V PARTE



AMANHECER






Reconhecemo-lo


Ao militante reconhecemo-lo pelo olhar:

Quando um dedo lhe aponta o horizonte,

É no horizonte que vai reparar

Não no dedo que para além faz a ponte.


Sem bordão nem alpercatas com que conte,

Muitas vezes se há-de acobardar,

Incorrecto actua, traindo a fonte,

Com mesquinhezes e tolices a se preocupar,


Incapaz de crescer,

Indigno se crê de milagre ou bênção.

Que anda aqui a fazer?


A vida perde os sentidos que o convençam.

É militante porque erra, interroga, busca sem abalos

E os sentidos findará por encontrá-los.



Despertando


O atento vai despertando agora do sono:

Não sei lidar com esta luz

Que me faz crescer. Que tem dela em abono?”

Mas dela não desaparece o apelo que traduz.


Tenho de mudar, mas sou meu dono,

Não me apetece o que nela me seduz.”

Mas ela continua sobre o trono

E o coração dele vai-se abrindo ao que introduz.


Já o não assusta

E ele vai acolhendo o íntimo chamamento,

Mesmo correndo o risco do que custa.


Muito tempo esteve a dormir. Cada momento,

Aos poucos, é doravante o do homem novo quando

For naturalmente despertando.



Experto


O experto aguenta o insulto,

Conhece o poder que detém,

Olha nos olhos o oponente inculto

E vence-o sem precisar de luta física também.


À medida que aprende, a luz da fé brilha no culto

Sacro de seus olhos e a ninguém

Precisa de provar nada de vulto.

Que importa o argumento agressivo de quem


Afirme que milagres são truques; Deus, superstição;

Que crer em anjos é fugir à realidade?

Da própria força conhece a imensidão

O lutador, quando ela o invade.

Jamais se confronta nem debate

Com quem não merece honras de combate.



Lembra-te


Lembra-te da fé: antes de entrar em confronto,

Importa crer no motivo da luta.

Escolhe o companheiro, o aliado pronto,

Pois a sós ninguém vence uma disputa.


Olha o tempo: Inverno e Verão não impõem igual conduta

E quem é bom atende, não é tonto,

Ao melhor momento de ir à fruta.

Olha o espaço: divergem planura e falésia ponto a ponto,


Vê o arredor e o melhor modo de te moveres,

O contexto do argumento.

Atende à estratégia: para melhor seres,


Planeia o encontro a todo o momento.

A luz, assim,

Há-de acompanhar-te até ao fim.



Resultado


O resultado dum confronto raramente o sabemos,

Quando acaba.

Há um momento em que vitória e derrota, em cada aba,

Se equilibram nos possíveis que veremos.


O tempo irá dizer se vencemos ou perdemos,

Nada a fazer, a acção nos menoscaba,

Das mãos de Deus o destino então se gaba,

Que ele decida o que teremos.


Não nos preocupam os resultados.

Combati o bom combate? Se sim, descanso;

Se não, os passos caminhados


Importa retomar em novo lanço.

Pego em sonhos, destrezas e saberes do meu povo

E desato a treinar de novo.



Centelha


O iluminado contém nele a centelha

De Deus.

Seu destino é juntar-se aos seus,

Como de colmeia abelha,





Mas às vezes tem de praticar a sós e de cernelha

E então cintila como estrela nos céus,

Ilumina o canto do Universo com os fogaréus

De seu lume, mil mundos a espargir de sua celha.


Aos que olham para o céu tenta mostrá-lo

E a persistência em breve o recompensa,

Os pares se aproximando com regalo,


A luz cada dia mais intensa,

Em constelações, em símbolos sidéreos

De todos os humanos mistérios.



Duas


Às vezes parece que vivemos duas vidas

Em simultâneo.

Numa obrigam-me ao que não quero, é um sucedâneo,

Outra mora nos sonhos e com gentes por eles decididas.


Permito que se aproximem em rumo coetâneo,

Há uma ponte que liga as medidas

Do que faço ao que gostaria de fazer de mãos erguidas.

