CAMINHO NOVO
BARTOLOMEU
VALENTE
AROEIRA, 2013
TRILHOS DO AMOR
Caído
Em breve ficas caído
Por alguém. Porém, cuidado:
Quando alguém cai, é sabido,
Parte algo então nalgum lado.
Itinerário
O itinerário do amor...
Mas quem é pessoa certa?
- É quem transforme o amargor
No doce que nos desperta.
Amizade
Tua amizade é amizade
Que possas seguir por lema
Ou veneno que te invade,
De prisioneiro uma algema?
Amor
Um Amor com letra grande
Que é o Deus que o Cosmos define
Vale bem que alguém lhe mande
Amor que se lhe destine.
Traidor
O coração é um traidor,
Fecha-o bem a sete chaves,
Até triar que fulgor
Te leva à Luz sem entraves.
Viver
Não posso viver contigo,
Sem ti não posso viver?
- O amor é meu inimigo,
De amigo de vir a ser.
Afecto
Se o afecto é negativo,
Negativo afecto atrai.
Se o transmudo em positivo,
O céu, vindo, à mão nos cai.
Estranho
O amor é um estranho abrigo:
Com outrem eu vou estar
Sem deixar de estar comigo,
Lento o Todo a harmonizar.
Sereno
Escrúpulos, não! Sereno,
Toma a vida pela mão.
Não consideres pequeno
Do Universo o coração.
Simplicidade
A simplicidade é estranho
Sal que apura a perfeição:
De além do imo vem-lhe o ganho
Mais dos mais que a mão te dão.
Afrouxas
Tens mesmo bem pouco amor
Quando cedes sem entrave
E afrouxas do imo o fulgor
Só por não ser muito grave!
Caridade
A caridade te leva
A mui nobres concessões
E a intransigências que à treva
Mais nobres ainda opões.
Grupo
Com espírito de grupo
Não és aquele instrumento
Que quebra ao primeiro apupo,
Poeira ao sabor do vento.
Segredo
O segredo para dar
Relevo ao que humilde for,
Insignificante a par,
É amar com profundo amor.
Amigo
Um amigo é um tesoiro
Como Deus é Amor, então.
Onde está o amigo de oiro,
Há-de estar meu coração.
Ensina-me
Se amo Deus no irmão,
Então, singular,
Há só uma oração:
- Ensina-me a amar!
Formosura
O que é feito por amor
A formosura entretece
E tudo, disto por mor,
Então logo se engrandece.
Último
Que eu seja o último em tudo
E o acolha com humor!
Seja o primeiro, contudo,
Sempre o primeiro no amor!
Temer
Temer a justiça em Deus
É não ver misericórdia
Que é o teor, ao fim, dos céus,
Ambas no amor em concórdia.
Luta
Na tua revolução,
Na interior luta envolvido,
Vive de amor: sempre então
Vencerás, mesmo vencido.
Transborde
Que teu coração transborde
De amor e de gratidão
Pelo dia que te aborde,
Mesmo armadilhado o chão.
Choque
O choque com o egoísmo
Do mundo faz-te apreciar
O fraterno gosto a abismo
Da mão de alguém a se dar.
Forte
Irmão de irmão ajudado
É tão forte, na encumeada,
Como o forte alevantado
Da cidade amuralhada.
Apenas
Com as palavras apenas
Não amemos, língua mera,
Mas com as obras, pequenas
Embora, verdade vera.
Compreender
Caridade tanto é dar
Como além compreender,
O próximo ao desculpar
Se de o julgar tens dever.
Longe
Quando alguém correr perigo,
De longe em união com ele
Podes ser-lhe a ajuda, o abrigo?
- Dá-lho sem que a tal apele.
Inteiro
Ter caridade não é
Dar roupa velha a alguns pobres,
É dar-se inteiro e de pé
Naquilo em que até nem sobres.
Amas
Tu não amas a pobreza
Se, dela posto ao pascigo,
Não amas inteira a mesa
Que a pobreza traz consigo.
Favor
Quantas vezes, onde há fé,
Ao pedirem-me um favor,
Um segundo é visto ao pé:
- Faço-o a mim se ao outro o for.
Dar
O mais estranho de dar,
Quando damos o que temos,
É dar-se isto logo a par:
- Quando damos, recebemos.
Coração
Nenhum coração inteiro
É tanto, em qualquer sentido
Em que um coração requeiro,
Do que um coração partido.
Perto
De longe é fácil amar.
De perto, porém, é um fado
Difícil de carregar:
- Doi amar quem anda ao lado.
Grande
Quando um coração é grande,
Nunca o fecha a ingratidão.
E a indiferença, se mande,
Nunca o cansa ou tem à mão.
Alaga
Alaga o teu coração
De esperanças mil singelas
Mas nunca permitas, não,
Que um dia se afogue nelas.
Caminho
Há um caminho já seguro
De atingir seja qual for
O coração em apuro
Que é muito simples: o amor.
Coração
Há gente que não procura
A beleza: é uma ilusão.
Maior bem se lhe figura
Coração, só coração.
Acredita, há muito quem
Não procure, neste chão,
Ao reparar em alguém,
Beleza, mas coração.
Segredo
Felicidade é segredo,
É encontrar esta magia:
De nossa alegria o credo
É dos outros a alegria.
Segredo de ser feliz
É encontrar nossa alegria
Da alegria no matiz
Doutrem a quem a daria.
Poeta
Poesia, a infinda meta
Que encontro na esquina ao lado:
Todo o homem é poeta
Se estiver apaixonado.
Quando do Infinito a meta
Se vislumbra, é fogo ateado:
Todo o homem é poeta
Quando fica apaixonado.
Amigo
O amigo em particular
Repreende, em bonomia,
Mas num público lugar
Ao amigo só elogia.
Ao amigo a sussurrar
Tu corrige acaso um dia
Mas ante o público alvar
Sempre, sempre o elogia.
Solidão
Solidão dos corações
É um coração sem abrigos:
A maior das solidões
É nunca se ter amigos.
Pode o amigo ter senões
Mas onde achar mais abrigos?
A maior das solidões
É não ter nenhuns amigos.
Magoa
Às vezes não vejo o bem
Mesmo à frente do nariz
Nem o que magoa além
Quem amamos de raiz.
Fonte
Quem viver o amor na vida
Da vida a fonte o há-de amar
Sem condições à partida
Nem quando à meta chegar.
Alegria
Multiplica-se a alegria
Quando em festa partilhada,
Como a tristeza atrofia
Na divisão, retalhada.
Servir
Servir é da vida o amor
Em qualquer tempo que houver.
- Como servir a um senhor
Que nos possa ao fim morrer?
Pobre
Pobre amor é o teu amor
Se ânsia não tens de pegar
Tua loucura o que for
Aos outros, a quem calhar.
Infinito
Um amor ao Infinito
Votado ao imo da gente
Transmuda o mais pequenito
Num deus mesmo omnipotente.
CARREIROS
EM CONTRAPÉ
Arco-íris
Um arco-íris demora,
Entre o sol e a chuva densa.
É quanto basta: aí mora
A recompensa.
Aceite
O que não pode mudar,
Aceite.
Então, se bem reparar,
Não há nada que o despeite.
Compartilhando
Deus a se satisfazer
Compartilhando, miúdo?!
Não, Deus quer
Tudo!
Mistério
Eis o mistério:
Para viver
A sério
É preciso morrer!
Pára
Antes de querer fazer,
Pára teus pés,
Trata de ser
Quem és!
Mal
Aqui na terra existe apenas
Um mal:
Trair do imo as longínquas e pequenas
Luzes do fanal.
Desvergonha
Se a desvergonha que em ti fito
É de teu íntimo o chão,
Que te importa o que terão dito
Ou que dirão?
Peso
Que eu tenha peso e medida
Em tudo o que for
Minha vida
- Menos no amor!
Projectado
Se o amor dá tanta consolação
Quando na terra o concito,
Que será então
Quando o viver alargado ao infinito?
Erro
Não é um erro enganar-se
Ou falhar.
Não há disfarce:
- Erro é não tentar!
Ansiedade
Se ansiedade em ti bole,
Tenaz,
Olha de frente o sol:
- Logo te ficam as sombras para trás.
Fugir
Desde que no Paraíso fugiu Adão
Até, no limite, nos tornarmos ateus,
Há uma tradição:
- O homem gosta de fugir de Deus!
Segredo
O segredo maior
É calmo e sereno:
- Nada feito por amor
É pequeno.
Entende
Quem não entende um olhar,
Então,
Também não entende, em lugar,
Qualquer explicação.
Melhores
Não jogues ao vento
Maus humores:
Útil é apenas o conhecimento
Que nos torne melhores.
Secreto
A vida é o secreto traslado
De misteriosa pasta:
- Amei e fui amado,
É quanto basta!
Que importa andar tresloucado
A buscar do rumo a casta?
Amo, amei e fui amado:
- É quanto basta!
Difícil
Do desconhecido temer os sinais
Não nos deixa entender
Que viver é mais difícil, muito mais
Do que morrer.
Descobre
Olha para o mundo como quem nasceu,
Pára teu olhar que interminável erra
- E descobre o céu
Na terra!
Curta
A mais curta das distâncias
Entre dois entes com siso
Não é um retorno às infâncias,
- É um sorriso!
Todos
Quando todos mentem
Falar verdade, sumário,
Todos o sentem
Como perigosamente revolucionário.
Comunica
Comunica com alguém.
Isso, fecundo,
Pode fazer além
Toda a diferença do mundo.
ENCRUZILHADAS
DE RUMOS
Charco
Porque beber neste charco
Que mal tenho aqui à perna
Se puder beber num barco
Que navegue a vida eterna?
Criaturas
Criaturas para ti
Não as há, tudo é de Deus.
Para ti só as eu vi
Se os portais abriste aos céus.
Mudança
Quando o mundo não alcança
A mudança a ter no fundo,
Alcança em ti a mudança
Que em si não alcança o mundo.
Aposta
Acolhe da vida a aposta,
Banal seja ou singular.
Deus conduz o barco à costa,
Só tens mesmo é de remar.
Dentro
A felicidade é um dom
Que mora dentro de ti:
Do fundo do coração
O que sonhas vem aí.
Enterrada
Tu nunca serás feliz
Verdadeiramente. É triste?
Felicidade é raiz:
- Enterrada, mas existe.
Confia
Por muito que digas não,
Queres vida e com alarde.
Confia na intuição,
Vais conseguir, cedo ou tarde.
Recusa
Quando o sonho te ofertarem
De tua vida, recusa.
Bom é todos se lembrarem:
- Um sonho apenas? Não se usa!
Desprendimento
O desprendimento custa
E é sempre a justa medida
Duma cruz que em mim ajusta
Quanto é livre a minha vida.
Submeter
Não te queres submeter
De Deus à vontade inteira,
Mas entretanto a quenquer
Te submetes que se abeira.
Lugar
Nada tires do lugar.
Se Deus se te dá no mundo,
Porque andas a te apegar
Às criaturas tão fundo?
Dor
A dor te abate, que tu
A acolhes com cobardia.
Acolhe-a valente, a cru:
- E um tesoiro te anuncia!
Aborrece
Não digas que te aborrece
Quem sempre te mortifica,
Olha que é quem te oferece
O que, ao fim, te santifica!
Abater
Não percas a ocasião
De abater teu pré-juízo.
Custa, mas, sem isto, não,
As funduras não diviso.
Mortificações
Tuas mortificações
Que a teu dia se te apliquem,
Deixem os mais sem lesões,
Que os outros não mortifiquem.
Olhar
Para que hás-de olhar, profundo
Vasculhando a bisturi,
Se, bem no fundo, o teu mundo,
O trazes dentro de ti?
Melhor
O que é melhor para elas
As pessoas nunca sabem
Até que abram as janelas
E no infindo em frente acabem.
Mundo
Todo o mundo a se propor
Ter. E o terror de perder
Que chega a ser bem pior
Que a frustração de não ter?
Nunca
Se quando desejo muito
Nunca o consigo alcançar,
Nunca então da vida intuito
Aquilo é de pôr-me a par.
Confusão
Porquê tanta confusão
Pelos bens materiais todos?
A vida interior à mão
Dá-nos mais que tais engodos.
Atraímos
O que nós sempre atraímos
É o que já dentro em nós mora.
- Por que trilho então seguimos,
Qual meu rumo íntimo agora?
Muda
Para que jamais me iluda
Vou meu íntimo ajustar,
Porque o resto apenas muda,
O resto, quando eu mudar.
Pedra
Quando estou no meu caminho,
Qualquer pedra de sentar
É boa, que é de meu ninho,
Faz-me sentir no lugar.
Dar
O céu nunca nos vai dar
Aquilo que nós queiramos,
Antes, ao invés, a par,
O que nós mais precisamos.
Pobre
Se não tiveras nascido,
Mais pobre era a humanidade:
Tens em teu imo investido
Campo onde mais ninguém grade.
Preocupado
Quem viver preocupado
Com dinheiro que retém,
O contributo pagado
Perde-lhe o ser troca além.
Foco
Quando o foco é contribuir,
Construir, edificar,
O dinheiro finda a vir,
Mas humilde em seu lugar.
Paz
Para a alegria chegar
E ter paz até ao fim
Terei de não me apegar
A coisas fora de mim.
Bem
Se estiver de bem comigo,
Nunca cedo nem ataco,
Nunca vou buscar amigo
Que por mim tape o buraco.
Arte
Arte é conseguir viver,
Relacionar-se de pé,
Sem nunca deixar de ser,
Mas nunca, de ser quem é.
Mundo
Para onde é que hás-de olhar
Se o teu mundo nunca ali,
Lá por fora, te há-de estar,
Que o trazes dentro de ti?
Vence-te
Vence-te ao primeiro instante,
A preguiça não te aguça.
Como a perda é desgastante
Na primeira escaramuça!
Dar-se
Alma e corpo, os inimigos
Que não podem separar-se
E, por igual, os amigos
Que nem vão ver-se nem dar-se.
Ressaibos
A alegria que tivermos
Tem ressaibos de amargura:
Cá em baixo estes são os termos,
Dor é o sal que nos apura.
Ala
Na hora de levantar,
Ala, então, que se faz tarde!
- E a vontade, ao despertar,
Logo enrija o mais cobarde.
Aborrecimento
É um bom aborrecimento
O que sentes de ti mesmo,
Senão, com qual argumento
Desbravas a vida a esmo?
Semeia
Sempre alegres na esperança;
Na tribulação, pacientes;
Na oração, perseverança
- E a dor semeia sementes.
Cumprindo
De Deus cumprindo a vontade
Sofreram Cristo, os profetas...
- E queixas-te, de verdade,
Que te doi buscar as metas?!
Corpo
Diz a teu corpo sem regras:
“Prefiro ter um escravo
A sê-lo teu: quando integras
Quanto vida fora escavo?”
Choras
Se choras, não te envergonhes,
Purificas teu passado
E o futuro que hoje sonhes
Além vai do que hás sonhado.
Feliz
Quero-te feliz na terra,
Mas não o és com medo à dor:
Caminhante, a dor se aferra
E é o que paga a meta a apor.
Perder
Modos de perder a vida
Há muitos, conforme o apelo.
Vida em mais vida exaurida
É de todos o mais belo.
Purifiquem
Quando lograres que as dores
Físicas, morais, em filas
Purifiquem teus humores,
Não as rejeites, bendi-las.
Maior
O teu maior inimigo
Não o busques fora a esmo,
Que fora não há perigo,
- O teu maior és tu mesmo!
Cuidado
O teu corpo quer cuidado,
Caridade da maior,
Mas não mais que a que hajas dado
A um amigo que é traidor.
Pendor
Quando o corpo é o inimigo
No pendor que se procura
Porque o trazes ao abrigo
De tua parva brandura?
Noite
Quando a profundeza do imo
A noite é que enfim me invade,
Na fundura atinjo o cimo:
- Luminosa obscuridade!
Sofres
Quando sofres, deste lado
Mal vês as marcas de além.
Mas o Além não há mudado...
- Sofres? É porque convém.
Dor
A dor finda enobrecida
Quando é o custo de trepar
Ou então quando é ferida
Por desertar meu lugar.
Exame
Exame, tarefa diária
De quem negócios dirige:
- A nossa meta viária
Ainda mais premente o exige.
Aprender
Um olhar sobre o passado,
Sem lamento (estéril fundo)
Mas a aprender cada dado,
A aprender, que é o que é fecundo.
Raiz
Insiste em buscar mais luz
Até dar com a raiz:
A um novo trilho te induz
E dobra ao mal a cerviz.
Dívidas
Que as dívidas reconheças:
Com Deus e homens as desdobras...
De pagá-las não te esqueças
Com gratidão e com obras!
Fiel
Quem no pouco for fiel,
No muito o será também.
Do descaminho o meu fel,
Na raiz, dali provém.
Paternal
O Cosmos é paternal,
As barreiras e os impasses
Afastou-te, ao teu sinal,
Para que não tropeçasses.
Concretos
Tem propósitos concretos,
Cumpre-os, com o apoio do imo.
Por estes passos discretos
Trepas pouco a pouco ao cimo.
Dão
Se te dão honra e louvor,
Lembra o que te faz corar.
Da vergonha és tu senhor,
Louvor é Infindo a se dar.
Demais
Volta à tua vida
agora:
Agora não é jamais
Cedo demais, na demora,
Nem, por ora, tarde a mais.
Treino
Se eu nunca desanimar,
A derrota de hoje, esquiva,
Treino é que me há-de acartar
Vitória definitiva.
Ângulo
Não tomes a decisão
Sem considerar o assunto
Neste ângulo de visão
Em que tu com Deus vais junto.
Sozinho
Sozinho, nunca estás só,
Na lonjura há companhia:
Os longes são do teu pó
Quem pinta o tom do teu dia.
Emproar
Sermos nós filhos de Deus
É de emproar de soberba!
Questão é que os gestos meus
Façam jus a uma tal verba!
Imo
O íntimo maior que o imo
Mantém em tua presença:
É teu trilho até ao cimo
Da vida na tua avença.
Silêncio
Silêncio: o porteiro-mor,
Quando vou à descoberta,
Em caminhada interior,
E transponho a porta aberta.
Bom
Que eu seja bom e que os mais,
Na eterna busca de céu
Ultrapassem meus varais,
Que sejam melhores que eu!
Converter-se
Converter-se é num instante.
Santificar-se, em seguida,
É partir pedra adiante,
É obra de toda a vida.
Melhor
Nada de melhor no mundo
Que, nos labirintos meus,
Seguir o imo até ao fundo,
Entreabrindo a porta aos céus.
Pureza
A pureza de intenção
Fica de vez garantida
Se no imo escavar o chão
Que irei semear na vida.
Impaciente
Impaciente de Infinito,
É estéril a rede viária
Se não tratar, quando a habito,
Minha conduta diária.
Rectificar
Rectificar cada dia
Um pouco, um nada que seja,
É o labor constante, a via
De quem céu quer que se veja.
Dever
Não há peritos de jeito,
Nem monopólios nenhuns.
O dever de ser perfeito
É de todos, não de alguns.
Começar
Começar, recomeçar,
É o que a vida interior
Deverá ser sempre, a par,
Que infindo é o que vem propor.
Servir
A vontade de servir
Com voluntariedade
Abre portas ao porvir,
Lenta o Infinito a invade.
Deves
Por ti morrem os profetas,
Cândidos arroteadores,
Mil e um cristos ante as metas...
- Não deves nada a tais dores?
Minutos
Procura diariamente
Minutos de solidão
Para a interior vida em mente
Teres a arrotear teu chão.
Milícia
Vida de homem é milícia
Sobre a terra história além.
Comodista é o que a estultícia
De nem dar por ela tem.
Guerra
Guerra por dentro de mim,
A desatar-me os meus nós
Em busca de meu confim,
- Só nesta é que há um bem após.
Intimidade
A intimidade contigo,
Em teu imo o mais além,
Não te diz nada do abrigo
Que ao longe te chama: “Vem!”?
Raposas
Por falhas que não condenas
Teu íntimo desalinha.
Caça as raposas pequenas,
Que te destroem a vinha!
Falha
Pela falha a que não ligas
(Falha não é de maior),
Nunca tens, em tuas brigas,
Deveras vida interior.
Rumo
Segue teu rumo a valer,
Vê que é que teu imo almeja!
Ao que ser sábio puder
Quem perdoa que o não seja?
Muito
Escrever todas as loisas
Não é deveras o intuito:
Não requeiro muitas coisas,
Em cada requeiro muito.
Estudas
Trabalhas em mil trabalhos,
Todavia, não estudas?
Não serves a quebrar galhos,
Que os baralhas, se não mudas.
Estudo
As horas de estudo são,
Quando quero luz no mundo,
Bem mais horas de oração
Com que de Infindo me inundo.
Inteligência
Se tens de servir a Deus
Com a tua inteligência,
Estudar é uma exigência.
- É o dia dos dias teus!
Empenho
Se pões o empenho no estudo,
Doutro empenho sê senhor
A obrar como teu escudo:
O de ter vida interior.
Antes
Antes de pôr-te a ensinar,
Primeiro põe-te a fazer:
Fazer vai proporcionar
Que outros aprendam a ser.
Labor
Um labor profissional
Vai melhorar tua vida
Fora e dentro: dá sinal
De alma a ser robustecida.
Cultura
É bom que ninguém nos vença
Na vivência da cultura,
Mas é um meio de quem pensa,
Nunca o fim que alguém procura.
Figueira
Todo o teu tempo aproveita!
A figueira amaldiçoada
É sempre quando só deita
Folhas à berma da estrada.
Negócios
Para os negócios humanos
Tempo é de oiro e gera história.
