente,
Espera-te na floresta
Fora da muralha assente
Em teu coração que a apresta:
Deus não força a relação,
Respeita a tua tenção.
Jamais
O amor jamais te condena
Por te sentires perdido
Mas nunca te deixa em cena
Sozinho, no ar esvaído,
Embora não force nunca
Teu refúgio na espelunca.
Liguem
Temos vindo a procurar
As palavras que nos liguem
Aquilo de que ando a par
Aos anseios que em mim briguem.
E o mais que nós conseguimos
São vislumbres de que rimos.
Túlipa
A túlipa aveludada,
De rendilhado rebordo,
Em mil cores variada,
Oiro e púrpura de acordo,
Mais as ranhuras dum verde
Que no amarelo se perde...
Mas o bolbo que gerou
Esta flor maravilhosa
Madeira velha imitou,
Mero torrão de má prosa,
Um lixo de deitar fora
Se conhecido não fora.
Este bolbo, esta raiz
É a vida tal como a fiz.
A túlipa ao sol erguida
É a vida depois da vida.
Relações
Sem as relações humanas
O mundo não faz sentido.
Umas são com que te enganas,
Complicam-se outras de olvido,
São difíceis, duram pouco
E fáceis nunca as garantes...
- Pode isto parecer louco,
Mas todas são importantes.
Lugar
Consultam para um lugar
E, entretanto, que é que ocorre?
Num parente um vai votar
Porque é um parente que forre,
Vota o amigo no amigo
Porque amigo de cuidado,
Ao recomendado abrigo
Votam, que é recomendado...
E os mais dignos, beneméritos
Que não têm amizades
Nem parentes, mas só méritos
Jamais ao lugar persuades.
Desgraça
Das desgraças a desgraça
É que nós nos iludamos,
Sempre de nós ignorados:
Nós vemos que tudo passa
Mas para nós que passamos
Temos os olhos fechados.
Onde
Se perguntam onde estás
E em ti mudar vincular-te,
Que é que tu responderás?
- Estou em nenhuma parte,
Que parte alguma congraça
Aquilo que sempre passa.
Bem
Isto de ser bem-nascido
É sempre mera vaidade:
Finda a vida, ei-lo sumido.
Não nos pende da vontade.
Mas ser bem ressuscitado
Para a eternidade dura
E é no alvedrio fundado:
Se a acção que debita é pura.
Filho dos pais ao nascer,
Ao ressuscitar, das obras
Sempre findarei por ser,
Do Infinito preso às dobras.
Não
A omissão sempre é pecado
Que se fará não fazendo.
De obra má jamais é um dado,
Até boa pode ir sendo,
Mas se a que não foi houvera
Quanto melhor então era!.
Cega
A vontade, sendo cega,
Vê mais que o entendimento
Que um olho de lince emprega
A discernir o momento.
E porque é que isto se dá,
Contra o que era de entender?
- O entendimento acha o que há,
A vontade acha o que quer.
Fora
Porque todos se encegueiram
Deles próprios no juízo
Todos bênção enfileiram
Da espécie fora onde os viso:
Serão pombas ou cordeiros
E jamais homens inteiros.
Acrescer
Acrescer o próprio dom
É crescimento em presença.
Fora dele perde o tom,
Não é acrescer, é acrescência.
Se o crescimento é beleza,
A acrescência é feia e lesa.
Cegueira
A cegueira do juízo
Do amor-próprio é maior
Que a dos olhos com que viso
Qualquer verdade a propor.
A dos olhos faz não ver
As coisas como serão,
A do amor-próprio difere,
Vê diverso o que aqui são.
Vendo um mundo diferente,
Maior cegueira é a da gente.
Arrependimento
O arrependimento apenas
Nos liberta da cegueira.
Véu dos olhos ante as cenas
Nos tira e do espelho abeira
Onde nos vemos no acerto
Do encoberto a descoberto.
Fora
Trazendo os olhos por fora
E a nós próprios cá por dentro,
De vanglória é nossa hora,
Desvanecidos do centro,
Apenas por, nestes termos,
Afinal, nunca nos vermos.
Insensível
É o amor um sentimento
Que torna ao mais insensível,
Como a morte, num momento,
Torna o morto inatingível.
O amor a diversa trama
Torna insensível quem ama.
Serve
Serve o pastor às ovelhas
E não elas ao pastor,
Mas porque ir por estas quelhas
Não serve ao devorador
Lobo, logo este lhe grava:
- Do pastor a ovelha é escrava!
Bela
Não é bela uma mulher
A quem gabe perna ou braço
Mas aquela a que couber,
Pelo conjunto que abraço,
A beleza que lhe excede
O traço onde não tem sede.
