III PARTE



ALVOR






Imo


Quero deixar meu imo bem liberto

A desfrutar inteiro todo o dom

Que de espíritos é próprio condão.

Quando tal for viável, já desperto,


Não quererei saber da Lua perto

Nem vou seguir o Sol, preso ao vulcão,

Nem da estrela a beleza, grato ao chão

Onde a desolação é o que é mais certo.


Quando me souber livre sigo o alvor,

Com ele viverei meu tempo além,

Mergulho na corrente do interior


Onde todas as águas do mar vêm

Cruzar e formar alma, alma do mundo:

Da Criação inteira me fecundo.



Pelicano


De compreender as bênçãos incapazes,

Somos do pelicano os maus filhotes

Que nunca compreendem tantos lotes

De carne de recurso, de eficazes


Pitéus que manterão filhos capazes.

No Inverno rigoroso ele dá botes

Do bico contra o peito: faz pacotes

Da carne lacerada em tais tenazes


E a própria carne oferta aos filhos dele,

Até que a morte o leve de exaurido.

Quando por fim morrer, só osso e pele,


Um filhote dirá, doutro ao ouvido:

- Que bom! Estava farto do mau trato

De comer todo o dia o mesmo prato.



Insatisfeito


Se estás insatisfeito, pára agora:
Tua perseverança é aqui testada

Ou tens de ir noutro rumo nesta hora.

Entre ambas só o silêncio aponta a estrada.


A via fica aos poucos aclarada

E em ti a força resta de ir embora.

A tua decisão, mal que tomada,

De vez deve apagar rumos de outrora.


Deverás decidido vir em frente

Porque o deus que em teu imo permanece

Não será um deus qualquer, é o do valente

Que enfrenta quanto lembra e quanto esquece.

Tudo em bem sempre acaba então assim,

Senão, ainda não chegaste ao fim.



Carro


O carro rodopia em meio à faixa

Com a velocidade estonteante.

Os travões perde ali, num curto instante,

Porém, além do susto, tudo encaixa,


Nada de grave ocorre, nem na tacha

Que um pneu tinha furado em guincho hiante.

Há o que o fado pregar quer ao viajante,

Mas Deus à machadada a sorte racha,


Do acidente o destino nesta altura

Que marcado estaria para ter

De facto aconteceu, mas se afigura


Que intervém qualquer mão com mais poder

E então o que retém aquela estrada

É que aconteceu tudo e também nada.



Peregrinos


Os peregrinos tendem a seguir

Dos outros caminheiros a passada,

Por igual para todos bem ritmada,

Sem cada qual olhar ao que em si vir.


No início bem tentei no grupo eu ir,

Cansava-me, exigia a caminhada

Do corpo para além da conta dada,

Findei com os tendões meus a fremir.


Impedido de andar por alguns dias,

Percebi que só chego ao santuário

Ao meu ritmo pessoal, sem fantasias.


Demoro mais que os mais, o trilho é vário,

Mas porque respeitei o ritmo meu

Acontece que Vida aconteceu.



Oráculo


O rei da Lídia Creso atacar quer

Os Persas e um oráculo consulta:

A derrubar está-te a mão inulta

Um grande Império” - sacra, a voz profere.





Declara Creso a guerra e logo avulta

A invasão pelos persas que o mui fere

E Creso acaba preso. Então refere

Aquela profecia que ele insulta.


Jamais foste enganado” - diz o oráculo. -

- “Destruíste da Lídia o grande império.”

A língua dos sinais não é o obstáculo,


É a rota preciosa do minério,

Mas vou sempre torcer o mapa vero

A fim de concordar com o que eu quero.



Mago


Houve um quarto Rei Mago, o Rei Nadir,

Que a estrela viu a andar sobre Belém.

Chegava sempre tarde aonde advém

De Jesus a passagem a seguir,


Que os pobres, miseráveis, a pedir

Ajuda o atrasavam vida além.

Trinta e três anos já lhe a conta tem,

Os passos de Jesus a perseguir.


Quando o crucificavam é que chega:

Falhei mesmo a missão da minha vida.”

Mas uma voz segreda: “então, sossega,


Tu é que encontras, tu, minha medida:

Eu era cada pobre em teu caminho...

- Obrigado por teu grande carinho!”



