II PARTE
MADRUGADA
MONTANHA
À montanha vamos onde Deus morar”
- Diz um cavaleiro a seu parceiro fiel. -
“Que Ele é só pedir irei poder provar,
Sem nada fazer a nos livrar do fel.”
“Eu contigo irei, a minha fé mostrar”
- Retrucou o amigo, complacente e bom.
Chegaram à noite à cumeeira alvar
E uma voz escutam, negridão no tom:
“Os vossos cavalos carregar irão
Do chão com as pedras que os vossos pés pisam.”
“Vês?” - o cavaleiro comentou, gingão. -
“Depois de subir os penhascais que gizam
Tanto sofrimento, eis que nos Ele faz
Um carrego mais. Não obedeço, pronto!”
O amigo, então só, fez o que à voz apraz.
Quando terminaram, da descida o ponto
Dura até o alvor. Mal os primeiros raios
De sol iluminam, os alforges brilham
Nas mãos do parceiro sobre equinos saios:
São diamantes puros com que a noite trilham!
De Deus decisões são misteriosas, são,
Mas sempre a favor, por fim, de nós estão.
Notícia
De lhe dar preciso uma notícia acaso
Ignota de si, tão distraído que anda.
Quis suavizá-la com algum Parnaso
De cores brilhantes donde o céu comanda,
Tons de plenitude a prenunciar o Além,
Mas ao caso agora nada disto vem.
Pois fundo respire e se prepare bem,
Sou directo e franco e assegurar-lhe posso
Que tenho a certeza que dizer convém
A fria mensagem que lhe jogo ao fosso.
É uma previsão com um cariz fatal
Sem margem de dúvida de que é real.
Da sina a leitura o facto diz seguinte:
Você vai morrer. Pois você vai morrer!
Pode amanhã ser, no dia dez ou vinte,
Daqui a um decénio, mas é o que há-de ser.
Concorde ou discorde, tenha embora planos,
Você vai morrer dentro duns poucos de anos.
Cuide com cuidado no que irá ser hoje,
E amanhã também, senão o tempo foge.
Explorador
Um explorador, branco, requer chegar
Mui rapidamente ao florestal destino
No coração de África e então vai pagar
Um salário extra, encomendando tino
Aos carregadores que alçam peça a peça
Para que, ligeiros, andem mais depressa.
Os carregadores, a apressar o passo,
Correm alguns dias. Mas depois, porém,
Sentam-se uma tarde num pequeno espaço,
Repousam os fardos pelo chão além,
Continuar recusam e não há dinheiro,
Por maior que fora, que alguém mova inteiro.
Quando o explorador pediu qualquer razão
Do comportamento ao dantes tão alheio,
A resposta veio do mais fundo chão:
“Mui depressa andámos, com um passo cheio,
E já não sabemos que a fazer corramos.
Agora é esperar, enquanto aqui ficamos,
Antes de que todos mais adiante avancem,
Esperar que as almas nos por fim alcancem.”
Visitar
Vem Nossa Senhora com Jesus ao colo,
Desce a visitar na Terra um grão mosteiro.
Orgulhosos padres fazem fila, um bolo
Este aqui lhe oferta, aquele incensa um cheiro,
Recitam poemas, iluminam salmos
E dão-lhe a comer alguns pãezinhos almos.
Mas no fim da fila um padre humilde estava
Que oportunidade não tivera nunca
De aprender dos sábios o que um culto obrava.
Filho de pais simples, fora a garra adunca
Da fome o seu mestre, na frugal família
Que num circo pobre bebeu chá de tília.
A vez lhe chegou, porém os monges querem
A festa encerrar, dado que a imagem temem
Perder do mosteiro e é o que, enfim, referem.
Só que nele os peitos dentro dele gemem,
Quer mostrar o amor que pela Virgem tem.
Muito envergonhado, mas do amor refém,
A sentir o olhar reprovador de irmãos,
Três laranjas tira do interior da veste,
Num malabarismo lança-as com as mãos
Como lhe ensinaram (do circo é o que reste).
Apenas então é que sorri Jesus,
Palmas bate logo... E os mais, nem chus nem bus.
Depois ao humilde estende a Virgem Deus,
Deixa que segure ali um pouco os céus.
Coerente
Não procures ser coerente o tempo todo,
Que o saber do mundo mais será loucura
Ante Deus. Que ser coerente, deste modo,
É usar meias com gravata em formosura
Combinadas; obrigado é, de manhã,
A uma ideia que o nocturno ar fez malsã.
E do mundo o movimento onde é que fica?
Vê que a ti jamais então ele te implica.
Vais mudar de opinião de vez em quando,
Se a ninguém prejudicar tal atitude.
Contradiz-te o dia de hoje, envergonhando
O que outrora para ti já foi virtude.
Tu tens sempre esse direito, pouco importa
O que pensem outros mais à tua porta.
Eles vão smpre pensar de certa forma,
Não és tu quem ditará deles a norma.
Pois relaxa, deixa o mundo em teu redor
Se mover como quiser e então descobre
A alegria da surpresa que propor
A ti mesmo ele, afinal, vem quanto sobre.
Coisas loucas deste mundo escolhe Deus
Em vergonha dos mais sábios, uns sandeus!
Comum
Hoje algo fazer do comum fora é bom,
Vou dançar na rua ao procurar trabalho,
Nos olhos olhar desconhecidos com
Conversas de amor pelo calor que valho,
Ao chefe irei dar aquela parva ideia
Em que acredito, de alvorada cheia.
Hoje a antiga mágoa, aquela, irei chorar
Que retenho presa aqui na vil garganta.
Telefonarei a quem não quis falar,
De que adorava ouvir a voz que encanta.
Hoje é aquele guia do guião já fora
Que, a cada manhã recito, ao ir-me embora.
Hoje é perdoada qualquer falha havida,
É dia de ter por ora alegre a vida.
Cientista
Ia um cientista conversando atento
Com alguns amigos pela rua fora.
Fizeram silêncio num fugaz momento,
Para atravessá-la sem qualquer demora.
Quando isto ocorreu, num pensamento incrível,
Cruza-o uma ideia que nem crê possível.
Mal o outro lado atingem lá da rua,
Retomam o tema e recordar não pode
Mais o cientista que faísca acua,
Uns segundos antes, o que à mente acode.
Mas, ao fim da tarde, eufórico ele finda
Sem compreender o porquê disto ainda.
Tinha a sensação que de importante houve algo
Que lhe havia sido revelado então.
Recapitulou: “que é que instantâneo galgo
Quando me atingiu o tão fugaz clarão?”
Relembra o momento de cruzar a estrada,
Logo volta a ideia, até que enfim captada.
Era a teoria dos buracos negros,
Já revolução de astronomia física.
Tornou a surgir porque aos clarões integro-os
Se o silêncio lembro em meio à vida tísica
Que por cá levamos, ao cruzar a rua,
À faísca alheios que nos dentro acua.
St.º Antão
St.º Antão vivia no deserto quando
O procura um jovem: “quase tudo dei
Aos pobres, apenas preveni guardando
Umas poucas coisas de viver que sei
Que falta aqui fazem. Gostaria agora
De aprender a via santa sem demora.”
St.º Antão pediu, então, que o jovem venda
As tais poucas coisas que previu guardar
E com o dinheiro compre, numa tenda,
Carne na cidade. Depois deve atar
A carne ao seu corpo. E lhe obedece o moço.
Ao voltar atacam-no mil cães, por grosso,
Que um pedaço querem desta carne exposta.
“Eis-me aqui de volta” - os arranhões mostrando,
O rapaz comenta, sem nenhuma posta
De carniça já, todo em frangalhos. Brando,
O santo comenta: “quem dá um passo novo
E um pouco do antigo leva ao mundo em ovo,
Entre mundos finda, sem querer, rasgado,
Pela garra esconsa onde escondeu passado.”
Graça
Vive toda a graça que te der Deus hoje,
Que economizada jamais pode ser.
De a depositar, quando uma graça foge,
Não há banco algum nem quem depois ma der.
Não usufruir duma qualquer benesse
Perda irremediável é que ali fenece.
Artistas da vida sabe Deus que somos:
Dá-te um dia formas de esculturas vivas,
Telas e pincéis são doutro dia os gomos,
Lápis e papel, após, são quanto arquivas...
Mas jamais podemos moldar pedra em telas,
Nem talhar com lápis esculturas belas...
Logo, cada dia seu milagre tem:
As bênçãos acolhe trabalhando agora,
De hoje recriando a obra-prima bem,
Que amanhã bem mais receberás na hora.
Margem
Na margem do rio este mosteiro enflora
A vegetação, contra uma infértil terra.
E o pequeno rio caudaloso aflora
Em cascata viva que se em nós aferra:
O cantar das águas qualquer um encanta,
Qualquer caminheiro respira outro mundo.
E eis sob a cascata, aonde um vão se implanta,
Que a atenção desperta vê uma gruta, ao fundo.
Pedra ali se nota pelo tempo gasta,
Toda a bela forma que, paciente, cria
A mãe-natureza, jóia enfim que engasta.
Não foi o martelo que entalhou magia
Perfeita na rocha, mas corrente de água
Com leves branduras, dançarina breve,
Trilando murmúrios de alegria e mágoa.
Onde destruir algo a dureza obteve,
A suavidade é que esculpir consegue
Aquela obra-prima que o eterno agregue.
Medo
Há muito quem medo de feliz ser tem,
Que a felicidade hábitos quer mudar
E trocar então a identidade a alguém:
Perde identidade quem o céu tocar.
Indignos julgamos ser de quanto é bom
Que ocorre connosco em qualquer dia-a-dia.
E não o aceitamos, que aceitá-lo o tom
Implica que a Deus devo qualquer maquia.
Ponderamos mal: “melhor é não provar
De alegria a taça, que, se falta após,
Iremos sofrer pior que falta de ar.”
De diminuir por este medo atroz,
De crescer deixamos. De chorar por medo,
Deixamos de rir, na boca com o credo.
Mosteiro
Certa tarde um monge um outro irmão ofende.
Do mosteiro o abade ao ofendido pede
Que àquele agressor perdoe, pois não rende
Vingança ou justiça a quem a elas cede.
“De maneira alguma,” - retorquiu o monge -
- “Terá de pagar aquilo que ele fez.”
De imediato o abade os braços ergue ao longe,
Desata a rezar: “ó meu Jesus, talvez
Já não precisemos mais de ti por cá.
Já somos capazes de fazer pagar
A todo o agressor por quantos males há,
Já somos capazes de nas mãos tomar
A nossa vingança, mais do Bem e Mal
Cuidar com critério. Podes, pois, Senhor,
De nós te afastar, não há problema real.”
Logo, envergonhado, o monge, já sem cor,
Imediatamente ao irmão vai perdoar,
Que Deus jamais somos a poder julgar.