Espelho
Qualquer arte tenta o belo
Como espelho do real,
Imita-o, com ar singelo,
Revelando o bem do mal.
O espelho não reproduz,
Revela o que se não viu,
Expondo de vez à luz
O que ninguém conseguiu.
O mistério é que revela
O real, ao fim, na tela.
Imita
Arte imita realidade,
Dá-lhe significação,
Revelação da verdade
Que nunca temos à mão.
E, quanto melhor imita,
Melhor arte ali palpita.
Arte é, pois, o simulacro,
O jogo de faz-de-conta:
Tenho diante o gesto sacro
Do qual nem terei a ponta.
É o cultivo da ilusão,
Embora saiba que não.
Nenhuma
Terás dinheiro, posição, amigos
E as mulheres mais belas a teus pés
Mas nenhuma te espera em lar de abrigos?
Os anos passam, passarão de vez,
E o vazio que leio nos teus olhos
Mais e mais fundo te encherá de abrolhos.
Rufar
Não há rufar de tambores
Nem trombetas a vibrar
Quando as decisões maiores
Da vida alguém as tomar.
Às vezes nem conta damos
De que afinal as tomamos.
Nem por tal, porém, então
Deixam de ser o que são.
Amigo
Um amigo é a ligação
À vida: com o passado
Um laço a atar a união,
Com o futuro o traçado
Dum caminho sem engano,
Chave para a sanidade
Num mundo que corre insano
Quase na totalidade.
Cozinha
A cozinha representa
A família e a harmonia:
Em tempo de crise, assenta;
Na festa, então alumia.
Todos a tendência apresa
De reunir-se ali à mesa.
Divisão acolhedora,
É confortável, segura.
É ali onde o fogão mora,
Onde café, chá se apura,
Onde as bebidas guardadas
São às gestas celebradas.
Mais que o fogo do chamiço,
A cozinha é compromisso.
Escapa
Sempre a realidade escapa
Para além da descrição,
Mesmo a duma vulgar capa
Ao ombro de algum ganhão.
E o tempo, ao fim, guedelhudo,
O tempo devora tudo.
Seu
Não é para si nem seu
O que seu e para si
Qualquer um, afinal, creu.
É para outrem aqui
Tudo o que puser a abrigo,
Mesmo para o inimigo.
Que é que importa entesourar
Se esta é a lei deste lugar?
Adulador
Adulador é quem mente
Com a verdade que havia
E afronta assim toda a gente
Dele com a cortesia.
Mais afronta uma mesura
De adulador ao pascigo
Que a bofetada que atura
O meu rosto ao inimigo.
Milagre
Um milagre devagar
É obra da natureza.
Da natureza obra a par
De repente a se instalar
É milagre com certeza.
Desce
Quem é que desce um degrau
Por amor doutro qualquer?
Se Deus salta o infindo vau
Para te vir socorrer,
Derrubar-te-ão a seguir
Os homens, para subir.
Fruta
Os homens no mundo são
Como a fruta, colhe-os Deus
Quando maduros estão.
A fruta cai-me dos céus
Se, madura, a não colher,
Podre logo em torrões meus.
Felicidade em viver
Muito nunca pode estar,
Antes em viver quenquer
Bem, em meio a seu pomar.
Que importa sobreviver
Se for mal amadurar?
Ingrata
Nossa ingrata condição
É sentir mais o que perde,
Mal deixa de o ter à mão,
Do que estima quando o frui.
Perde então muito do que herde
Pelo que nunca institui.
Poder
No poder reina a riqueza
Que todos procurarão,
- Deus não mora em tal empresa.
As honras, por mais fictícias,
Idolatra-as o poder,
- Deus só lê nelas malícias.
Em três cantos vai poder
Deus encontrar qualquer um:
Nalgum templo onde estiver,
Do rei em despacho algum,
De justiça em tribunal.
Como não anda em nenhum?
No tribunal é legal
Justiça virar cobiça,
Toda a lei feita venal.
A majestade se enliça,
Afinal, em tirania.
E a religião se atiça
Com fé, não, hipocrisia.
Não se encontra Deus na liça,
- É do íntimo a estrela-guia.
Dorme
Só quem dorme é que madruga
Mas às estrelas do céu
Que nunca dormem na fuga
Quem a música lhes deu
Que a qualquer destas estrelas
Ninguém logra adormecê-las?
Dinheiro
Quantas vezes sem dinheiro
É que tudo me sobeja
E, se o logro por inteiro,
É que logo pobre seja:
- É que aqui tudo me falta
Com os preços sempre em alta!
Rios
Os rios de oiro e de prata
Trazem o luxo, a vaidade,
A ostentação que mata.