Resto


Era uma vez o Reino do Já-Pronto,

Onde todos nasciam bem fadados,

Cada qual ao que der, excepto uns nados

Que a nada servirão: é o resto tonto


Dos que irão para o asilo. Este desconto

Um destes rejeitou e, revoltados,

Seus olhos aprender vão mil e um dados

Até que, sábio já, num contraponto,


Lesto se escapuliu. Logo o capturam

E de estudos ao centro o levam fora.

Bem-vindo, que os forçados” - então juram -

- “A impor o próprio rumo aqui e agora

É que admiramos: faça o que quiser,

Que o porvir é por si que há-de romper.”




Viajante


Para a viagem antes de partir

Despede-se o viajante da mulher.

Nunca você me quis oferecer

Presente à minha altura” - ela, a ferir,


Diz-lhe, soberba. “Ingrata, o que lhe der

São anos, como o mais, de vida a urdir.

Que mais lhe poderei, pois, conferir?”

Belo algo como bela estou a ser!”


Aguarda por dois anos o presente,

Até que o viajante retornou:

Chorei da ingratidão, mas, de repente,


Belo algo tal você se deparou.

Aqui lho entrego, pois, a seu conselho.”

E estendeu à mulher um mero espelho.



Discutir


Viver a discutir não vale a pena,

Da humana condição faz sempre parte

Errar de vez em quando, em qualquer arte.

Há quem faça questão nada pequena


De certo sempre estar, mesmo, destarte,

No ínfimo pormenor, diária cena.

Mas é opavor o que a atitude encena,

O pavor de ir em frente e a mão falhar-te.


Medo de errar é porta que nos tranca

Sempre em mediocridade. Se vencer

O medo, lograrei uma alavanca


Do passo decisivo que hei-de ter

Para o que mais importa em cada idade:

- Rumar em direcção à liberdade.



Noviço


Um noviço pergunta no mosteiro:

Que deverei fazer ao dar-me a Deus?”

O abade então medita: “Abrão aos céus

Agrada, a estranhos sendo hospitaleiro.


Deles não gosta Elias e dos seus

Os afasta: recebe-o Deus, parceiro.

O publicano se envergonha ao cheiro

Do que faz, porém Deus entre os judeus


O acolhe como um filho predilecto.

Mas já João Baptista a Deus tem perto...

A teu imo pergunta o anseio certo:

Qualquer alma a trilhar do sonho o afecto

Viverá na alegria os gestos seus,

Vai ser quem de alegria encherá Deus.”



Viajava


Um mestre viajava com os seus

Quando viu que entre si só discutiam

Dentre eles quem maior discerniriam:

Há quinze anos medito sobre Deus”;


Desde que abandonei o lar dos meus,

Pratico a caridade”; “os que me guiam

São os ensinamentos que se ouviam

Na voz do Iluminado...” Brada aos céus


De altura a presunção. Sentam-se então.

De frutos carregada,” - o mestre diz -

- “Uma fruteira verga até ao chão:


O sábio verdadeiro é assim feliz.

É quando não tem frutos que, arrogantes,

Os ramos se erguem sobre os circunstantes.”



Acusou


Jesus, na última ceia, acusou dois

Dos Apóstolos seus: ambos erraram.

O Iscariotes caiu em si depois

E condenou-se então. Dos que o negaram,


Pedro foi o que viu que os arrebóis

Virão depois das noites que anularam:

Aquela acusação entendeu, pois,

Pediu perdão, seus pés jamais pararam.


Seguiu em frente assim, mesmo humilhado.

O suicídio também era uma escolha,

Mas preferiu os mais ter encarado:


Corrijo este erro antes que alguém o acolha.”

Judas nada entendeu, morreu à toa;

Pedro compreendeu: o amor perdoa.



Caminhava


Um homem caminhava estrada fora

Quando um rapaz cruzou aquela rua

Sem ver um camião que à curva actua,

Desenfreado, a colhê-lo, não demora.





Atira-se o homem a salvá-lo agora,

Consegue-o, mas depois a cara nua

Esbofeteia ao moço: “Andas na lua?

Vive para sofrer onde a dor mora!”


Teve vergonha de fazer o bem,

Tal se era impressionar, subornar Deus...