Aos poucos o sonho devém contemporâneo


Da fiel rotina,

Até que estarei pronto para o que quero.

Então, quando tudo a tal se inclina,


A esperança supera o desespero

E basta um pouco de ousadia, em suma,

Para as duas vidas se mudarem numa.



Tempo


Precisas de tempo para ti,

Usa-o para descanso, contemplação,

Para a alma do mundo ter à mão.

Mesmo quando em confronto, medita e sorri.


Senta-te na ocasião certa, relaxa aí,

Deixa que em redor tudo corra sem intromissão.

Como espectador olha o mundo e não

Tentes crescer nem diminuir a partir dali.


Entrega-te, sem resistência, ao movimento da vida:

Aos poucos, o complicado,

Devém simples e dá-te guarida.


Em todo o lado

Então te integras

E eis como definitivamente te alegras.




Cuidado


Cuidado com os que pensam conhecer

O caminho.

Estão tão confiantes que não vão perceber

A ironia do fado que adivinho:


O inevitável à porta há-de bater

E então protestam, em desalinho.

Sonhos haveremos de ter

Que adiante nos levam de mansinho


Mas não erremos cuidando

Que o trilho é fácil e a porta, larga.

Concentra ou dispersa a energia conforme e quando


To requerer da conjuntura a carga:

Horas há de agir, horas de aceitar

E cada qual há que distinguir a par.



Armadura


O iluminado, quando se adestrou,

Precisa de proteger-se de armadura.

Escuta a sinecura

De cada vendilhão que nas ruas da vida encontrou:


Couraça-te de solidão!” - um lhe soprou;

O melhor é o cinismo” - um outro augura;

O mais eficaz se me afigura

Que é não te envolveres em nada” - um terceiro rematou.


Nãolhes presta ouvidos,

Retira-se para o sagrado recanto

E da fé se reveste do manto.


Apenas ela lhe apara os golpes vividos

E transmuda qualquer veneno da sina

Em água cristalina.



Crer


Vivo a crer noutrem e sempre me decepciono”

- Queixam-se os companheiros.

Importa confiar, mas sem ter dono,

Que decepções não temem os guerreiros,


Têm poder e força de amor em seu abono.

Importa, porém, impor certeiros

Os limites: os sinais não abandono

Quando os mais uso por meus conselheiros.


Outra coisa é ser incapaz de decisão,

Buscando que por mim outrem a tome.

Então,

Morrerei de mim próprio à fome.

Confio nos outros e seu desafio

Porque primeiro em mim confio.



Mistério


Olha a vida com firmeza e doçura,

É um mistério que decifraremos algum dia.

Parece mesmo uma loucura,

Mascarado o real de fantasia.


Entregue ao milagre de cotio, apura

Que nem sempre o efeito dos actos se previa,

Ages sem saber que estás agindo nem o que augura,

Salvas sem saber que é que salvaria,


Sofres sem saber porque estás triste...

A vida é uma loucura permanente

De tudo quanto existe.


A sabedoria em ti presente

É a de saber escolher bem

Que loucura te tem.



Ombreiras


O esclarecido olha as ombreiras

Da porta que vai transpor:

Uma o medo, outra o desejo lhe irão propor,

Matreiras.


Lê do medo as prevenções primeiras:

Vais entrar no ignoto perigoso, aprendeste um ror

Para nada. E as do desejo: abandonas o primor

Do conhecido e tanto lutaste por suas bandeiras!


Ele, porém, sorri,

Não há nada que o assuste,

Nada que o prenda, mera trilha morta.


Seguro de si,

Sabendo o que quer e o que custe,

- Abre a porta.



Interior


O atento pratica

O interior crescimento:

Atende ao que automático exercita,

Ao respirar, ao piscar, ao meio de envolvimento...





Quando confuso, é o que o rumo lhe explica:

Livra-se das tensões de momento,

Deixa voar a intuição que deste modo livre fica,

Sem medo, nem desejo, nem tormento.


O problema insolúvel finda resolvido,

A dor insuperável é mitigada

Sem esforço.