Delícia que o rico invade,
Os palácios e o prazer,
Mais mil superfluidades...
- E o pobre de fora a ver,
Da vida por trás das grades!
Volta
Quando volta carregado
O barco de prata e oiro,
Não é o povo aliviado,
Nenhum remédio lhe é dado,
- Tudo ao rico incha o tesoiro.
É para quem tem o mando
Que desata a cogitar
Onde, com quem, como e quando
Se põe tal desperdiçando
Num invento de matar.
Pacífico
Para um governo pacífico
Não basta a sabedoria,
A riqueza ou o poder,
Se lhe falta o específico
Dom da igualdade que avia,
Dom que mais preza quenquer.
É com todos na igualdade
Que a paz cresce na cidade.
Desigualdade
A igualdade traz o amor,
O amor concilia a paz.
A desigualdade impor
A inveja vai suspicaz
E da primeva concórdia
Ao fim só colho discórdia.
Equilíbrio
Ao inclinar-se a uma parte
O equilíbrio da igualdade
É ferido então destarte.
E com a desigualdade
Vai-se perder a união,
A paz, desfeita a concórdia,
Perdemos tudo o que é são,
Tudo enoja em vil mixórdia.
Sofrido
Se é mal sofrido entre irmãos
Ser bem visto ou ser mal visto,
Como paciência, sãos,
Terão estranhos que avisto
(Como é de avisado teor)
Em desigualdade-mor?
Triste
Tristeza que corre em olhos
Não será nunca a mais triste,
A que afogar os abrolhos
No coração lhe preexiste
E as que em si este afogarem
Serão as mais penetrantes.
Resplendores que brilharem
Em tais cumes cintilantes
São raios da tempestade
Que lá se oculta no centro,
Que os devoram sem piedade,
Que os devoram bem por dentro.
Abatido
É o espírito abatido
O que nos resseca os ossos,
A tristeza que hei vivido
Apressa à morte os destroços.
Toda a chaga vinda à mão
É de triste o coração.
Demais
A tristeza que é demais
É uma autora de pecado:
Da mente apaga os sinais
E a carência de avisado
Conselho leva a que vigem
Mil abismos na vertigem.
Sepulcro
No sepulcro aonde vou
O corpo enterrar-se-á
E o que ali se sepultou
É, neste mundo de cá,
Tudo o que causar tristeza:
- Nada levo, que beleza!
Abundância
Como a abundância e a gula
Do rico é dele o veneno,
A abstinência onde pulula
Do pobre o bando sereno
Vai ser-lhe, a cada momento,
O melhor medicamento.
Chega o rico à sepultura
Em primeiro e mais depressa.
O pobre depois figura,
Devagar, tarde a atravessa.
Iguais termos nos finais
E os passos tão desiguais!
Perguntei
Quando ao corpo perguntei
Para onde ia me assegura:
- Tu bem sabes e eu bem sei
Que vou para a sepultura.
Se fizera igual pergunta
Às almas, que me ocorreu?
A resposta inteira assunta
Que irão votadas ao céu.
Ambicioso
Olhei para o ambicioso
Sobre os demais levantado.
Se além vou, é misterioso:
Não há mais ambicioso
Nem canto onde se há plantado!
O lugar e o que está nele,
Mutuamente dependentes,
Se um falta o outro repele,
Não tem parceiro a que apele,
Dois nadas são enquanto entes.
O lugar abandonado
Foi o procurado dantes,
Agora em nada encontrado,
E não foi transfigurado,
Já que é o nada dos instantes.
No mundo não há lugares
Pretendidos nem deixados:
Os desvelos singulares
Com que acaso os vistoriares
São de mentira traslados.
Não há lugar e o que houver
É o que sempre era o melhor,
Que a melhoria a fazer
Não é fora a que ocorrer,
É a que dentro é de propor.
Por baixo que o lugar seja,
Se bom fores, será bom.
Se melhor é o que se almeja,
Só se melhoras viceja,
A música é a do teu tom.
A melhoria ao lugar
E não o lugar ao homem,
É o homem quem a vai dar.
Se bom és, bom vai ficar;
Se mau, todos se consomem.
Querer mudar de lugar
E não transmudar-te em vida
Como, se a te a ti levar
Contigo andas sem parar
E nada mudas na lida?
Mesmo se ao cume trepais,
Nunca saireis do lugar
Se o mesmo sois onde estais.
Se vos diferenciais,
Noutro o mesmo irá mudar.
Há mesmo um melhor lugar,
Não é na terra, porém.
Os daqui cá irão ficar,
De vez nunca os vou lograr,
Lugar meu só o meu do Além.
Entra
Onde entra inveja, ambição
De lugar, não há virtude
Nem firme amizade à mão:
O maior amigo ilude
E vos há-de desviar,
A tomar-vos o lugar.