Sentimos culpa quando é bom alguém,


Cobrimos gestos bons de ambíguos véus,

Com uma leviandade, uma ironia,

Como se amar fora fraqueza um dia.



Vasos


Na feira a vender vasos, o artesão.

A compradora chega, olha o que merca,

Uns ostentam desenhos numa cerca,

Outros, além da forma, não terão.


O preço a mulher quer, não quer ter perca,

E fica surpreendida ao ver que vão

Todos custar-lhe o mesmo: “este jarrão

É igual? Não custa nada o trato acerca


Da sua criação, vai-me cobrar

Mais e menos trabalho ao mesmo preço?!”

Sou o artista que cobra o que lavrar.


Ora, o vaso é o que eu fiz: modelo e meço.

Mas se ele tem beleza quantum satis,

Não a posso cobrar: beleza é grátis!”



Crente


Um crente sai da missa solitário.

De repente, um amigo o aborda, instante:

Preciso de falar-te!” - e pára diante.

O crente vê o sinal, destinatário


Entusiaste se crê, do que é importante

Desata a conversar e fala, vário,

Das bênçãos, da amizade, do sumário

Gesto de anjo que ali se lhe garante.


O amigo ouve em silêncio, vai-se embora

E em troca da alegria, é a solidão,

Porque no entusiasmo deitou fora


O pedido do amigo, agora em vão.

Na ocasião seu olhar em si repoisa,

Só que a vida pedia-lhe outra coisa.




Fadas


Convidadas ao berço, as fadas boas

O príncipe fadaram: a primeira

Deu-lhe o dom de encontrar amor à beira;

A segunda, oiros mil de mil boroas;


De beleza lhe dá brilho a terceira.

A bruxa, furiosa, a tais coroas

Lança uma maldição: “após as loas,

Irá ser talentoso em toda a jeira.”


O príncipe cresceu apaixonado,

Belo e rico mas nunca leva ao fim,

Dado que excelente é por todo o lado,


Tarefa a que põe mãos como delfim.

- Ao mesmo todo o rumo ao fim vai dar:

Siga o seu, sem por todos se tentar.



Malabarista


Malabarista vida, as três laranjas

Por nossas mãos atira para o ar.

Nas duas mãos seguro sempre um par,

Mas uma fica solta noutras franjas.


A diferença mora na que esbanjas,

Sempre lançada além para voar

Com toda a habilidade, a se escapar

A teu controlo, nem que os dentes ranjas.


Há-de ter fatalmente o próprio rumo.

Um sonho ao mundo lanço e após não tenho

Mais sobre ele o controlo que presumo.


É preciso entregá-lo e, enquanto advenho,

Pedir que dele cumpra digno o chão,

Caindo após consumado em minha mão.



Imo


Um monge procurava do imo o guia

Quando ouviu que na aldeia um eremita

À salvação se aplica em benta dita.

Logo o monge o buscou com alegria:


Em meus caminhos de alma pretendia

Que de guia me fora.” O outro cita:

Cada qual tem um trilho e um anjo o incita.

Reze, pois, sem parar.” “Mas todo o dia?!


Não sei como. Podia-mo ensinar?”

Se não sabe, a Deus peça que lho ensine.”

Nada me está ensinando este lugar...”

Não há nada a ensinar que à Fé se incline,

Não são ciências. Aceite à Fé o mistério:

Verá logo o Universo em todo o império.”



Palavra


Tem poder a palavra: escreve, pois.

De Deus e doutrem te aproxima a escrita.

Escrever teu pensar te delimita,

Organiza e vês claro, assim, depois,


O que te envolve. Uma caneta e sóis

Irrompem no horizonte da precita

Noite com mil milagres à compita,

Curam dores, os sonhos de arrebóis


A esperança perdida levam, trazem.

A palavra constrói-te bem por dentro,

Subtil, improgramada. O que te fazem


Seus dedos insondáveis é o teu centro,

Antes da sementeira, a lavra a ser:

Tem poder a palavra, tem poder.



Deserto


Os monges do deserto afirmariam

Que será de deixar a mão dos anjos

Agir em nossa vida. Não são banjos

Que tocam nas alturas, antes criam


Geniais absurdos: gestos meus constranjo-os

Falando acaso a flores que sorriam

Termos de Deus e trilhos mais viriam

Sem nexo... Porém eu não deixo, esbanjo-os!