Revelam
Revelam os misticos que o teu tesoiro
É uma descoberta solitária do imo.
Então por que juntos convém, sem desdoiro,
Andarmos buscando da montanha o cimo?
É que um bosque é sempre, sempre bem mais forte
Do que a solitária planta em chã planura.
Um bosque a humidade vai manter no porte,
Resiste ao tufão, como do solo a agrura
Troca por chão fértil. É, porém, raiz
O que forte faz árvore ali crescida:
Ora, a raiz duma, de qualquer cariz,
Não pode ajudar outra a crescer na vida.
Num mesmo propósito estar junto é via
Para cada um crescer em seu perfil.
É tal o caminho de quem quer um dia
Comungar com Deus: ser único entre mil.
Saltar
Aos dez anos tinha o miudinho medo
De saltar das pranchas à piscina em baixo.
Ficava na fila para o fim, degredo
De sofrer com cada que saltar do cacho.
Dentro em pouco tempo chega dele a vez
E a angústia do salto em proporção lhe aumenta.
Olhando-lhe o medo, o professor revés
Igual não lhe aceita e a ser primeiro o tenta:
Teve o mesmo medo mas findou depressa,
Tão rápido foi que veio a ter coragem.
Às vezes se quer que o tempo ao tempo meça,
Importa outras vezes não adiar viagem.
O pior neste caso sempre foi adiar:
É uma vida inteira a ver o trem passar.
Buda
Buda uma manhã com os amigos ia,
Quando um homem veio uma pergunta pôr:
“Deus existe, mestre?” “Existe!” - Buda cria
Naquele momento em divinal fulgor.
Mas depois do aluno um outro estranho veio
E diz:”Deus existe?” “Não existe, não!” -
- Lhe retorquiu Buda sem qualquer receio
De contradizer dele a primeira mão.
E no fim da tarde um outro mais pergunta:
“Deus existe ou não?” “Vai decidir você!” -
- Lhe responde Buda e após mais nada junta.
“Nas que absurdo, mestre!” - diz-lhe o amigo ao pé. -
- “Como é que respostas diferentes pode
Numa igual questão dar para cada qual?”
“É que diferentes” - logo o mestre acode -
- “Indivíduos são. De aproximar sinal
Requer cada qual de singular maneira:
Este chega a Deus só através do certo,
Da negação outro é que lhe fica à beira
E ao terceiro a dúvida o porá mais perto.”
Preocupados
Preocupados somos em agir, fazer,
Providenciar, em resolvermos tudo.
Sempre a planear um alvo além qualquer,
Concluir um outro e a um terceiro, mudo,
Emprestar-lhe a voz que acaso ali não tem.
Nada de errado há, já que, afinal de contas,
Assim é que o mundo erguemos mais além,
Assim o mudamos desde o meio às pontas.
Só que a adoração é, por igual, da vida:
De si mesmo voar, parar de vez em quando
E permanecer numa mudez contida
Perante o Universo, num silêncio brando.
É de corpo e de alma se ajoelhar inteiro,
Sem pedir, pensar, agradecer até.
É fruir apenas dum amor cimeiro,
Calado a envolver-nos, sempre ao nosso pé.
Lágrimas então inesperadas brotam,
São de exultação. Alegre? Triste? Não!
São dum outro mundo frestas mil que anotam,
Não te surpreendas, são um dom então.
Como o corpo lavas após tarde calma
Tais lágrimas dentro, no imo, lavam-te alma.
Chorar
Se tens de chorar, chora então qual criança,
A que foste um dia e que aprendeu chorando
Que chorar faz parte do que a vida alcança.
É que tu és livre e, a emoção mostrando,
Vergonhas não deves ter do que em ti dança.
Grita, faz barulho, até soluça quando
A ti te apeteça, que assim é que choram
As crianças: dores então não demoram.
Sabem a maneira do sossego instante,
A fim de acalmar os corações doridos.
Param de chorar um tudo-nada adiante,
Um sopro as distrai, nos infantis sentidos,
Lhes chama a atenção, a desafiar, gritante,
A nova aventura e findam já os gemidos.
Findos os gemidos, findará depressa
O trágico choro. E assim também começa
Logo a ser contigo, se teu choro alcança
Chorar como chora esta fugaz criança.
Casal
Um casal almoça, mas na mesa ao lado
Um bêbado insiste, quer meter conversa.
Dele a instância é tanta que um sinal lhe é dado
De ficar quieto. E ele, a voz mal tersa:
“Por quê, se eu de amor mais do que sóbrio falo?
Mostrei alegria, com estranhos tento
Bem comunicar. É mau se um sonho embalo?”
“É que apropriado não será o momento! -
- Comenta o casal, já com algum enfado.
“Quer dizer que existe algures hora certa
A felicidade para haver mostrado?”
Convidado então é para a mesa aberta.
Templo
Do espírito templo, de teu corpo trata,
Merece o respeito, um integral carinho.
Devo aproveitar do tempo cada data,
Lutar pelos sonhos, a romper caminho.
Porém é preciso relembrar que a vida
É composta sempre de infantis prazeres.
Foram colocados aqui à medida
Para estimular-nos, ajudar lazeres,
Dar-nos o repouso, enquanto além travamos
As nossas batalhas de cotio duras.
Jamais há pecados por que nós sejamos
Felizes e alegres; mas qual erro apuras
Em transgredir regras uma e outra vez
De alimentação, de companhia ou sono...?
Não te culpes nunca se, em qualquer um mês,
São tolices destas que tens por abono.
É o prazer pequeno que fará que eu ande:
Quando me estimula, que alavanca grande!
Divulgando
Deambulava o mestre divulgando a Nova
Quando a casa dele pegou fogo e ardeu.
“Ele confiou-nos este lar e a prova
De o manter falhámos” - pensa o aluno seu.
Imediatamente construir então
Vão do que sobrou do fogaréu fatal.
Mas o mestre volta antes da hora e são
Mil e uma fadigas de que vê sinal.
Diz com alegria: “a melhorar nós vamos!
Uma casa nova, de quem foi a ideia?”
E um dos aprendizes, com vergonha: “errámos,
A real história é que, de fogo cheia
Nossa antiga casa ficou toda em cacos.”
Mas retruca o mestre: “compreender não logro
O que me aqui contas. A tapar buracos
Vejo homens com fé, a acreditar sem logro
Na vida, iniciando já uma nova etapa.
Vê que quem perdeu o derradeiro bem
Terá posição melhor que quem, na capa,
Esconde tesoiros que o terão refém.
A partir de agora e em qualquer lugar
Aquele só tem como refrão ganhar.”
Celebridade
A celebridade se atrasou no almoço,
Na grande cidade. Preocupa amigos,
Até que aparece num conjunto moço,
Rejuvenescendo da velhice artigos.
Era conhecido por sovina ser,
Mas então pediu logo os mais caros pratos,
Os vinhos mais raros, de espantar quenquer,
E pagou a conta com sorrisoa gratos.
“Devem estranhar o que ocorreu aqui,
Mas é que hoje fiz o testamento meu.
Dei grandes maquias a quem mal eu vi,
Filhos e parentes, fundações a que eu
Mal sei nomear. E de repente noto
Que eu nunca estaria nele, enfim, dotado.
É tudo dos outros! Cai-me mal no goto:
Resolvi cuidar um pouco o meu agrado!”
Alcantis
Se andas percorrendo os alcantis do sonho
Então nele investe. Aberta nunca deixes
De saída a porta, a pretextar, medonho:
“Ainda não são bem de quanto eu quero os feixes!”
Isto esconde dentro uma fatal derrota.
Assume o caminho, mesmo em passo incerto,
Mesmo que bem saibas quanto podes nota
Melhor dar daquilo em que tens pouco acerto.
Possibilidades que, ao presente, tens,
Se bem as aceitas, bem melhor porvir
Te há-de procurat. Mas, se a pesar te aténs
As limitações, como é que livre hás-de ir?
Enfrenta o caminho com coragem forte,
Da crítica doutrem jamais tenhas medo,
Nem deixes à tua desviar teu norte,
Nem paralisar-te em demasia cedo.
Deus está contigo nas insones noites,
Lágrimas te enxuga, teu tremor parando,
Dele com o amor onde viril te acoites:
É o Deus dos valentes que recebe dando.
Pediu
O mestre aos discípulos pediu comida
Que bem arranjassem pela viagem fora,
Pois de algum comer tem precisão a lida
E eles alimento não terão agora.
Pelo fim da tarde os jovens lá voltaram.
Cada um trazia o que alcançou, bem pouco,
Da alheia bondade: as maçãs pecaram,
O pão era duro, o vinho azeda um louco...
Um, porém, trazia umas maçãs maduras.
“Para irmãos e mestre eu ajudar farei
O que for possível” - diz, nas mãos seguras
Logo repartindo por igual na grei.
“Onde arranjaste isto?” - perguntou-lhe o mestre.
“Tive de as roubar” - respondeu ele, franco. -
- “Só dão má comida. E oxalá me adestre
A melhor furtar, para pregar enquanto
Deus mo requerer.” “Pois bem, vai-te embora
Com tuas maçãs e aqui não voltes mais.” -
- Continua o mestre. - “Pois quem rouba agora,
Embora por mim, acaba a dar sinais
De que, tarde ou cedo, findará roubando,
Por mim, não, de mim, mais que de vez em quando.”
Volta
Damos volta ao mundo por ideias, sonhos,
É no inacessível que coloco o voo
Do que à mão me fica com olás risonhos.
Se o erro descubro, o tempo já voou,
Perdi-o buscando longe o que era perto.
Culpo-me dos passos tanto assim transviados,
Da procura inútil, do desgosto certo.
Embora os tesoiros guardes nestes lados
Esconsos da casa, descobri-lo irás
Só se te afastares. Se S. Pedro a dor
Duma negação não sofre, então, atrás
Já não pode ser chefe capaz a apor
A qualquer igreja. Nem havia festa
Se o pródigo filho abandonado não
Houvera primeiro o lar a que hoje empresta
O retorno alegre a celebrar então.
Há muito num homem cuja lei nos diz:
Só me irás sentir após me a mim perderes
E recuperares. E não és feliz
Se encurtar caminho nisto ali quiseres.
Aprendiz
Reuniu-se o mestre ao aprendiz dilecto
E lhe perguntou pelo interior progresso.
Ele respondeu que Deus é dele o tecto,
Dedica-lhe o dia com total sucesso.
“Então falta apenas o inimigo teu
Perdoar” - comenta o mestre. “Não preciso,
Que não tenho raiva a um inimigo meu!”
- Responde o aprendiz àquele estranho aviso.
“E achas tu que Deus tem de ti raiva então?”
“Não, claro que não!” - acode logo o aluno.
“E mesmo assim pedes dEle o real perdão,
Não pedes? Pois faz o mesmo, que eu me muno
De todo o perdão, sem raiva alguma ver,
Porque perdoar é andar, com tal, lavando,
Perfumando até, perante enfim quenquer,
O meu coração, sem qualquer onde ou quando.”