Para os do imo irem sem danos
É o tempo sempre antes glória.
Milagres
De milagres não preciso,
Preciso do teu dever
Cumprido com todo o siso,
À brisa do imo a ceder.
Chefe
De chefe tens vocação?
Serve então os que comandas
Com o desvelo de irmão
E os mais como iguais com que andas.
Aborreces-te
Aborreces-te? É que tens
Os sentidos bem despertos
E o imo, ignorando os bens,
A dormir em teus desertos.
Virar
Se queres virar o mundo
De teu imo ao melhor lanço,
Tens de trabalhar bem fundo
E trabalhar sem descanso.
Precipitação
Toda a precipitação
Na actividade que tento
Não é actividade, não,
É apenas estouvamento.
Fraquejar
Se te vêem fraquejar
Quando és chefe, a consequência
É que não é de estranhar
Que quebrante a obediência.
Ridículo
Do ridículo te ri,
Fiel mantém-te ao teu imo,
Mantém-te fiel a ti:
Quem de ti rir falha o cimo.
Avessas
Ridículo é quem persiste
Às avessas com o andor.
Ridículo não existe
Para quem faz o melhor.
Destempero
A intransigência, no fundo,
Se é meu imo que venero,
Por aqui não a confundo
Jamais com o destempero.
Fracassar
Fracassaste? Tu não podes
Fracassar nenhum instante:
É só vivência que rodes
Dentro em ti. Portanto, adiante!
Virtude
Virtude que o imo almeja
Murmura no acto de agora.
Que a virtude em ti não seja
Uma virtude sonora!
Mundano
Homem de Deus pervertido,
Que pena e que enorme dano!
E pior é o sem sentido
Que tíbio for e mundano.
Julgador
Das vitórias e derrotas
É o mundo mau julgador:
Sai tantas vezes, nas notas,
Derrotado o vencedor!
Feito
O que me arrepia a pele
É a criança ou um doente,
Quando fundo atento nele,
Ser Deus aqui feito gente.
Intenções
Aflora na intenção já
Todo um Belo sem maleitas.
Homem perfeito não há,
Somente intenções perfeitas.
Negativa
Nunca a negativa crítica.
Quando não for de louvar,
Deve esta ser a política:
- Calar, apenas calar.
Longe
Sendo ao fim tão miserável,
Longe de alturas sidéreas,
Como estranho, insociável,
Que os outros tenham misérias?
Livro
Livro para alimentar
Da inteligência o postigo
Mais eficaz é que dar
Um pão, mesmo de bom trigo.
Santos
Todos são, no fundo, santos,
Que o mais profundo do fundo
Vem do reino dos encantos,
É o portal do outro mundo.
Busques
Se o reino de Deus procuras
Bem como a justiça dele,
Não busques mais sinecuras,
Ele tas dá no que sele.
Toco
Toco a vida como vier,
No cume ou no fundo algar:
Se para pular não der,
Sigo em frente a rastejar.
Entregas
Quando te entregas a Deus,
Trepas dum tão fundo abismo
Que não há lesões nem véus
Que te quebrem o optimismo.
Prudentes
Sempre os prudentes julgaram
Loucuras as obras do imo.
Não ligues, sempre findaram
Atolados bem no limo.
Troças
Quando apenas troças firmem
Marcos maus em teu redor,
Que as tuas obras confirmem
O que tua missão for.
Espectáculo
Sem espectáculo agiram
Os santos a quem apeles.
Se espectáculos surgiram,
Sempre foi apesar deles.
Pareces
Do presépio te consomem
Horas os musgos. Avança:
Nunca pareces mais homem
Que se pareces criança.
Obras
Tão abundante é na boca
A fé, mas jamais nas obras!
A pregar é que se evoca,
Praticar, não, que são sobras?!...
Superstição
Fé, não, mas superstição:
Palavras de mau agoiro,
Facas cruzadas do pão...
- E a vida tomba em desdoiro!
Aplausos
Os aplausos do triunfo
Quando ouvires, que ressoem
A teus ouvidos, por trunfo,
Risos que as falhas te ecoem.
Desprezem
Quando te vires como és,
Parece-te natural
Que te desprezem aos pés:
- Pois se és mesmo tal e qual!
Humilde
Humilde quando te humilhas
Não é humildade jamais,
Mas se te humilham e cilhas
Do Infindo acolhes que tais.
Reconhece
Reconhece humildemente
Tua fraqueza, que então,
Quando és fraco, de repente,
És forte como um leão!
Paz
Quando a paz morre ao cadinho
Das pressões e do furor,
A humildade é um bom caminho
De atingir paz interior.
Lado
Ante teu imo Infinito
Que é que és tu cá deste lado?
És um mero pobrezito
Com um bom fato emprestado.
Conhecer-me
A mim próprio conhecer-me
Leva-me, mais que à verdade,
Pela mão, feito qual verme,
À verdadeira humildade.
Desobedecer
Desobedecer ao imo
Mais profundo de si mesmo
É perder o rumo ao cimo,
Caminhar na vida a esmo.
Tempera
Tempera a tua vontade
Para ser esporão de aço.
A vontade forte é que há-de
Obedecer a compasso.
Instrumento
Tal se foras instrumento
Em mão de artista, obedece
Quando dentro e fora o vento
De luz igual a ti desce.
Ridículo
Ridículo pormenor
(Será que obedeço nisto?)
Terá de heróico o teor
Quando em meus actos o alisto.
Paz
Se obedecer a teu imo
Não te trouxer, ao fim, paz,
Soberbo és da base ao cimo,
Em resumo, um incapaz.
Mais
Necessidades convém
Que não crieis de pequenos:
Aquele que é quem mais tem
É quem precisou de menos.
Desprezar
Se és homem de Deus e do imo,
Põe em desprezar riqueza
Com empenho tanto arrimo,
Como o do mundo que a preza.
Tombarão
Porque a riqueza se preza
É que muitos tombarão.
Se à tua mão vem riqueza,
Não lhe ponhas coração.
Calar
De te calar tu jamais
Alguma vez te arrependes,
Já de falar é demais
Que arrependido te rendes.
Discrição
Discrição não é mistério
Nem tem de implicar segredo.
Naturalidade a sério
É o que é, sempre além do medo.
Calas
Se calas, mais eficácia
Hás-de ter em tua história:
Mata a boca muita audácia
E mata-te com a vanglória.
Seiva
Nunca poderemos ser
Raiz e copa senão
Sendo seiva a percorrer
Por dentro, no íntimo, o chão.
Despeito
Porque tomas tanto a peito
Aquilo que já passou?
Cala-te, que foi despeito
O que a língua te afiou.
Gume
A discrição não é gume
De arma tua de combate
Mas como punho a resume
Que a qualquer gume então se ate.
Virtude
A verdadeira virtude
Não é triste ou antipática,
Mas, de alegre, é como grude
Que amável nos cole à prática.
Antipático
Cara séria, modo brusco
E de ridículo aspecto,
Ar antipatico... Busco
A quem inspirar correcto?
Terra
Tudo o que for deste mundo
Não é mais que terra ao léu.
Junta-o sob os pés, fecundo,
Findas mais perto do céu.
Comes
Comes mais do que precisas?
Tal fartura é lassidão,
Entorpece o que ajuízas...
Rastejas, verme, no chão.
Quando
Quando vier o sofrimento
Ou do desprezo o tropeço,
Pondera: que é isto, atento
Ao que, no fundo, mereço?
Fora
Há muita luta lá fora,
O que te desculpa em parte.
Mas o cúmplice em ti mora:
- Como isto então desculpar-te?
Eriçada
Quando a vejo tão pequena
E sempre tão eriçada,
A nossa vida terrena
É má noite em má pousada.
Inquietação
A inquietação não é parte
Do que for vida capaz:
Não deves nunca inquietar-te,
Que é sempre perder a paz.
Contra
Tu não vais contra Deus, não.
Quedas são fragilidade,
Porém tão frequentes são
Que és tolo e mau de verdade.
Vencer-te
Quando não sabes vencer-te,
É olhar a sela, os arreios,
E perguntar-te, solerte:
- Será que já usei os meios?
Custa
Como custa! Todavia,
Para a frente! Premiado
Só quem luta dia a dia
Com bravura de soldado.
Fortaleza
A força que em mim me preza
De além do imo vem jorrada.
Toda a nossa fortaleza
É fortaleza emprestada.
Seguro
Deus meu! Cada vez me sinto
Menos seguro de mim
E cada vez mais me pinto
Seguro do além sem fim.
Certezas
Das certezas singulares
Esta é a melhor que houver cá:
Ao Além, se o não deixares,
Ele não te deixará.
Confia
Confia sempre em teu Deus,
Fala do imo à tua igualha,
Que esta é a vantagem dos céus:
Ele não perde a batalha.
Tem
O homem tem a sua hora,
A treva da morte o invade,
E Deus, que ali também mora,
Tem lá sua eternidade.
Morte
Se és fiel a teu imo, amiga
A morte é no teu cadinho:
A esteira da luz abriga,
Facilita-te o caminho.
Voz
Se a teu imo fores fiel
E à voz nele que haja a mais,
Não morres em tua pele:
- Mudas de casa, aos sinais.
Se, pela mão do Infinito,
Conduzes quanto te apraza,
Não morres, no fim aflito,
Apenas mudas de casa.
Onça
Tenho a mania da onça
Que valho mas nem sequer
Peça alguma desengonça
No mundo quando eu morrer.
Vista
Não percas de vista o juiz,
A justiça, o julgamento:
Irás ver teu Pai feliz
Na hora do passamento.
Operário
Da vida inteira operário,
Dela é fruto quanto valho:
A cada qual seu salário
De acordo com o trabalho.
És
Não atrases nem aprazes
Os actos que em ti concitas,
Que és sempre mais o que fazes
Do que aquilo em que acreditas.
Calar
Continuo, calmo o rosto,
Mil histórias escutando,
Desde que esteja disposto
A calar de vez em quando.
Falhar
Falhar nunca tem problema
Se quantos degraus não galgo
Só me acirrarem o lema
De querer alcançar algo.
Agradece
Agradece coetânea
Como repetidamente:
A gratidão instantânea
Jamais é suficiente.
Desconfortável
Fazer o desconfortável
Será bom nesta medida:
Treinas, quanto te é viável,
Musculação para a vida.
Mudar
O melhor de mudar é,
Mais que o novo que te alcança,
O que em ti porá de pé:
- É que é um sinal de esperança.
Muda
Todos temos muita muda
Na vida, pelas idades.
São, da miúda à graúda,
Novas oportunidades.
Ameaça
A quem for homem de Deus,
A ameaça maior, o pego
Que o perde de vez dos céus,
Hoje e sempre, será o ego.
Tirano
Resta apenas um tirano
Que eu aceito neste mundo:
- Voz silente e sem engano
Dentro em mim lá bem do fundo.
Importa
A Deus não importa nada
Nem templo nem edifício,
Só lhe importa o que na estrada
Nós faremos desde o início.
Aprender
Quilómetros de prazer
E eu sem nada aprender...
Meio metro de tristeza
E o que aprendi, que beleza!
Mudança
O mundo recusa ver
A mudança que hei tentado:
Tendem a me apreender
Prisioneiro do passado.
Queixas
Se tem remédio, então
Porque será que te queixas?
Se não tem remédio, não,
Porque te queixas das deixas?
Caminho
Não assinala o caminho
Meu dedo a apontá-lo à gente,
Cada qual feito adivinho,
- Antes caminhando à frente.
Dever
O dever da inteligência,
Dos demais antes da resma,
É desconfiar com premência
Mas desconfiar de si mesma.
Sério
Não existe nada sério,
Permeado de juízo,
Que não possa sem mistério
Ser dito com um sorriso.
Fonte
Triste, a rotina despreza
A maior fonte de gozo:
Em tudo, na natureza,
Algo há de maravilhoso.
Descontentamento
Todo o descontentamento
Por aquilo que nos falta
É de gratidão a falta
Ao que temos no momento.
Melancolia
Às vezes melancolia
Traz consigo algum prazer:
De nosso íntimo é a magia
A confortar-nos de o ver.
Decisão
Mais útil não nos é nada
Como a decisão confessa
De na vida, pela estrada,
Não ter pressa, não ter pressa.
Momento
Importa estar preparado,
Que um dia, mais cá, mais lá,
Quando menos precatado,
O momento chegará.
Nunca
O melhor duma verdade,
Ao tanto eu a requerer,
E que mais me persuade,
Nunca se chega a saber.
Sombra
Não há razão de temer
A sombra que se introduz:
Perto indica que há-de haver
A fonte onde brilha a luz.
Choras
Se por ter perdido o sol
Choras de noite as sequelas,
De lágrimas o teu rol
Não deixa ver as estrelas.
Rascunho
Não faças de tua vida
Um rascunho a rasurar,
Podes não ter à medida
Tempo de a limpo a passar.
História
Imagina em tua vida
Nova história, nova estrela,
E depois, mas sem medida,
Crê profundamente nela.
Imagina a nova história
Que pode ser tua vida
E, após fixa na memória,
Crê nela, crê sem medida!
Pode
Acredite já que pode,
Que isto é quanto lhe adivinho:
Mais que o pó de si sacode,
Andado é meio caminho.
Acredita tu que podes,
Pois, mesmo andando sozinho
No rumo ao fito a que acodes,
Já vais a meio caminho.
Coragem
Coragem! Coragem!
Pulso bem medido,
É o medo, na viagem,
Duma vez vencido.
Sempre é preciso coragem
No itinerário seguido.
E o medo então da viagem?
- Coragem medo é vencido.
Milagres
Nos milagres acredita,
Vislumbra o que há sob as peles,
Mas à precaução incita
De nunca depender deles.
O milagre te concita
A força com que te impeles.
Nos milagres acredita,
Porém não dependas deles.
Viajas
Viajas cruzando o mar
Como por ti dentro ao ir,
Já que para viajar
Basta apenas existir.
A viajar andam no mundo
E há sempre mais aonde ir.
A viajar ando, no fundo:
A viajar basta existir.
Sucesso
Tem o sucesso uma base
Com que todos se consomem:
A base que no-lo apraze
É a de conhecer o homem.
Uma vitória que arrase
Obriga a pagar o preço:
Conhecer o homem é base
De todo e qualquer sucesso.
Falta
Não vivas para a presença
Ser notada de seguida
Mas para devir imensa
A tua falta sentida.
Trabalho
Trabalho de que gostar
Quem escolher à medida
Não terá de trabalhar
Nenhum dia mais na vida.
Simplicidade
Quem simples quer de verdade
Devir, sujeite-se ao malho:
Conseguir simplicidade
Só após, só, muito trabalho.
Força
A força nunca provém
Dum físico incontestável,
Vem da vontade, porém,
Quando é vontade indomável.
Dificuldade
Por mais que nos custe um custo,
Em meio à dificuldade
Vem o pagamento justo:
- Vem-nos a oportunidade.
Desejo
O desejo configura
Um futuro aqui chamado:
É sempre parte da cura
Desejo de ser curado.
Reconhece
Triste, feio, uma aspereza
Têm sentido algum dia:
Quem nunca viu a tristeza
Não reconhece a alegria.
Certo
No fim tudo dará certo,
Que se não der certo, assim,
É que só estaremos perto,
Ainda não chegou ao fim.
Passado
Uma vez o passo dado,
Segue o trilho que te impele:
De respeitar é o passado,
Jamais é de viver nele.
Terminal
Para além de transitória
E mui débil, afinal,
Por detrás de toda a glória
Toda a vida é terminal.
Corrente
À corrente deste rio
Não a lograrei parar:
Vivo neste desafio
De eterno me transmudar.
Vivendo
Trepo a pulso na subida,
Rasgo os dedos nos cipós:
Mais que nós vivendo a vida,
Vive ela através de nós.
Teor
Do reino de Deus o teor
Algo é de hoje diferente.
Jesus diz ao seguidor:
- Faz-te à estrada e cura gente!
Questão
Todo o problema de crer
Mora num outro lugar:
É tudo questão de ser
E jamais de acreditar.
Tormento
Para quê tanto tormento
Do passado com histórias?
Erros e arrependimento
Tudo apenas são memórias.
Aprender
A beleza de aprender,
Além de mundo explorar,
É que, depois de o reter,
Ninguém to pode tirar.
Magnífico
Só depois do vale escuro
Podemos saber, sem falta,
Quão magnífico é o ar puro
Lá na montanha mais alta.
Música
Música: fala divina
Que do mais fundo torrão
Frases belas nos destina
Poéticas ao coração.
Presos
Neste mundo estamos presos
E completamente sós,
Porém guiados, que ilesos
É de ao termo irmos após.
Sempre
“Para sempre” é eternizar
O agrado de que alguém goza,
Porém tudo há-de acabar,
A palavra é mentirosa.
Contínuo
Isto é um contínuo acabar-se:
Quando à festa algo se inclina,
Se olho por trás do disfarce,
Mal começou já termina.
Chave
A vontade prosseguir
Do Pai que dos céus me exorta
É que é a chave para abrir
Do reino dos Céus a porta.
Falta
É o Senhor que me governa,
Nada, pois, me faltará:
Mesmo se a falta é superna,
Não falta o lado de lá.
Rumo
De ti será que Deus diz
Tal dos que o rumo perderam:
- “Eu, por mim, eu bem o quis
Mas os homens não quiseram.”
Falta
É o abandonar-me a Deus
O que mais falta me faz
Para, nestes dias meus,
Não perder a minha paz.
Menos
Tu não és menos feliz
Apenas por te faltar
O que eras noutra matriz,
A do que te sobejar.
Exalta
Deus exalta os que cumprirem
Dele a vontade daquilo
Em que os humilhou, ao virem
Cheios de si em sigilo.
Pergunta
Muitas vezes te pergunta
Ao correr de cada dia:
- Meu acto que aqui se junta
É mesmo o que ser devia?
Êxitos
Meus êxitos não são meus,
São os êxitos que em mim
Vai, afinal, tendo Deus
De eu ir nEle até ao fim.
Glória
Se a vida não tem por fim
A glória dos Céus além,
É desprezível, enfim,
E detestável também.
Rectifica
Rectifica, rectifica,
Senão a tua vitória
De vez estéril te fica
De ser por tua vanglória.
Pescar
Repele o teu pessimismo
Que te acobarda em seguida,
Lança as redes sobre o abismo
E corre a pescar a vida.
Exemplo
O bom exemplo semeia,
Semeia a boa semente
E a caridade é que ameia
Que semeie toda a gente.
Santidade
A santidade que é grande
Mora no dever pequeno
Que é cumprido no que mande
Em cada instante, sereno.
Ocasião
“Quando for ocasião
De algo grande, ah!, então, sim!”
- Mas olimpíadas não
Se ganham sem treino assim.
Soma
Já viste que enorme soma,
Tanta que é quase de loucos,
Que atingimos se se toma
A soma de muitos poucos?
Vences
Não vences nas gestas grandes
Só porque tu não quiseste
Vencer, por tudo em que mandes,
Nas pequenas que tiveste.
Mérito
Nem no pouco nem no muito
Há mérito em afazeres
Mas na vontade do intuito
Com que os tu empreenderes.
Punhados
Punhados de trigo à terra
Lançados a apodrecer?
- Só que tal loucura encerra
A colheita a vir a ser.
Magníficos
Magníficos edifícios
E palácios sumptuosos,
Mas de que almas são resquícios:
Das vivas ou monstruosas?...
Audácias
As grandes audácias são
Sempre, sempre das crianças:
Quem pede a Lua, do chão
Donde a nunca, ao fim, alcanças?
Menino
Menino se és de verdade
No mais fundo fundo assente,
Serás outra realidade:
- Serás mesmo omnipotente.
Colo
Se és menino, não tens pena,
Entregue ao colo do pai.
Olha, pois que Deus te acena,
Se nele o medo se esvai.
MAPAS DO TESOIRO
Desligado
Se ages por motivo humano
Desligado do Infinito,
És tíbio, provocas dano,
Seja qual for o teu fito.
Se diminuis teu dever
E tua comodidade
Para ti só queres ter,
Se é mera ociosidade
A tua conversa vã,
Se as faltas, não sendo graves,
São só de ver amanhã,
Se não recusas entraves,
És a tibieza encarnada
E a vida tem-la parada.
Desiludido
Desiludido, retornas
Com as asas descaídas.
Não te pagaram as jornas
As amizades mentidas.
Enquanto não precisaste,
Foi tudo oferecimento.
No dia em que, por contraste,
Em tua vida muda o vento,
Logo ficou convertido
O amigo no indiferente.
Em que confias, traído
Na pedra em que a vida assente?
Não te resta alternativa:
Só na Fonte que em ti viva.
Falso
Muito apóstolo que é falso
Acaba fazendo o bem,
Embora sendo um percalço
Da força que o pregão tem.
Porém, não compensa o mal
Enorme, efectivo dele,
Pois povo mata ao sinal
De nojo do que o impele.
Quem não quer íntegro ser
Nunca na primeira fila
Se há-de antepor a quenquer,
Chefe que aos mais se perfila.
Quem não fizer o que ensina
Ao pregão não se destina.
Pó
És pó sujo, pó caído.
Embora o sopro em teu imo
Te levante, pó fluído,
Sobre tudo a que me arrimo,
Te faça brilhar como oiro
Ao reflectir as alturas
Em teu mísero desdoiro,
Raios de sol que depuras,
Não ignores a pobreza
Do que é tua condição.
A soberba que despreza
Fará que tornes ao chão.
Deixas de ser luz de todo
Para não passar de lodo.