Ora, não temas louco ser chamado,

Faz algo em contrapolo ao que aprendeste,

Contraria o ar sério que hás moldado.


Tal pormenor de nada pode a leste

Abrir-te a madrugada que perdura,

Escancarando as portas da aventura!



Bólido


Um bólido conduz mas tem um furo

E o macaco não tem, de o consertar.

Vou pedir emprestado” - e procurar

Vai por ajuda. Então pensa no juro





Que lhe extorquir irão por tal apuro:

Vão levar-me dez. Vinte, ao reparar

Que preciso deveras. E, se olhar

Ao carrão, nem de cem fico seguro.”


Anda e desanda e o preço vai subindo.

Chega à primeira casa, abrem-lhe a porta

E ele diz, já palavras nem medindo:


Vocês são uns ladrões! Que é que me importa

Um macaco de nada? Fica aí!”

- Quem jamais se portou como aqui vi?



Poliomielite


De poliomielite, nos doze anos,

A criança era vítima indefesa.

Do médico a seus pais ouviu, repesa:

Não passa de hoje.” A mãe, os desenganos


Chora já da desgraça, os fatais danos.

Triste, o miúdo pensa: “se a noite pesa,

Quem sabe, se a passar, não serei presa

E a mãe não sofra mais com mais enganos?...”


Decide não dormir a noite toda.

De manhã grita à mãe: “ainda estou vivo!”

A alegria foi tanta que se açoda


A aguentar mais um dia contra o esquivo

Sofrimento dos pais. E, dia a dia,

Só depois dos setenta morreria.



Noviço


Um noviço pergunta: “santo homem,

Tenho o meu coração cheio de amor,

Alma limpa do demo e seu fragor.

Que passos a seguir há que se tomem?”


Que o acompanhe, diz-lhe o seu mentor,

Um doente a visitar que haustos consomem,

Os olhos num baú enquanto somem.

Que é que há neste baú?” - do mestre é a dor.


A roupa que meu tio nunca usou”

- Diz o sobrinho em mágoa. - “A ocasião

De a usar nunca veio, se esfiou.”


Se entesoiras fechado o coração,” -

- Conclui o monge - “actua desde agora,

Ou vai-te apodrecer a cada hora.”




Caminho


Quando o nosso caminho iniciamos,

Falar muito com Deus é o que queremos

E então por não ouvir ainda findamos

O que a dizer tiver Ele ao que temos.


Relaxa. Não é fácil, que vivemos

Na premência de sempre que actuamos

Sempre o melhor tentar: errados cremos

Que em labor sem parar é que o logramos.


O importante é tentar, cair e, em frente,

Seguir serenamente e permitir

Que Deus ajude, em meio ao grande esforço:


Para nós olhar vamos, que, insistente,

Ele se mostra e guia. E, a seguir,

Que Ele nos leve ao colo sem remorso.



Espiritual


Busca um jovem o abade, quer um guia

Para o espiritual rumo. “Por um ano

Uma moeda pague, sem engano,

A todo o que o agrida” - eis dele a via.


O jovem cumpre e volta, sem mais dano,

Em busca doutro grau que se seguia.

Comida para mim compre este dia” -

- Diz o mestre, imitando um grande arcano.


Logo após se disfarça de mendigo

E à porta da cidade aguarda o jovem.

Insulta-o. E o rapaz: “Hoje o bendigo,


Que hoje é grátis, mais gastos não me movem!”

Visemos” - diz o abade - “os altos lemas,

Dado que rir consegue dos problemas.”



Banal


Passeavam dois amigos pela rua

Na mais banal conversa. E, de repente,

A discutir começam, sem consciente

Motivo para tal, e o sangue estua


A ponto de brigarem. Quando a pua

Da briga se embotou, fica presente

A estranha condição da humana gente:

Mais fácil é ferir quem junto actua


Que um estranho, com quem me controlara” -

- Comentam, já repesos. - “Com amigos

Agressivos findamos, sorte avara!”

A natureza humana impõe perigos.

É deveras assim a natureza,

Mas contra isto lutar vai quem se preza.



Gostaria


Às vezes gostaria de ajudar

Mas não poderei nada então fazer:

A circunstância impede de mexer

Ou outrem se trancou de fora ao ar.