Ao enfrentar o muro vivido,

Eis da saída para a estrada

O secreto escorço.



Fale


Há quem não fale de algumas vivências

Porque os mais são invejosos,

Mas da inveja não há efeitos danosos

Se não é aceite das íntimas exigências.


Da vida a inveja faz parte, dos pendores perigosos,

Urge lidar dela com as envolvências.

O atento pouco fala de seus planos e excelências,

Muitos crerão que faz parte dos medrosos.


Ele, porém, não fala

Porque gasta energia do sonho

Ao se exprimir.


Corre o risco, não o cala,

De no exaspero findar medonho

De lhe acabar a energia para agir.



Persistência


A persistência e a coragem

Têm valor.

Às vezes, do confronto na triagem,

Atingem-te com o que não era de supor,


Às vezes és batido na contagem:

Chora a dor

E descansa, a recuperar vantagem,

Mas volta, lesto, do sonho a lutar pelo fulgor.


Quanto mais tempo afastado,

Maior probabilidade de acabares medroso,

Intimidado.


Quando um cavaleiro cai do cavalo

E não volta logo a montá-lo, fogoso,

Perde a coragem de retomá-lo.




Vale


O que vale a pena sabe o esclarecido,

Decide os actos com inspiração e fé.

Há quem chame a lutas outras, até

Em campos ignotos ou falhos de sentido.


Querem-no envolvido

Em desafios deles ao pé.

Ora, o importante para outros, para ele não é,

Mesmo próximos que um apoio hajam pedido.


Então, ele sorri,

Demonstra o amor

Mas não acata a convocação.


A luz tem-na ele em si:

Escolhe inelutavelmente o fulgor

Do próprio campo de intervenção.



Perder


Aprende a perder,

Não trates a derrota como indiferente:

Isto não era, afinal, muito premente”,

Não é mesmo isto que eu devia querer...”


A derrota como derrota deverás acolher,

Não transformá-la em vitória permanente.

Amarga a dor do ferimento, o amigo indiferente,

A solidão, afinal, de falhado haver.


Lutei por algo” - diz -

- “E não consegui,

A primeira batalha então perdi.”


Novas forças a frase te dará, feliz.

Ninguém ganha sempre, decerto:

- Aprende, pois, a distinguir erro de acerto.



Conspira


Quando algo muito se quer,

O Universo inteiro conspira a favor.

Cuidado, pois, com o pensamento a propor:

Muito boas intenções hão-de negar, esconder


E, no fundo, propor o que nem a si ninguém ousa dizer

- Vingança, autodestruição, furor,

Culpa, alegria com a tragédia, da vitória temor...

O Cosmo não julga, conspira pelo que na mente houver.


De teu imo repara nas sombras,

A ver se não pedes nada de errado:

Nunca digas “não quero algo”. Cuidado:

Este “algo” é a víbora escondida nas alfombras.

Não é fácil vê-la sob as ervagens densas,

Mas é o que o Cosmos vê e dá: cuidado, pois, com o que pensas!



Mantém


Assume a responsabilidade:

Sim, sim; não, não.

Mantém a palavra ao arrotear o chão

De tua herdade.


Quem promete e não cumpre, na verdade

Desrespeita-se e envergonha a própria acção:

A vida é fuga e mais energia gastarão

As desculpas a desonrar a falsidade,


Do que a requerida a manter os compromissos.

Se uma responsabilidade assumes tola,

Colherás perdas e não viços.


Não a repitas, se de novo te enrola,

Mas honra a tua promessa

E a impulsividade paga, peça a peça.



Vences


Quando vences, comemora,

Que a vitória custou horas difíceis, anos de espera.

O triunfo, na memória de qualquer era,

É ritual de passagem para o porvir desde agora.


Há quem cuide que irá decepcionar-te, sem demora,

O próximo confronto: isto pode tornar uma fera

O adversário emboscado na galera,

Por ora.


Mas sabes o motivo de teu gesto,

O melhor presente da vitória:

A confiança, confiança em ti mais teu apresto.