Napoleão
Treme Napoleão ante do cerco os tiros
Do bombardeamento que arrasou Toulon.
Um soldado, ao vê-lo estremecer, nos giros
Põe-se a comentar como quem dá sermão:
“Reparem como ele está de medo morto!”
O jovem herói lhe retrucou bem firme:
“Sim, mas continuo a combater, suporto
Todo o desconforto sem embora ir-me.
Se sentiras meio do pavor que eu sinto,
Terias fugido há muito já daqui.”
O medo não é da cobardia o plinto,
Antes o é de agir tal como um bravo ali
E com dignidade ante da vida o impacto.
Quem tremer de medo mas seguir adiante
Sem se intimidar, dará uma prova em acto
Do que é valentia. Já do risco amante,
Quem perigo enfrenta sem dar dele conta
É um irresponsável com a vida tonta.
S. João
De S. João na festa, com o tiro ao alvo,
Com as barraquinhas e os pitéus caseiros,
Vamos veraneando. De repente, um calvo
Palhaço começa de imitar brejeiros
Meus incautos gestos. Todos riem, todos,
E ele nos diverte e contagia assim.
Por fim convidamo-lo ao café que a rodos
Ali se consome como em grão festim.
E o palhaço diz: “comprometer-nos vamos
Com a vida inteira. Que, se estás tu vivo
Tens de sacudir teus braços, feitos ramos,
Pular, rir, falar, com barulho altivo
Tocar nas pessoas, porque a vida é oposta
À rígida morte. Morrer é manter
A mesma postura: quem sisudo aposta
Em ficar mui quieto, não anda a viver.”
Poderoso
Um rei poderoso chama um padre santo
Que todos diziam ter poder de cura
Para o ajudar em cruel dor. No entanto,
O padre comenta: “Deus em nós depura
Tudo, mas primeiro de tal dor razão
Vamos discernir. A confidência leva
A encarar problemas, joga o peso ao chão,
Livra o coração do que for nele treva.”
E vai perguntar sobre do rei a vida,
Como trata o próximo, aflições do reino...
O rei, aborrido de cuidar na lida,
Ao homem responde. “mais não quero treino
Sobre assuntos tais. Traga-me quem me cure
Sem fazer perguntas. ”Logo o padre sai,
Volta pouco após com quem melhor figure:
“É um veterinário, conversar não vai
Com os pacientes. Assim vós podeis
Calar sobre tudo quanto vós sabeis.”
Devanear
Discípulo e mestre a devanear falavam
Pelos campos fora, na outonal manhã.
Aquele pedia se uma dieta davam
De purificar a qualquer alma chã.
O mestre insistia: “o alimento todo
É, no fim, sagrado.” Mas o outro não
Quer acreditar: “não, deve haver um bodo
Que nos aproxime de Deus: é o seu pão!”
“Talvez razão tenhas” - diz o mestre, alegre. -
- “Aqueles tortulhos, por exemplo, ali.”
O aluno se anima, cuida já que integre
Purificação pelo que coma aqui.
Dá, porém, um grito, ao achegar-se deles:
“São dos venenosos! Se eu comer algum,
Morro de imediato!” O que lhe eriça as peles.
Comenta-lhe o mestre: “deste além, nenhum
Alimento encontro de chegar a Deus,
Que outras são as vias de trepar aos céus.”
Inverno
De Inverno um casal, ao caminhar por Praga
Encontra um rapaz a desenhar os prédios
Que à volta enregelam, neve feita fraga.
Gostam dum desenho, compram: não são nédios
De pintor proventos, ganho em meio à rua.
Reparam então que ele não usa luvas,
Quando o gelo à volta como um lobo acua.
“Por que não as usa, ao frio, à neve, às chuvas?”
“Para segurar com mais firmeza o lápis.”
Conversam um pouco sobre Praga e então
O pintor resolve desenhar, num ápice,
O rosto à mulher sem lhe cobrar tostão.
Enquanto esperavam o desenho pronto,
Notam que algo estranho acontecera entre eles:
Haviam falado, a contar quase um conto,
Sem saber das línguas nem um termo reles.
Foram gestos, risos, expressões faciais,
Mas de partilhar toda a vontade fez
Que entrassem no mundo alguns sentidos mais,
Língua sem palavras de nenhum dos três.
Turista
Um turista vai a uma mesquita, à porta,
Onde um cego pede esmola o dia inteiro.
“Este cego é o sábio que no reino exorta” -
- Apresenta o guia, a o venerar, cimeiro.
“Desde há quanto tempo é que o senhor é cego?”
- Inquire o turista. “Desde que eu nasci!” -
- Responde, cordato, o cego em seu sossego.
“E o que o transmudou no sábio-mor daqui?”
“Não me conformei com a fatal cegueira,
Tentei ser astrónomo. Mas não podia
Ver os céus e então fui obrigado a leira
Toda a imaginar de estrelas, Sol... E um dia,
Ao me aproximar destas divinas obras,
Foi do Saber dEle que me vieram sobras.”
Respostas
Se as respostas todas a encontrar findei,
Todas as perguntas logo então mudaram.
Todos procuramos com afã de lei
Respostas que cremos que tudo fundaram,
Sentidos de vida a enraizarmos nelas.
Ora, o que importa é viver tudo em pleno
E deixar o tempo revelar estrelas
Que escondam de nós o quotidiano aceno.
Se nos ocuparmos a escavar respostas
E assim não deixarmos o Universo agir,
Findamos inaptos, de viradas costas,
Os sinos de Deus sem mais sequer ouvir.
Feiticeiro
Com as três irmãs o feiticeiro andava
Passeando quando se aproxima deles
Famoso guerreiro que os servil buscava:
“Quero-me casar destas gentis imbeles
Moças com aquela por mim mais formosa.”
“Se uma se casar as outras vão sofrer.
Procuro uma tribo onde o guerreiro goza
Do direito a três mulheres vir a ter”
- Responde o Xamã, já se afastando, lesto.
Durante anos anda, um continente corre,
Sem encontrar nunca tribo em tal apresto.
“Pelo menos uma, já que tudo morre,
Podia feliz ter sido alguma vez”
- Comenta uma irmã, já fatigada e velha
Deste andar falhado mês atrás de mês.
“Eu estava errado e andais sem mesa ou telha,” -
- Diz o feiticeiro - “mas agora é tarde.”
Então transformou as três irmãs queridas
Em blocos de pedra para, com alarde,
Mostrar ao viajante que, em qualquer das vidas,
A felicidade dum jamais implica
A tristeza doutro: a todos mais se imbrica.
Jornalista
Vai um jornalista entrevistar Luís Borges,
Ficam à conversa sobre quanta fala,
Para além dos termos dos fiéis alforges
Das línguas, existe, sobre a imensa gala
Que ao homem apraz, de compreender os mais.
“Vou dar-lhe um exemplo” - e, numa língua estranha,
Borges principia a recitar sinais.
Pergunta no fim o que era tal barganha.
Comenta o fotógrafo que ao lado estava:
“Isso era rezar, tal qual um bom pai-nosso.”
“Pois exactamente” - é a voz de Borges cava. -
- “Foi em finlandês e logo o entende, moço!”
Elefante
Mantém o elefante aprisionado ao tronco
O domador dele de bem simples modo:
Quando ele é criança o pé lhe prende bronco
Num tronco mui forte, sem bulir de todo.
Por mais que ele tente, o pequenote bicho
Não logra soltar-se e acostumando vai-se
À ideia de o tronco, com fatal capricho,
Ser mais poderoso e ele então retrai-se.
Quando adulto e dono duma imensa força,
Basta colocar na pata a mera corda,
Amarrá-la a um ramo que um miúdo torça,
que então libertar-se nem tentar concorda.
Lembra-se de quantas vezes já tentou
E não conseguiu. Igual a nossos pés
Que amarrados andam ao que os lá coarctou
Na longínqua infância, leve ilhó talvez.
Mas, acostumados ao poder do galho,
Não ousamos nunca fazer nada contra.
Sem saber que basta um mero gesto e calho
Do que é livre ser a desvendar a montra.
Explicações
Nunca explicações adiantam sobre Deus,
Palavras bonitas podes ouvir cautas
Que no fundo são vazias já de céus.
Dicionário grosso podes ler, de lautas
Folhas sobre o amor, e nunca amar saber.
Ninguém prova Deus nem, mais, que Deus não é.
Na vida há pendores de vivência a ser
Que não foram feitos para prova ao pé.
É o amor um deles, Deus-amor também.
E experiência a fé será infantil de mágica:
Das crianças é dos céus o reino além.
Criança quem não for terá uma vida trágica,
Pois Deus nunca vai entrar na ruim cabeça,
Usa o coração, dEle eleição travessa.
Monges
Dois monges falavam entre si dizendo
Que o frade João rezara tanto, tanto
Que não precisava de, paixões revendo,
Se incomodar mais, que as remetera a um canto.
Do convento um sábio ouviu que isto criam
Os demais irmãos. Então, depois da ceia,
Os noviços chama: “sei que alguns confiam
Que a João nenhuma tentação ameia.
A falta de luta é o que enfraquece as almas.
Vamos ao Senhor mais tentações pedir
Para Frei João. Se da vitória as palmas
Vencer contra elas, o que importa ouvir
É a nossa oração para que nunca diga:
- Afasta de mim, Senhor, tão mau diabo,
Mas antes que peça: - Dai-me, nesta briga,
Força de enfrentar o mal de que eu dou cabo.”
Crepúsculo
Existe um momento em que é difícil ver,
Hora do crepúsculo entre dia e noite,
Luz e treva juntam-se, a cor vai morrer
E nada é total numa espectral sonoite.
Momento sagrado de animais e humanos,
Aqueles celebram correrias, cantos,
Estes, tradições espirituais, os danos
Prevenindo em cultos a aliar os santos.
Tradição católica é de Avé- Maria,
Toque de trindades pelo lusco-fusco.
A tradição quéchua saudação envia
A quem acompanho, se tão tarde o busco.
Hora do equilíbrio trevas-luz testado,
O medo e a coragem: prevalece qual?
Se da escuridão o susto for vergado,
Um novo sol brilha, já do alvor sinal.
Respostas
Schopenhauer ia Dresden fora andando,
Buscando respostas para angústias suas.
Um jardim de súbito o desperta, quando
Nele reparou, e perdeu horas cruas
Admirando as flores, sem tomar sentido.
Um vizinho nota esta atitude estranha
E chama a polícia. Tempo após volvido,
Um agente chega e o pensador apanha:
“O senhor quem é?” - a voz ao gesto junta,
Com rudeza assaz de quem estranha o acto.