Apenas resta o amor. Inútil ser

Tudo o mais nunca impede alguém de amar,

Sem esperar mudanças, se calhar,

Nem agradecimentos de quenquer.


Se lograrmos agir desta maneira,

A energia do amor a transmudar

Principia o Universo à nossa beira.


Quando tal energia enfim brotar

Pouco importa o que valho ou que não valho,

Logra realizar sempre o seu trabalho.



Vida


A vida, na raiz, é poesia,

Deve-nos surpreender subtil excesso,

Jamais a diferença: o seu processo

Deve incluir o irmão como faria


Sua própria palavra, que bulia

No coração profundo, no recesso

Duma noite dos tempos, donde egresso

Vem o rememorar que o conhecia.


A beleza não põe alguém contente,

É uma surpresa, a qual, por uns momentos,

Tira a respiração. É, permanente,


Tal como um pôr-do-sol em mil eventos:

Algo que é natural e é milagroso

E onde o contraste ao mesmo tempo é gozo.



Ateu


Comentava um ateu para o amigo

Que padre se ordenara, honesto crente,

Do restaurante vindo frugalmente

Onde novas em dia dão pascigo:





Repara na criança sem abrigo

A dormir no passeio: a fome é urgente,

Nem roupa de vestir decentemente

Tem que lhe diminua este castigo.


Vê como se preocupa o teu Jesus!”

Claro que estou a ver” - responde o padre. -

- “Ele pôs o petiz, um dentre os nus,


Perante ti como melhor se enquadre:

- Fez questão de que o vejas nesta loisa

Por que faças por ele alguma coisa.”



Menor


Reunem-se os judeus para tentar

Definir a menor Constituição

Que do mundo regia o coração.

Só teriam, no tempo que aguentar


Um homem num só pé, de proclamar

As leis que as atitudes deverão

Dum homem orientar. Sábio dirão

Maior que todos mais quem o lograr.


Deus pune os criminosos” - tenta um.

Lei não é mas ameaça: não é aceite.

Eis que Hillel diz: “ninguém faça a nenhum


O que a si não quiser que alguém lhe ajeite.

Esta é a lei, já o glosar outrem acabe-o.”

Então, ao tempo, Hillel é o maior sábio.



Escultor


Bernard Shaw reparou na enorme pedra

Que o escultor Epstein ostenta em casa.

Que vais talhar do bloco?” - então lhe apraza.

Estou a decidir, a ideia medra...”


Shaw fica surpreendido: “então a brasa

Da inspiração planeias? Não se empedra

Um caminho liberto, senão quebra

De ideias toda a muda quando apraza.”


Funciona quando mudas e amarrotas

De papel uma folha, cinco gramas.

Mas quatro toneladas, onde as botas?”


Cada qual sabe o modo às suas tramas:

Só quem tem a tarefa, de verdade

Lhe apura a singular dificuldade.




Meditou


Frei João meditou que, sem cuidados,

Os anjos nada fazem mas a Deus

Contemplam gloriosos. Para os céus

Igualar, abandona os tão gelados


Espaços conventuais pelos mantéus

Das grutas do deserto. Mas, passados

Dias, volta aos porteiros: “esfomeados

Ficamos no deserto” - geme aos seus.


Impossível,” - retrucam - “Frei João

Tornar-se foi aos anjos igualado,

De fome nem labor tem precisão...”


Os anjos” - diz - “ajudam, nada é dado:

Se eu trabalho é que tenho o seu alento.”

Os irmãos então abrem-lhe o convento.



Destruir


De destruir as armas poderosas

Têm a mais terrível na palavra.

De balas e punhais o sangue lavra,

Bombas arrasam casas, sonorosas,


Detecta-se o veneno que escalavra...

Destrói sem pista o termo de que gozas:

Crianças manietadas são das glosas

De família, distorce a cara glabra


De homens e de mulheres o sarcasmo,

Fiéis perdem a fé, do que lhes contam

Os que se arvoram Deus a interpretar...


Olha se, cego, a usas, preso ao pasmo;

Olha se outros a ti tal arma apontam:

- Este é de morte o mais nefando par.