Aventureiros
Um mundo auto-suficiente,
Diabo a querer ser por si,
Carne a fartar-se, demente:
Aventureiros aqui,
Do prazer fugaz em troca
A querer que lhes entregue,
Andando acaso à matroca,
O oiro fino que eu carregue,
As pérolas, os brilhantes,
Os rubis de sangue vivo
Que em meu imo são constantes
Arautos do além esquivo.
Roubam preço em toda a linha
Da eternidade que é minha.
Toda
Sempre é toda a vida humana
Que se incarna em cada qual,
Individualiza, irmana
Numa só voz o total.
E o modo de reagir
Ao desafio enfrentado
Tem efeitos, a seguir,
Globais sempre em todo o lado.
Participantes activos
Somos da comunidade
Mais vasta de seres vivos
Responsáveis de verdade
Por desdobrar, em seguida,
Todo o possível da vida.
Senão
Nunca posso outrem amar
Senão amando a mim mesmo,
Do mais profundo lugar
Que vislumbro além a esmo.
Não me posso amar a mim
Se não tiver a abertura
De outrem amar rumo ao fim
Da derradeira fundura.
Ambos são inseparáveis
E, se estou trilhando um rumo
Sem o outro, dos prováveis
O provável, em resumo,
É que não estou fazendo
Nenhum deles, bem me vendo.
Mundivisão
A antiga mundivisão
Aferra-se bem amiúde
À permanente obsessão
Que ao ancestral mais a grude.
As crenças ideologia
Devirão, manta de ideias,
E a verdade fugidia
Escapa-lhes logo às
teias.
Na preconcebida ideia
Dum inimigo facundo,
No limite, se baseia:
- É o que ameaçaria o mundo.
Nunca vêem que são elas
Que nos tapam as estrelas.
Agora
O Reino anda agora aqui,
Não está nem a caminho,
Nem algures por ali,
Nem oculto ao adivinho.
Não é de facto aparente
À nossa visão comum.
Nosso olhar tem de, exigente,
Ter metanoia incomum,
Mudança de perspectiva
Para daqui ver o Reino,
Partilhar da gesta viva.
Não difere, após tal treino,
Afinal, do mundo e vida
Que vivo noutra medida.
CRUZAMENTOS
DE SENTIDOS
Coração
Tens o coração na mão,
Proposta mercadoria.
Se ninguém o quer, então,
Se a ninguém agradaria,
Entrega-lo a Deus (um vão
Ídolo de fantasia),
Num convento em solidão,
No dom murcho do teu dia...
- Não entendes mesmo nada
Do que é do Infinito a estrada.
Conversa
Conversa com os teus filhos,
Mas olha que conversar
Não é arremessar aos trilhos
As palavras que calhar,
Não é só frases cuspir.
Falar quer os que se calem:
É deixar, ao bem ouvir,
Deixar que os silêncios falem.
Ambos
Findam a se apaixonar.
Nem viam que se moviam
Ambos no mesmo sentido.
Acabam por encontrar
Aquilo que nem sabiam
Que afinal tinham perdido.
Relação
Toda a relação de amor
Será um falhanço total
Até uma que o não for.
É o que lhes troca o sinal:
Só logrando ultrapassá-las
Na certa que ao colo embalas.
Só por dentro andando em frente,
A ti a tornas presente.
Afeição
Tens o coração tão cheio
De tanta afeição humana!
A guardar este é o recheio
Que dás de tua cabana
Ao anjo que no teu imo
Te chama a trepar ao cimo?
É que só deve andar cheio
Desde que o não trave o enleio.
Medo
Tens medo de te tornar
Frio, duro para todos
De tanto te despegar?
Afasta de vez tais modos.
Se é por luz e a Luz te guia,
Fogo, luz e calor tens
Para todos, dia a dia,
Gratuitos entre teus bens.
Dever
O dever, antes de mais,
E depois o coração.
Cumprido o que deve ser,
Teu coração que entre então
Sem mais travão que o degrade:
Inteiro sê suavidade.
Contido
A palavra comedida,
Dentro contido o sarcasmo;
A quem me incomoda a vida
Sorrir, sem mesmo entusiasmo;
Ante a acusação injusta
O silêncio que me custa;
A minha conversa amável
Com maçador importuno;
Não dar, negligenciável
Valor (se me não coaduno)
Ao pormenor aborrido,
Impertinente, atrevido,
Dos que convivem comigo;
- Isto, com perseverança,
É que é o meu porto de abrigo
Na lonjura que me alcança,
Mortificação interna
Que abre a porta à vida eterna.
Começa aqui, comedida,
Que isto lubrifica a vida.
Dor
Na pobre vida presente
Que importa a dor que vier?
É do parto a dor que sente
O porvir a florescer.
Que importa, afinal, a dor
Se é sofrida por amor?
Aceitação
Quando aceitação tu queres,
Não queres aceitação,
Uma outra coisa preferes:
- Ser amado de feição.
Sempre que queremos algo
Que os outros nos podem dar,
- Um estatuto fidalgo,
Dinheiro, poder sem par... -
Se olharmos lá bem no fundo
Outra coisa é o que queremos.
A emoção em que outro mundo
Em nossa alma inauguremos.
O que outrem me pode dar
É apenas retorno do ego.
O que ao fim quero, em lugar,
De alma anseio é de aconchego.
Qualquer alma, ao fim da estrada,
Quer mesmo é sentir-se amada.
Fora
Nada no mundo lá fora
Devolve a emoção interna.
Comprem carros toda a hora,
Casas, a mansão superna...
Cedo ou tarde, a vida envolta,
Torna e o vazio volta.
Porque uma casa ou um carro
Como todo o mundo a eito,
Mil coisas com que eu esbarro,
Não nos enchem nunca o peito.
Que nada do mundo, enfim,
Nos enche o peito: o amor, sim!
Buscar
Vir buscar amor à terra
De humano ser não é clima,
Mas trazer o amor à terra
Que se foi colher lá Acima.
Este amor é que nos cerra
E a todos no Todo arrima.
Vigência
Alma em que a luz tem vigência
Dará frutos às mancheias:
Compreensão, transigência
Para as misérias alheias;
Nas próprias, intransigência,
E não há medidas meias.
Travo
Travo de fel e vinagre
Do íntimo no dissabor:
Querem que mais lhes consagre,
Sei lá dar seja o que for!
Porém, este desagrado,
Se me humilhar, ficaria
O dia após ter lavrado
O melhor que poderia?
Vês
Este Cristo que tu vês
Não é Jesus nunca, não.
E nunca Maomé, de vez,
É o dos filhos do Alcorão.
- São sempre uma triste imagem
De olhos turvos da viagem.
A ti, pois, te purifica:
Teu olhar, com humildade,
Penitente, clarifica,
Que jamais tens a verdade.
Depois não falta o calor
Da luz que te traga o amor.
Venda
Que um inimigo me ofenda
Não é estranho, é tolerável.
Mas que um amigo me venda
À minha mesa, confiável,
Comendo na minha tenda...
O pior do cafajeste,
Ante o cândido universo,
É que eu acabo sendo este
Amigo por norma adverso,
Sempre de traidor em veste.
Tanto falho, no sumário,
De tanto andar ao contrário.
Apesar
Apesar de ires ao fundo,
Portaste-te muito bem,
Porque te rectificaste
E de esperança, jucundo,
Te preencheste também
E nela recuperaste
Todo o amor que te convinha.
- Pois levanta-te e caminha!
Filhos
Os filhos como procuram
Ante os pais ser dignamente!
Como os filhos de reis curam
De a realeza ter em mente!
E então tu, sempre ante Deus,
Descuras os gestos teus?!
Junto
Como é urgente descobrir
Quão Deus é junto de nós!
Andamo-lo a perseguir
Como nuvem que veloz
Corre alegre entre as estrelas
Sem reparar quanto, ao lado,
Tal dentro em nós, há morado,
Perdido em nossas vielas.
Mais do que o pai amoroso,
Do que a mãe mais extremosa,
Nos ajuda, atencioso,
Nos inspira cada glosa,
A pegada abençoando
E perdoando a topada.
A fronte desanuviada
A nossos pais provocando
Após uma travessura,
Quantas vezes nós dissemos:
- “Não, nunca mais, é uma jura,
Cairei em tais extremos!”
E tornámos a cair...
E o pai, a fingir de duro,
Repreende-me, seguro,
De coração a sorrir
Cuidando, bem lá por dentro:
- “Coitado, pobre rapaz,
Os esforços que, do centro,
Para bem ir ele faz!”
Vou-me embeber deste Deus
Que mais que um pai é meu Pai,
Que jamais de mim se vai,
- Dentro em mim mora nos céus.
Oxalá
Oxalá que na intenção
Seja o Infindo o nosso fim.
No afecto do coração
Que nosso amor seja assim.
Na palavra, o nosso assunto
Afinal dele vá junto.
Como depois nossa acção
Por modelo o haja à mão.
Distrair-te
Precisas de distrair-te?
Fecha os teus olhos de todo:
A vida interior, ao vir-te
Com cor, relevo e seu modo
Inteiramente imprevistos,
Mostrará mil maravilhas,
Um mundo novo em registos
Onde com Deeus te envencilhas,
Longe de tua miséria,
Onde te endeusas no céu,
Do trampolim da matéria
Saltando ao Infindo teu.
Aproximas-te do Pai
Tornando-te mais irmão
De cada irmão que aqui vai,
Dos homens pisando o chão.
Método
O método praticar
Melhor para teus alunos
É o que for de utilizar
Ascese que quer trepar
Dentro e fora, a sermos unos,
Eu e eles nos pendores
De virmos a ser melhores.
Queixas-te
Queixas-te interiormente,
Que te tratam com dureza.
Muito o contraste te pesa
Com o que é de tua gente.
Porém, perante um enfermo,
Pose fria e calculada
Mas objectiva, acertada,
É honesta e útil, ao termo.
É de bom profissional,
Não lamúria de família.
Que seria da vigília,
Ante uma guerra letal
Com a vaga de feridos
A chegar amontoados,
Se houver por todos os lados
Só de família alaridos?
Chefias
Se chefias, a aparência
De amigo particular
Entre a tua dependência
Tens mesmo até de evitar.
Ao invés, que te injuria
Se um ou outro então tiver
Alguém em quem mais confia
Por dele mais afim ser?
Posto
Tens direitos e deveres
E mais num posto oficial
Que vêm de o exerceres
Para bem ou para mal.
Se desvias o caminho
A pretexto de ir a Deus,
Erras e findas sozinho,
Não cumpres deveres teus.
Prestígio profissional
É o anzol que é de supor
Na mão de quem, afinal,
Vai ser de homens pescador.
Pagão
Num ambiente pagão
Que chocar com minha vida,
Parece postiço o chão
Da arena com que se lida:
Vidas em choque, em contraste,
Finda a mostrar, com verdade.
Aos trilhos onde me arraste
Vou com naturalidade:
O que em meu imo auscultar
É o que, enfim, vou semear.
Será mesmo diferente
O que semeia outra gente?
Marreta
Não transijo no que faço
Nem no trilho de atingi-lo.
Nisto sou marreta de aço
Mas depois, como um sigilo
Tenho-a bem almofadada
Das formas pela brandura:
Vou com outrem pela estrada,
Ríspido ser não nos cura.
Coacção
Não há santa coacção,
Mesmo dos fins pelo Fim,
Senão de a mim dar a mão,
Coacção de mim a mim.
O mais é perversidade:
Do outro viola a identidade.
Fátuo
Que o fogo de teu amor
Um fogo fátuo não seja,
De mentira, sem fulgor,
Que nem labareda almeja,
Que não ateia o que toca
Nem dá calor ao que evoca!
Seja o fogo onde, sublime,
O mundo inteiro se arrime!
Meto
Meto Deus nas minhas coisas,
Não há mais minhas tontices:
Quando os olhos em mim poisas,
Já não são as “minhas” coisas,
São as “nossas” que a Deus ices.
Pena
Pena imposta aos que a merecem
Adquire todo o valor
Se os que impõem não se esquecem
De castigar por amor.
A pena não é vingança
Mas pretende apaziguar
O pé quebrado na dança
Com remédio salutar.
Pedra
Pedra de toque do amor
Não é o prazer, a alegria,
Mas de nós quanto exigia:
- A pedra de toque é a dor.
Vivida no dia a dia
De ajustes de pormenor,
Mudado o lume em calor,
Nem dá pela dor que avia.
Labora
Se terminou teu labor,
Labora o de teu irmão,
Com tão natural pendor,
Delicado no teor,
Que ele nem repare então
Que bem mais, fazendo, agias
Do que em justiça devias.
Nisto é que mostras que céus
Afloram nos gestos teus.
Sobejos
Falar mal de teu irmão,
Nem com sobejos motivos!
Desabafa, pois, então,
Só com quem, ante o senão,
Logra a todos manter vivos.
Perdoa
Perdoa a quem te ofender
Logo desde o primo instante.
Por muito que haja a perder,
Mais, no rumo de ir avante,
Já perder fizeste a todos,
Sejam quais forem teus modos.
Murmuras
Murmuras de alguém? É mau.
Perdes o espírito bom,
Falhas em transpor o vau:
Cada termo tem o som
Da pegada que, em seguida,
Põe-te à porta de saída.
Partes
Sem ouvir as duas partes
Não julgues. Mui facilmente
Os que de justos têm artes
Ignoram, jeito imprudente,
Esta norma elementar
De terra firme pisar.
Presunçosa
Caridade presunçosa,
De longe atrai, que tem luz.
Repele ao perto: não goza
Do calor que amor produz.
Na estrada onde caminhava
Não abre caminho: entrava.
Mútua
A nossa mútua fraqueza
É o que quer mútuo apoio
Para encher com inteireza
Do dever bem cheio o moio.
Como cartas de jogar
Mútuas a se sustentar.
Preocupação
Tua preocupação
Com os mais, que grande bem!
Não degenere, porém,
Nunca numa inquietação:
Aquela supervisiona,
Esta não te deixa à tona,
Afoga-te no fundão
Que rodopia em teu chão.
Poderosos
Precisas dos poderosos
Para continuar fazendo
O que Deus de ti requer?
São volúveis e teus gozos
São de constante ir torcendo
O escolho que a vida der.
Se te ajudam, agradece.
Se te desprezam, esquece,
Que são mundo vulnerável,
E caminha, imperturbável.
Fio
Um fio com outros, muito
Bem, de vez, entrelaçados,
Formam calabres, no intuito
De quintais serem guindados.
Tu e os teus, vontade unida,
Até a Terra será erguida!
Lavrando
Que importa ter contra ti
O poder do mundo inteiro
Se é teu imo que em ti vi
Lavrando a vida leveiro?
A quem é que irás temer
Se é o Infindo em ti a ser?
Delicada
Discrição é delicada.
Não sentes inquietação,
Certo mal-estar, de entrada,
Quando temas em questão,
Nobres embora e correntes,
Porém de tua família,
Do lar vão, indiferentes,
Escapar para a quezília
Da curiosidade vã,
Praça pública malsã?
Gente
Muita gente, gente boa,
Não entende teu caminho.
Não te empenhes tu à toa,
Ninguém é teu adivinho:
Perdes o tempo, as funções
E cais em indiscrições.
Contente
Que estejas sempre contente,
Que a alegria é uma integrante
De teu caminho presente!
E pede que dela os bodos
Sejam daqui por diante
Já partilhados por todos.
Puro
Tudo faz por puro amor,
Desinteressadamente,
Tal se haver prémio não for
Nem castigo a amor ausente.
Há uma esperança de teu:
- Já começou a haver céu.
Pecador
Foi deveras pecador,
Mas não faças tal juízo
De inabalável pendor.
Tem piedade, com siso,
Que ele pode vir a ser
Santo, herói, sábio que abraças...
E tu, terreno a perder,
Dum medíocre não passas.
Baixo
Não ponhas o amor cá em baixo,
É um amor sempre egoísta.
Os que amas fogem em cacho
Mal fiques fora da vista
Do lado dalém da vida,
Na presença do Infinito.
O amor que perdura lida
Com tal fundura que fito:
Se aqui o entregar a alguém,
Então é que a sério vem.
Mau
Há quem seja mau contigo?
E tu, com teus altos cumes,
Tens sido amigo, inimigo,
Ou como é que te resumes?
Cara a cara aí com Deus
Como te julgam os céus?
Sofreste
Soltaram-se as línguas,
Sofreste desfeitas,
Feriram-te mínguas
Nada àquilo afeitas.
Deves perdoar
E pedir perdão.
Tenta aproveitar,
Despega do chão.
Só desapegado
Do que é criatura
Podes, abnegado,
Ter nova figura.
Doi-te
Doi-te que não te agradeçam,
Mas fizeste este favor
Para que aqui não te esqueçam,
Cá te paguem o valor?
Do lado de Além que avistas?
- És mesmo curto de vistas!
Ralham
Se te ralham, não te zangues,
Como aconselha a soberba.
Antes cuida: têm bons sangues,
Muito baixaram a verba
Antes de me vir cobrar.
Quanto houveram de calar!
Tentação
A tentação que te envolve,
O espirito a trepidar,
É uma venda que resolve
Teus olhos de alma ofuscar.
Ficas às escuras. Não
Te empenhes em andar só,
Que, só, cairás no chão,
Perdido a meio do pó.
Agarra a mão que te ajude
A trilhar o teu caminho.
Tem coragem, não se ilude
Quem Deus cura de mansinho.
Obedecendo-Lhe caem
As névoas e cai a venda
Dos olhos que ora não traem
E Deus logo é a tua lenda.
Extremos
Eu nas nuvens co'a cabeça
E tu com os pés no chão:
Ou somos um ou tropeça
Cada pé na contramão.
Somos a prova provada
De que os extremos se tocam,
Um trilho por cada estrada
No fim comum desembocam.
Ninguém nos acreditou
Quando juntámos as vidas,
Tão díspares em seu voo
Uma doutra eram vividas.
Mas quisemos apostar
Que a complementaridade
É no amor a singular
Amostra da infinidade.
Quem julgar que o amor é
Cópia a químico papel
Nunca logra pôr de pé
O infinito a que ele apele.
Nosso amor é diferente,
É aberto a tantas lonjuras
Que abraça aqui toda a gente
No infindo apelo às alturas.
Avô
O avô índio conta ao neto:
- “Tenho dentro de meu peito
Dois grandes lobos em luta,
Um gentil, cheio de afecto,
Outro ao ódio sempre afeito,
Eternamente em disputa.”
Pergunta o neto, curioso:
- “E qual deles vai ganhar?”
- “O que eu, muito cuidadoso,
Dia a dia alimentar.”
Mistério
O amor é sempre um mistério,
Porta aberta a um outro mundo
Dum maravilhoso império
Onde de espanto me inundo.
O que quer o amor igual
Da lonjura se tolheu,
Não entendeu o sinal
Que o chama de além do céu.
O igual é porta de entrada
E quem por aí se fica
Tem à partida a chegada,
Nunca mais além se aplica.
Quando nós damos as mãos,
São dois mundos que se cruzam,
Dois diferentes irmãos
Partilhando a mesa que usam.
Na aventura das estrelas
Trocamos voos sidéreos,
É o fulgor das prendas belas
De alegres gestos e sérios.
Por vezes não entendemos
Quanto o diferente é o grito
Que nos chama dos extremos,
À janela do Infinito.
Amo-te em dor e prazer,
Que me entreabres o véu
Donde, ao crescer, logro ver,
Uma pontinha de céu.
Natal
O Natal, festa de amor,
Que é que tem de diferente?
Tem da ternura o fervor
Sempre do erótico à frente.
O Natal é feminino:
Um homem mal entrevê
Que o sexo lhe inverta o tino
Das pegadas de seu pé.
À mulher é o coração
Que o corpo lhe inunda em festa
E o sexo inventa-lhe então
Vida, vida em cada fresta.
Jesus por isto é menino,
Eterno bebé da mãe,
E o Natal devém divino
De tanto afecto que tem.
O erótico então depois,
Sexo inundado em afectos,
De cada um gera dois,
Do Infinito rumo aos tectos.
Dentre os homens é que eu, homem,
Te agradeço a ti, mulher,
De as fomes que me consomem
A todas satisfazer,
Um sim, um não, um talvez,
Com a ordem bem medida.
Isto mais e mais nos fez
Um Natal de toda a vida.
Pais
- “Que é que pensas, que é que pensas
A respeito de teus pais?
São perfeitos, sem doenças
Nem falhas outras que tais,
Ou, ao invés, têm falhas
Que terão de corrigir?”
- “Perfeitos, não, que nas calhas
Muito havia que bulir
Só que, por mim, não precisam
De corrigir nada, não...”
- “A profundeza que visam
Tuas palavras, irmão!
Quer dizer que estás disposto
A aceitá-los como são,
Tal como aos mais, com o rosto,
Seja qual for, que terão.
É que ninguém é perfeito,
Nem sequer os nossos pais,
E serão do mesmo jeito,
Decerto, todos os mais.”
Desenho
A casa, com um desenho,
Chega a menina da escola.
Corre à cozinha, no empenho
Da obra que desenrola.
- “Sabes uma coisa, mãe?”
- “O quê?” - lhe pergunta esta,
Sem desviar, pois convém,
Os olhos de quanto apresta.
- “Sabes?...” - repete-lhe a moça,
O desenho lhe agitando.
- “O quê?” - logo a voz se adoça
E a mesa vai aprontando.
- “Não estás, mãe, a me ouvir!...”
- “Claro que eu estou, querida!”
- “Mãe,” - volta a filha a insistir -
“Não estás, não, na medida
Em que só tratas dos molhos
- E não me ouves com os olhos.”
Emprego
Um homem anda à procura
Dum emprego numa quinta.