“Se o senhor souber responder à pergunta,
Eu ficar-lhe-ei eternamente grato” -
- Schopenhauer diz. E, de alto a baixo olhando
O interlocutor, será naquilo mesmo,
Em quem é que ele é, que sairá cuidando,
Ao cruzar as ruas da cidade a esmo.
Montanha
A sabedoria um homem sai buscando,
Às montanhas trepa, que lhe haviam dito
De dois em dois anos que ia Deus passando
E que aparecia ao buscador contrito.
Durante o ano primo comeu quanto a terra
Lhe ofertou gratuita. Mas depois findou,
De retornar teve do apogeu da serra.
“Deus é injusto,” - clama - “Ele jamais olhou
A que ali fiquei aquele tempo todo
Para ouvir-lhe a voz. Agora tenho fome,
Torno sem ouvi-lo.” A queixa é um bom engodo,
Já que um anjo desce (não lhe dá o que come):
“Deus bem gostaria de falar consigo!
Por um ano inteiro esse alimento deu-lhe.
Esperava então que, após, de seu pascigo
Você trataria. Mas a porta abriu-lhe?
Se não é capaz de criar cibos seus,
Pronto não está para falar com Deus.”
Livre
Pensamos: ser livre é escravidão colher
Por escolha própria. Meu trabalho quero,
Oito horas por dia prisioneiro a ser,
E, se promovido, doze ao fim tolero.
Caso e, doravante, já não tenho mais
Tempo para mim. Se Deus procuro, então,
Obrigo-me a tais celebrações rituais,
Cultos, cerimónias, que me ignoro em vão.
Tudo o que é importante nesta vida implica,
- Amor, fé, trabalho... - que se muda em fardo
Por demais pesado para o que assim fica
Mentido nos termos dum destino pardo.
Mas o mestre diz-nos: só o amor nos faz
Escapar daqui, somente o amor daquilo
Que fizermos muda a escravidão tenaz
Numa liberdade. Se não vou tranquilo
Amar, só parando. E desde agora, já!
Se te escandaliza um olho teu qualquer,
Arranca-o. Melhor é ficar cego cá
Apenas dum olho que total morrer
O teu corpo em trevas. É bem dura a frase
Mas só assim podemos deus devirmos quase.
Eremita
Logra um eremita jejuar um ano,
Apenas comeu, por semana, uma vez.
Após tanto esforço pede a Deus o plano
De certo acto bíblico, o que nele fez.
Nenhuma resposta. “Que de tempo perca!” -
- Diz para si próprio. - “Sacrifício fiz
E Deus não responde. Vou sair da cerca
E encontrar alguém que saiba qual matriz
Dá sentido ao texto.” Eis que aparece um anjo:
“De jejum os meses foram só por crer
Que melhor que os outros eras. Tal arranjo
De mera vaidade Deus não vai sequer
Ouvir. Mas agora humilde foste quando
Cuidas em pedir a qualquer par ajuda.
Deus enviou-me.” E o anjo logo vai mostrando
Quanto quer saber e todo dentro o muda.
Ocupar
Quem o dom terá de se ocupar daquilo
Que não ocorreu? Preocupar-se, pois,
Nunca faz sentido. Não há nunca asilo
Para uma loucura que só vê depois.
Não te preocupes, fica atento a quanto
Te traz o destino e olha o teu caminho.
Aprende o preciso para o teu recanto
Que te é confiado para armar teu ninho.
Vê como os amigos e adversários lutam,
Treina-te bastante mas o pior dos erros
Não cometas nunca: entre os que mais disputam
Crer que sabes como te golpeiam ferros
Que teu adversário aplicar-te vai:
Quem isto presume é que primeiro cai.
Sexta-feira
É uma sexta-feira, a tua casa chegas,
Pegas nuns jornais que aguardam à semana,
Ligas a TV, num velho disco pegas,
Passas uns canais, páginas lês sem gana...
Os jornais não trazem novidade alguma,
A programação repete, inane, uns nadas,
Ouves igual disco vezes mil, em suma...
A tua mulher cuida as crianças nadas,
O melhor de jovem sacrifica e nem
Chega a perceber por que afinal o faz.
Corre uma desculpa pela mente: “bem,
A vida é mesmo isto...” Mas a vida assaz
Vivida não é, pois entusiasmo é vida.
Onde é que escondido esse entusiasmo prendes?
Pega na mulher, pega em teus filhos, lida
Em busca do ardor e vê se nisto rendes
Antes que demais seja de todo tarde.
É que nunca o amor, nunca, impediu ninguém
De seguir os sonhos, com ou sem alarde,
Dar sabor à vida com mais vida além.
Consoada
Era na consoada que o casal fazia
O balanço do ano a terminar já quase.
Na remota aldeia o vendaval zunia,
Mas, junto à lareira, pisca desde a base
O pinheiro às luzes. O homem só reclama
De algo que ocorrera contra o seu desejo.
A luminescente árvore é que ela aclama,
Fixamente a olhando, como tendo pejo
Da reclamação que o par está fazendo.
Desinteressada a crendo em tal conversa,
Ele muda o tema: “no pinheiro atendo,
A iluminação mais linda este ano versa.”
E a mulher responde: “se reparas bem,
No meio das lâmpadas está fundida
Uma dentre as dúzias, mal se vê também.
Parece que em vez de olhares do ano a lida
Tal dúzias de bênçãos a brilhar constantes,
Na lâmpada única te estás fixando
Que não ilumina nem por uns instantes:
- Perdes a beleza que foi o ano dando.”
Demónio
“Aquele homem santo vês a ir na estrada?”
- Pergunta um demónio ao seu par, de leve. -
- “Pois vou até lá roubar-lhe um naco de alma.”
“Não vai dar-te ouvidos, só liga, à chegada,
A vivências puras” - responde o outro, breve.
Mas, no ardil, o diabo, vai vestir a calma,
Todo feito arcanjo e aparece ao homem.
“Vim para a judá-lo” - diz com voz de mel.
“Anda a confundir-me com qualquer pessoa.
Nada em minha vida fiz tão bem que o tomem
Por duma visão me merecer papel.”
- E retoma o rumo, sem dar conta, à toa,
De quem, por humilde, se escapado houvera,
Nem que, em tais pegadas, trilha a nova era.
Intervalo
Durante o intervalo, no teatro cheio,
Uma espectadora vai tomar um copo.
No sobrelotado bar já não há meio
De se distinguir o grito dum cachopo
- Tamanha é a conversa, mais chinfrim, tinidos...-
Quanto mais ouvir de algum pianista o toque.
Mas ele tocava. Não lhe dão ouvidos.
Toca entediado, num senil reboque,
Por obrigação, todo a esperar o fim...
Mas a espectadora, a avermelhar licor,
Diz ao pianista, desbocada, assim:
“Que chato é você! Faça-me o grão favor
De para si só, para si só tocar!”
Ele olhou surpreso a metediça ouvinte,
Começa a tocar e toca sem parar
Músicas que adora no entremez seguinte.
Dentro em pouco tempo, esta de espera sala
Em total silêncio embevecida tomba.
Quando ele findou, foi como numa gala:
- Todos a aplaudir, é um festival de arromba!
S. Francisco
Era S. Francisco popular e jovem
Quando resolveu tudo largar e a obra
Se pôs a erigir. E Stª. Clara a movem
Os votos que quer (que a castidade sobra)
Quando é mulher linda. E S. Raimundo, então,
Era intelectual entre os que jamais o foram,
Retira ao deserto onde o jamais verão...
- A espiritual busca., eis o perfil que adoram.
Quem para fugir é que ao fim longe vai,
De nada lhe vale retirar do mundo
Nem ao que não logra amigos onde cai.
De pobreza um voto jamais é fecundo
Em quem incapaz fora de seu sustento.
Ser humilde que é, quando alguém é cobarde?
Uma coisa é ter e abandonar frumento,
Outra é não ter nada e condenar no alarde
Aquele que tem. Ao impotente é fácil
Castidade inteira já sair pregando
Mas que valor tem? Pois louve a obra grácil
De Deus e se vença, o que há de vil mudando.
Difícil
Como ser difícil fácil é, por fim:
Basta ficar longe, que não sofro mais,
Já não corro o risco dum amor e assim
Fujo à frustração, a emurchecer jamais
Assisto a meus sonhos! E já não preciso
Dum telefonema para o que além viso,
Não me preocupo com quem pede ajuda,
Nem com caridades, como urgentes são.
Basta-me fingir que o torreão não muda,
Torre de marfim, já que de choros, não.
Basta-me abrir mão (quão fácil é medida!)
Do que há de melhor, de bem melhor na vida.
Médico
Ao médico o doente confirmou, tremendo:
“O medo domina-me, a alegria tira
Toda de viver.” Logo o doutor, tal vendo:
“Neste consultório um ratinho há que vira
Do avesso os meus livros e mos vem roendo.
Se eu desesperar, o inoportuno intruso
Há-de-se esconder e a vida irei perdendo
Perene a caçá-lo. Então previno o abuso,
Ponho o que é importante num lugar seguro,
Roer o mais deixo. Ele um ratinho fica,
Não é mais um monstro. Medo tenha duro
Só de algumas coisas. Se ali todo o aplica,
Então poderá, treinando bem o apresto,
Ter toda a coragem para todo o resto.”
Amado
Mais que ser amado é fácil muitas vezes
Amar, que difícil aceitar ajuda
E apoio dos outros, a temer reveses,
É a muitos de nós. A tentativa muda
Duma independência não permite aos mais
A oportunidade de mostrar amor.
Na velhice aos filhos roubam muitos pais
A ocasião de dar, ternura assim repor,
Carinho e apoio de quem foi criança.
Maridos, esposas que atingidos foram
Dos raios do fado que os um dia alcança
Com vergonha ficam se sujeitos moram
Ao apoio doutrem. E com isto os rios
Do amor já não fluem. Aceitar é urgente
O gesto do amor dos outros sem fastios,
Permitir que ajudem a seguir em frente.
Se aceitar o amor, eu permitir irei,
Se tiver pureza e humildade em mim,
Que o amor não é dar-receber por lei,
É participar, compartilhar por fim.
Eva
Eva passeava nos jardins frondosos
De seu Paraíso quando a cobra veio:
“Come esta maçã!” - com olhosdiz dengosos.
Por Deus prevenida, Eva afasta o enleio.
“Come esta maçã,” - torna a serpente, insiste -
“É ficar mais bela para teu marido...”
“Não preciso, que outra mulher não existe
Que ele possa ter, acaso, em seu sentido.”
A serpente riu: “é claro que ele tem!”
Como Eva não crê, condu-la à grã colina
Onde vê-se um poço: “esconde-a ali refém
Dentro da caverna. Para lá te inclina!”
Eva debruçou-se e viu, no seu reflexo,
A linda mulher. Sem titubear, comeu
A maçã da cobra. Ao não tentar mais nexo
Em tal discernir, no engodo mau caiu.