Perfeito


Se num mundo perfeito tu viveras,

Com pessoas perfeitas, tendo tudo,

Todos obrando em gozo sem escudo,

Tão acabado é tudo em tais esferas,


- Terias o que queres, sem esperas,

Tal qual como sonhaste e o tempo, mudo,

Duraria o que queiras, sobretudo.

Séculos então idos destas eras,


Olhas em teu redor, dás em pensar:

Que aborrecido isto é, falta emoção!”

Vês um botão vermelho em teu lugar,

Lês lá “surpresa” e apertas o botão:

Entras num túnel, sais no mundo atento

Em que estás a viver neste momento.




Mudar


Dum homem do deserto conta a lenda

Que ia mudar de oásis e o camelo

Começa a carregar: peças de pêlo,

Tapetes, a cozinha mais a tenda,


Mais os baús da roupa e o que se venda...

E o camelo a aguentar todo o atropelo.

Recordou-se, ao sair, dum dom mui belo:

Era uma pena azul, de seu pai prenda.


Vai buscá-la e coloca-a sobre a carga:

O animal arreou, de tanto peso.

O peso duma pena é que o embarga?!”


- Admira o cameleiro, mui repeso.

Não vemos no outro, às vezes, no momento,

A gota que transborda em sofrimento.



Moisés


Julgamos que Moisés levanta a vara

E então o Mar Vermelho se divide

Para deixar passar os que convide,

Povo que ao Faraó desagradara.


Mas não. Deus a Moisés manda: “decide

Que os filhos de Israel marchem com clara

Disposição e fé.” Mal caminhara,

É que o bordão ergueu e o mar agride.


Pequena a diferença? A tanto monta

Que, se a sequela fora aquela, então

Ninguém o mar passara, feita a conta.


Apenas a coragem do peão

Que ao caminho fará que bem se apreste,

Fará que se o caminho manifeste.



Manhã


Cada nova manhã será o momento

Manhã-de-renascer, viver de novo,

Mesmo que uma rotina choque o ovo

Do automático dia em nascimento:




Acordo, canto ou toco, ou o alimento

Preparo com notícias em renovo...

São as bênçãos que pesco no meu covo

Com que o meu lar arejo, espano ao vento.


O contacto retomo com a vida,

O mistério, o milagre de ser parte

Da incrível raça humana desmedida.


Porém, fazendo o mesmo, nunca é o mesmo,

Algo de novo sempre me reparte

Com este incrível sol semeado a esmo.



Culpa


Por um lado, é importante buscar Deus,

Por outro, a vida afasta sempre dEle.

Sinto dEle ignorada a minha pele

Ou demais me encherão cotios meus.


A culpa então me prende sob os véus:

Com a renúncia à vida Deus me impele,

Ou renuncio a Deus, se a vida apele.

Mas são de fantasia estes arpéus,


Que Deus está na vida e a vida, em Deus.

Melhora esta evidência então meu fado

E deixo de viver em dois ilhéus.


Se me embebo do acordo consagrado,

No caminho ando sempre que está certo,

Estarei de cumprir-me então mais perto.



Inventa


Um artista-inventor Deus é decerto,

Inventou a girafa, o elefante

E a formiga: não quer o estilo certo.

Única cada qual tem vida diante:


Quem é do “tudo-certo” inventariante,

Quem é que este pavor nos pôs tão perto?

Deus, que tudo inventou, melhor garante

Que modelo não há que tenha acerto.


Modelos são como outrem se aferiu.

Podemos admirá-los evitando

Os erros que quenquer já cometeu.


Mas já quanto a viver, ao como e ao quando,

De cada um, sem mágico esperanto,

É a própria competência para tanto.




Criança


Oravam os judeus na sinagoga

Quando ouvem a criança a murmurar:

A, B, C, D...” - seguindo sem parar.

Reatam, mas a atenção logo se afoga


Neste alfabeto que o miúdo advoga:

A, B, C, D...” Aos poucos a parar,

Olham para o miúdo a recitar,

Até que o rabi lépido o interroga:


Porque estás o alfabeto recitando?!”

Porque não sei os versos consagrados.

Espero que Javé, letras pegando,


Forme os termos correctos ignorados.”

Obrigado! E que eu possa me entregar

Como tu tuas letras Lhe vens dar.”



Presente


O espírito de Deus presente em nós

É tal qual uma tela de cinema.