Fim
O início do itinerário
Que cada tomar na vida,
Como o meio temerário,
Enganam-nos de seguida.
O fim onde irá parar
É que há-de desenganar.
Rotas
De três rotas se embeleza
O reino, da gente enfeites:
Tanto quanto a da riqueza,
A da honra e a dos deleites.
Quem pergunta onde darão
Busca-o Deus e o acha então.
Governar
Quem há-de governar bem
Vai largar suas raízes.
Quem governar mal, porém,
Aos súbditos as matrizes
Arranca em todas as ruas
Para conservar as suas.
Memória
Na memória, revivido,
Tudo volta duas vezes,
Muito embora enfraquecido
Na dor ou prazer que prezes.
Nem dor nem prazer lembrados
Se assemelham, revolvidos,
À dor ou prazer gozados
Quando outrora acontecidos.
Aridez
A aridez de coração
É bem pior que a peçonha,
Que a peçonha mata em vão
E a aridez mata com ronha,
Gadanhando a dor no centro,
Lentamente, de nós dentro.
Divididos
Querer sem poder é fraco,
Poder sem querer, ocioso,
Divididos, cada é um caco
De nada em que me descoso.
Querer com poder unido
É eficaz e então é tudo.
Dele não fico iludido,
Nele meus cacos me grudo.
Singularidade
Não é singularidade
Ser só, nem grandeza, grande.
Entre os muitos persuade
Ser o só que os mais escande.
Entre os grandes grande ser
Singularidade é ter.
Bravos
Bravos inimigos são
Da época em que nasceram
Os homens que nela estão.
Mais depressa sempre creram
Que podem ressuscitar
Génios que os antecederam
Do que nascer no lugar
Outros tão grandes como eram
Aqueles que eram sem par.
A inveja vício dos vivos
Sempre foi, tal dos presentes,
Nem Deus lhe escapa aos furtivos
Caninos na altura assentes.
Maior
O que for maior desejo,
Logo que for conseguido,
Do maior gosto é o ensejo.
E o maior desejo haurido
Que os pais têm (devem ter)
É o de terem filhos tais
Que a igualá-los os vão ver
E excedê-los ainda mais.
Invertem, pois, os sentidos:
Ficam ledos de vencidos!
Encarecimento
Maior encarecimento
Do que é grande é confessar
Que de o escrever o intento
Não se poderá lograr,
Do que escrevê-lo nas lavras
Da pequenez das palavras.
O que se escreve ainda cabe,
Embora grande, na pena;
Se não se pode, é que sabe
Que a prisão é-lhe pequena.
Lá numero e delimito
O inúmero do infinito.
Livros
Sempre os livros se inventaram
Por conservar a memória
Dos passados que passaram,
Contra o tempo uma vitória,
Dele contra a tirania,
De ignorar, a felonia.
O livro é o conservador
Do antigo que é de repor.
Atrevimento
O atrevimento a escrever
Sobre uma matéria grande
É a caneta engrandecer.
Não se atrever quem demande,
Cegado da luz sidérea,
É engrandecer a matéria.
Começa
Tudo começa no fim,
Não no princípio, deveras:
Operas visando, assim,
Quanto no futuro esperas.
De ontem e de hoje na pausa
É aquela a primeira causa.
Temor
O temor aflige mais,
Tem mais modos de afligir.
Com o que é, como o demais
Aflige, mas, a seguir,
Com tudo o que pode ser
Atormentará quenquer.
E não penas com males
Mas com bens faz que te abales,
Que o temor destrói aqui
Do que há-de ser e nem vi.
Tem mil vias o temor:
- Dos males é o mal maior.
Perfeito
O que for fraco e mimoso
Pátria tem onde nasceu.
Ao que é forte e valoroso
O mundo inteiro é o lar seu.
Ao perfeito em nada o encerro:
O mundo inteiro é um desterro.
Tão
Tão nobre e honrado é o pobre
A pedir esmola às portas
Como o rei que o trono o cobre,
Que o coroam folhas mortas:
Somos iguais na matriz
Com que Deus filhos nos quis.
Sustenta
O pão me sustentou hoje
E livra-me do cuidado
Do amanhã que tanto foge.
O pão me alimenta o fado;
O cuidado aflige a vida,
Encurta e tira em seguida.
É bom que o pão saiba a pão,
Porque o que sabe a cuidado
Tem sempre humor de senão,
Põe-me de algum modo ao lado.
Singrar no rio da vida
Pela correnteza é a ida.
Sem
Não há fé sem esperança,
Firmeza sem dependência,
Nem amor que não alcança,
De cego, crer na evidência
De vislumbrar o futuro
Para me sentir seguro.