Celebra a vitória de ontem, hoje na glória,

Para haver mais força, para tudo estar pronto

De amanhã para o confronto.



Entusiasmo


De repente lutas, à falta de aviso,

Sem o entusiasmo anterior.

Continuas o que é preciso

Mas, murcho o sentido, cada gesto perdeu o calor.





Continua o bom combate com juízo,

Por medo, obrigação, seja pelo que for,

Mas não interrompas o trilho em nenhum viso,

À espera do fervor.


O anjo que te inspira foi a passeio,

Atenta no confronto, insiste,

Mesmo que inútil pareça este entremeio.


Daí a pouco o anjo retorna que já viste

E o murmúrio das asas à solta

Trará tua alegria de volta.



Compartilha


Compartilha com os outros o que sabes

Do caminho.

Quem ajuda é ajudado e, antes que acabes,

Ensina o que aprendeste com os mais ou sozinho.


Senta-te ao redor da fogueira de azinho,

Conta teu dia no que critiques ou gabes.

Falar da estratégia” - murmuram, adivinho -

- “É dividir com outrem benesses onde só tu cabes...”


Sorri apenas, não respondas.

No final da jornada,

Do infinito oceano finalmente nas ondas,


Se um paraíso vazio de amigos te aguardar à chegada,

O esforço a que hoje a luta te condena

Não terá valido a pena.



Usa


Deus usa a solidão

Para ensinar a convivência.

Usa da raiva o escaldão

Para mostrar da paz a infinda valência.


Usa o tédio sensaborão

Para sublinhar da aventura e abandono a conveniência.

Usa o silêncio para ensinar então

Da palavra a responsabilidade por excelência.


Usa a fadiga

Para compreendermos o valor de despertar.

À doença obriga


Para a bênção da saúde sublinhar.

Água ensina usando fogo e ar, usando terra,

Usa a morte a nos mostrar quanto à vida nos aferra.





Dá, mesmo antes que te peçam.

Alguns cuidam que quem precisa, pede,

Mas há muitos que não conseguem, tal é a fome e a sede,

Tão frágil, o coração, sem afecto que meçam,


Que têm vergonha de mostrar quanto arrefeçam.

Reúne-os ao redor da fogueira em tua sede,

Conta histórias, partilha alimento, concede

Embriagar-te com eles, que te aqueçam.


No dia seguinte

Todos se sentirão melhor.

O pedinte


Pior

É o que olha a miséria com indiferença:

É o mais miserável, por maior que tenha a tença.



Sempre


As cordas sempre tensas

Acabam por desafinar,

Quem estiver sempre a treinar

Perde, nos confrontos, a espontaneidade das presenças.


Cavalo que salte sempre sem mantenças

Acaba a perna por quebrar,

Arco todo o dia a se encurvar,

A força ao fim com o início não tem parecenças.


Encontra, pois, o meio termo

Justo,

Antes que fiques enfermo.


Mesmo a custo,

Procura divertir-te, um pouco de fantasia,

Com os pequenos nadas do dia-a-dia.



Atende


De dias e horas te desliga,

Atende cada vez mais ao minuto.

Só então, quando este escuto,

Resolvo, antes que ocorra, alguma briga.


Atendendo ao pequeno nada que periga,

Evito, arguto,

Grandes calamidades por produto.

Pensar pequenas coisas não obriga


A pensar pequeno:

Preocupação exagerada é que elimina

Qualquer traço de alegria em meu aceno.

Um grande sonho são mil faúlhas que combina

Como o Sol, nos traços gaios,

É o fruto de infinitos raios.



Cais


Quando cais na rotina

E não logras meditar,

Repete uma palavra singular

Como se fora tua sina.


Repete a palavra sem parar,

Incontáveis vezes, que o sentido se destina

A perder, até que a um novo se inclina.

Deus abrirá as portas, vais usar


A palavra para contar tudo o que querias

Quando ao mesmo és obrigado repetidamente

Todos os dias.


Por aqui transmudas, como uma semente,

O trabalho rotineiro e chão

Numa oração.