Coração
Não condenarei nem, coração, terei
Vergonha de ti, pois sei que és tu criança
Querida de Deus, que Ele te guarda a lei
No meio da luz que mais gloriosa alcança.
Confio em ti, pois, e do teu lado fico,
Pedirei mil bênçãos nestas minhas preces,
Que encontres ajuda, apoio em quanto aplico.
Teu ardor enlaço, a partilhar nas messes
De quem necessita, mais de quem merece.
Que mais meu caminho seja o teu caminho,
Caminhemos juntos no fulgor que aquece.
E confia em mim, tu tens o meu carinho
E procuro dar-te a liberdade haurida
Para continuares a bater-me à porta
De meu peito rude. Tornarei a lida
Tal que, ao meu alcance, nunca a minha torta
Presença em redor incomodar-te venha,
Antes por meu norte sempre a ti te tenha.
Conflito
Se agir decidimos, logo eis mil conflitos
Mesmo inesperados. Surgirão feridas,
Fruto dos confrontos. As feridas mitos
São que por fim passam. Ficarão erguidas
Cicatrizes feias: bênçãos boas são.
Andarão connosco na restante vida
E vão ajudar-nos, só de as ter à mão.
Se em algum momento, por preguiça havida
Ou por comodismo, vem do nada o apelo,
Basta olhar e vê-las: cicatrizes vão
Todo o horror lembrar, irão chumbar-lhe o selo
E em frente andaremos, fugindo ao desvão.
Caminheiro
Ia o caminheiro pela rua fora,
Medita no amor que no fundo é doçura.
Seu traído peito não permite agora
Que de Deus a mão lhe molde ali figura.
Da pequena trilha um aldeão repara
Que se foi deitar num jardim mal florido:
“O senhor está esmagando aí as flores.”
“Não” - responde o outro - “tento, aqui metido,
Retirar um pouco da doçura delas.”
E o viandante viu em tal ternura estrelas.
Ora
Ora cada dia da semana inteira,
Mesmo sem palavras,sem pedidos, sem
Entender porquê, faz da oração maneira
Tua de ser, hábito que a mão sustém,
Propõe a ti próprio: “vou rezar em todos
Os semanais dias.” Jura tal renova
Semana a semana: a criar andas modos
De enlaçar teu imo a que o querer se mova.
Com práticas tais a disciplina temos
Para o embate vero que a ocasião requer.
Se a jura esqueci, que importa após se vemos
O dia seguinte dupla prece ter?
Nem sete orações rezar no mesmo dia
E ter a semana por dever cumprido:
Ao se alimentar, quem é que então comia
Duma vez o cibo semanal servido?
Certas atitudes deverão correr
Na medida e ritmo que é de as bem viver.
Mau
Ao morrer encontra um homem mau seu anjo:
“Basta você ter feito uma coisa boa
Para que ela o ajude.” “Do que é bom não manjo,
Nunca o fiz em vida” - responde ele à toa.
“Pense bem” - insiste este anjo, a dar-lhe a mão.
Lembra-se ele então de que, uma certa vez,
Na floresta andando, um aranhiço ao chão
Desceu no caminho que trilhava aos pés.
Para não calcá-lo, logo dera a volta.
Seu anjo sorri, pois que de aranha um fio
Desce ali dos céus, a permitir que, envolta,
A mão do homem suba ao divinal pousio.
Outros condenados aproveitam logo
A também trepar. Mas, contumaz, se vira,
Começa a empurrá-los. “Tanto não advogo,
Que o fio se rompe!” - grita, cheio de ira.
Ora, é neste instante que rebenta o fio
E ele é novamente ao fogaréu tombado.
“Que pena!” - diz o anjo. - “Esse egoísmo teu
Transmudou em mal o pouco bem gerado.”
Encruzilhadas
As encruzilhadas são lugar sagrado,
Deve o peregrino decisões tomar.
Costumam os deuses dormir no cruzado
Caminho aguardando, até por nós velar.
Onde as rotas cruzam, energias duas
Ali se concentram: o escolhido rumo
E o abandonado. E ambos são as ruas
Dum caminho só, se os dois em mim resumo,
Um pouco de tempo: o peregrino pode
Descansar um nada, consultar os deuses
Que o lugar habitam. Mas jamais acode
Ali ficar sempre quenquer sem reveses.
Mal é feita a escolha, é de seguir em frente
Sem pensar no trilho que já não percorre,
Ou a encruzilhada muda, de repente,
Numa maldição e o preregrino morre.
Verdade
Da verdade em nome a raça humana edita
Os piores crimes: homens mais mulheres
São queimados vivos, a cultura evita
Civilizações a que queimou os teres...
Os que cometiam da carne um error
Eram à distância condenados, mortos.
E quem procurava qualquer outro alvor
Marginalizado é por ver trilhos tortos.
Um deles, porém, já não matou, foi morto,
Da verdade em nome foi na cruz pregado,
Mas antes deixou para a verdade um horto,
Definição que antes ninguém há trilhado.
Verdade não é o que nos dá certeza,
Nem profundidade é o que vier-nos dar,
Nem o que me faz melhor que quem se preza,
Que o que na prisão do preconceito andar,
- A verdade é sempre o que nos livres faz.
Conheço a Verdade: a Liberdade traz!
Comete
Um monge comete uma mui grave falta,
Chamam o eremita sábio a julgá-la.
Ele bem recusa, a insistência é alta,
Acaba por ir. Um balde traz por mala,
Todo ele furado. Foi de areia enchê-lo,
Vai para o convento. Tal preparo ao ver,
O prior pergunta que é que é tal desvelo.
“Vim julgar meu próximo” - o esmoler confere. -
- “Meus pecados vêm a escorrer atrás
Como a areia escorre do furado balde.
Como não dou conta do estendal que faz,
Chamam-me a julgar alguém, o que é debalde.”
De imediato os monges desistir já vão
De ao infractor dar outra qualquer sanção.
Vela
Na pequena igreja da montanha agreste
Se encontrava escrito, na parede esconsa:
“Senhor, que esta vela que a acender me deste
De luz me ilumine minha escolha sonsa.
Seja fogo e queime o egoísmo em mim,
Orgulho, impurezas. Saja chama e Tu
O meu coração vem aquecer por fim
Para amar saber sem mais nenhum tabu.
Não posso ficar tempo demais na igreja.
Mas, deixando a vela, permanece aqui
Um pouco de mim, bem pouco enfim seja.
Minha prece ajuda a prolongar dali
Nas actividades pelo dia fora.
Que assim seja, pois, ao ir-me então embora.”
Peregrino
Foi um peregrino a um nepalês mosteiro.
Certa tarde entrou num dos variados templos
E um monge a sorrir lá vislumbrou no altar.
“Por que ri?” - pergunta àquele irmão videiro.
“É que descobri, por entre mil exemplos,
Que significado a umas bananas dar.”
Da bolsa que traz uma banana tira
Podre por inteiro. “Uma passada vida
Desaproveitada foi o que esta foi.
No momento certo já ninguém retira
Esta de seu cacho, agora é tarde e a lida
Já nada aproveita à podridão que a mói.”
Logo após retira uma banana verde,
Mostrou-a e tornou a resguardá-la ao fundo.
“Esta será vida ainda não vivida,
Importa aguardar até que um dia a herde.”
Tira, finalmente, com um ar jucundo,
Banana madura que, na mão erguida,
Descasca e partilha com o amigo e diz:
“É o momento actual: pois come e sê feliz!”
Dinheiro
A senhora ia, com dinheiro à conta,
Levar dela o filho ao infantil cinema.
O garoto estava já de festa pronta,
Sempre a perguntar, qualquer demora é tema.
Parando ao sinal, ela um mendigo vê
No passeio assente e não pedindo nada.
“Todos os dinheiros ao medigo dê!” -
- Uma voz lhe diz, enquanto está parada.
Contra-argumentou que prometido havia
Levar dela o filho a ver um filme adiante.
“Dê tudo!” - a voz torna. “Porém, eu podia
Dar metade apenas, que isto entrar garante
Ao meu filho e, então, espero-o à saída...”
Mas a voz não quer conversar mais: “dê tudo!”
Ela nem tem tempo de ao petiz medida
Contar tão extrema. Num impulso agudo,
Sai do carro e entrega a tal mendigo a verba.
“Deus existe e fostes quem mo a mim mostrou” -
- Exclama o mendigo com a voz acerba. -
- “É meu dia de anos. Triste estava, estou
Sempre envergonhado de pedir esmola.
Então resolvi nada pedir, pensei
Que, se Deus existe, a prenda Ele é que enrola
Num gesto de seda que nem sequer sei.”
Muito embasbacado, o menininho deu
Por mui bem empregue este cinema seu.
Aldeia
Na aldeia ao passar, num temporal desfeito,
Um viajante viu a incendiar-se um lar.
Ao se aproximar, um homem vê que a peito
Toma, em meio às chamas, lá de pé ficar.
“Sua casa está pegando fogo!” - grita.
“Eu sei disso” - diz o vitimado homem.
“Então e não sai?!” - a adivinhar desdita...
“É que está chovendo e à minha mãe consomem
As chuvadas: podem pneumonia dar!”
Para lá ficou, até que a morte os leve.
- Será sábio só quem conseguir mudar:
Se é força maior, é sábio quem se atreve.
Tradições
Um dia por ano, em tradições algumas,
Tiram aprendizes, por contacto ter
Com alguns objectos dos casais nas rumas.
Tocam cada coisa, uma pergunta a ver:
“Precisão hei disto?” E num livro pegam:
“Vou lê-lo algum dia?” E ao que guardam mais:
“É importante ainda a hora à qual me apegam?”
Abrem os armários: “quanto em meus bornais
E que jamais uso! Quererei mesmo isto?”
Toda a coisa tem uma energia sua.
Não utilizada, dá um lameiro em quisto
Duma água estagnada, de teu lar na rua,
Uma podridão a só gerar mosquitos.
Importa atentar para deixar fluir
A energia livre em seus totais quesitos.
Ao manter o velho, o novo não vai vir,
Não encontra espaço de se bem mostrar,
E então só de velho é cada qual o par.
Lenda
É uma velha lenda, a da feliz cidade
Onde todos eram e de vez felizes.
Cada um geria com frugal verdade
O que bem queria com, nos mais, raízes.
Menos o prefeito que vivia triste
Por não conseguir já governar ninguém.
De prisão vazia, que crime é que existe?
O tribunal nunca é usado mais também.
O notário não lucra: a palavra ali
Vale muito mais do que qualquer papel.
Um dia o prefeito termo põe por si
A todo este estado: com a voz de mel
Operários chama que de longe vêm,
Fecham a tapume a mais cimeira praça.
Ouvem-se martelos, um motor também,
Serras a cortar em madeirame a traça...
Ao fim da semana o chefe já convida
Os concidadãos a inaugurar a obra.