Entrega, para o que augura,
Recomendação que o pinta
Com uma linha que agrade:
“Ele dorme descansado
Durante uma tempestade.”
O quinteiro, aperreado,
Tal indivíduo contrata.
Umas semanas mais tarde
Um furacão se desata,
Rasga o vale, o alcantil arde...
Acorda o proprietário
Da chuva com o ruído,
Assobiar do vento vário.
Salta logo, no alarido,
A clamar pelo empregado
Que dorme profundamente.
Corre aflito disparado
Ao celeiro logo em frente
E constata, com surpresa,
Que as reses estão seguras
Com ração que baste, ilesa.
Corre ao campo das agruras,
Vê fardos de trigo atados,
Cobertos com lonas presas.
Vai ao silo e vê trancados
Os portais e das devesas
O cereal recolhido
Ali bem guardado e seco.
Então entende o sentido
Do que entendera por peco:
“Ele dorme descansado
Durante uma tempestade.”
Se eu na vida houver tratado
Do que de importante a invade,
Da dolorosa incerteza
De haver assuntos pendentes
Não serei jamais a presa
- E abraço todas as gentes!
Feliz
De ser feliz o segredo
É dar-me por satisfeito,
Grato do que tenho a medo,
Do amor que acolho em meu peito,
Desta pontinha de céu
Que Deus já me concedeu.
- Só isso? - perguntarás.
- Só isso! - digo. E verás.
Pai
- “O pai é religioso,
Porém, nosso primo, não.
O pai ora e é com gozo,
Ele, nem na contramão.
Contudo, eles têm tudo
E nós nada, sobretudo...”
- “Deus e as suas decisões
São acertadas, rapaz.
Deus não pune sem razões,
Deus sabe bem o que faz.”
Foi a derradeira vez
Que o filho deste entremez
A vida então mediria
Por aquilo que possuía.
Par
Como podes perguntar
Se te amarei, meu amor?
Vê quanto, contigo a par,
Construímos com suor.
Um amor que reparamos
Já determos quando olhamos
Para a vida edificada
Juntos ao correr da estrada
É todo ele prata e oiro:
- É o amor que é duradoiro.
Lavrador
Ao acordar, um lavrador
Vê que o cavalo lhe fugiu.
E a vizinhança, com ardor:
- “Que enorme perda este azar teu!”
- “Talvez, talvez” - replica o dono,
Sem confiar deles no abono.
Um dia após retorna a casa
Tal animal com mais cavalos.
E a vizinhança em festa apraza
Celebrações de tais regalos.
- “Talvez, talvez” - replica o dono
Sem confiar deles no abono.
E, quando o filho vai montar
Um dos cavalos mais recentes,
Parte uma perna, ao mal tentar,
E eis os vizinhos descontentes.
- “Talvez, talvez” - replica o dono,
Sem confiar deles no abono.
Um dia após, os militares
Recrutar vêm o filho seu
Mas não o levam, dos maus ares
Da perna. E canta o povoléu!
- “Talvez, talvez” - replica o dono,
Sem confiar deles no abono.
Simplicidade e profundeza
Há nesta entrega ao Universo.
Quem desprendido a singeleza
Deste abandono tem no berço?
Talvez, talvez, um dia dono
De mim sou tanto em meu abono.
Conhecer
Um homem foi conhecer
Inferno e Céu, certo dia.
No Inferno deu para ver
A divinal iguaria
Na mesa posta pejada
E mil comensais em roda
Com cada mão algemada
Ao vizinho, a sala toda,
De tal modo que ninguém
Podia então saciar-se.
“É terrível!” - cuida bem.
Pede para ao Céu alçar-se:
Sala igual, iguais a mesa,
Os comensais e as algemas...
A diferença é surpresa:
Uns aos outros, sem problemas,
Todos aqui se alimentam
- E é festa o que nisto inventam.
Canta
Canta Deus e acompanhamo-lo
Com mil e uma melodias
E a canção, adivinhamo-lo,
É uma só todos os dias.
Uma canção deslumbrante
Cantada, já polifónica,
A uma só voz mundo adiante,
Do Infindo na escala tónica.
Por muito que diverjamos
Em postura, igreja ou seita,
Sempre ali nos encontramos
No sonho que nos aleita.
Motivação
A inspiração
Dos outros vem.
Motivação
Vem cá de dentro,
De além do centro
Que me contém.
Sei lá também
Se, ao me inspirar,
O outro não tem
Voz de além-mar,
Todos assim,
A ser, no fim,
O Infindo a ecoar.
Vero
Um amor que amor é vero
Muito estima a diferença,
Respeita o outro, outro mero
Por ser na própria querença.
O ágape não é o igual
Noutro igual a se apoiar,
É o estrangeiro, afinal
É o ignoto que aflorar,
O indaptado ou o incerto
Que acolho no abraço aberto.
Lei
A antiga lei, de exigência
Minimal e negativa,
É trocada, na vigência,
Do amor pela luz furtiva:
Não há mais obrigações
Baseadas na ansiedade,
Mas antes de amor clarões
Do imo vindos que me invade.
Crianças
Difíceis são as crianças
E autocentradas também
Mas entrada livre alcanças
Que no Reino sempre têm
Por terem sempre os pés certos:
- Têm corações abertos!
Casamento
O casamento partilha
Do fundamento do Reino:
Unem-se os dois e na cilha
Atam nós, nenhum é leino.
Trilham a vida em conjunto,
Crescem enquanto pessoas,
Em casal sempre mais junto,
Filhos, netos, lendas boas,
À medida que o amor
Que sentem transforma o mundo.
É um modelo do teor
Do Reino lá longe ao fundo.
Clube
Jesus não veio fundar
Um clube de escol de crentes,
Antes veio transformar
Da população as gentes
Espalhadas mundo fora
Numa só comunidade
Que dedica cada hora
A ultrapassar de verdade
Tudo o que é seu narcisismo
E, com ele, todo o egoísmo.
No fim, com cada parceiro,
Um só mundo é o mundo inteiro.
Caminho
Há caminho e bem seguro
De chegar a um coração,
O caminho que eu apuro
Quando a outrem dou a mão
Sem cobrar qualquer favor:
É o caminho dum amor.
Fracassos
Os fracassos sexuais
Podem ser bens preciosos:
Alimentar podem reais
Mudanças do imo nos gozos
E sexualidade tal
Baseia em breve os sinais
De todo o amor comunal.
Baptizado
Ser baptizado é, num rito,
Descobrir que a vida flui,
Lugar-comum que, contrito,
O fundamento institui.
Todos vivem tal se a vida
Estática deva ser,
Sem jamais rasgar saída
Do lugar onde estiver:
É assim com o casamento,
As relações, o trabalho,
Valores e pensamento...
Mantê-los presos ao galho
Tentamos, firmes, estáveis,
Mas a vida sempre está
Em corridas imparáveis.
A questão é se, cá e lá,
O fluxo à vida acompanho
Ou se insisto no seguro
Que encaro como meu ganho:
Contra o baptismo que apuro,
Se a estabilidade empolo
E apenas quero controlo.
Baptizar – fluir no rio
É jogar-se ao desafio.
Casamento
Na vivência espiritual
O casamento figura,
Com a vida sexual,
A união onde depura,
Lenta, a talhar novos rostos,
A multidão dos opostos.
A vida não vai seguir
Livremente se isolados
Tendem opostos a ir,
Um do outro separados:
É urgente encontrar a via
Que num só os uniria.
Mente-corpo, espírito-alma,
Masculino e feminino,
A euforia e a calma,
Tristeza-alegria, o fino
Da vulnerabilidade
Fio de força que a invade...
Sanear a divisão
É o que nos projecta o chão.
Suprimir
Suprimir sexualidade,
Mesmo por motivos nobres,
Produz agressividade
Contra os outros, contra os pobres,
Contra o próprio, mal castrado.
Quem sexual é reprimido,
Torna rígido seu fado,
É um hipócrita fingido,
Sempre a condenar propenso.
Manifesta cegamente
A agressão de quem é tenso
Do proibido eros que o tente.
Separar
Nos espirituais assuntos,
Em todos, a tentação,
É separar os que juntos
Sempre de facto andarão:
O chão só unido fecundo
Do espírito com o mundo.
Quando andamos absorvidos
Só na espiritualidade
Podemos não ter ouvidos
De ouvir a banalidade
Da vida quotidiana
No trivial que dela emana,
Nas rasas preocupações,
Relações defíceis, cruas,
Nos indivíduos malsões...
Podem-nos picar as puas
De nossa sexualidade,
Renegada então da herdade
Para a pilha de detritos
Das paixonetas humanas.
Não entendo os requisitos
Do espírito, das mil ganas
Com que nas pedras normais
Pega e torna espirituais.
Como a vida quotidiana
Tão humilde é preferida!
O amor a Deus não engana:
É amor doutrem, em seguida,
E do próprio – três notáveis
Que um são sempre, indissociáveis.
Principiante
A mente de principiante
Duma criança, a abertura
Emotiva ali constante
E ausência que ali se apura
De artifícios abrem portas
Escancaradas ao Reino.
No Reino não as exortas
A se tornarem com treino
Em adultos. Ao invés
São os adultos crianças:
Abandonamos aos pés
As ideias e as tranças
Dos rumos convencionais.
Vamos começar de novo
A ser pessoas reais
Transformadas desde o ovo,
Desde o fundo mais profundo,
Neste agora novo mundo.
Extremistas
Os extremistas opostos
Usam sempre a mesma táctica.
Quem discorda da gramática
Deles, com outros rostos,
Mesmo que muito ao de leve,
Empurram-no simplesmente
Para o outro extremo em frente,
De modo a poder em breve
Ser bem desumanizado
E nunca tomado a sério,
Pó que o vento move aéreo.
Assim um e outro lado
Podem o comportamento
Justificar, aliados.
Cada qual crê que seus dados
São os bons, o bom fermento.
Então terá de lutar
Para a civilização,
Contra os que alma nem terão,
Ir finalmente salvar.
Meio
Aqueles que andam no meio
Andarão sempre acusados,
De ambos os extremos lados,
De extremistas como o seio.
Tendem a ser empurrados,
Logo, persistentemente,
Para os extremos, em frente
A frente sempre apostados.
Ora, o perigo reside
Nesta polarização
A que muitos cederão.
Quando é que a cultura a elide?
Informação
Uma informação aberta
Sobre a espiritualidade
Muitos querem bem desperta,
Rumo à consensualidade
Do que nossa natureza
Espiritual em nós preza.
Ora, muitos que pertencem
Às crenças tradicionais
De ameaçados se convencem
Por itinerários tais.
No esforço por defender
Dele a doutrina, qualquer
Um pode ir tanto ao extremo
Que acabe por desistir
E largar de mão o remo
Por já nem ver por onde ir.
Finda, em desespero fundo,
Propugnando o fim do mundo.
Mesma
As religiões apontam
Todas a mesma experiência:
Ligação Divina contam,
Hoje de muitos vivência.
Tal experiência comum,
Uma vez reconhecida,
Sanear pode qualquer um
Dos diferendos que a vida
Entre religiões persuade
Que as impede da unidade.
É que a verdade gozosa
É, por fim, contagiosa.
Ligação
Quando um grupo experimenta
Uma ligação divina,
Por igual tudo acalenta
Sem olhar se se destina
A qualquer religião
Em vez doutra ali à mão,
Todas são de igual tratadas
Nas vivências partilhadas.
Cada religião do mundo
Só realça alguns aspectos
Da vivênvcia em chão fecundo,
Outros não lhe são afectos,
Ora ali minimizados,
Ora de fora deixados.
Entre todas completado
Mais da mensagem é o dado.
Tomada isoladamente,
Cada uma era incompleta.
Que cada ensine à parente
De si a forma dilecta,
Depois aprenda o elemento
Que for desta o ensinamento.
A vivência no total
Se entende mais no final.
Na realidade inserida
No quotidiano humano,
Ao consenso se convida
Das religiões no plano,
Ao dispor de quem quiser
E que todos possam ver.
Reconciliação final
Por um trilho natural.
Acreditar
Nunca devemos pensar
Que os crentes da tradição
Irão ter de abandonar
De vez esta via à mão,
Antes devem procurar,
Ao invés do que era dantes,
A forma de se integrar,
Sendo eles, com os restantes.
Ninguém deve, pois, pensar
Que apenas os trilhos seus
São únicos a levar
A uma ligação a Deus.
Descreveria
Como se descreveria
De amor o dado e pertença
Que a união a Deus daria?
Do Espírito Santo é tença;
Alá deu orientação;
Pagou Javé o labor;
O Grande Espírito o chão
Do mundo, tal semeador,
Semeou: de amor cativo,
Todo o mundo acordou vivo.
Forjam
Forjam do mundo o futuro
Os pais e as mães, pois são eles
Que os filhos moldam, no apuro
Com que vão talhar, imbeles,
Estes depois o pilar
Do futuro a germinar.
Todavia, são os filhos
Que trarão os pais ao mundo,
Obrigando-os aos sarilhos
De tomar consciência a fundo
Do que é que se passa em volta,
Uma vez a vida à solta.
Vença
Aquele que permitir
Que nele o amor vença o ódio
Não é fraco. Ao prosseguir,
Pelo contrário, sacode-o
O fogo de quem é forte:
- É o farol de nosso norte.
Heróico
Há quem morra heroicamente
Mas mais heróico é morrer
Despercebido da gente
Na cama que à mão houver
- Desde que a morte o teor
Tem de vir de mal de Amor.
Universal
Quanto mais de Deus bem perto
Mais universal me sinto:
Dilata-se o imo desperto
Para que caibam no plinto
Tudo e todos. É o desejo
De a Deus dar algum ensejo.
Atrair
Quererias atrair
Um sábio ou poderoso,
Um prudente, um virtuoso...
Trata tu de prosseguir,
Exemplar sê, com palavra!
Não vêm? Não são de vir,
Não os quer o chão da lavra.
Pequenas
Quando é tudo por amor,
Não há mais coisas pequenas,
Tudo é grande e que fervor!
Perseverar em tais cenas
Não é tombar num abismo,
É deveras heroísmo.
Ninharias
Sempre o amor em ninharias
Mora para que me inclino,
Quer seja o de humanas vias,
Quer seja o amor divino.
Aliás, nunca são dois
Mas um só, cara e coroa
Da moeda que depois
Vejo que em ambos ecoa.
Familiar
Farás um labor melhor
Em conversa familiar,
Da confidência ao calor,
Do que aí a perorar
Ante enorme multidão
- Tal se o lar não fora um chão.
Reconfortante
É bem mais reconfortante
Cuidar que Deus nos ouviu
Mas não liga ao impetrante
Que crer que nada existiu.
No vácuo do coração,
Quando morre um amor meu,
Quem culparei eu então?
Se não há nada no céu,
Só resta autopunição:
- O culpado então sou eu!
É terrível a facada
Por minha mão a mim dada.
CAMINHOS
IRREGULARES
Pedras
As verdadeiras pedras preciosas
Da raça humana
Escondem-se, manhosas,
Por trás dum exterior que nos engana:
Não é que não nos fique à mão e a jeito,
É que é imperfeito.
Verdade
A verdade é só uma: é verdade,
Não é asneira.
Questão é cada individualidade
Olhá-la à sua maneira.
A seguir
Vem a disputa:
A outrem cada qual a impingir
Que a sua é que é a verdade absoluta.
Percurso
Não há certo ou errado,
Tudo é percurso
Em todo o lado,
Experiência em curso.
Na vida,
O erro incomum ou vulgar
É apenas a maneira mais comprida
De para casa voltar.
Engano
É um engano
Total
O que uma experiência emana:
Não és um ente humano
A ter uma experiência espiritual,
És um ente espirritual
A ter uma experiência humana.
Corre
Corre em nós um rio de sentimentos
E cada gota de água é um diferente,
Dos mais interdependente
E em todos os momentos.
Para vê-lo, é sentar-nos à margem do rio,
Identificar cada sentimento
Que aflora, num arrepio,
Na superfície com os mais se entretece,
Flutua um momento
E desaparece.
Quando medito,
Este é o espectáculo que fito.
É a ponte
Com o Infinito
No horizonte.
Inferno
Há inferno,
Há.
E é eterno.
Não porque alguém do lado de lá
Nele fique prisioneiro
Sem jamais atingir o momento derradeiro.
É a possibilidade
Mera
De não aderir alguém à Luz que o invade,
Eternamente à espera.
É uma escolha
Permanente:
A Luz quer que livre a acolha,
Sempre, sempre, quem a sente.
Não a escolher
É o inferno
Por que pode, eterno,
Optar então quenquer.
Cura
Se o mundo viver lograra
Por amor,
A cura logo para tudo encontrara
E recuperara
A vida,
No calor do fogo e no vigor
De vez desmedida.
Então é que era Vida!
Maior
Quando a maior verdade
Que conheço
A viver começo
E vejo que servir dos mais a comunidade
E com o acto agir mais depurado
- É o melhor que farei por mim,
Tudo, em todo o lado,
Muda, por fim.
Fico em alinhamento
Com o modo como se espere
Que a todo o momento
O Universo opere.
Deixo de manipular
E, portanto, de atrair,
A seguir,
Manipuladores para a vida que levar.
És
És aquilo que amas.
Vem daqui, do que se lhe acolha,
O que chamas
De livre escolha.
Qual é teu templo, portanto?
Se não houver viabilidade
De escolha, entretanto,
Tudo é sentimento em tua interioridade.
Fanático do desejo,
Escravo dos afectos,
Em ti vejo,
Da entrada,
O vazio sob os tectos,
O cidadão do nada.
Sozinho, de joelhos
De ti próprio ante o amargo travo,
Eis um mero escravo
Que se crê livre apesar de sem artelhos.
Morre por alguém?
Não,
Não morre.
Morre pelo sentimento que o tem
À mão
- E por ele, por ele apenas, é que corre.
CARROCEL
DE AVENIDAS
Confies
Não confies na pessoa,
Apenas no ensinamento.
Quando o ensinamento ecoa,
Não confies no elemento
Da palavra, que é traslado,
Prende-te ao significado.
Ao significado atreito,
Salta as interpretações,
Só com o final afeito.
Buscando deste as lições,
Não te fies na normal
Consciência ocasional:
Procura a sabedoria
No teu mais profundo estado.
Nunca o mais correcto iria
Da função ser mero dado,
Mas é quanto anunciar
Que anda além o que é de fiar:
- Mais e mais é de aprender
O que em nós luz acender.
Terra
Na terra toda a gente é doutra terra,
Pessoas atraídas pelo sonho,
Fugindo ao pesadelo que as aterra,
Todos de mala feita onde disponho
Toda inteira de minha identidade
Ao evento disposta que a persuade.
Cá vamos todos juntos, separados,
Em busca, sempre em busca doutros lados.
Melancolia
A tua melancolia,
Quando é de vez duradoira,
Intimamente se avia
De vida, na perspectiva
Que, em vez de alegria viva,
Apenas a morte agoira.
Importa-me ver se é disto
Que me quero quando existo.
Más
Tens uma boa memória
Mas de más recordações?
Deita já fora essa escória,
Troca-a, vê se o bom lá pões!
É que após, mesmo sem crer,
Olha o bom a te ocorrer.
Ato
Os sonhos, as esperanças
Irão desaparecer.
Mas do mundo as contradanças,
Onde ato aqui minhas tranças,
Se morrem, vão renascer.
Pois bem, morte, se me alcanças,
Não me alcanças neste ser:
- Alma sou deste Universo
Até ao último berço.
Estrelas
Ao olhar para as estrelas
Vislumbro a história dos céus
E ao deslumbrarem, de belas,
Entrevejo o rosto a Deus.
Têm Infindo passado
Sempre aqui a alvorecer,
Cintilam por todo o lado
Para toda a gente O ver.
Leme
Deus, Deus vai sempre ao teu leme.
Embora cuides que o barco
Se afunda, que tanto treme,
Confia, não cais ao charco,
Que o comandante melhor
Do que tu sabe o caminho.
Vai acabar por te pôr
Onde tens de ir: ao teu ninho.
Solta-te
Solta-te das criaturas,
A ficar despido delas.
Do diabo as armaduras
Nada do mundo têm nelas:
Ele vem nu à contenda,
A ver que é que apanhe e prenda.
Se vais com ele lutar
Vestido, por terra cais,
Em breve, em qualquer lugar.
Pela veste é que te trais:
Ele tem então, destarte,
Sempre por onde apanhar-te.
Extraordinária
Extraordinária benesse
Oferta o desprendimento:
Paz e união oferece
Crescendo a cada momento.
E o que maior lonjura alcança:
- Fortalece-me a esperança.
Arrimo
Buscas arrimo na terra?
Procura que teu apoio,
A que tua mão se aferra,
Não vire de trigo em joio
Que escravize, por contraste,
Peso morto que te arraste.
Claro
Como é claro teu caminho
E os obstáculos, patentes!
Que armas boas adivinho
Para vencê-los, presentes!
Contudo, quantos desvios,
Quantos tropeços, fastios!
É um fiozinho de nada,
Porém é cadeia de aço
Que conhecemos na estrada
E nos vai trocando o passo,
Que não queremos quebrar
E nos leva a tropeçar
E porventura a cair.
- Que esperas para o cortar,
Para o cortar e seguir?
Ideal
Nenhum ideal se torna
Realidade sem dor:
Nega-te ao que és jorna a jorna,
Abre-te ao que ideal for.
E paga o que for devido
Pela carne do sentido.
Servir
Quantas vezes te propões
Servir em alguma coisa
E tens de te conformar:
É aborrimento o que pões,
O desgosto singular
De não ter, chamado à loisa,
Cumprido mesmo, afinal,
Propósito tão banal!