Sorte
Nenhum homem, quando orar,
Sabe o que lhe convirá
Pedir ao Deus que increpar,
Só o médico o saberá.
Sorte é o médico ser Deus,
Senão mal dos males meus!
Prioritário
Motivo prioritário
De tombarem os regimes,
Países sob o sudário
Da morte com que os redimes,
Será sempre o da injustiça
Em que cada qual se enliça.
Ou tiram a liberdade
Ao que antes livre nasceu,
Ou não pagam de verdade
O suor do que o serviu.
Na injustiça o que é fundado
É inseguro em todo o lado.
Disto o efeito consequente:
- Nada disto é permanente.
Cega
É cega propriedade
Dum amor o não ter olhos
Para o erro que o invade
De que só irão vir abrolhos.
Amor, ódio, ambos vão
Sentenciar, porém, sem vista
Que aquele não tem à mão
E este a não dá quando a alista.
Inimigos
Os inimigos de fora
Vencem-se uma e muitas vezes,
Mas os de dentro demora,
São invencíveis, soezes.
Com as vitórias aqueles
Vão de vez diminuindo.
Estes que a elas atreles
Crescem mais, vão-te imergindo.
Nauta
Nunca um nauta padecido
Naufrágios haverá tantos
Nem mais certos há sofrido
Que quando menos os prantos,
Quando a loucura o invade
E não teme a tempestade.
É no mar como é na vida,
Que o mar de tudo é medida.
Obras
As filhas do pensamento
Ou ideias são as obras,
Na estreiteza ou no aumento
Dali vêm sempre as sobras.
E a fonte primordial
Donde tudo se recebe
É como é que cada qual
A si próprio se concebe.
Perda
Da perda a dor é a medida,
Medida a perda é do bem.
Bem tido menos convida
A bem se estimar, porém.
Perdido se estima mais,
Que a perda o fará maior.
Maior feito em perdas tais,
Maior também fará dor.
E tudo isto é sendo o bem
O mesmo e nunca diverso.
De experiência nos advém,
Mesmo que à razão adverso.
Perdido
Um bem possuído é um gosto,
Um bem perdido é uma dor.
A dor move, a contragosto,
Bem mais o afecto, ao se impor.
A maior estima ao bem
Perdido não vem da dor
Da perda que acaso advém,
Mas de o conhecer melhor.
Antes de o haver perdido
Não o conheço deveras.
O mal é só conhecido
Quando se tem sem esperas.
O bem é quando se teve.
O mal, quando se padece.
O bem, se se perde, breve,
É que então jamais se esquece.
Longe
De longe vemos o bem,
O mal vemo-lo de perto.
O mal é quando ele vem,
O bem, ao fugir, deserto.
O mal é pelo direito,
O bem, ao invés, do avesso.
O mal, pelo rosto, a jeito,
O bem, de costas no acesso.
Quando o bem se vai embora
É que o desvendo eu agora.
Virou
Quando o bem virou as costas,
Quando fugiu e se vai,
Quando nos larga em congostas,
Quando passou como um ai,
No vácuo que se padece,
Aí de vez se conhece.
Dói
Quem se dói do bem perdido
Que pode recuperar,
O bem perdeu prosseguido,
Não dele o desejo a par,
Nem a esperança que tem
De o recuperar também.
Quem se dói do bem perdido
Que não pode retomar,
O bem perdeu prosseguido,
Nem desejar pode, a par.
Toda a esperança do bem
Doravante se detém.
Apenas se configura
A figura da dor pura.
Perdido
É-o menos o bem perdido
Se puder recuperar-se.
Se é de vez queda no olvido,
É dor pura e sem disfarce.
Há bens perdidos que a dor
Só com ser dor recupera.
Há-os que seja a dor qual for
Nenhuma o vácuo supera.
Tempo perdido é de vez,
Mas não o amor onde o lês.
Viável
A dor por um bem perdido,
Se o remédio for viável,
A esperança no sentido
Leva do que é desejável.
A dor aqui tem disfarce,
Não é só dor o que versa:
Aquilo é remediar-se,
Isto era apenas doer-se;
Aquilo é também amar-se,
Isto é amor onde perder-se.
Temer
Temer o inferno por não ver a Deus
Será temê-lo por amor de mim.
Temer o inferno por ferir os Céus
Será temê-lo pelo Amor sem fim.
Se aquele é luz, tem manchas seu luzir,
Daquele as manchas este irá delir.
Manda
Se fazes o que Deus manda,
Crês em Deus e crês a Deus.
Se não vais nesta demanda,
És só de apetites teus.
E o teu céu ou teu inferno
Vêm do acerto em tal caderno.