Com solenidade a vedação erguida
Logo é retirada: eis que uma forca sobra!
Todos perguntavam que faria ali
A forca na praça. Já com medo buscam
A justiça ao que antes é acordo entre si.
Buscam no notário carimbo onde ofuscam
A palavra de antes que lhes, só, bastava.
Ouvem o prefeito já da lei com medo...
- Afinal, a forca ninguém nunca a usava,
Bastou-lhe a presença: na boca anda o credo!
Preso
De concentração no campo o preso antigo
Relembra o momento em que retoma a imagem
De si próprio, diante do cruel castigo
Que os bandos nazis por norma dão quando agem.
Ante a humilhação, um preso diz, amargo:
“Que grande vergonha se as mulheres nossas
Nos vissem assim!” Pois deste dito a cargo
Veio-lhe a lembrança do perfil sem mossas
Da que é bem-amada.Então, no mesmo insante,
Saltou deste inferno. Eis que a vontade volta
De viver dizendo-lhe: salvar-te adiante
Por e pelo amor é a lei que ao fim te solta.
Em meio ao suplício ali ele estava
Ainda capaz de compreender a Deus,
Porque mentalmente a contemplar andava
O rosto da amada, fresta aberta aos céus.
O guarda mandou que todos já parassem.
Não obedeceu, porque naquele instante
Não ia no inferno. Embora não achassem
Como descobrir se viva ou morta infante
A sua princesa estava, nada muda:
Visar mentalmente a sua imagem dá-lhe
Dignidade e força. Mesmo quando iluda,
Tira tudo a um homem e por mais que o malhe
A bruteza, tem ele a lembrar-lhe o rosto
De quem ama, alvor no que era já sol-posto.
Vindoiros
Daqui por diante, nos vindoiros séculos,
Vão ser boicotados preconceitos loucos.
Da Terra a energia, com viris espéculos,
Vai ser renovada. Ideias vão, aos poucos,
Novas ter espaço. Corpo e alma irão
Enfrentar decerto desafios novos.
Porvir bate à porta e então qualquer função
É oportunidade de chocar mais ovos.
Se for importante, ficará de vez,
Mas, se for inútil, murchará por fim.
E que cada um vá julgar só o que fez,
Ninguém é juiz dos sonhos doutro assim.
Para manter fé no nosso bom caminho
Provar não preciso que o doutro era errado.
Quem não age assim não se confia ao ninho,
Que nos próprios passos jamais se há fiado.
Corrida
É a vida corrida para a meta enorme,
Todos a cumprir a Pessoal Legenda.
À partida estamos todos juntos, forme
A camaradagem, o entusiasmo a tenda
Ou não, a partida é sempre em festa alegre.
Porém, à medida que a corrida corre,
A alegria murcha, mal depois integre
Veros desafios: o suor que escorre,
Dúvidas, fadiga, o desigual cansaço...
Alguns desistiram desta aposta em curso,
Ainda vão correndo, mas forçando o passo,
Não podem parar o seu vital percurso.
Numerosos são e correm lado a lado
Com de apoio o carro e falam entre si,
A obrigação cumprem, mais não dão ao fado.
Distantes findamos deste grupo ali:
Toda a solidão a confrontar nos vamos,
Surpresas nas curvas ignoradas vêm,
Com problemas ruins no equipamento arcamos...
Pergunto, por fim, se valerá também
Tanto esforço a pena, ao erigir a vida.
- Sim, vale, que a Lenda é de apostar na ida.
Calcorreando
Discípulo e sábio calcorreando vão
O árido deserto. E aproveita o mestre
A viagem agreste para ter à mão
A secreta fé que o aprendiz adestre.
“Tudo a Deus confia” - persuasivo diz. -
- “Deus nunca abandona os filhos seus benquistos.”
À noite, acampando, ao aprendiz feliz
Pede-lhe que amarre os animais a uns xistos.
Ele vai à rocha mas relembra então
Todo o ensinamento: “o mestre quer testar-me,
Devo confiar a Deus as bestas, não?...”
E larga os cavalos soltos sem alarme.
De manhã descobre: os animais fugiram.
Busca, revoltado, o mestre: “não entende
Nada sobre Deus! Os termos seus faliram:
Dei-lhe a guarda aos bichos. Deus a fé surpreende,
Pois os animais acolá não estão.”
“Deus cuidar queria dos cavalos” - diz
O mestre, sereno. -”Mas no instante, então,
Precisava ali duns dedos que Ele quis
Para os amarrar. Quem lhe a recusa deu?”
Então no aprendiz todo o furor morreu.
Bombeiro
Comenta um bombeiro: “se calhar Jesus
Enviou alguns dos seus, com dó do inferno,
Para salvar almas. Mesmo ali, supus,
Nem tudo é perdido.” Surpreende um terno
Interlocutor: “por que é que diz tal coisa?”
“Experimentado tenho aqui na terra
O inferno nos fogos. Furo ao lume a loisa
Dum prédio em chamas, vejo como aterra
Os desesperados a tentar sair,
Muitas vezes chego a arriscar eu a vida
Para ir salvá-los. Se um olhar seguir
A amostra que sou do Cosmos sem medida,
Forçado a herói ser de fogos mil no inferno
Que conheço aqui, pois eu, que não sou nada,
Se agir logro assim, repare então, o Eterno
O que fazer deve! De certeza, à entrada,
Tem alguns dos seus, lá, de infernais fingidos,
A salvar as almas dos ali perdidos.”
Primitivos
Muitos primitivos enterravam mortos
Em fetal postura: “como estão nascendo
Para uma outra vida, é de os deitar absortos
Na igual posição em que os melhor entendo:
Naquela em que nascem ao nascer no mundo.”
Civilizações sempre em contacto instante
Da transformação com o cipó fecundo,
A morte era apenas mais um passo adiante
No longo caminho do Universo inteiro.
Aos poucos o mundo se perdeu da morte,
Da visão suave do abismal que abeiro.
Porém, pouco importa o que é que jogo à sorte,
O que penso ou faço, nem que é que eu credito:
Vamos morrer todos qualquer dia, é certo.
É melhor fazer tal o índio velho, aflito,
E tornar a morte conselheira perto,
Perguntando então: pois minha tenho a hora,
Que é que deverei fazer, portanto, agora?
Vida
A vida pedir não é nem dar conselhos.
Se requeiro ajuda bem melhor é ver
Como outrem resolve ou não os seus revelhos
Problemas que tenha algures com quenquer.
O nosso anjo está, perene, aqui presente,
Muitas vezes usa, ao vir dizer-nos algo,
Os lábios de alguém. Mas a resposta é assente
No casual, fortuito, escapa ao teor fidalgo,
Só vem, geralmente, quando, embora atentos,
Às preocupações não deixaremos nunca
Que o milagre turvem da vida aos fermentos.
Deixemos nosso anjo juncar como junca
Seu trilho habitual, quando julgar urgente.
Mas, se avisos são a vital minha via,
Falta após agir. E meu agir presente
Também diferente é do que eu bem queria.
Autocarro
No autocarro estava o padre quando ouviu
Uma interior voz a requerer que pregue
De Cristo a mensagem ali mesmo a frio.
“Julgam-me ridículo se acaso adregue
De pregar aqui.” Mas dentro a voz insiste.
“Por favor, sou tímido, não peça tal.”
O interior impulso, a lá teimar, persiste.
Ele então lembrou-se de jurar, fatal,
Cumprir os desígnios de Jesus inteiros.
Levantou-se logo, envergonhado e firme,
E dos Evangelhos termos diz ligeiros.
Em silêncio todos ouvem quanto afirme.
Olha os passageiros: olhos não desviam.
Disse o que sentia e o sermão termina,
Sentando-se após. Que intuitos lá cumpriam
As poucas palavras, até hoje é sina
Que de todo ignora. Uma certeza tem:
Viu uma tarefa e quis cumpri-la bem.
Feiticeiro
Era um feiticeiro que africano leva
Dele um aprendiz pela floresta fora.
Embora mais velho, corre à luz e à treva
Com agilidade e o aprendiz demora,
Escorrega e cai muito, a qualquer momento.
O aprendiz pragueja, ao levantar-se escarra
No chão traiçoeiro, mas não perde o alento,
Continua o mestre a acompanhar com garra.
Longa é a caminhada até chegarem perto
Dum lugar sagrado. Não parando, o mestre
Meia volta dá e então, sem mais acerto,
Começa o regresso. “Nada em que eu me adestre
Já me ensinou hoje” - este aprendiz comenta,
Dando mais um tombo. “Ensinei, sim, parece
É que não aprende” - o seu xamã lamenta. -
- “Estou a ensinar a lidar, é o que esquece,
Com erros da vida. “E então lido como?”
“Como deveria lidar com a queda.
Em vez de ficar com maldições de tomo
Contra cada tombo, bom é que antes ceda
À procura atenta do que em tal lugar
Existe que o faz de escorregão tombar.”
Abade
No mosteiro, o abade meditava sábio
Quando, tarde morta, um eremita chega.
“Meu orientador” - e cai-lhe triste o lábio -
- “Como dirigir-me ignora, em mim não pega.
Deverei deixá-lo?” O abade não responde.
O eremita torna dele ao nu deserto.
Corre uma semana, ele retorna aonde
O abade a visita lhe aguardava certo.
“Meu orientador já dirigir-me ignora.
Resolvi deixá-lo” - diz, com firme escolha.
“As tuas palavras sábias são agora” -
- E o abade tenta que um sorriso o acolha. -
- “Quando um homem vê que não está contente
Em todo o seu imo, não irá conselhos
Pedir: decisões pondera e segue em frente,
Com o que é preciso a implementar os quelhos
Para a caminhada que tem nesta vida.”
Neste abraço abraça do ermitão a lida.
Testemunha
Testemunha a jovem uma estranha graça:
“Sempre acreditei que tinha o dom de cura.
Não tinha coragem de espalhá-lo em praça
Nem de o tentar mesmo quando o alguém procura.
Meu marido um dia teve muitas dores
Lá na perna esquerda, mas ninguém havia
Para ajudar perto. Com febris tremores
De tanta vergonha, resolvi que eu ia
Colocar as mãos então na perna dele
E pedir que a dor daquela vez parasse.
Actuei sem crer que, muito embora vele
Por ele, terei dom que o capaz curasse.
Mas o ouvi rezar: “Senhor, capaz de ser
Medianeira faz da luz a minha esposa
Para a tua força ver em mim correr.”
Minha mão começa de aquecer, fogosa,
E todas as dores lhe passaram logo.
Perguntei-lhe após por que é que ali rezara
Ele de tal modo. “Para dar, no fogo
Da nefanda dor, a ti confiança rara.”
Hoje sou capaz, sou, de curar e é graças
Àquela palavra que me abriu vidraças.”
Corteja
Corteja Aristipo de Dioniso a corte,
Do siracusano ditador benesse.