Pau
Quando vês a cruz de pau,
Desprezível, sem valor,
Feita mero varapau
Sem crucificado a apor,
Esta cruz é a tua cruz
De cada dia, escondida,
Sem brilho, da pouca luz,
Sem consolação vivida.
Aguarda o crucificado?
- És tu, a ela ofertado.
Arena
O mundo apenas admira
O sacrifício na arena.
Ignora quanto não mira,
Silente, fora de cena.
E quanto deste valor,
Quanto, às vezes, é o maior!
Dar-se
É preciso dar-se todo,
Negar-se de todo então:
Holocausto deste modo
Fermenta do dia o pão.
Desde que não seja o imo
Que fora com o ego arrimo.
Leva
Tudo o que não leva a Deus,
Dedo embora lá apontado
Tão grande que tapa os céus
(Liturgia, dogma dado,
De catedrais coruchéus,
Leis e o mais codificado...),
Se à vida o rio põe torvo,
Em actos errada a mira,
Tudo isto então é um estorvo.
Arranca-o e longe o atira,
Como atiras longe o corvo
Que só por mortos aspira.
Sonha
Quando uma pessoa sonha,
Não sonha com os problemas
Do que no sonho disponha,
Tudo é perfeito em tais lemas.
Vem a vida então depois,
Mais que um problema traz dois.
Espiritualidade
O que me pode dar tudo
Sem gastar nada, em verdade,
Nem a moeda a que me grudo,
É só espiritualidade.
Não é preciso pagar
Ao meditar, ir ao céu
Acolher luz singular,
Acalmia sem labéu,
Íntima paz, segurança,
Protecção até sentir
Que ser especial me alcança
Por aqui ao progredir.
É apenas mudar de foco:
- Dar logo mais importância
Ao que está dentro e não toco
Que ao que está fora e traz ânsia.
Lutam
Sonham com vida ideal,
Lutam com insanidade
Para alcançá-la, total,
Tal direito que os persuade.
Quando o não conseguem, ficam
Vida fora amargurados,
Tal se a perda verificam
De que foram despojados.
Como é que podem sentir
Que alguma coisa perderam
Quando afinal, se bem vir,
Nem sequer nunca a tiveram?
Nunca
Agir em função do ser,
Sentir a felicidade
Que nunca pode trazer-
-Nos nenhum bem material:
- Não têm nossa identidade,
Nunca do imo são fanal.
Fora
Fora meu ego se foca
E quanto mais nós corremos
Mais dele o aguilhão nos toca:
- Corre mais, senão perdemos!
Mas, se corro e não alcanço,
É que não é por aí,
Outro deve ser meu lanço,
Nunca o rumo que segui.
Só que o ego é renitente:
- Vê quantos mais vão à frente!
Se o deixo enganar-me e corro,
Breve adoeço e acaso morro.
Confundir
Somos todos educados
Para confundir quem somos
Com aquilo que fazemos.
E eis-nos feitos em bocados
Arrumadinhos em tomos
Nas estantes do que temos.
Em vez da interioridade,
Reduzida a frágil fio,
Fica em nós a opacidade
De insuportável vazio.
Retirar
Se o Cosmos me retirar
Tudo o que tenho e que faço,
Que é que me iria ficar?
Nada? Não, sinto-lhe o abraço
E ainda por ele vou...
- Afinal, fica o que Sou!
Actos
Os meus actos são a pedra
Num elástico amarrada:
Quão mais longe o lanço medra
Mais medra atrás a pedrada.
Se me conecto profundo
Ao meu Eu par do Infinito,
Logo o Universo, fecundo,
Veloz corre ao que concito.
Se no fundo de mim entro,
Todo o Universo é meu centro.
Mudança
Abraça a mudança, a muda
É a tua prioridade.
Quão mais primeira e aguda,
Mais tudo é facilidade.
O mundo corre veloz.
Quem não acompanha a ida
Uma vida sofre atroz
E é derrotado em seguida.
Se for rígida a postura,
Quando sobrevier o vento,
Caímos de toda a altura,
Seja qual for nosso intento.
Se mais flexíveis vivermos,
Não caímos na jornada,
Por nenhum domínio termos
Nem controlo sobre nada.
Aconteça o que tiver
De acontecer, o acolhemos.
E seja o melhor que houver
Para o mundo o que vivemos.
Ideia
Cuidas que tens uma ideia
E uma ideia nunca tens.
Recebe-la, volta e meia,
Dum Além que não deténs.
Não sejas, pois, exigente:
- Abre-te e após segue em frente!
Escolhe
Porque sou eu quem escolhe
De que é que vou precisar,
Se “não preciso” é o que acolhe
Minha decisão tomar,
Apenas então serei
Livre de ser quem me sei.
Imo
Quando o imo se não conhece,
Mora então como um estranho,
Nunca está consigo em messe,
Nunca de si tem o ganho.
Doutrem sempre dependente,
Perde-se então de repente.
É a mensagem do Universo
Para devir firme e terso,
Por dentro de cada qual,
Ali do Infindo o fanal.
Perco
Se perco o medo da perca,
Medo da separação,
A eternidade me cerca,
Ganho a eternidade então.
Quando me soltar da posse
Crendo que todo o caminho
Cruza os mais, corda que engrosse,
Nalgum dia que adivinho,
Atinjo a prenda superna:
- Ganho aí a vida eterna.
Fé
A fé nisto é acreditar:
Seja o que for que aconteça,
Para mim é a melhor peça
Com que posso deparar,
Mesmo que ainda não saiba
Nem que em meu fito ela caiba.
Lógica
Lógica de homens é mente,
De Universo é sentimento.
Em qual delas, no presente,
Se finca em mim meu intento?
- Fico-me por aqui bem
Ou vou tentando ir além?
Testemunhas
Os que foram testemunhas
De misérias e fraquezas
Que importa que as caramunhas
Testemunhem das ilesas
Horas duma penitência
Que só peca por ausência?
Grão
Se o grão de trigo não morre,
Há-de ficar infecundo.
Queres ser grão que socorre
A fome imensa do mundo?
Pode a dor ser sem igual,
Mas que bendito trigal!
Quão mais dor, mais euforia
Há-de explodir de teu dia
E até a dor então se esquece
Ante a inumerável messe.
Soberbo
Não te vences, que és soberbo,
Muito embora penitente.
Após queda, o gosto acerbo
É dor? Ou despeito ingente
De te veres tão pequeno
E sem forças no terreno?
Não és humilde... Ora, então,
Que longe andas de teu chão!
Quantos
Quantos que se deixariam
Pregar numa cruz de dores
Se aos milhares os veriam
De espanto os espectadores
E que não sabem sofrer
Do dia as alfinetadas
Que cada freima trouxer
Ao acaso das jornadas!
No cômputo do que foi,
Ao fim, quem é mais herói?
Manteiga
A tragédia da manteiga
De quem é humano vulgar:
Ontem fechou a taleiga,
Hoje abre-a de par em par,
Ontem vence, hoje é vencido,
- Tal é da vida o tecido.
E assim vamos nós vivendo,
Pé direito, pé torcendo...
Lavrador
Como enterra o lavrador
Junto às árvores que os dão
Frutos podres, ramos secos,
Folhas murchas, o que for,
E o que estéril era e vão,
Prejudiciais galhos pecos,
Contribui com propriedade
A nova fecundidade,
Enterra em fosso profundo
Que tua humildade abrir
Negligências e ofensas,
Os erros de todo o mundo...
Das quedas o impulso de ir
Colhe então para que venças
E, da morte, de seguida,
Aprende a retirar vida.
Parecer
Para mui bem parecer
Perante o mundo o que fazem!
Se o fizeram a rever
Intuitos que ao Mundo aprazem,
Que santos, que heróis seriam
Aqueles que tal fariam!
Concretiza
Concretiza teu propósito,
Não é fogo de artifício
Que brilha e deixa em depósito,
Como implicação de ofício,
Uma cana inútil negra
Que atiras fora, por regra.
Novo
És tão novo! Como um barco
Quando empreende viagem,
Desvios (que mal abarco)
De hoje, se não há triagem,
Se logo os não corrrigires,
(A que, insistente, te exorto)
Levam-te a não atingires
No fim o almejado porto.
E, tão novo, findas velho,
Ao não ligar ao conselho.
Agora
Agora porta-te bem,
Sem de ontem já te lembrares,
Que já passou, findo além,
E sem te preocupares
Com o amanhã que não sabes
Se, aqui chegando, lá cabes.
Lavras
Se do íntimo ao chamamento
Respondes, lavras melhor.
Se falas com ele, atento,
Corresponde ao teu sabor.
E buscas a cumeeira,
Custe o que custe, cimeira.
E feliz és na subida,
Mais, por fim, na vera Vida.
Ferida
A tua ferida doi,
Embora em vias de cura.
Teu propósito é que foi
O purgante que a depura.
Mantém a purga capaz
E em breve és só gozo e paz.
Escrúpulos
Os escrúpulos nos tiram
A nossa paz interior.
Joga-os fora! Não ouviram
Do Infinito a voz maior
Que nos diz, calma e veraz,
Como que em saudação:
A ti deixo a minha paz
Mesmo na tribulação.
Nuvem
A tristeza, o abatimento,
A nuvem de pó que a queda
Levanta a cada momento.
Mas da luz do íntimo o vento
Não varre a nuvem que veda
O horizonte ao teu olhar?
Basta, até porque a tristeza
Pode ter soberba a par:
Julgavas-te singular,
Perfeito, uma singeleza?
Laje
Não penses na tua queda,
Pesada laje que encobre,
Esmaga o que em ti leveda
E vai tentar-te que sobre.
Perdoado é o teu artelho,
Esquece-te do homem velho.
Eleva-te
Eleva-te ao Infinito,
De Deus junto ao coração,
E agradece o dia inteiro.
Porque, de fome ao teu grito,
Te entregou breve o teu pão.
Porque um desprezo rasteiro
Te amargurou qualquer hora.
Porque tens ou não agora.
Porque fez este animal
E criou o Sol e a Lua,
Aquela planta festiva...
Porque a um deu um sinal
Que não é da conta tua.
Porque um dado se te esquiva...
- Grato do mau e bom tom,
Por tudo, que tudo é bom.
Cruz
Uma cruz de pau sem Cristo
É o que a tarefa me obriga
A não largar sem registo,
Nela pregada formiga.
Que uma cruz abandonada
Quer ombros feitos à estrada.
Visão
Toda a gente, geralmente,
Tem visão colada à terra,
Duas dimensões somente:
Largo e comprido. E se enterra.
Quando a vida interior
Nas funduras mergulhar
É que um terceiro pendor,
O da altura, há-de aflorar.
Com ele aflora o volume
Que o relevo em ti assume.
Sentido
Quando perdes o sentido
De Âlém do imo que em ti luz,
A caridade é um vagido,
Filantropia traduz;
Tua pureza é decência,
Mortificação, parvoíce;
Disciplina, a tua ausência
Onde só o látego urdisse.
E todas as tuas obras
São meras estéreis sobras.
Acessível
Mais acessível ser santo
Há-de ser do que ser sábio,
Mas mais fácil, entretanto,
É ser sábio do que santo
E a nossa lonjura sabe-o.
Crescem
Já não se vêem as plantas,
Tudo é gelo campo fora.
Diz o lavrador, às tantas:
“Crescem para dentro agora.”
Na inactividade se entro,
Cresço também para dentro?
Solte
“Quem quereis que vos eu solte,
Será Cristo ou Barrabás?”
É triste que a vida volte
Tanto em meus gestos atrás.
E mais triste é se a sequela
Na traição à Vida fica,
Que da vida apõe na tela:
“Crucifica-o! Crucifica!”
Preocupa
Tudo o que te preocupa
É mais importante ou menos.
Importa, no que te ocupa,
Que sejas feliz nos drenos
De te regar o Infinito
Que em ti saúda o teu grito.
Luzes
Luzes novas! Que alegria
Que o Além tenha, fecundo,
Feito descobrir-te, um dia,
Todo inteiro um novo mundo!
Na hora de agradecer
Olha quanto há por fazer.
Dois
O desgosto, a inquietação,
Tua amargura pessoal...
- Ninguém pode servir, não,
A dois donos por igual.
Terei de fazer a escolha:
Dentro ou fora, qual acolha?
A fim de ordenar os dois
Por esta escolha depois.
E, qualquer que seja o custo,
Dela é sempre o preço justo.
Punhado
Um punhado de homens seus
Em cada pomar humano
É o que afinal requer Deus
A atalhar da crise o dano.
É que, encarada dos céus,
Nenhuma crise faz réus.
Dalém vista, após meu treino,
Ruma a crise à paz do Reino.
Militar
O meu modo de actuar
A partir do imo mais fundo
É táctica militar.
Aguento a guerra no mundo,
A diária luta interior,
Muito longe da muralha
Do castelo, no pendor
Onde menos me atrapalha.
Aí acode o inimigo,
Ao ligeiro sacrifício,
Ao salto além que persigo,
À entrada a horas no ofício...
Nunca atinge a barbacã,
Perigosa para o assalto,
Do meu castelo a mais chã,
Alcandorada lá no alto.
E, se acaso lá chegar,
Não tem eficácia a par.
Alegria
A minha alegria é paz
E a paz é sempre um efeito
Do que a vitória me traz.
À contínua luta afeito,
Minha vida é uma disputa,
Não posso ter paz sem luta.
Julgamentos
Nos humanos julgamentos
Quem confessa é castigado.
Do Infinito em provimentos
Quem confessa é perdoado.
Mede esta contradição
Lonjuras do céu ao chão.
Sonhas-te
Sonhas-te além missionário
Pelos confins do planeta?
- Obedecer é o primário
Degrau para a tua meta:
Trabalhas aqui agora
Sem que o longe se intrometa.
Tua lonjura onde mora?
Onde teu imo é profeta.
Quando teu pé dali corre,
Nunca a utopia te morre.
Queres
Que queres dizes à vida.
Mas é como o avaro quer
Ao oiro na mão tolhida?
Como a mãe ao filho quer
Presente ou à despedida?
Como o ambicioso quer
Uma honra apetecida?
Como o sensual ao prazer
Busca, infrene, a toda a brida?
- Se não, é para esqueceres:
Querer deveras não queres.
Empenho
Os homens que empenho põem
Em seus terrenos traquejos!
Sonhos de honras se propõem,
Por riqueza mil arquejos,
De sensualidade a busca
Em festa acaso patusca...
Eles, elas, ricos, pobres,
Velhos, jovens, homens feitos,
Crianças que mal descobres,
- Todos nos mesmos trejeitos.
Quando igual for nosso empenho
Do íntimo pelo desenho,
Então vivo e operante
É nosso trilho indo além
E não há barreira adiante
Que nos tolha o que convém.
Aí nosso empreendimento
Vingará de vela ao vento.
Estádio
Todos pelo estádio correm.
Muito embora todos corram,
Um só de quantos acorrem
O prémio colhe que aforram.
Corre, pois, de tal maneira
Que ganhá-lo se te abeira.
Nobilita
Nobilita o pensamento
Com teus desejos sublimes.
A chispa, próspero o vento,
Incendeia, num momento,
A fogueira a que te arrimes.
Começou
Começou a edificar,
É a triste sina do homem,
Mas não pôde terminar,
Que as eras tudo consomem.
Mas do lado além da vida
Nenhuma meta é perdida:
São metas além da linha
Do que a visão adivinha.
Mas vão na continuidade
Do melhor que nos invade.
Frouxidão
Luta contra a frouxidão,
Preguiçoso, desleixado,
Que o imo te arrasa ao chão.
É tibieza em traslado
E os tíbios, ao deus-dará,
Deus logo os vomitará.
Descambar
Não te preocupa o contínuo
Descambar em falhas leves
Deliberadas. “Combino-o,
Mas depois atracções breves
Me espicaçam como facas...”
- Tuas vontades, que fracas!
Edificar
Só te ocupas da cultura
Sem o íntimo edificar
Mas do mundo a noite escura
Só ilumina algum luar
Se um olhar posto no céu
Se dedica a agir, humano,
Prestigioso, de alma ao léu,
Realizando todo o ano
Silencioso, eficaz,
Sementeiras do imo em paz.
Desleixo
A tua incúria e desleixo,
Cabulice, cobardia,
São comodismo que deixo
Ferreteando o teu dia.
Porém, se bem adivinho,
Não são deveras caminho..
Opinião
Se uma opinião veraz
Exprimiste funda do imo,
Que te importa que, mendaz,
Se escandalize o do cimo?
- Qualquer trono finda arcaico,
O escândalo é farisaico.
Inexperiência
Tua própria inexperiência
Leva à presunção, vaidade,
Dando-te um ar de imponência
Que mascara a vacuidade.
Embora néscio, tu podes
Ter cargos de direcção.
Se à falta tu não acodes
De dotes que teus não são,
Negas-te a escutar conselho
De quem dele tem o dom.
Assim, do mal quanto quelho
Vai desgovernar teu tom!
Impulso
O impulso do fundo do imo
Põe no agir profissional,
Em teu lápis, foice ou malho:
Elevas até ao cimo,
Para além do natural,
As marcas de teu trabalho.
Corrente
Não arrastes os teus actos
Como se foram corrente
Chumbada a teu tornozelo,
Que importante é andar em frente.
Carrego de actos transactos
Nesta vida, de elo em elo,
Pouco importa. Amargo ou bom,
Tu é que escolhes o tom:
Grilheta que, em chumbo, cansa
Ou plinto que ao céu te lança?
Serviras
Se serviras seriamente
A fundura de além do imo
Como te enganas, premente,
Na ambição de alçar-te ao cimo,
De servir tua vaidade,
Tua sensualidade?...
- Que sol, a cada manhã,
Romperia pela chã,
Se serviras a fundura
Que além o teu imo apura!
Embebem-se
Teus sentidos e potências
Embebem-se em qualquer charco,
Despertam concupiscências,
Tens pé que, em firmeza, é parco.
Adormecida a vontade
E dispersada a atenção,
Terás, com seriedade,
De seguir dum plano um guião.
Pois, se não for deste jeito,
Nada farás de proveito.
E é preciso que vás fundo
Neste a implantar outro mundo.
Ambiente
O ambiente conta tanto!
Urge trazer, natural,
O meu que no mundo implanto,
Em redor, por onde abale.
Com o pasmo primordial
Ante o espanto das primícias,
Findo a clamar: “Afinal,
Mundo além, quantas delícias!”
Pessimista
Não sejas tu pessimista,
Pois tudo quanto ocorrer
É para o bem que se alista,
Mesmo se o não logras ver.
Nosso optimismo então é
O efeito firme da fé.
Flua
Que nosso sal, nossa luz
Flua tão naturalmente
Que a pieguice se reduz
A nada espontaneamente!
A esquisitice, em verdade,
Morre na simplicidade.
Preocupa
Nada preocupa a criança.
As misérias naturais
Com simplicidade as lança
Perante os olhos dos mais.
O louvor, o menosprezo,
Escárnio, admiração,
Desonra ou honra que prezo,
A saúde ou a infecção,
À vida franqueada a porta,
Tudo isso, ao fim, que é que importa?
Incongruência
A incongruência é sinal
Duma verdade tremida.
Quando um ideal se abale,
Honra ou fé que orienta a vida,
Quer dizer, no fim de contas,
Que não existem de todo
Ideal, honra ou fé, mas pontas,
Máscaras a encobrir lodo.
Persuadido
Não transijo, persuadido
Se vivo íntimo ideal:
Dois e dois, quando os redijo,
São três e meio, afinal?
Nem de amizade por ânsia
Cedo esta insignificância.
Isto é que outrem conduzir
Há-de ao que no imo fremir.
Fracassas
Fracassas. Mas cofiaste
De teu imo na fundura?
Não elidiste o contraste
Dos meios nessa procura...
Assim êxito aqui nisto
Fora fracassar de todo.
- Agradece o escuro visto,
Recomeça doutro modo.
Desastre
Aquilo foi um desastre,
Do espírito falho o rumo?
Seja o que for que te lastre,
Derrota ou vitória, o sumo
É o do rumo que seguias.
Se foi teu imo o fanal,
O Além dele a dar-te os guias,
Tudo é um êxito, ao final.
Por mais que a derrota seja
Tudo o que ao redor se veja.
Temor
O temor de Deus é santo
Se ele for veneração.
Se for servil, entretanto,
É dum tirano a infecção.
Ora, Deus ou é um bom pai
Ou, não o sendo, então cai,
Porque era uma imagem falsa
À pendura em tua calça.
Crosta
A murmuração é crosta
Que nos suja e entorpece.
Contra a caridade aposta,
Tira a força, a paz empece
E faz perder a união
Com o além que é o coração.
Palavreado
Depois do palavreado
Tão oco de tanta vida,
Como o silêncio é prezado
E quanta conta é pedida
À palavra buliçosa
Que mais não é que ociosa
Badalada de oco sino
Sem mensagem e sem tino!
Julgar
Não vale a pena julgar.
A cada ponto de vista
Corresponde o inverso, a par,
Com a razão que lhe assista,
Quase sempre limitado,
Com olhar acaso obscuro
E normalmente enevoado
Pelas trevas sem apuro
Da pertinaz infecção
Que é sempre a da exaltação.
Pedras
Jogas palavras ao vento,
Pedras com olhos vendados,
Sem reparar, neste intento,
Nos males que são causados.
Parecem-te muito leves,
Que teu olhar te encegueira
Em teus escrúpulos breves,
Na exaltação sem peneira.
E, às vezes, como são graves
Esses teus termos suaves!
Destruir
Criticar a destruir
Não é difícil jamais.
Qualquer aprendiz bulir
Consegue em pedras que tais.