Volta
Se soubéreis quanta volta
Desde o ouvido até à boca
Dará uma palavra solta,
Veríeis quão vos sufoca:
Tão suja vem do lameiro
Que ninguém é verdadeiro.
Testemunho
Para o testemunho falso
Não é requerida a muda,
Diminuir, acrescentar...
Basta o sentido que eu alço
Mudar, a intenção que iluda,
Sem o entender mesmo, a par.
Palavra de intenção sã
É corrompida de modo
Que um louvor vira em agravo,
Confiança em injúria vã,
Galanteria em engodo,
Uma graça num tal cravo
Que só chispa labaredas
Donde só virão desgraças.
E estes dizem o que ouviram...
Que será quando as veredas
São do imaginário traças,
Ou do que nem sonhos viram?
Cruzam
Os homens cruzam governos,
Revolvem reinos e o mundo,
Em demanda dos internos
Sonhos que os movem do fundo,
Cada qual a introduzir
Desejos que definir.
E todos aos encontrões
Uns sobre outros vão pisando,
Olhos abertos, tições,
A porta à vista, acenando,
E ninguém, maldita sina,
Com aquela porta atina.
Andam a honra a buscar
E, sendo que é da virtude
A porta por onde entrar,
Não há quem nela se grude.
Compram honras a dinheiro,
Finda a honra por inteiro.
Desvelam-se por riqueza
Com mais olhos que barriga.
Crescer fazenda é o que a lesa,
Diminui cobiça a liga.
E, afinal, que é que isto importa?
Nunca atinam com a porta.
Matam-se por encontrar
Boa vida, sempre à busca.
E é vida boa gerar
A via que lá vai, brusca.
Porém, ninguém já se inclina
À porta que nela atina.
Cansam por achar descanso
E o descanso verdadeiro
É se conformar ao lanço
Que Deus quiser, por inteiro.
Mesmo quem a tal exorta
Nunca atina com a porta.
Distrai-nos
Distrai-nos o pensamento,
Prende a atenção o cuidado,
O desejo de momento,
O afecto que for roubado...
Vendo a vaidade do mundo,
Vamos após ela embora,
Com passo muito jucundo,
Tal se bem sólida fora.
Vendo o engano da esperança,
Dela fio, de alma aberta,
Tal se o que dela se alcança
Fora meta muito certa.
É a vida fragilidade
E quanto castelo afirme
Tal se fora a eternidade
Que nela encontrara, firme!
A inconstância da fortuna!
E quanta promessa apura
A mão que se lhe coaduna,
Tal se ela fora segura!
Todas as coisas humanas
São mentiras em carreiras
E nelas cremos, profanas,
Por santas e verdadeiras.
Cego
Quem alguma coisa vê,
Não como aquilo que for,
Mas como quanto não é
É mais cego observador,
Em tudo quanto ali mente,
Que o que não vê totalmente.
Avessas
Aquele que não vê nada
Da vista tem privação.
O que às avessas, de entrada,
Vê quanto ocorre no chão
Sofre dum erro na vista:
Maior cegueira é a que alista.
Equivocado
Anda em nós equivocado
Bem com mal e mal com bem,
Não por vista haver faltado
Mas de algum erro enganado
Da vista que então se tem.
Guia
Guia um cego um outro cego,
Qual o mais cego dos dois?
O guiado pede aconchego
E o guia, não. Ei-lo, pois,
Duplo cego: de não ver
E, após, de o nem conhecer.
Primeira
Das cegueiras a primeira
Tira a vista dum objecto.
A segunda é mais inteira,
Não vê sequer a cegueira:
Não vê não ver, em concreto.
Vilania
Vilania do invejoso
É que sente o bem alheio,
A glória dele ou o gozo
Mais que o mal de que andar cheio.
Então ao próprio tormento
Nem sequer nele anda atento.
Linhas
Como as linhas que do centro
Da circunferência partem,
Quando nos afectos entro,
Vejo que mais se repartem
E quão mais continuadas
Menos unidas são dadas.
Tira
Tira o tempo a novidade,
Descobre ao amor defeitos,
Ao gosto enfastia a idade,
Uso e são logo outros jeitos.
Se até ferro um uso o gasta,
Quão mais dum amor a casta!
Remediado
Um amor remediado
E que o tempo, enfim, curou
De doença foi traslado,
Não foi amor que findou.
Se um amor fora perfeito,
Ao tempo não era atreito.
União
Não é o amor união
De lugar mas de vontades.
Quando for aquele, então,
A distância que arrecades
Vai desfazê-lo no chão.
Se for este cada dia,
Nenhuma lonjura o esfria.
Contrária
Contrária à luz será treva
Se não fora de supor
Que às estrelas o que as leva
É luz acender maior.