Certa tarde encontra, tal quem perde o norte,
Diógenes um prato a preparar que aquece
Com parcas lentilhas. “Se você Dioniso
Cumprimentar, não tem de comer lentilhas.”
Diógenes retruca: “se eu lha bem diviso,
A verdade é assim: guarde antes suas filhas.
Mas se vier comer lentilhas já forçado
Não será jamais de algum Dioniso às vénias.”
É que há sempre um preço da benesse ao lado:
Quando sigo um sonho, se eu amar gardénias,
Quem não gostar delas crê que triste sou.
Mas o que outrem pensa não importa nunca,
Importa a alegria de sonhar que voo:
Esta o coração é que em jardim me junca.
Pérsia
Um homem vivia na Turquia quando
Um grande mestre ouve que na Pérsia mora.
Tudo o que é seu vende, nada mais guardando,
Adeus à família diz e vai-se embora,
À sabedoria. Durante anos viaja
E logra chegar do grão-mestre à cabana.
Cheio de temor e de como ele reaja
Temeroso e atento, bate e não se engana:
O Grande mestre abre. “Da Turquia venho,
Fiz esta viagem para só lhe pôr
Uma questão séria.” O velho franze o cenho:
“Está bem, já pode a tal questão propor.”
“Tenho de ser claro no que aqui falar” -
- Retruca, nervoso. - “A tal pergunta posso
Lhe fazer em turco?” “Pode e, a bem olhar,
Já lhe respondi à tal questão do esboço.
Qualquer outra coisa que quiser saber
Pergunte por ela ao coração, pois deve:
A resposta dá-lhe a tudo quanto quer.”
E fechou a porta, aberta a fresta breve.
Sempre este alquimista que em mim dentro mora
Me troca o caminho do interior por fora.
E, nesta ilusão, comanda a volta ao mundo
Quando a mim presente é que serei fecundo.
A sabedoria nenhum mestre a serve,
Só num coração há luz que a luz conserve.
Palavra
Palavra é poder, transforma o mundo e o homem.
Há quem diga: não fale do que há de bom
No que lhe acontece, que a invejar consomem
Os mais a alegria. Não há tal condão,
O vencedor fala do milagre em vida.
Positividade, se a coloca no ar,
Mais atrairá de positivo à lida,
Vai alegrar todo o que bem quer-lhe, a par.
Quanto aos invejosos, derrotados são,
Só lhe poderão prejuízo algum causar
Se você lhes der poder que não terão.
Nunca tema, pois. Vá do que é bom falar,
Do que em vida tem a quem quiser ouvir,
Que a sua alegria nela é já o porvir.
Cruel
Era um rei cruel, corre Aragão, nos campos
Onde outrora o pai morreu em ruim batalha.
Por mau conhecido, nega os figos lampos
A quem morre à fome, esmaga quem trabalha...
Com a comitiva, encontra um homem santo
Mexendo em enorme humana pilha de ossos.
“Que fazes aí?!” - pergunta o rei, de espanto.
“Vossa majestade, busco nestes fossos,
(Ao saber que o rei já por aqui viria)
De vosso pai morto, ai!, as ossadas nobres
Para vo-las dar. Contudo, todo o dia,
Por mais que procure dentre ricos, pobres,
Não consigo achá-las: elas são iguais
Às dos camponeses, dos mendigos nus,
Também dos escravos... Como a morte mais
Rasoira não há, pois tudo a igual reduz.”
Guerreiro
“No uso da espada quem será o melhor?” -
- Pergunta o guerreiro. “Vai até ao horto
Junto do mosteiro. Há lá uma rocha à flor
Bem da terra. Insulta-a” - diz o mestre, absorto.
“Por que farei tal?” - logo o aprendiz se admira. -
- “A rocha jamais me replicar irá.”
“Pois então ataca-a, com a espada a mira.”
“Não, não o farei, que a espada quebro lá.
E, se eu a atacar com as mãos minhas nuas,
Ferirei os dedos, não consigo nada.
A minha pergunta espreitava outras ruas:
Quem será o melhor quando ele usar a espada?” -
- O guerreiro insiste. E o mestre então responde:
“O melhor parece que é como uma rocha.
Sem desembainhar, mostra o que bem esconde:
Ninguém poderá ferir-lhe a dura coxa.”
Guardiã
Na arruinada aldeia de Navarra antiga
A guardiã da chave vem abrir o templo
Românico velho e a calcorrear se obriga
Estreitas ruelas como a dar o exemplo.
Escuro e silêncio medievais abrigam
A visita errante. Conversando, falam
Que é já meio-dia e quase não lobrigam
De arte as obras belas que assim não regalam.
Explica a guardiã: “só poderemos ver
Todo o pormenor quando amanhece o sol.
Conta a lenda que é quanto o arquitecto quer,
O que o desta igreja então quis pôr no rol:
Que Deus sempre tem aquela hora certa
Para nos mostrar a sua glória aberta.”
Dois
Existem dois deuses: o que a nós ensina
E o que nos ensinam. Um de quem se fala
E o que a nós nos fala. A temer, um inclina;
É bondade o outro, o que em nosso imo cala.
Um é o das alturas, participa o outro
Nesta vida diária. Um é o deus que cobra;
A dívida tira o outro ao pobre potro
Que sou fatalmente, sem melhor ter obra.
Um deus ameaça de infernal castigo,
Outro nos revela o que é o melhor caminho.
Existem dois deuses a servir de abrigo:
Um esmaga em culpas o acto em meu cadinho
E há o Deus que liberta dele com o amor
- E bem mais que aquele prende o seu fulgor.
Escultor
Foi a Miguel Ângelo escultor que um dia
Alguém perguntou como é que as obras de arte
Fazia magníficas. E o génio ria:
“É bem simples: quando alguém o bloco parte
De mármore, vejo uma escultura dentro.
Tudo o que terei de fazer é tirar
As aparas lá.” Pois quando em mim eu entro
Vejo uma obra de arte: é fado meu criar.
É o centro da vida e, bem, por mais que eu tente
Enganar-me, sei como é importante mesmo
Para ser feliz. Encobre-a a minha mente
Na teia do medo, indecisões a esmo,
Culpas e fracassos. Porém, se eu decido
Tirar as aparas, de levar capaz
Serei por diante a missão que eu envido.
E é viver com honra o que isto a mim me faz.
Ancião
À beira da morte um ancião procura
Um jovem e narra-lhe uma história heróica.
Foi durante a guerra que ajudara – apura -
A fugir um homem. Na sua casa estóica
Deu-lhe protecção mais alimento, abrigo...
Quando quase estavam em lugar seguro,
Tal homem decide não ser dele amigo,
E vai entregá-lo, num traiçoeiro apuro,
Ao seu inimigo. “Mas escapa como?” -
- Perguntou-lhe o jovem. “Não escapo, não” -
- Retorquiu-lhe o velho. - “É a culpa que eu retomo:
É que eu sou o outro, o que traiu o irmão.
Ao contar a história tal se fora o herói,
Tento compreender o que ele a mim me foi.”
Precisamos
Todos precisamos, afinal, de amor,
É da natureza humana amor viver,
Tal como comer, beber, dormir, odor
Respirar ao ar. Vou muitas vezes ver
Um pôr-de-sol belo por inteiro a sós
E penso comigo: nada disto importa,
Pois não compartilho com nenhuma voz
Toda esta beleza que me bate à porta.
Nessa ocasião é que a pergunta vale:
Quantos amor pedem a após nós, porém,
Viramos a cara sem lhes dar sinal?
Quantas vezes medo temos nós de alguém,
Para aproximar-nos e dizer bem claro
Quão apaixonados nós, enfim, andamos?
- Com a solidão, cuidado e mui reparo,
Que ela nos vicia e droga em quaisquer ramos!
Se o pôr-do-sol julga não ter mais sentido,
Seja humilde e parta a procurar o amor.
Como os demais bens, quanto mais der, volvido
O instante, mais vai colher o bom dador.
Missionário
Visitava a ilha um missionário crente
Quando sacerdotes encontrou aztecas.
“Como é que rezais?” - lhes perguntou contente.
“Com uma oração, mal, de pequena, a checas.
Nós dizemos: Deus, tu és três, nós três somos,
De nós tem piedade.” “Eu ensinar-vos vou
Uma que Deus ouve” - e o missionário os tomos
Relembra de quanto em seus sermões pregou.
Uma cristã reza lhes então ensina.
Retoma o caminho. Mas mais tarde tem
De passar nas ilhas onde outrora a sina
Levara a cruzar-se com xamãs, além.
Quando a caravela se aproxima, vê
Vir os três aztecas caminhando, leves,
Por cima das águas. “Padre, padre, lê
De novo a oração que ouve Deus. Foram breves
Os nossos encontros, já nos não lembramos.”
“Não tem importância” - retorquiu, no espanto
Daquele milagre de gentios ramos.
Pede a Deus perdão de tão mal ver, enquanto
Ele afinal fala pelas línguas todas
Aos corações todos, sempre além das modas.
Caminhada
Diz S. João da Cruz que em caminhada nossa,
Mesmo a espiritual, nunca buscar visões
Nem declarações de quem as tem eu possa:
Nosso apoio deve, sem versar facções,
Ser apenas fé, que é transparente e clara,
Que dentro em nós nasce, confundida nunca.
Se a um místico falas da vivência rara
Que terá de Deus, de negações te junca:
“Não sei, não” - responde. - “O que até hoje tive
Foi de fé vivência, minha fé em Deus.”
Insistir fará com que ele mais se esquive,
Que aquilo é que importa para abrirmos céus.
Perdão
O perdão é estrada, mas com dois sentidos.
Quando a alguém perdoo, perdoo a mim também.
Se for tolerante com senões vividos,
Aceitar é fácil o meu erro além.
Melhorar irei sem amargura ou culpa
A minha atitude já perante a vida.
Quando, por fraqueza e sem qualquer desculpa,
Permitimos que ódio com inveja elida
Tudo o mais em volta, consumimos nele
A nossa energia. Perdoar eu devo
Não por sete vezes (nem que a carne pele!)
Antes por setenta vezes sete – atrevo
A me repetir esta cristã resposta
De limpar-me dentro, doutra Luz na aposta.
Personagens
Os antigos mestres personagens criam
De ajudar os mais com o sombrio lado
A lidar, peritos: fadas más seriam
Todo o lado esquerdo onde hão-de ter postado
Angústias e medo, decepções e erros.
Será o lado mau por dentro duma vida,
Sempre a sugerir, às vezes bem aos berros,
As más atitudes com que ao fim se lida
Mas que ninguém nunca de elidir gostou.
Criado o personagem, já dizer-lhe “não!”
Deveio mais fácil, seu poder findou,
É tudo mais simples vendo o vil papão.
Saber
“Como irei saber como melhor agir?”-
- Pergunta o discípulo a seu mestre, a sós.