Construir, só se te adestres:
Sempre isto é que requer mestres.
Empreendimento
Em todo o empreendimento
Não são de ignorar os meios,
Sem esquecer um momento
Que eles andam sempre cheios
Duma outra dimensão,
A de além do coração.
E que esta liga e remete
Ao que Além te não compete.
Ponta
É teu dever ter em conta
Todos os meios terrenos
Sem deixar de atar a ponta
Ao que tem poderes plenos
E dentro deles revela
Que Além há outra parcela.
Porquê
Mas porquê desesperar
Só de olhar minha miséria?
É verdade, estou a par,
Em prestígio perco a féria,
Sou um zero e um outro sou
Se anotar minha virtude
E num zero se escoou
Meu talento, nada o ilude...
Mas, se atrás da negação,
Brilha a luz de Além do imo,
Esta unidade um milhão
Faz dos zeros rumo ao cimo.
Ninguém
Julgas que não és ninguém
E que os outros levantaram
Mundos novos nos projectos,
Organizações além,
Pela imprensa que alertaram,
Na propagação de afectos...
Lá terão todos os meios
E tu sem meio nenhum!
Contudo, se olhares bem,
São só dúvidas, receios
De ignorantes, pobres... Um
Dentre eles qualquer retém:
Irás ver que vida além
Perseguido e caluniado
Há-de ter sido deveras.
Ama e crê, sofre também,
É o caminho que hão trepado
Pela aresta das esperas.
São os recursos credíveis
Que recortam relevâncias
Na areia inerte do chão.
São os meios infalíveis
Para eternizar as ânsias
Que trazes no coração.
Miserável
Vês-te e és bem miserável,
Por isso Deus te procura,
Emprega, sempre improvável,
Os instrumentos de cura
Com teor desproporcionado:
Assim finda demonstrado
Que a obra é dEle, em verdade.
Tua, só a docilidade.
Recantos
Porque deixas uns recantos
De teu coração de fora?
Enquanto inteiros os mantos
Teus não dás de cada hora,
É inútil tentar os céus
Abrir a quenquer dos teus.
No rumo de cada evento
És um bem pobre instrumento.
Rio
Não empurre o rio.
Ele irá viajar
Por onde cruzar,
De fio a pavio,
Queira-o ou não queira,
Só dele à maneira.
É a rota estendida
Do rio da vida.
Rumo
A questão mais importante
Rumo à espiritualidade
Não é que deus dentro implante
Mas se actuo com verdade:
Se é dentro que busco arrimo,
Se fiel sou sempre a meu imo.
Instrumento
Sê instrumento de oiro ou de aço,
Sê de ferro ou de platina,
Grande ou, de pequeno, escasso,
Tosco ou duma traça fina:
Todos são úteis e cada
Tem a missão própria dele.
Não vale menos, de entrada,
Serrote que, a cortar pele,
Bisturi de cirurgião.
Teu dever, neste momento,
É o de ser, de coração,
Deveras um instrumento.
Retrair
Como te vais retrair
No trabalho que te apela?
Tens soberba oculta ao ir,
Crês-te perfeito na tela?
O fogo que te atraiu,
Além da luz, do calor
Que de entusiasmo te encheu,
Expele de fumo um ror:
É, dentre outros elementos,
Fraqueza dos instrumentos.
Ferrugento
Há trabalho, os instrumentos
Não podem ser ferrugentos.
Há normas para evitar
Mofo e ferrugem, a par.
Basta, em postura didáctica,
Apenas pô-las em prática.
Inquiete
Não te inquiete a economia
Quando se avizinhar parca.
Apenas em Deus confia,
Recursos que tens em arca
Usa até onde puderes,
Até teu limite humano.
Em breve redunda em veres
Que o dinheiro cai no pano.
Regra geral, este lema
Faz deixar de haver problema.
Faltarem
Jamais deixes de fazer
Por faltarem instrumentos,
Será como se puder
Que começam os eventos.
Vai ser depois a função
Que o órgão te cria à mão.
Alguns dos que não prestavam
Tornam-se aptos entretanto.
Outros, porém, mais escavam
A sepultura em seu canto.
Faz destes a cirurgia,
Segue em frente com teu dia.
Catavento
Não queiras ser catavento
Doirado num edifício:
Por muito que brilhe ao vento,
Por alto que ande, de ofício,
Não conta na solidez
Das obras que tenha aos pés.
Antes sejas tu silhar
Velho, oculto no alicerce,
Sob a terra a se escorar,
Que ninguém veja nem verse.
O terramoto que arrasa
Por ti não derruba a casa.
Conheces
Se te conheces, te alegras
Do desprezo que te dão
E chora o teu coração
Dum louvor que não integras.
É, depois, deste fermento
Que encetas teu crescimento.
Apoquentes
Por verem as tuas faltas
Não te apoquentes jamais.
As dores só irão ser altas
De Deus se não há sinais.
Que saibam como és, de resto,
E te desprezem, que importa?
Nada ser e sem apresto
Ao Infindo é que abre a porta:
Tudo em ti, da base ao cimo,
Ele irá pôr em teu imo.
Impulso
Se és impulso da razão
À margem do coração,
Findas com a boca em terra,
Em perene prostração,
Verme que no esterco ferra,
- Quando Deus, afinal, quando
Tanto no ar te anda elevando!
Soberba
Soberba, se dentro em breve
- Anos, dias, quem o sabe? -
És cadáver podre e leve
Num fedor que nunca acabe?
Ninguém do lado de cá
Nunca mais te lembrará.
Tu
Tu que és sábio, afamado,
Eloquente ou poderoso,
Se não és humilde, o fado
É que nada, de vistoso,
Nada vales, malfadado.
Esse ego superlativo
Corta, arranca lá de dentro.
Poderás então, ao vivo,
Obrar a partir do centro,
Do além dele sempre esquivo.
Vais em último lugar?
- És quem acende o luar.
Falsa
A tua falsa humildade
Afinal, é comodismo:
O que humildezinho te há-de
Precipitar num abismo
É que abandonas direitos
Que são, afinal, deveres.
Os que a isto andam atreitos,
Se enganam: perdem poderes.
Suportar
Como é que irei suportar
Todo este lixo que sou?
Se a humildade me levar
A tal sentir-me em meu voo,
Talvez, depois da miséria,
Ganhe ainda grande féria.
Soberba
Por soberba te julgavas
Capaz de tudo sozinho.
Ficaste nas grutas cavas,
Cais de cabeça do ninho.
Sê humilde: do Infindo o apoio
Separa o trigo do joio.
Pincel
És pincel na mão do artista,
De nada mais tens valor.
De que serve ter-te em lista
Se não deixas pôr à vista
O trabalho do pintor?
Vazio
Humilde para que sejas,
Tu, vazio e satisfeito
De ti mesmo em quanto vejas,
Basta-te do rio o leito:
És gota de água, de orvalho,
Cai ali, jamais se vê.
Afinal, para que valho
Se nem logro ter-me em pé?
Despega
Despega dos bens do mundo,
Que te contente o que basta
A um sóbrio viver fecundo,
Temperado em boa casta,
- Senão nunca vês teu fundo.
Pobreza
A verdadeira pobreza
Nunca consiste em não ter
Mas em desprendido ser,
Em renunciar, que o despreza,
Sobre as coisas ao domínio.
Por isso há pobres que, a sério,
São ricos de tal fascínio
E ricos, pobres de império.
Destes o jeito é que aponta
Na pobreza o que é que conta.
Apego
O apego às coisas da terra...
Bem cedo nos fugirão,
Que não descem, quando enterra
Ao rico o sepulcro vão,
As riquezas que adorava:
Mesmo cheia, a cova é cava.
Exibas
Não exibas facilmente
A intimidade que actuas.
O mundo é sinistramente
Inçado de falcatruas,
Pejado de falsas pistas,
De incompreensões egoístas...
- Senão, tudo o que actuares
Cheira sempre a lupanares.
Cala-te
Cala-te, nunca te esqueças
De que teu brilhante ideal
É uma luzinha às avessas,
Recém-acesa ao portal.
Pode um sorpo só bastar
Para do imo ta apagar.
Perdidas
As energias perdidas
Com faltas de discrição
São à eficácia traídas
Do trabalho tido à mão.
Como é fecundo o silêncio,
- Sê discreto e ao mundo vence-o!
Discreto
Se tu foras mais discreto,
Já não te lamentarias
Da amargura sob o tecto
Onde sofres muitos dias,
Após sequelas adversas
De tuas muitas conversas.
Espectáculo
Gráficos, fotografias,
Espectáculo constante...
São os materiais que envias
Para o que esperas adiante?
Trabalhas e fazes guerra
Visando o que há-de ser teu:
Empoleiras-te na terra,
Não te empoleiras no céu.
Indignação
Cala-te logo que sintas
Dentro em ti a indignação,
Muito embora quanto pintas
Seja à ira uma impulsão.
Apesar da discrição,
Nesse instante dizes mais
Do que querias então
Dizer em casos que tais.
Correrem
Se as coisas correrem bem,
Alegremo-nos, a Deus
Bendizendo, de ir além
Por dar incrementos seus.
Se correrem mal, porém,
Alegremo-nos, a Deus
Bendizendo por também
Da cruz partilhar dos seus.
E tentemos, longe mais,
Ver que escapou nos sinais.
Alegria
A alegria a ter bem fundo
Não é da fisiologia,
De animal são pelo mundo,
Mas aquela que adviria
De abandonar tudo, tudo,
E me abandonar inteiro
Ao que além do imo, ali mudo,
Me estende os braços, certeiro,
Me murmura, ledo e terso,
Do coração do Universo.
Desanimes
Não desanimes, não há
Contradição que não possas
Superar e desdejá,
Sejam quais forem as mossas.
É a condição do que existe.
-Então, porque é que estás triste?
Triste
Se estás triste, então mergulha
Por teu imo, para além,
E conversa ali com quem,
Silente, de Além te arrulha.
Cedo ou tarde, então verás
Como lograrás a paz.
Injustiça
Duma injustiça sofrida
Te queixas de amargo tom.
Aborrece-te? Revida:
Então não queiras ser bom...
- O caminho para a frente
Custa sempre a dor presente.
Cavalheiro
És cavalheiro cristão,
Maometano, budista,
Ou agnóstico humanista,
Ou jovem em oração,
Até clamas contra quem
Ataque acaso teu credo,
Frequenta-lo desde cedo...
Só não vejo em ti, porém,
Que faças um sacrifício
Em prol de quanto confessas,
Nem prescindes de às avessas
Disto andar em teu ofício,
Nem sequer és generoso
Com quem for teu inferior,
Não toleras um tremor
De fraqueza no operoso,
Não abates a soberba
Nunca pelo bem comum,
Não te desfazes nem dum
Manto de encobrir a verba
A que te monta o egoísmo...
- Não te vejo no que dizes.
Que ideia tens das raízes
Que são das crenças o abismo?
Deixam
Teu talento, simpatia
Não deixam aproveitar?
O incenso não se perdia
No imo se a Deus o ofertar.
Mais se honra no abatimento
Do Infinito o alto balcão
Do que se usas teu talento
Num qualquer dele uso vão.
Ventos
Ventos de perseguição,
Sendo um mal, um bem farão.
Que se perde? Bem medido,
Não se perde o já perdido.
Árvore que não se arranca
De raiz, só se alavanca
Quando, antes que acabe peca,
Dela cai a rama seca.
Por mais que o vento me traia,
Esta rama é bom que caia.
Indiferente
Por onde tenha passado
Ninguém fica indiferente.
Ora amado, ora odiado,
Jesus toca toda a gente,
Como divide, de entrada,
Quem lhe seguir na peugada:
Por baixo de cada tecto,
Ora aversão, ora afecto.
É dos profetas destino
Dividir o coração,
Seja ele clandestino,
Seja público o sermão.
É o mesmo, curiosamente,
Com quem toque a vida em frente
Na cultura, na ciência:
- Sempre há quem mate a evidência.
Direito
Se vais direito a teu fim,
Com cabeça e coração
Prenhes dele em teu confim,
Que te importa o furacão,
Cegarrega de cigarra
Ou da manada o mugido,
Relincho de quem te agarra,
De qualquer porco o grunhido?
Reticências e calúnias,
Exaltação, panegírico,
Sandices, verdades, une-as
Igual desacerto lírico.
Ao campo com que te importas
Frui dele como os poetas,
Não lhe pretendas pôr portas:
- Do Infindo fermenta as metas.
Sofres
Sofres a tribulação,
Aguentas contradições?
- “De Deus se cumpra a tenção” -
Dirás sem hesitações.
Aquilo que alcançarás,
Se fundo o dizes, é paz.
Cá
Sofres na vida de cá,
Que é um sonho curto deveras.
Teu Pai, do lado de lá,
Se muros lhe não ergueras,
Após tanto mau sonhar,
Vai dar-te um bom despertar.
Assustas
Não vejo porque te assustas.
Sempre foram irrazoáveis
Com quem de além paga as custas.
Se há mortos ressuscitáveis,
Aquele que os ressuscita,
Pelo terror que suscita,
Será morto de seguida:
- À morte a quem der a vida!
Bons
Na luta e contradição,
Quando os “bons” são o obstáculo
De teu trilho no desvão,
Levanta o teu coração,
Do cume observa o pináculo.
Grão de mostarda e fermento
É o que és, parábola viva:
Alegre tomas assento
Num porvir que há-de vir lento,
A massa fermenta activa.
Do céu descansam as aves
À sombra do que aqui graves.
Tribulação
Se a tribulação acolhes
Encolhido e temeroso,
Alegria e paz escolhes
Perder, como todo o gozo.
Não há mais nenhum proveito
Que ao transe arranque teu jeito.
Público
Um qualquer público evento
Leva ao enclausuramento
Pior talvez, na circunstância,
Que duma prisão a instância.
Tua personalidade
Sofre eclipse de verdade.
Não tens um bom ambiente:
Egoísmo, murmuração,
Curiosidade doente,
Perversa incompreensão...
Mas vontade livre tens
E a criança em ti com mil bens.
A falta de folhas, flores,
A multiplicação nunca
Impede nem os fervores
Da raiz que o imo junca.
Trabalha, que há-de mudar
O rumo da vida e dás
Mais frutos em teu pomar
E saborosos assaz.
Cruzes
Trabalhos, tribulações,
Cruzes mil de mil e um modos
São todos os Abraões:
Criam civilizações,
Pagam-no com tais apodos.
Discípulo que se adestre
Vê que não é mais que o mestre.
Porque aquilo que compensa,
Custa. Mas quem nisto pensa?
Sarmento
És sarmento de videira,
Exigido é que dês fruto.
És podado a vida inteira
Para dar melhor produto.
Doi cortar, doi arrancar,
Mas depois, que louçania
Nas obras a verdejar
Maturando dia a dia!
Intranquilo
Quando ficas intranquilo,
Lembra que o que acontecer,
Fora ou do imo no sigilo,
É relativo a quenquer.
Deixa o tempo decorrer
E depois, de longe olhando
Factos e gentes que houver,
Tens a perspectiva quando
Cada coisa ao lugar vai
Com seu tamanho real.
Justo prendes teu estai
Sem preocupar-te, afinal.
Mosteiro
Numa visita ao mosteiro
Confrange-se o coração
Da pobreza por inteiro
Da séria vida em tal chão.
Mas - “É duro!” - se alguém diz,
Pode ouvir logo, entretanto,
- “É aquilo que sempre quis!” -
Dum monge feliz ao canto.
Dizes que não és feliz?
Verdadeiramente é pena:
Nem sombra deste cariz
Em tua vida se ordena.
Físico
No físico abatimento
És esgotado deveras.
Descansa, pára um momento,
Vida exterior é de esperas.
Em breve hás-de retornar
Ao trilho de tua vida
E, fiel, vais melhorar
O teu labor em seguida.
Não creias que o activismo
Te fará merecedor
De não cair num abismo
Onde cai mesmo o melhor.
Véu
Se ergues a ponta do véu
E um vislumbre tens de céu,
Dum outro lado do espelho
Resmunga logo o homem velho.
É o nosso corpo de morte,
Pelos direitos perdidos.
- Fiel ao imo, és o mais forte.
Vence-o em quaisquer sentidos!
Noutro
Noutro estado, noutro grau,
Noutro lugar ou ofício
Farias, saltando o vau,
Bem melhor que no resquício
De aquilo fazer que fazes,
Que nem talento requer?
Pois te digo: não te abrases,
Que onde o Cosmos te puser
É onde agradas a Deus.
O mais são infernos teus.
Queda
Outra queda, queda grande?
Desesperar-te, jamais!
Humilha-te, é o que o céu mande,
Recorre dele aos sinais.
Logo, coração ao alto,
A principiar novo salto!
Fundo
Quando mais fundo caíste,
Recomeça o alicerce
A partir daí. Já viste
Que humilde é que importa ser-se,
Que o coração humilhado,
Contrito, a Deus é grudado?
Querer
Querer sem querer é o teu
Enquanto não afastares
O evento que te perdeu.
Fraco? Não, é te enganares.
O que, embora sem alarde,
És mesmo será um cobarde.
Desventura
A desventura da terra,
Pobreza, lágrimas, ódio,
Desonra, justiça torta,
Bem-aventurança encerra
De todo o mal neste bródio
Se do imo o Além te conforta.
São teus passos rumo ao cimo
Que invertem o teor do limo.
Queixar-te
Sofres e não vais queixar-te?
Não faz mal que tu te queixes
Desde que a vontade, aparte,
Nunca empenhe o que não deixes,
Antes sempre vá querer
Aquilo que Deus quiser.
Nunca
Nunca desesperes, pois,
Já bem morto e corrompido
Está Lázaro depois
De quatro dias metido
Na tumba dum cemitério.
Se ouvires a inspiração
Do fundo do imo sidéreo
E depois teu coração,
Logo ouvirás, em seguida,
A Voz que te chama à vida.
Cambaleia
Se te cambaleia a casa
Espiritual, toda no ar,
Apoia-te à pedra rasa,
Segura, que te aflorar
Na fundura de teu imo
E te servirá de arrimo.
De começo edificado
Devias ter deste lado.
Provação
Longa provação agora?
É que a não acolhes bem
Ao correr do que demora,
Queres consolo também.
Arrancaram-to do seio
As forças que a vida tem,
Por que não haja outro esteio
Além do esteio do Além.
Indiferente
É-te tudo indiferente?
Não te queiras iludir.
Se de actos falo e de gente
Em que empenhas o porvir,
Logo mui briosamente
Te havias de discernir
Com o interesse cimeiro
De quem foi ali pioneiro.
Indiferente? Não é.
Não és, porém, incansável,
Precisas de tempo até
Recuperares saudável.
E o tempo de ti dá fé,
Em teus actos projectável,
Que tu, a todo o momento,
És de facto um instrumento.
Peito
Tens no peito fogo e água,
Ora frio, ora calor,
Deus e das paixões a mágoa,
Vela acesa, a luz a impor,
Pelo arcanjo S. Miguel,
Outra que ao diabo apele.
Calma, que enquanto lutares,
Não haverá duas velas
De teu peito em dois altares,
Mas uma só por que apelas,
A do arcanjo que em ti luta
Dando-te a mão na disputa!
Inimigo
O inimigo dentro em mim
Age quase sempre assim.
Com quem resistir-lhe em mente
Tiver: hipocritamente,
Suavemente e por motivos
Espirituais, assertivos,
Não quer chamar a atenção...
Só quando parece então
Que não vai haver remédio,
Fere descarado e nédio,
A tentar um desespero
Sem contrição do acto mero.
Que é raro um desesperado
À Luz subir do outro lado.
Consolo
Perdes o consolo humano,
Sentes-te na solidão
Preso num fio de engano
Do abismo sobre o desvão.
E ninguém clamor nem gritos
Escuta, por mais aflitos.
Merecido é o desamparo.
Humilde, não te procures
Nem ao teu cómodo raro,
Ama a cruz com que te apures,
Que no teu imo ouvirá
A prece o lado de lá.
Há-de acalmar-te os sentidos
E vai voltar a fechar
Teu coração aos gemidos,
A fenda a cicatrizar.
E, mal olhes para trás,
Vês então que estás em paz.
Sofrer
Em carne viva te encontras
E tudo te faz sofrer,
Tudo é tentação nas montras...
Mais humilde hás-de então ser.
Rápido te irão tirar
Deste estado de agonia
E a dor vai-se transmudar
Em pacífica alegria.
Em lugar da tentação
Terás segura firmeza.
Ao lado de além a mão
Vais dar, que é quem mais o preza,
E enche-te ele de esperança
Numa comunhão perene
De amor até onde alcança
Teu imo o Infindo que acene.
Todo
Espera tudo do Todo,
Tu nada tens, nada vales,
Nada podes. O teu bodo
É que Ele age, mal o iguales,
Sem nisto até reparares,
Ao nEle te abandonares.
Folhas
Na tarde triste de outono
Caem as folhas já mortas.
Assim caem, sem mais dono,
Do eterno as almas às portas.
Um dia, folha caída,
Serás tu na despedida.
Mundano
O mundano se lamenta,
Pois cada dia que passa
Morre um pouco. E pouco tenta.
Alegra-te, é uma trapaça:
- Cada dia te convida
A mais conchegar-te à Vida!
Impulso
A morte a uns paralisa.
Para nós a morte é vida,
Dá-nos ânimo e desliza
No impulso de quem convida.
Para eles sendo o fim,
- Em nós é iniciar, assim.
Medo
Não tenhas medo da morte,
Acolhe-a mui generoso,
Quando Deus queira, da sorte
Que o queira, vau prestinoso.