E com o amor acontece
Que amor maior o arrefece.
Porque
Se eu amar porque a mim amam
Tem o amor sempre esta causa.
Ora, amores tais reclamam
Do amor, afinal, a pausa.
Se amo para que a mim amem,
É amor que procura o fruto.
Obrigações que além clamem
Cumpre-as, pagando o produto.
Busco, afinal, meu desejo.
Quem do fundo ama, em lugar,
Ama porque ama, no ensejo,
E ama apenas para amar.
Viso
O amor, dentro, são afectos,
De fora são os efeitos.
Se fiéis daqueles são tectos,
Destes crescem os trejeitos.
Além é perfeito o fito,
Aqui viso o Infinito.
Ausência
O não ver estando ausente,
É uma ausência numa ausência.
Não ver estando presente
É, na presença, outra ausência.
Nos termos contradição,
Nos afectos que violência
Nos vai fazer isto então?
Razão
“Amei-vos? Amai-me vós!”
- Diz a razão sem disfarce.
“Amei-vos? Amai-vos!” – voz
É de Deus que tudo esgarce.
Isto é amar, embora a sós,
E o mais, apenas amar-se.
União
É o amor sempre união
E dela a busca perene.
Para ali propende então,
Para ali caminha o chão
E só lá pára, solene.
Mas, se intenso for demais,
Produz o efeito contrário.
Pode a dor dar gritos reais,
No excesso muda os sinais,
Emudece no cenário.
Como a luz que nos faz ver,
Se for demais, encegueira,
É o amor que tem quenquer:
Une a quem o amor tiver,
Mas demais, divide a leira.
Morte
Toda a morte é morte e ausência:
Morte porque tira a vida;
Ausência, pela premência
Com que aparta, de fugida,
Da copa cortando os ramos,
Todos aqueles que amamos.
Conselheiro
O bom conselheiro
Não o faz o nome
Nem rosto fagueiro
Mas que voto tome
Dele na perícia
Vergando a malícia.
Escravo
Não houve nunca um escravo
Que não tenha decidido
Ser escravo alguma vez:
Pode a escolha ter o travo
De ou servir ou ter morrido
Mas sempre está lá que o fez.
Detrás
Tudo atrás nos vem detrás,
De mães, pais e de avós deles.
Sou marioneta incapaz,
Cordéis presos cá nas peles,
Dançando ao ritmo daqueles
Que antes de nós cá chegaram.
E os nossos filhos imbeles
Ei-los que um dia tomaram
Os cordéis de nossa mão,
Nossa dança dançarão.
Sobreviventes
Estes dois sobreviventes
Numa cela de prisão,
Sempre um ao outro presentes
Na comum amarração,
Não deve mesmo haver nada
Que os venha a surpreender...
- Porque me evoca a fachada
Dum casamento a correr?
Quiser
Quem quiser fazer amigos
- É num clube de leitura.
Se for dinheiro, pascigos
É o que o dia só lhe apura.
Apenas um imbecil
Confunde ambos no redil.
Amigo pelo dinheiro
Não é amigo verdadeiro.
Se for amigo é gratuito,
Recebe pouco, dá muito.
Abafar
A liberdade não é
Somente andar à vontade,
É deixar o outro de pé,
A ser quem é de verdade.
É não lhe abafar a essência,
Respeitar necessidades,
Das vontades a evidência
Que intui das profundidades.
Toda a individualidade
Respeitar noutrem e em mim
É a base da liberdade
De caminheiros sem fim.
Tiram
Não são os outros que tiram
A liberdade deveras,
Limitamo-la se miram
Deles quais nossas esperas:
Quero-lhes a aprovação
E assim me têm à mão.
Gaiolas
Preso em gaiolas da vida
Ou dos outros nas gaiolas,
Quem me pôs lá sem medida,
A ideia preconcebida
Ou doutrem as carambolas?
No fim serão sempre os medos
Mais que actos doutrem ou credos.
Ser
É no ser que há segurança,
Não no ter ou no fazer:
Nestes há sempre mudança
E na muda não se alcança
A segurança de ser.
Medo
Do medo surge a revolta,
A raiva, o ressentimento,
A crítica, o julgamento,
Qualquer egoísmo à solta,
Preocupação, mentira...
- No medo a vida delira.
Sintoma
Qualquer físico sintoma
Com padrão emocional
Como raiz, ou mental,
Inadequado ao que o toma,
Ou com ele num conflito...
- É doença que concito.
Sincronismos
Os anjos jogam connosco
Através dos sincronismos.
À esquina da vida embosco
Uma suspeita de abismos,
Eis que a casualidade
Já tal não é, de verdade.