Este a uma mesinha fá-lo então polir.
Quando quase pronta, é só pregar após
Todo o tampo às pernas, achegou-se o mestre.
O rapaz pregava com pancadas, três
Na cabeça, o prego. Como a mão amestre
Na rotina do hábito, um então talvez
Mais difícil prego precisou da quarta.
O prego enterrou fundo demais na tábua
Com o quarto golpe e que a madeira parta
É o que provocou. “Deixa lá, que eu acabo-a!”
- Acorreu o mestre. - “A tua mão estava
Habituada a três, três marteladas secas.
Se em qualquer acção um hábito é que a grava,
Perde o seu sentido, só dá frutas pecas.
Cada acção é uma e dela este é o segredo:
Que um hábito nunca mande, tarde ou cedo.”
Caminhada
Quando a caminhada mui difícil for,
O coração busque, busque ouvi-lo bem.
Seja mui honesto: do caminho o ardor
É por ser o seu, o preço ao sonho além
É o que paga mesmo? Se a sofrer prossegue,
Uma altura chega em que será preciso
Reclamar então. Tal filho ao pai persegue,
Atenção e ajuda pedirá com siso.
Deus é pai e mãe e os pais esperam sempre
O melhor do filho. Pode ser acaso
O ensino demais, não custa a Deus que lembre
Um carinho ou pausa. Com medida e raso,
Jamais exagere. Se um total reclama,
Deus deixa de ouvir. Já Job em hora certa
Reclamou e teve os bens que a bem conclama;
Se agir ao contrário, mais a dor o aperta.
Festas
De Valência as festas um ritual contêm
Vindo de ancestrais carpintarias vagas.
Durante o ano inteiro os artesãos se atêm
A umas esculturas de madeira, as pragas
Assim conjurando. Na semana em festa
Vão as esculturas para a praça todas.
E todos comentam, se deslumbram desta
Criatividade, comovidas bodas
Comuns celebrando. Após, por S. José,
Todas menos uma destas obras de arte
Ante os curiosos são queimadas, é
Fogo gigantesco que às alturas parte.
“Tão grande trabalho morto tão à toa!?” -
- Pergunta o turista à labareda erguida.
“Também você diz que seu findar destoa
Ao findar-lhe um dia, qualquer dia, a vida” -
- Comenta um romeiro. - “Que seria, veja,
Se, nesse momento, qualquer anjo ecoa
Então ante Deus, com interdita inveja:
- “Mas por quê trabalho tanto assim à toa?”
Piedoso
Mui piedoso, um homem de repente viu-se
De toda a riqueza destituído. Sabe
Que Deus é capaz de o ajudar. Ergueu-se
A rezar: “Senhor, nunca me em sorte cabe
Nada de importante, a lotaria dá-me!”
Rezou e rezou, mas continua pobre.
O dia da morte faz que inteiro o chame
O coro dos céus mas tal entrada nobre
Recusou, tenaz. Diz que viveu piedoso,
Que cumprira tudo o que de Deus lhe ensinam
E que Deus jamais lhe dera o ganho em gozo
Duma lotaria com que mal combinam
Tantos bem perversos. “As promessas são,
Afinal, mentira” - revoltado, aponta.
“Pronto estive sempre a o ajudar. Em vão!” -
- Comenta o Senhor ante a revolta tonta. -
- “Por mais que eu quisesse a mão lhe dar um dia
Jamais um bilhete em sua mão eu via.”
Descobre
Vai um velho sábio por de neve um vale
Quando uma mulher descobre a mui chorar.
“Por que choras?” - quer saber qual era o mal.
“Lembro o tempo antigo, qual meu jovem ar,
Beleza que via ali no espelho a rir,
Os homens que amei... Deus foi cruel comigo,
Pois me deu memória. Sabe que eu, se vir
Minha primavera, choro o cru castigo.”
O sábio ficou a contemplar a neve
Com os olhos fixos num longínquo ponto.
Pára de chorar a mulher, já que teve
De anotar a estranha fixidez de pronto:
“Que estás vendo aí?” - pergunta então, curiosa.
“Um campo de rosas” - lhe retruca o sábio. -
- “Deus foi generoso, que a memória goza
Em mim neste Inverno a Primavera e sabe-o.
Como volta sempre, ela há-de um dia vir,
Mas recordo-a hoje e poderei sorrir.”
Trilha
A pessoal trilha como tal parece
Mas jamais é simples, antes é um perigo.
Quando algo requeiro, este andamento tece
Energias fortes e não tenho abrigo,
Que esconder não posso meu vital sentido,
Nem de mim nem doutrem. Quando assim eu quero,
Escolho também o preço ali devido.
Um sonho seguir tem sempre um preço vero,
Ou que hábitos deixe, decepções suporte,
Ou que pedregais me há-de fazer passar...
Porém, por mais alto que lhe pague o porte
Jamais é tão alto como o que há-de arpoar
Quem jamais trilhou a sua própria senda.
Estes vão um dia para trás olhar
E o seu coração ouvem na vil contenda:
Foi um desperdício o que vivi, sem par.
Numa vida inteira do que pior sentir,
Isto é mesmo o pior, o pior que pode ouvir.
Cinto
O mestre ao discípulo ordenou que ponha
A prisão do cinto que seguro o prenda.
Assim ele o fez, convictamente sonha
Que isto é um instrumento que poder lhe renda.
Uns meses depois ao mestre diz então
Que, graças à prática de tal magia,
Andava aprendendo (nada fora em vão)
Mais rapidamente que cuidar podia.
“Invertendo o cinto em direcção contrária
Transformei a força negativa em mim
Numa positiva solidez primária” -
- Comentou alegre da vitória assim.
Gargalhou o mestre da condura ingénua:
“Cintos não mudaram a energia nunca.
Mandei fazer isso por, de forma estrénua,
Ao vestir as calças te lembrar que, adunca,
Da lembrança a garra te poria à frente
Que de aprendizagem em processo estás.
Foi a consciência do factor presente
Que te fez crescer, jamais o cinto, aliás.”
Cumpridores
Discípulos tinha certo mestre aos centos.
Todos cumpridores, rezam bem certeiros,
Todos menos um, ébrio em mil momentos.
À hora da morte olha os fatais ponteiros
E o bêbado chama, a segredar-lhe ocultos
Arcanos. Os mais faz revoltar-se em ira:
“Que vergonha!” - dizem. - “Praticámos cultos
Dum mestre enganado, que sequer nem mira
Nossas qualidades.” O ancião comenta:
“Tinha de passar estes segredos meus
A quem eu conheça o que ele em si sustenta.
Os mui virtuosos sempre, sob os véus,
Escondem vaidade, intolerância, orgulho...
Por isso escolhi aquele em que eu podia
O defeito ver: da bebedeira o entulho.
Vejo agora ao certo que erro não havia.”
Retira
Deus retira às vezes uma certa bênção
Para que possamos entendê-lo além
Do favor pedido. Por que as almas vençam
Ele vai testá-las no limiar que têm,
Por Ele não vai nunca além deste ponto.
Nunca, pois, se diga: abandonou-me Deus.
Ele nunca o faz, nós é que tal desconto
Obramos às vezes: de largar os céus.
Se o Senhor propõe alguma grande prova,
Dá graças, dá forças que serão bastantes,
Mais do que bastantes ao saltar que inova,
Para a ultrapassar. É quando mui distantes
Dele nos sentimos que urge a nós dizer:
Estarei eu mesmo a aproveitar, sabendo
Reparar deveras no que aqui me quer
No caminho pôr, a ver se não me rendo?
Carências
Às vezes passamos semanais inteiras
Carências de afecto: de carinho um gesto
Não vem de ninguém. Das invernais lareiras
O calor fugiu, a vida é esforço honesto
De sobrevivência. Examinar importa
A nossa fogueira como aquece o lar.
Devemos mais lenha colocar e a porta
Se calhar abrir a quem quiser entrar.
Devo colocar lenha na sã lareira
E devo tentar iluminar a sala
Escura em que muda a minha vida inteira.
Quando ouvir meu fogo em crepitar que embala,
A lenha a estalar, o fogaréu que dança,
Quentes labaredas a contar histórias,
A esperança volta a dar-nos quanto alcança.
Se capaz de amar, também do amor as glórias
Alcançar-me vêm de ser bem-amado.
É questão de tempo, um nada e é já passado.
Copo
Alguém parte um copo, foi sinal de sorte.
“Mas por que seria sorte o haver partido?” -
- Pergunta um rabi, de tradição suporte.
“Talvez um antigo de paz dedo erguido
A pôr à vontade a uma visita o azar” -
- Comenta um conviva, a tentear razões.
“Tradições judaicas” - lança o mestre ao ar -
“Dizem que há uma quota, a cada qual quinhões
Atribui de sorte que ele vai usando
Pela vida fora. Pode ser que renda,
Se ele a usar apenas num momento quando
Deveras precisa. Mas esbanja a prenda
Se a desperdiçar em qualquer coisa à toa.
Também nós, judeus, dizemos boa sorte
Quando alguém um copo parte e o vidro ecoa.
O que quer dizer: tu não perdeste o norte,
Não esbanjas sorte a tentar não partir
Um copo de nada. Então irás decerto
Logo utilizá-la onde vier porvir,
No que importante é, tornando o longe perto.”
Abade
Do mosteiro o abade a um eremita busca
Que o mais sábio era do mundo em redor.
“Se uma mulher bela, ao se deitar, patusca
Encontrar na cama, vai lograr supor
Que não é mulher?” - lhe perguntou, curioso.
“Não, mas lograria controlar-me bem.”
“E moedas de oiro, a rebrilhar de gozo,
No deserto ao ver, irá pensar também
Que são meras pedras?” - quer o abade ouvir.
“Não, mas controlar-me iria a não pegar.”
Insistiu o abade: “e então se você vir
Dois irmãos, um que ama e outro que é de odiar,
Achar conseguia que os dois são iguais?”
O sábio tornou: “mesmo a sofrer por dentro,
Trataria o que ama com uns modos tais
Que o não distinguia do que é de ódio centro.”
Volta então o abade e aos noviços fala:
“Vou-lhes explicar o que é que um sábio é:
Em vez de matar dele a paixão que abala,
Logra controlá-la, tem-se firme em pé.”
Pioneiros
Com os pioneiros do faroeste antigo
Aprendemos muito: com os índios lutam,
Cruzam o deserto, água, comida, abrigo
Em regiões remotas entre si disputam...
Do tempo as memórias notam este traço:
Eles só escreviam, conversavam sobre
O que fora bom, sem reclamar do espaço,
Música compunham, riam, rico ou pobre,
Das dificuldades a enfrentar que viam.
Assim conseguiam depressão, desânimo
Afastar do mundo que tão mal fruíam.
- E assim hoje em dia nos virão dar ânimo.