Por ali correm filmes, qualquer tema

Pessoas que desatam e atam nós...


Pouco importa que filme vem após,

A tela é sempre a mesma, como um lema.

Pouco importa que a lágrima que eu tema

Ou sangue da loucura mais feroz


Escorram, que à brancura nada a atinge

Na tela que no fim lá permanece.

Como ela, Deus ali, firme, não finge:


Atrás do êxtase e dor que a vida esquece

Está perene. Todos o veremos

Quando aqui nosso filme terminemos.



Arqueiro


Caminhava um arqueiro no arredor

Dum hindu afamado grão mosteiro

Pela maior dureza que usa impor,

Quando os monges, com ar muito lampeiro,


Vê que no jardim bebem sem pudor,

Divertindo-se em jogo bem ligeiro.

Que cínicos! Caminhos do Senhor?!

São mas é beberrões com ar matreiro.”


Se você dispara flechas” - diz-lhe um deles -

- “Sem parar, que acontece então ao arco?”

Vai quebrar-se” - e o arqueiro é menos reles.

Pois se além dos limites levo o parco

Esforço meu, também quebro o entusiasmo

E o repoiso é que inova então meu pasmo.”



Arauto


O rei manda um arauto a um outro povo,

De paz levando o acordo que assinou.

Querendo aproveitar, comunicou

Este a quem tem negócios em renovo,


A fim de formularem-nos de novo,

Mudarem da estratégia que findou.

Meses demora e, quando enfim chegou,

Era tarde demais, a casca de ovo


A guerra já estoirou, matando os planos

Do rei e dos negócios lá pendentes.

Na vida importa um só dentre os arcanos:


Viver nossa missão sem mais arguentes.

Mas sempre carregamos doutrem ossos

Que acabam destruindo os sonhos nossos.



Desconhecido


Pede um desconhecido que lhe leia

De jornal um anúncio, que esquecera

Os óculos em casa. Perda mera,

Que os meus deixei também em casa alheia.


Não somos só nós dois. Deus também, creia,

Tem a vista cansada” - ele pondera. -

- “Não de ser velho, que antes a escolhera

Para que, perante o erro que encandeia,


Perdoar, não vá Ele ser injusto,

Por não ver muito bem o que ocorreu.”

E quanto às coisas boas? Tem cá um custo...”


Quanto a elas Deus nunca se esqueceu,

Qualquer que seja a hora que se apraza,

Não se esqueceu dos óculos em casa.”



Importará


Algo importará mais do que a oração?” -

- O discípulo quer saber do mestre.

Este um arbusto aponta que o adestre:

Corta-lhe um ramo, vá!” Ele trá-lo então.





Mantém-se viva a planta?” “Claro, tão

Viva como antes” - o aprendiz que amestre

Responde, convencido. E torna o mestre:

Corta a raiz.” “Mas se eu cortar em vão,


Ela vai morrer!” - diz, meio interdito,

O aprendiz. “A oração são meros ramos

Cuja raiz é fé” - foi o convicto


Comentário do mestre. - “E eis mais tramos:

Pode existir a fé sem a oração,

Mas oração sem fé, não pode, não.”



Convida-nos


Convida-nos a todos o Senhor:

Vinde a mim todos os que estais com sede,

Dar-vos-ei de beber.” Se o não concede

A cada um, seria outro o penhor:


Venham quantos quiserem, nada é pior

Que o que vós aguentais. Contudo, vede,

Só darei de beber a quem acede

A Mim já preparado a se propor.”


Ao invés, não impôs a condição.

Basta caminhar, pois, basta querer

E todos a colher acabarão


As águas vivas que Ele há-de a correr

Pôr da boca ao alcance que o procura

Até que se sacie de água pura.



Zen


Os monges zen meditam ante a rocha:

Vou esperar que a rocha cresça um nada.”

Tudo muda constante na parada,

Cada dia se acende em nova tocha,


A rotina repleta desabrocha

Em oportunidades renovada.

Só que custa entender a madrugada

Quão diferente é na manhã roxa.


Hoje espera-o algures um tesoiro:

Um pequeno sorriso, a grã conquista...

A vida é de milagres colar de oiro,


Nada aborrida, tudo muda à vista.

O tédio não é mundo, é má visão:

Não ver como à primeira ocasião.