Virá no tempo e lugar,
Do modo que convier,
Pelo Pai mandada ao lar
Quando com Ele te quer.
Cadáver
O cadáver bem-amado,
Desfeito materialmente,
Pestilento e enjoado,
Foi um formoso vivente...
- Que insensata e desmedida
A prisão que há sempre à vida!
Em humores pestilentos
O cadáver bem-amado
Desfaz-se, ao sabor dos ventos.
Foi formoso no passado...
- Reparando em tais senões,
Quais, enfim, as conclusões?
Podridão
Cadáver de imperador,
De rei, papa ou cavaleiro,
Podridão viva e fedor
De quem fora tão cimeiro...
- Que importa um servidor ser
De quem pode ao fim morrer?
Mundano
Muito o mundano propende
A querer misericórdia!
E Deus que constante o atende,
Que atende a tentar concórdia!
- Todavia, como é justo,
Também cobra, ao fim, um custo...
Pesa
Muito, demais pesa a vida
E não é suficiente.
É sempre meia medida,
Meia cheia de repente,
Meia vazia em seguida.
Importa
Só te importa o que, fecundo,
Nada deixa como dantes?
Não têm de mudar o mundo
Os gestos, nem um segundo,
Para serem importantes.
Caixeiro-viajante
Um caixeiro-viajante
Bate à porta duma casa.
Quem se lhe posta diante
Nada quer e nada apraza.
Porém, no dia seguinte
O vendedor lá retorna.
Logo o mandam, sem acinte,
Embora, que perde a jorna.
Contudo, ele não desiste
E volta terceira vez.
Gritam-lhe então porque insiste,
Cospem-lhe da cara a tez.
Ele sorri, limpa o rosto,
Olha para o céu e diz:
“Está chovendo. Que gosto!”
É assim a fé de raiz:
Se te cospem, tu dirás
Que deve estar a chover.
Mas nunca voltas atrás,
A seguir vais lá bater.
Não é do proselitismo
A vender banha da cobra,
É do que és no teu abismo,
Que vida além de ti sobra.
Selada
Selada a vida na morte,
Aí principia Deus.
Não é que antes largue à sorte,
Ignorado, algum dos seus:
- Morte é só chave de corte
A abrir a porta dos céus.
Cruzarem
Depois de os isrealitas
Cruzarem o Mar Vermelho,
Os egípcios parasitas
Seguiram-nos pelo quelho
E então, por todos os lados,
Morreram mesmo afogados.
Após, os anjos de Deus
Quiseram comemorar
A derrota pelos seus
Do inimigo a eliminar.
Deus, porém, se enraiveceu:
“Parem lá de celebrar,” -
Bradou da altura do céu -
“Que os que vimos soçobrar
Nos tortos caminhos seus
Também eram filhos meus!”
Guerra
Deus não quer carnificina,
É qualquer fé contra a guerra.
Que é que perpetua a sina,
O mal que mais nos aterra?
Não há motivo sequer:
- É só porque o homem quer!
Remédios
Remédios não erradicam
O problema na raiz:
Querem as metas que ficam
Além do que um homem quis,
Ir recorrer ao espelho
A alimentar auto-estima,
Submergir-me em labor velho
E questionar porque acima
Nunca estou da linha de água,
De insatisfeito, de mágoa...
Aqui, quanto mais faria
Mais vazio me sentia.
- Tem de haver um outro rumo
Para a vida encontrar sumo.
Bebé
Quando um bebé nasce, traz
Os punhos todos fechados.
Recém-nascido incapaz,
É tal se clamara aos lados,
Convencido e mui lampeiro:
“Pertence-me o mundo inteiro!”
Quando um velho morre, fá-lo
De mãos abertas, colheu
A lição de grande abalo
Que a vida inteira lhe deu:
“Seja qual for nosso rosto,
Nada levamos connosco.”
Buraco
Um buraco nós no tecto
Todos temos, uma fenda
Donde as lágrimas sem venda
Escorrem e o vento abjecto,
Revoluteando agreste,
Me faz sentir vulnerável.
Dali a morte indomável
Se abate em mim como peste.
Faísca
Dentro em mim, na intimidade,
Cintila-me uma pequena
Faísca de divindade
E esta irrelevante cena
Que me acalenta no fundo
Salvar pode um dia o mundo.
Entalha
De teu imo um diamante
Entalha, por cada corte
Nova face rebrilhante,
Até que, num dia à sorte,
No espanto como no gozo,
Todo fique luminoso.
Abraçar
Quando o louvor sem vaidade
Fores capaz de aceitar,
Terás a capacidade
De a correcção que persuade,
Sem ofender-te, abraçar.
Recomenda
Jesus nunca nos pediu
Nem para ser adorado
Nem mesmo até venerado:
Recomenda o desafio
De viver em sintonia
Com do Pai meta e magia.
É a radical diferença
Com dos milénios a crença.
Como retomar a ponte
Para o correcto horizonte?
Rimar
Algo mais difícil há
Que rimar o meu desejo
Com o da vida, acolá,
A correr livre no brejo
Que brota dentro de mim
E que ela atravessa assim?
Que dizer “cumpra-se aquilo
Que de mim queira em sigilo”?
Colide
Algo a vida quer de nós.
Colide com o que quero
Na estreita raia da voz
Do ínfimo eu onde impero.
Se é batalha de vontades,
São perdas nas colisões.
Há um rumo de que te agrades,
É o encontro de intenções.:
Aí minha pequenez
Abre ao Infindo de vez.
Salvo
O Evangelho fala em cura
Onde o cristão quer ser salvo:
Um salvador é o que apura
Donde um curador é o alvo.
E assim de Cristo à figura
Limita o que configura.
Cidadão
Ser um cidadão do Reino
É ser sempre uma criança:
Um estranho, sem ter treino,
E que ainda nada avança,
De iniciado, em verdade,
Nos mitos da sociedade.
Assim, é o virgem terreno
Onde plantar outro aceno.
Ritual
O ritual pode ajudar
A partilhar do mistério,
Mas pode o muro aprontar
Que de vez mo impede a sério.
Não do erro ou falta de treino:
- É que a igreja não é o Reino.
Tira
Tira as portas e janelas
Das salas, que tudo é inútil.
Os buracos que houver nelas
É que útil tornam o fútil:
Vago o espaço, pode entrar
Outro mundo no teu lar.
Outra
Uma coisa é tentar ser
Uma pessoa melhor,
Outra mudar é de ver,
Nosso de pensar teor:
A forma como pensamos
Pinta à vida os mil e um ramos.
Livra
Quando a ideia do caminho
Se livra do texto à letra,
Literalismo maninho
Da crença sem etc.
Inflexível e fanática,
Aproximo-me na prática
Do mistério que me abrasa
Do Reino: cheguei a casa!
Enorme
Não é um enorme sistema
De crenças, dogmas e ritos
Que me garantem meus fitos,
A alimentar qualquer lema.
Antes um pequeno ajuste
De visão e de valores:
Abdicar, por mais que custe,
Das ânsias e mais temores,
De ambições de que me inundo
- E assim transmudar meu mundo.
Céu
O céu não é uma utopia,
É aqui mera condição
De vivermos, dia a dia,
A vida fértil de chão,
Desinibida no mundo,
Baseada no respeito,
Na reverência, no fundo,
Pela vida inteira a eito.
O céu não é o impossível
Ou um mundo idealizado,
É o viver comum gerível
- Num abraço iluminado.
Aceite
És aceite pelo que é
Maior que tu, cujo nome
Não conheces, nem com fé.
Não pergunte tua fome
O nome dele por ora,
Talvez o encontres mais tarde.
Não tentes agir agora,
Talvez após, sem alarde,
Acabes obrando muito.
Não procures nada então,
Nada realizes, fortuito,
Não pretendas nada, não.
Acolhe apenas o facto
De que és aceite. O que passa
Na fundura de tal pacto
É o vivenciar da graça.
Posso não ficar melhor
Do que eu era anteriormente,
Nem crer num novo teor
De crenças ante o vigente.
- Todavia, por tal norma,
Tudo, tudo se transforma.
Nunca
Jesus nunca nos ensina
A ser virtuosos, nunca.
Nem o que fazer declina
Em regras de que o chão junca
Para virmos a ser salvos.
Nem diz nada da memória
Em que os dogmas sejam alvos.
Nem como atingir a glória
De ser bom membro da igreja.
Nada sobre o cumprimento
Dum conjunto que se veja
De leis firmes, de cimento...
- Ao invés, de tempo um ror,
Demonstra como viver
Aqui como curador
Que é o Reino de Deus a ser.
Quando
Quando nos preocupamos
Com as crenças, se são puras,
Ou por demais ansiamos
Em responder às seguras
Coacções da instituição,
É mais provável ver alma
De nossa religião
Fanando-se em falsa calma.
As histórias atraentes
Que os Evangelhos nos contam
São de Jesus os presentes
Que de alma um homem apontam
Que se esforça por mostrar
Legalismo e moralismo
Por perigoso lugar
Para o espiritual abismo.
Há que os relativizar:
Não dão o que dizem dar.
Religião
É a religião a atitude
De respeito pelo além
Da fronteira a que me grude
A pequenez da virtude,
Da vontade que me tem.
Além da compreensão,
Além do nosso controlo,
Do nosso desejo vão,
A religião é o pontão
Entre do mistério o polo
E o polo do conhecido,
Entre o que realizar
Posso a sós e o requerido
Pelo que, a ser atingido,
Requer outra ajuda a par.
Ajuda que, se se entende,
É de algo que nos transcende.
Diremos
Diremos que confiamos
Nesta vida e lhe ofertamos
Todo inteiro cada dia.
As massas não me são guia
De maneira inconsciente
E não vivo, dentre a gente,
De quenquer sob o comando
Que a mim é um alheio mando.
- Participarei activo
Na vida que só eu vivo.
Motor
O motor dos Evangelhos
Não é mente nem vontade,
Mas coração nos artelhos,
Aberto à oportunidade,
Aos desafios da vida:
Eu que não quer proteger-se
Mas ter um fluxo à medida
Da vida sempre a acrescer-se.
A maneira de atingir
Aquilo de que precisa
É de si próprio sair
Rumo ao Infindo que visa.
Importante
Mais importante não é
Que nós nos regeneremos,
É admitir de boa fé
A fraqueza que nós temos,
Reconhecer a ignorância.
Se deixarmos de pensar
Que merecemos, com ânsia,
Que alguém somos singular,
Acabamos preparados
Para vivermos no mundo
De coração sem cuidados,
Aberto a quanto é fecundo,
Pejados de compaixão
Na infinita aceitação.
Seguidor
De Jesus o seguidor
Faz o que ele sempre fez:
Se da morte encontra a dor,
Faz brotar vida de vez;
Sempre que encontrar tristeza,
Depressão de perda de alma,
Acorda as almas que preza,
Da tumba as livra da calma.
Este despertar gozoso
Dizem-no miraculoso.
Negligencia
Uma espiritualidade
Que o corpo negligencia
Desequilibra, em verdade,
Neurótica cada dia.
No Reino é tão importante
O corpo que vivencio
Como o espírito que avante
Nele à vida segue o rio.
Virtuosos
Nada diz que os “virtuosos”,
Os que transpor os limites
Nunca arriscaram, medrosos,
Encontram, nos seus palpites,
A porta de encaminhados
Para bem-aventurados.
Regras
Envolver-nos em “virtude”,
A regras obedecermos,
Sempre à letra quem se grude,
- Nunca garantem tais termos
Nenhuma entrada no Reino,
Nem a tal servem de treino.
Estas redes vão do lado
Errado do barco errado.
Escondam
Não, não se escondam da vida
Num culto à “virtude”: é falso!
Acolham a vida erguida,
Gozem quanto traz no encalço.
No fundo deste prazer
Encontrarão o conforto
Da comunidade a haver
Que o Pai quer por vosso horto.
Optar
Optar por viver quenquer
Pode em vez de se esconder.
Ao fazermos esta escolha
Abandonamos a bolha
Dos valores sem saída
Desta época iludida
E entramos no Reino a sério
Do Evangelho sob o império.
Vinho
A vida do Reino é vinho
Comparado a insossas águas:
Intensifica ao cadinho,
Metamorfoseia em fráguas
A vida quotidiana
Que extraordinária emana.
Em lugar de narcisista
Vai-se tornando altruísta,
Acolhe, os braços abertos,
Sem paranoicos desertos,
Aberta fica ao mistério,
Ao que for miraculoso,
Ao espiritual mais sério,
Em vez de presa ao gotoso
Frio do secularismo,
Do racional ao abismo.
Daqui o vigor retoma
À vida que andar em coma.
Responder
Pela vida espiritual
Teremos de responder
Por si próprio cada qual
E sem nunca depender
De estruturas que medeiam
E que sempre nos rodeiam.
Não procuramos ninguém
Que nos dite a lei, a regra.
Ao avançar vida além
Respondendo ao que a integra,
Encontro a regra da vida
E o propósito em seguida.
Temos de pensar por nós
Sem carregarmos o fardo
Da religião de avós
Nem daquela por que hoje ardo:
- O caminho é sempre o meu,
Noutro nenhum vou ao céu.
Movimento
Movimento descendente
Rumo ao corpo também é
O movimento ascendente
Rumo ao imo a ter de pé.
Um espírito elevado
Requer esta ligação
Descendente ou demasiado
Seus actos se tornarão
Egocêntricos, esquivos
E, logo após, agressivos.
Focado
Qualquer coisa que eu fizer
No Reino focado, atento,
Resulta, sem mesmo eu crer,
Num farnel muito opulento:
Tocará nosso imo e mente
E grande significado
Reveste em nós, coerente.
O senão que houver restado
É que temos de acolher
Do barco um e o outro lado
De a rede lançar que houver:
Dum bordo, a vida é o cuidado
Familiar e previsível,
Prático e autocentrado;
Do outro, o Reino invisível,
Rico no manto cendrado,
Magnânimo na semente,
No igual sempre diferente.
Inspirado
De Jesus um inspirado
Tem de procurar sinais
Duma realidade ao lado,
Alternativa às demais,
Sinais do Reino e ficar
Disponível para entrar.
Aí capaz de curar,
De ser curado vai ser.
Aí há-de penetrar
No mundo outro que escolher,
De imagens pleno assombrosas,
De novas bizarras glosas,
Tudo para que o pacífico
Reino dos iguais progrida,
Discreto, porém magnífico,
Do lado outro desta vida,
Anjos a gerar, semente
Por dentro de toda a gente.
Espiritualidade
Duma espiritualidade
O fecundante fermento
É por exterioridade
Alheia a meu fundamento
Proposto, filosofia
Que finjo imitar um dia...
Farei de conta, executo
Os gestos apropriados,
Mas deveras não escuto,
Não quero sacrificados
Nenhuns recantos da vida
Que talho à minha medida.
Actor sou habilidoso
E, ao fazer orelhas moucas
Do ensino ao que for valioso,
Conforto-me com as toucas
De fingir seguir de perto
Aquele caminho certo.
Igualmente
Do modo que procuramos
À louca facto e controlo
Sobre a natura em que andamos,
Igualmente trato o solo
Do espiritual mistério
Como da religião
Tal se um facto for sidéreo.
Não mergulho no fundão
Que me jogarão defronte.
Quanto a Jesus eu pergunto
Se foi de milagres fonte,
Se é Deus, de facto, por junto,
Se ressuscitou dos mortos...
Corro o risco de passar,
Afundado em meus abortos,
Ao lado do que ensinar,
Daquilo em que desafia
A uma vida diferente
No modo em que se desfia,
A viver radicalmente
Do Evangelho os ideais:
- Ser visceral curandeiro,
Responder às mundiais
Comunidades que abeiro,
Amar os que são diversos,
Amar mesmo os mais adversos.
Posse
Quem dele próprio na posse
Andar anda protegido
Contra o assalto que engrosse,
Interno ou externo urdido.
Constituição não tem frágil
Que ao mais pequeno sinal
De alarme não escape ágil,
De prevenido, afinal.
É capaz de outrem sentir
Enquanto o que se não tem
Não vai nunca conseguir
Pensar mesmo em mais ninguém.
Aquele sabe quem é
E do que é que ele precisa,
Que pode fazer até
Em tudo quanto ele giza.
Enquanto o que é possuído
Se vê, em última instância,
No fundo nível vivido,
Na mais profunda ignorância.
Não sabe nunca o que quer
Porque vive perturbado
Por desejos que tiver
Demoníacos ao lado.
Não crê que terá poder
Porque os demónios estão
A lhe controlar o ser
Que lhe arrancaram do chão.
Religiões
Em grandes religiões
Como em pequenas comunas
Todos se acham sem senões,
Certas são quanto são unas
Estas escolhas e as mais
Estarão todas erradas,
Que estas são mesmo especiais
E as mais, desafortunadas.
Ora, o trilho de Jesus
Vai na direcção oposta:
No momento em que supus
Não ver-me em nenhuma aposta,
Não ser de lugar nenhum,
Que me não logro adaptar,
Nem sequer, de modo algum,
Ter-me em conta é de cuidar,
Quando o atilho está mais leino,
- Aí mais próximo é o Reino.
Doença
A doença é como a espora
Da consciência: a iniciação.
Posso encará-la de fora,
À doença, é uma lesão,
Infortúnio que, afinal,
De algo vem que correu mal.
Mas também poderei vê-la,
Sem negar o sofrimento,
Como o ponto, na sequela,
De rumar a um outro vento,
Como uma oportunidade
Que me questiona e me invade.
É o túnel a doença então
Que eu atravesso a caminho
Dum novo patim de chão
Do imo donde me encaminho.
É por onde a mim me acarto,
Devindo canal de parto.
Regras
A regras obedecer
É motivação de vida
Que por inteiro difere
Da vida que queira erguida.
O perigo existe nela
De se tornar legalista,
De encontrar toda a janela
Da fuga à lei que lá exista.
Perde o espírito da ética,
Ignora logo a justiça,
A moral devirá céptica,
Sem jamais trazer à liça
As questões não aparentes
Dos mandamentos oriundas.
Os perigos eminentes
Das dobras do amor fecundas,
Ao invés, são que a noção
É sentimentalizada,
Restringem a expressão
De amar os mais à braçada
Dum grupo seleccionado.
Isto ignora a natureza
Do mandamento inovado
Que é uma radical empresa,
Tão funda neste quesito
Que abarca mesmo o Infinito.
Ingénua
A ingénua “virtude” às vezes
É uma defesa contrária
Da vida às complexas teses
De complexidade vária.
Indisponibilidade
Pode ser de correr riscos
E descobrir a verdade,
Da face da vida os ciscos.
Depois de riscos correr
Preparados acabamos
Da virtude para um ser
Doutro tipo noutros tramos.
Então entramos no Reino
De olhos abertos, adultos.
Do bem o sentido, o treino,
Mais duro e negro, são cultos.
Este segundo planalto
Da virtude é raridade,
Para o religioso é falto,
Nem análise é que agrade.
A religião costuma
Ir pela virtude intacta,
Primária, ingénua: em suma,
O Evangelho não impacta.
Do Evangelho no cadinho
É o outro sempre o caminho.
Dionisíaco
Dionisíaco Jesus
Viver de forma intrigante
É um sim à vida que apus
A cada passo adiante,
Apesar de poder ser
Julgado, despedaçado,
Crucificado ao correr,
Aqui como em todo o lado.
Nós vivemos e morremos
A cada momento então.
Amamos tanto que temos
Riscos de separação
E, porventura, de perda.
Seremos tão criativos,
Tão originais que a lerda
Pegada dos mais, esquivos,
Fica chocada, vizinhos
Sejam ou mesmo os amigos.
Dilaceram-nos ancinhos
De críticas aos postigos.
Tão ternos e poderosos
Somos que ninguém consegue
Rotular-nos, tendenciosos
Que são os nomes que segue.
Poderemos ficar cheios
De qualidades contrárias:
Simples e radicais meios,
Afáveis mãos temerárias.
Muda
Se não passo por profunda
Muda em mente e coração,
Não chego ao Reino que abunda,
Tão simples é a condição.
Poderei acreditar
Naquilo que bem quiser,
Ir à igreja e frequentar
Nela quanto me aprouver,
Posso ser virtuoso e nobre...
Se não fujo à falsidade
Defeituosa que me cobre,
Se não busco a realidade
Doutro nível de existência,
Se um baptismo existencial
Não procuro com premência
Em lugar do ritual,
À porta do Reino então
Ficarei mesmo em joelhos:
Ao lado passei em vão
Do núcleo dos Evangelhos.
Imaginário
Os Evangelhos retratam
O Reino de imaginário
Mundo em que os humanos tratam
Do itinerário primário
Do valor e do sentido
Que poderão transformar
A vivência do vivido,
Converter do ódio o mar,
Toda a agressão em amor
E gerar comunidade.
O Reino não é uma cor,
Um lugar, uma entidade,
Nem sequer instituição,
Igreja ou clube qualquer...
É uma imaginação
Reviravolta de ver,
É mais como uma atitude,
Olhar num outro modelo
Que faz, da vida no açude,
Mudar as águas do apelo.
E, após aquela sentença,
Tudo, tudo é diferença.
Janela
O Reino é janela aberta,
Nele próprio não é nada,
Mas permite ao mundo entrada:
Para além de que se veja,
Permite que tudo seja.
É transparente e desperta,
A plenitude da vida
Deixa que brilhe, subida,
Através dele. É uma forma
De viver por outra norma,
Mas não é uma entidade
Separada da existência
Comum, mas outra vivência.
Não é um conjunto de crenças
Mas posição com que avenças
A vida em toda a verdade.
Nalguns aspectos é porta
Aberta à vida a que exorta,
Janela por onde o olhar
Vê o outro mundo a brotar.