O significado além
Vai então do que é aparente,
Do que a vista alcança bem,
Da coincidência evidente.
A coincidência é uma imagem
Onde então leio a mensagem.
Pedes
Tudo o que pedes te chega.
Porém, se ficas sentado
Ou a dormir acordado,
Nunca o milagre te pega.
Não é a vida contra ti,
Se te vem outra resposta,
É que tens a mesa posta
Para mudar desde aí.
É mudar de perspectiva,
Ou de objectivo mudar,
Ou então não é o lugar
Ou tempo do que aí viva.
Caindo
Só aprendemos caindo
E os erros compreendidos
São passos gigantes indo,
Que urge celebrar, rendidos,
Ao invés de os castigar:
- São um primeiro lugar!
Aprendizagem
Na aprendizagem na terra
Não há modo de aprender
Senão pelo engano que erra,
Por uma falha qualquer.
Porquê culpar-nos então
Do degrau que houver no chão?
Quotidiano
Desafio quotidiano
Será o dos gestos pequenos.
Convenço-me, por engano,
Que importância têm de menos
E, atrofiado e cinzento,
Eis como apodreço, lento.
Servem
Nem mestres nem dogmas servem,
Da ciência veredictos,
Só os ecos que em mim se acervem,
Do coração requisitos.
Quer escrito por alguém,
Quer ouvido em conferência,
Quer proveniente do além
Do imo em íntima evidência,
Pouco importa, ressoou
Em meu interior fundo?
Se fundo assim me tocou,
É aqui que começa o mundo.
Hábito
Hábito é comodidade
Em redes de segurança,
A rotina que te invade.
Se quebras o que te alcança,
Os medos são gritaria
Mas ganhas força, alegria.
Simplicidade
Havendo simplicidade,
O sorriso vai mais fundo,
As ideias mais verdade
Desabrocharão no mundo,
Serão flor que despoleta
Voos duma borboleta.
Direcção
Ver a direcção correcta
É saber onde chegar
Ou que operar como meta.
Coração-razão, o par
De, sem asas, pôr-me a voar.
Semente
És a semente inquieta,
Fechada e cheia de vida.
Queres correr pela recta
E ouves logo de seguida:
- “Não vás de pressa, aproveita
O tempo de alimentar-te
Da energia a que és atreita,
Frui do dia a tua parte.
Ao obstáculo, atenção!
Aprende com todos eles.
Amas com o coração?
Não te esqueças do que apeles.
Se fizeste o teu percurso,
A tua vida a se encher,
Não te detenhas no curso,
Segue em frente até morrer.
Que importa o mundo não crer
Que morrer é renascer?”
Unem
Tu e teu anjo, se se unem,
Não te vês abandonado,
Nem apoios se reúnem
Nos amigos a teu lado.
Jamais a verdade apuras
Fora de ti nas procuras.
Levo-me
Sou quem mora neste abrigo,
Levo-me sempre comigo.
De noite ele é quem me guia,
Guio-o eu durante o dia.
Sempre assim emparelhados,
Sós, vamos de braços dados.
Migalha
Se a migalha do defeito
Alguém descobre nas obras,
Que a ser homem sou atreito
Descobre em meu jeito e sobras.
Não é, pois, o fim do mundo:
- Sou como os demais, no fundo.
Erro
Ninguém foge ao próprio erro,
Basta uma escorregadela
E alguém sofre ao peito um ferro
Tal que uma infernal sequela
Pode ser perder a paz
- E não há mais volta atrás.
Estranho
Muito estranho é o ser humano!
Algo é feito, não dá certo,
E, em vez de pôr fim ao dano,
De o rumo mudar, desperto,
Não, julga ter feito pouco:
- Fará mais no rumo louco!
Dormir
Se alguém com alguém dormir
Para subir na carreira,
Nunca então irá sentir
A receita verdadeira
Da merendeira da glória:
- O gostinho da vitória.
Arte
Qualquer arte com as gentes
O que faz é comovê-las,
Fá-las sentir, entrementes,
O que jamais hão sentido:
O êxtase das caravelas
A entrar no desconhecido.
Cume
Todo o cume é solitário.
Quão mais só alguém se viu,
Feito trepador primário,
É que mais alto subiu.
No bem tal como no mal,
Sempre igual será o sinal.
Foge
Nunca ninguém foge à vida
Porque ela sempre nos segue
E o que tem de ser vivida
Sê-lo-á onde prossegue.
Tece a rede de retrós
Muito mais forte que nós.
Destino
O destino são vectores,
Fixos uns, outros variáveis.
E, em nossas mãos, dois pendores:
Aceitar os imutáveis;
Mudar o que não confere
Comigo e faz que o altere.