Devoção
Se não tornarmos Jesus
Devoção espiritual,
Ídolo de interior vida,
O Reino então ganha jus
À vida de cada qual,
Dentro em nós semente erguida.
À medida que a pomposa
Nossa linguagem, ideais
Preciosos em demasia
Encolhem até que a prosa
De mostarda será mais
Semente que mal se via,
Acordamos para a vida
Então de maneira nova.
Em vez de nós sempre cheios
Da verdade perseguida,
Serenos vamos à prova
Dentro vivos sem receios,
Sabendo espiritualmente
Que o caminho é o pé da gente.
Aceitação
De Jesus a aceitação
Mera e nada mais do que isso,
Engrandecê-lo em função
Sem de mensagem chamiço
Torná-lo-á grande demais:
É um obstáculo à mensagem,
Aplicação não há mais
Nem duma semente a imagem,
Nem duma bilha vazia,
Nem a da erva daninha...
Tal Jesus não condiria
Com nada do que convinha.
Mas foi isto, História fora,
Que foi feito a toda a hora.
Exibe
Quando exibe certa gente
Algo de forma extremada
É que lhe falta, evidente,
O que exibe pela estrada.
Aquele que se comporta
Como se soubera tudo,
Teme e logo fecha a porta,
Não vão ver-lhe o ignaro estudo.
Quando os mui religiosos
Exibem a própria fé,
Duvidamos se, fogosos,
A falta dela não é...
Visão de Jesus subtil,
Transparente, enraizada
Há-de estar mais que outras mil
Na rua em grita pegada.
Tudo a fluir, dado a dado,
Verter a matéria densa
Agarrada no passado
- E do Reino eis a presença!
Cultura
A cultura em que vivemos
Tenta impor-nos dela o mito,
A história sobre o que temos,
Quanto importa o que concito.
A nossa religião
Dela o mito tenta impor,
A escapar do mundo vão,
Do que sou, que é desvalor.
Dir-nos-á dar um caminho
Melhor à nossa pegada.
Mas o melhor que acarinho
À cultura propalada
Como à religião seguida
É ajudar-nos a encontrar
Nosso mito para a vida,
Narrativa de ajudar
A vida a desenrolar-se
Com visão, inteligência,
No sentido de fundar-se
Num valor que for à essência.
Mito é realidade viva,
Narrativa que dá vida,
E não uma forma esquiva
De escapar-lhe de fugida.
Preocupes
Nunca tu te preocupes
Com aquilo de que foges,
Que o pé ligeiro das trupes
Breve encontra onde te alojes.
Reserva tua ansiedade
Para aquilo que, a seguir,
Há-de ser a tua grade
Para que estás a fugir.
Proteger
Não se pode proteger
A si próprio da tristeza
Se proteger-se quenquer
Não lograr do que requer
Da felicidade a empresa.
Difícil
Difícil de contactar
É quem se aferra demais
Às doutrinas em lugar
Das vidas espirituais.
Cuida que sabe a verdade
Inteira intelectualmente
E não vê que o que persuade
É sentir, além da mente,
O amor e abrir a consciência
Da União Infinda à vivência.
Agarrar
Tentar agarrar estrelas
É melhor do que sentado
Ficar e desanimado,
Por entendermos que a elas
Não logramos agarrá-las.
Pelo menos o que tenta
Exercita-se e aumenta
Agudeza e visão ralas:
Talvez ele, em ramo baixo,
Ainda apanhe uma maçã
Que lá cresça temporã,
Do esforço a pagar-lhe o facho.
Exterior
Vês Deus como divindade,
A ti próprio exterior,
Um ser físico a propor
Controlar-te a actividade
Para fins que são lá dele?
Rejeitas que te atropele!
Os deuses moram cá dentro,
Assumidos como nossos
Ou não, em íntimos poços:
Segue-los quando és teu centro,
Deles tenhas nome ou não
A pôr no teu coração.
Que sentiste olhando o sol,
As estrelas, a floresta?...
Que maravilha é sempre esta,
De flores à brisa o rol?...
Que é que Deus então exige?
- O que em teu coração vige.
Vasto
Há um vasto mundo lá fora,
De dor cheio e de alegrias.
A dor mantém-te nas vias
De crescer a toda a hora,
A alegria torna à viagem
Gratificante a paisagem.
Parte, pois, e, singular,
Esculpir vai teu lugar.
Tentamos
Tentamos seguir de acordo
Com aquilo que sabemos.
Depois, mudando de bordo,
Afinal compreendemos
Que nada sabe quenquer
Do que julgava saber.
Silhares
Nós somos pedras, silhares
Que andam, sentem, têm vontade.
Deus é o canteiro, é quem há-de
As arestas singulares
Moldar a escopro e martelo,
Modelando o que deseja.
Não queiramos o que almeja
Esquivar-nos dele ao selo,
Dado que, de qualquer modo,
Os golpes não evitamos.
Mais sofrerei nestes ramos
Que se ao tronco me acomodo:
Não sendo pedra polida
Pronta para edificar,
Serei brita num algar
Que quenquer pisa em seguida.
Acolhimento
O acolhimento rendido
Ao que for de Deus vontade
De alegria e paz invade
A vida em todo o sentido.
Então é a felicidade
Na cruz do dia vivido.
Veremos aí que o jugo
De Deus é mesmo suave
E o peso a que me subjugo
É leve, mesmo se é grave.
Abandonar-me
Abandonar-me à vontade
De Deus: segredo que encerra
O trilho da liberdade,
De se ser feliz na terra.
Então o meu alimento
É o que Deus quer e que eu tento.
Desprendimento
Desprendimento não é
Manter, a qualquer momento,
Coração seco de pé,
Tal se Deus fora um tormento:
É ser livre e bem jucundo
Para dar-se a todo o mundo.
Depois
Primeiro tu te resignas
Com a vontade de Deus.
Logo após tu te designas
Conformado com os céus.
Depois vais por ti querer
Aquela vontade suma.
Por fim, amas todo o ser
Que em ti Deus queira que assuma.
Espreme
Espreme de tua acção
O pus da humana soberba,
A complacência que em vão
Cobras como tua verba.
Nada fique de teu eu
A travestir-se de céu.
Semeia
Semeia tu aos punhados,
Que o vento leva a semente
Se os sulcos não vão fadados
A germiná-la, virente.
Semeia! Disto o produto
É que ela vinga e dá fruto.
Deserto
Teu caminho não é claro,
Não segues a luz de perto,
Findas nas trevas, não raro.
Que escolhes em teu deserto?
Em teu imo não escutas
O eco de todas as lutas?
Não te sugere um caminho
Sem que sejas adivinho?
Fogo
Quem vem trazer fogo à terra
Que quer senão que se ateie?
E quanto frio nos ferra!
- Com quanto teu imo encerra
Que tua mão incendeie!
Santo
Quem quer deveras ser santo
Cumpre o pequeno dever
De cada momento e canto,
Faz o que deve fazer:
Está naquilo que faz
E semeia, alegre, a paz.
Pequenez
A pequenez do começo...
Não vejo pelo tamanho
Das sementes o que meço
De erva alterosa que apanho
Ou então, pelo contrário,
De arvoredo centenário.
Na natureza ou na vida
É de usar outra medida.
Terra
Na terra tudo o que é grande
Começou por ser pequeno.
Se grande nasce, o que o mande
Por um mnonstro o toma, pleno,
E de imediato desata
A atacá-lo e logo o mata.
Na natureza exterior
Tal qual como na interior.
Devagar, devagarinho
Se armará na altura o ninho.
Edifício
Viste como levantaram
Um edifício grandioso?
Um tijolo e outro armaram,
Ao milhar os cimentaram,
Mas um a um, sem ter gozo.
Mais os sacos de cimento
E mais os blocos de pedra,
Um a um, curto elemento
Ante o conjunto que atento
Acompanho enquanto medra.
E mil pedaços de ferro
E operários às centenas
A laborar desde o aterro,
Dia a dia a erguer o cerro
De colunas e de empenas.
Viste como levantaram
O colosso onde olhos poisas?
À força com que ordenaram
Migalhas que carrearam,
- Força das pequenas coisas.
Persevera
Nas obrigações de agora
Persevera, persevera.
No trabalho que demora,
Monótono, em grande espera,
Humilde e muito pequeno.
É uma oração incarnada
Em obra, em qualquer terreno,
Que dispõe, nesta empreitada,
Ao trabalho com que sonhas,
Grande, vasto e mui profundo:
Dele embora não disponhas,
Cresce a par no outro mundo.
Tecido
Tudo aquilo em que intervimos
É um tecido com nós breves:
Tapeçaria dos cimos,
De heroísmo em passos leves,
Ou de baixeza no intuito,
De virtude ou de pecado.
As gestas relatam muito
Aventura em sublimado
De tamanho gigantesco
Com pormenores caseiros.
Ora, o apreço principesco
Assenta em dons corriqueiros.
Lago
És pedra caída ao lago,
Produzes com teu exemplo
Círculo pequeno e vago
Que às tantas eu mal contemplo.
Só que um outro e outro atrás
Se seguirão ao primeiro.
Cada qual mais largo faz
O percurso do pioneiro.
Compreendes a grandeza,
Como cada nada pesa?
Luzeiro
A brilhar como uma estrela,
Luzeiro aceso no céu?
Mais vale ser tocha ou vela
Escondida do escarcéu
Mas a tudo, desde logo,
Que tocar a pegar fogo.
Galopar
A galopar, galopar,
A fazer, fazer, fazer,
Tudo a mudar de lugar,
Ninguém em busca de ser.
Tudo a viver um presente
Sem sequer saber da idade.
Quem tem olhar diferente
Com olhos de eternidade?
Mártir
Para o mártir o martírio
Anda ao alcance da mão:
É profeta e, no delírio,
Nunca tal lhe chamarão;
Tem na vida uma missão
Mas de missionário o círio
Nunca nele acenderão...
É um homem de Deus fecundo,
Parece um homem do mundo.
Passa, com todo o sentido,
Sempre, sempre, inadvertido.
Criança
Diante de Deus, o eterno,
És criança mais pequena
Do que o miúdo que acena
Ainda em útero materno.
Criança mas de Deus filho,
Este é o mágico cadilho!
Seu
As crianças não têm nada
De seu, que tudo é dos pais.
E teu pai sabe de entrada
Gerir sempre bens que tais.
Questão é que tu o deixes
E a cumprir te não desleixes.
Sempre
Ainda que morras de velho,
Sempre sê, sempre, criança!
Se um miúdo verga o artelho,
Logo a mão da ajuda o alcança.
Se é velho quem tropeçar,
O movimento é de riso,
Acaso dando lugar
À piedade de algum siso.
Os mais idosos, porém,
Vão levantar-se sozinhos:
Não anda a mão de ninguém
A ampará-los nos caminhos.
A pegada em teu cotio
São mil tropeços e quedas:
Que vai ser de teu ousio
Se pequeno te não quedas?
Se, menino, tropeçares,
A mão de Deus te levanta
Nos milhentos avatares
Que em redor logo te implanta.
Sal
Quem há-de ser sal e luz
Quer ciência, idoneidade.
O cábula não reluz
E o comodista reduz
Ciência infusa a nulidade.
Fanatismo
A compulsão obsessiva
Irónica mais recente
É o fanatismo vigente
Na religião mais viva.
Os fiéis adormecidos
Mantêm-se em relação
À vivência do que são
Os espirituais sentidos,
Cooncentrando-se em doutrinas,
Rituais e liturgias,
Exterioridades frias
Das religiões mais finas.
Então vão tentar impor
Violentamente tais rostos
A todos os mais, supostos
Infiéis a contrapor.
E por dentro nenhum deles
Muda o íntimo a que apeles.
ROTEIRO DA FESTA
Ouvinte
É o cão excelente ouvinte,
Ao contrário da pessoa:
Nunca dá, por conseguinte,
Nunca, conselhos à toa!
Simples
“ Sou muito simples, deveras:
Vivo bem com cem milhões
Como com noventa! Esperas
Quê para dar-me os galões?”
Curto
“Então muito boa tarde” -
Dizem-nos, como é costume.
Desejo curto, no alarde
De imitar grande volume.
Amanhã
Amanhã será prudência
Ou servidão aos sentidos?
Em regra, dele na essência,
É o advérbio dos vencidos.
Saco
Feito aí saco de areia,
Tu, por ti, não fazes nada!
Logo a tibieza te enleia...
- Quando deitas pés à estrada?
Senhor
Se não és senhor de ti,
Embora mui poderoso,
Dá-me pena e quanto eu ri
De teu poderio ao gozo!
Bonzinho
Cumpres toda a liturgia,
Os rituais, como um caminho,
Mas estudar, nem um dia?
- Não és bom, és um bonzinho.
Cábula
Vida de cábula inútil
Quando crente dizes ser
Torna Deus algo tão fútil
Que nem lixo o há-de querer.
Mau
Se não és mau e o pareces,
És parvo e tais parvoíces,
No escândalo que entreteces,
São como se o mal servisses.
Diabo
O diabo tem cara feia,
Não se arrisca a que o vejamos.
É por trás que volta e meia
Com os cornos apanhamos.
Beato
O santarrão não é santo
Nem o beato, piedoso.
Caricaturam, se tanto,
Mal prestam para dar gozo.
Injustiça
Como a injustiça dos justos
Pode fazer mal a tantos!
E quanto, pesando os custos,
Escolhem ser justos quantos!
Segredo
Recomendas o segredo,
Mas como recomendar
Se isto prova, pois lhe acedo,
Que o não andas a guardar?
Dia
Dia mau não é o tramado
De mil zeros, de mil nadas.
O dia desperdiçado
É o que não tem gargalhadas.
Excêntrico
Excêntrico sê, se és novo,
Trata de o ser desde já:
Quando velho, então o povo
Não te diz que estás gagá.
Talento
O mais valioso talento
É aquele de nunca usar
Duas palavras ao vento
Quando uma apenas bastar.
Sinceridade
A pouca sinceridade
É perigosa, não vale.
A muita, embora me agrade,
É totalmente fatal.
Pareceu
Jesus nunca pareceu
Um papa: bem ao invés,
Ele sempre se vestiu
Tal, ao tempo, um camponês.
Sucesso
Sucesso é se preocupar
Com tudo no mundo inteiro
Ou algo em particular,
- Excepto com o dinheiro.
Reconheceria
Tanta gente há por aí
Que não reconheceria
A felicidade em si
Mesmo se a falar, um dia,
Com ela, durante a espera,
Ao telefone estivera!
Centro
Quão mais me centro lá fora
Mais o Cosmos me retira
O que lá por fora gira,
Por que entre em mim sem demora.
Mas que faz o mais da gente?
- Mais fora engrossa a corrente!
Obrigado
Muito obrigado, meu Deus,
Pelo tesoiro divino
De ouvir tantos escarcéus
Desbragados e sem tino
Deste chefe da maldade
Que, entre martelos e foices,
A cada amabilidade
Responde num par de coices.
É que tenho de aprender
A ser bem melhor: a Ser!
Conservar
Para conservar a vida,
A pobre vida de agora,
Submetem-se, de seguida,
À tortura que demora
A cruenta operação,
- Mas por vida eterna, não.
Algures, num alto viso,
O Homem perdeu o juízo.
Bastante
Não é bastante ser sábio
Além de ser bom cristão,
Se manténs a brusquidão,
Se incompatível teu lábio
For com boa educação.
Embora sábio mui crente,
Aquilo tanto desdoira
Que, mula que és renitente,
Amarrado à manjedoira
Deves ser urgentemente.
Ar
Com ar de suficiência,
Aborrecido, antipático,
És ridícula evidência,
Não és eficaz nem prático.
Peca o medíocre um dia
Por sábio em demasia.
Ócio
Primeiro momento de ócio
E todo o mundo interior
Se esbarronda no negócio
Como se do imo não for.
Não tens um livre momento
Porque o descanso jamais
É nada operar no evento,
Antes ver se te distrais
Doutros actos com o escorço
Que requer menos esforço.
Manjar
O manjar mais delicado,
Se for um porco a comê-lo,
Converte, mui descuidado,
De porco em carne o que é belo.
Sejamos anjos, então,
Dignificando as ideias
Ao assimilá-las, chão
Já de nutridas paveias.
Ao menos homens sejamos
Convertendo os alimentos
Em músculos, fortes ramos,
Ou miolos de ver portentos.
Limando assim as arestas,
Não sejamos, como tantos,
Na manjedoira umas bestas
A ruminar pelos cantos.
Fervilham
Quando os mal conceituados
Fervilham a chefiar
Da religião traslados
Exteriores num lugar,
Apetece lhes dizer
Ao ouvido, mui convicto:
“Por favor, não é de ser
Bem menos um crente ficto?”
Sejam príncipes reais
A ralé ou maiorais...
Cavalheiro
Cavalheiro intransigente
Fareja o vento da sorte
E continua, contente,
Condenando o arauto à morte,
De Sócrates a Jesus,
De Jesus a Galileu...
- É o que dentro lhe traduz
Que cava o inferno de seu.
Aparente
Uma aparente virtude
De bem pouco há-de valer
Se não se une, como grude,
À dos mais santos que houver.
É adornar-se, joias pores,
Mas sobre trajos menores.
Fácil
É bem mais fácil dizer
Do que fazer, quando calha.
Tua língua de navalha,
A cortar sempre em quenquer,
Experimentou, casual,
Fazer bem o que, talvez,
Um outro menos bem fez
Ou, porventura, fez mal?
Pouco
Muito pouco generosos
São todos com o dinheiro.
Entusiasmos buliçosos,
Promessas a tempo inteiro,
Tudo conversa fiada:
Na hora do sacrifício
Não vem ninguém à chamada.
E, quando dão um resquício,
É com diversão no meio,
Com baile, rifa, um serão,
Com um cinema, um passeio,
Ou talvez com um leilão...
E a lista dos donativos
Na imprensa, louros aos vivos!
- Onde é que a esquerda veraz
Nem vê o que a direita faz?
Depósito
Um depósito de lixo
Nunca te esqueças de que és.
Se o Jardineiro, ao invés,
De ti lança mão, no esguicho
Com que te limpa e te esfrega
E virentes flores te entrega,
Nem o aroma nem a cor
Que embelezam quanto és feio
Devem-te orgulhoso pôr.
Humilha-te de permeio,
Pois não sabes, torto bicho,
Que és um caixote do lixo?
Esterco
Oiro, prata, joias: terra,
Tudo são montões de esterco.
Prazer sensual que se ferra,
Apetite em que me perco,
Como uma besta, uma mula,
Porco, galo, um toiro acaso,
Não trepo quando me bula,
Sou bicho fora de prazo.
Honras, distinções e títulos
São balões de ar pela estrada,
De soberba mais capítulos,
Inchaços, mentiras: - nada!
Importante
O senhor muito importante,
De jantar sentado à mesa,
Sério, grave, o peito impante,
Ar de rito de quem reza,
Enfia gordura a esmo
Tubo digestivo abaixo,
Tal se um fim fora em si mesmo,
Que outro nele não encaixo.
A gula é um vício palerma.
Por isso morro de riso
Ao virar costas, na erma
Náusea com que tal diviso.
Desengonçar
Que peça a desengonçar
No mundo se finda a ver
Quando no mundo eu faltar,
Quando no mundo morrer?
Bem posso já cá ter alta,
Não faço nenhuma falta.
Quando eu faltar, ao morrer,
Quanta arroba, quanta onça
Do mundo se irá perder,
Que peça se desengonça?...
Fica tudo tal e qual
E, de mim, nem mais sinal.
Salada
Ninguém é nobre nem mau,
Todos somos a salada
Mais bem ou mal misturada,
Picada para o mingau
Num vinagrete restrito
De confusão e conflito.
Esqueças
Embora teu canto esqueças,
Podes continuar artista.
Mas se o hino, com as pressas,
Nacional, perdes de vista,
Então é que em todo o lado
Ficarás de vez tramado.
Lar
A filha ainda pequena
Dum soldado transferido
No aeroporto, serena,
Senta junto ao monte erguido
De escassos bens de família
Enquanto dura a vigília.
Ensonada, encosta às trouxas
Costas e cabeça frouxas.
Pouco após, uma senhora
Passa por ela e repara.
Afaga-a logo na hora:
- “Pobre criança,” - compara -
“Sem um lar onde dormir!”
A menina olha espantada:
- “Temos um lar” - diz a rir -
“E outro nem quero de entrada.
Não temos, é de supor,
Mas é uma casa onde o pôr!”
Certezinha
- “Nesta paróquia vão todos
De certezinha morrer” -
O pároco, com bons modos,
Que a morte enfrentem requer.
Porém, lá num banco ao fundo,
Um homem sorri contente.
- “Porque tem um ar jucundo?”
- “ Não sou daqui, desta gente...
Vim só de fim-de-semana,
Vou-me embora e com que gana!”
Parafuso
És pequeno parafuso
Do mundo na grã babel,
Não tens um grande papel
De vida para teu uso.
Contudo, se o parafuso
Não apertar o bastante
Ou saltar fora por uso
Que ocorre logo adiante?
Peças de maior tamanho
Findarão cedendo todas
Ou tombarão no arreganho
Sem dentes múltiplas rodas.
Dificulta-se o trabalho
E toda a maquinaria
Talvez quebre como um galho.
Como é grande (quem diria,
Ao finar-se ele contuso)
Um pequeno parafuso!
ÍNDICE
Trilhos do Amor
Carreiros em Contrapé
Encruzilhadas de Rumos
Mapas do Tesoiro
Cruzamentos de Sentidos
Caminhos Irregulares
Corrocel de Avenidas
Roteiros da festa