Caminho


Nunca tenhas certezas,

Mas um caminho a seguir.

Adapta-te às colinas e às devesas

E ao tempo que pela frente te surgir.


Equipamento e técnica diversa ao preferir

Conforme o contexto e as empresas,

Sendo flexível, não vais o mundo referir

Como certo ou errado, antes que atitude prezas


Para aquele momento.

Teus pares também têm de se adaptar,

Dá-lhes tempo de justificar cada evento.


Não fiques surpreso quando os vês mudar

Apenas de atitude:

Implacável, só contra a traição que desilude.



Lareira


Ao redor da lareira sentas-te com os amigos,

O serão todo a acusar-se mutuamente,

Mas acabam a noite dormindo serenamente

Debaixo do mesmo tecto, em comuns abrigos,





Ofensas ninguém lembra nem a ninguém tapam postigos.

Quando um visitante ao grupo se acrescente,

Sem história comum, só qualidade é presente,

Um mestre parece a ofertar trigos.


Não o compares, porém, com os teus pares.

O estranho é bem-vindo mas nele só confias

Quando os defeitos dele vislumbrares.


Num confronto jamais entrarias,

Em nenhum lado,

Sem conhecer os limites de teu aliado.



Culpabilização


A culpabilização mata,

Vai corroendo o imo de quem errou

E com auto-destruição o remata.

Morrer assim, não, não vou:


Quando a malvadez em mim se desata,

Que um mar de defeitos me atolou,

Não tenho vergonha, a quem me acata,

De perdão pedir pelo que sou.


E reparo o mal que fiz

Com todo o esforço

Ao próprio ou a alguém que então torno feliz.


Culpabilização, não, nem remorso.

Antes, humilde e arrependido

Conserto o mal com que hei ferido.



Fundo


Tua mãe dirá:

Meu filho fê-lo porque perdeu a cabeça,

Mas, no fundo, não é pessoa má.”

Por mais que ela o esqueça,


Tu sabes que não é assim. Cessa

De te culpar, mas não te perdoes desde já

Os erros: corrige o caminho que aqui começa,

Senão nada o corrigirá.


Julga os resultados,

Não apenas as tuas intenções,

Assume tudo e paga os custos, mesmo elevados,


Dos erros, das ilusões.

Para além de todos os deslizes,

Deus julga pelos frutos, não pelas raízes.




Decisão


Antes da decisão importante,

Mudar de território, escolher o campo de arroteio,

Declarar guerra, ir ou não por diante,

Questiono o que semeio:


Como é que isto afectará, no porvir distante,

Os descendentes que hoje premeio?

O militante

Sabe que dos actos o entremeado enleio


Tem efeitos

Que se alongam pelo tempo fora,

Rio a estender-se por inesperados leitos.


Precisamos de saber agora

Que mundo iremos deixar

À derradeira geração que aqui se deparar.



Tempestades


Tempestades não levantes em copo de água,

Não exageres o difícil do momento,

Mantém a calma que te requer cada evento

E, entretanto, não julgues a alheia mágoa.


Um pormenor que nem te afecta pode ser a frágua

Que incendeia o tormento

No coração e pensamento

Dum irmão, duma irmã, cilício em vez de anágua.


O sofrimento respeita,

Não o compares com o teu,

Por mais que a comparar a vida seja atreita.


A taça das dores não cresceu,

Sejam quais forem os modos,

Do mesmo tamanho para todos.



Coragem


No itinerário interior a primeira qualidade

É a coragem.

O mundo é ameaçador e perigoso de verdade

Para os covardes em viagem.


A segurança mentirosa que os persuade

Buscam na vida sem desafio nem triagem

E armam-se a defender, contra o que os invade,

O que julgam ter, salvo da voragem:


Constroem as grades da própria prisão.

Projecta teu projecto para além do horizonte:

Se nada fizeres pelo mundo, então,

Ninguém mais o fará, ruiu a ponte.

Combate o bom combate, ajuda mesmo os incapazes,

Mesmo sem entender bem porque o fazes.



Superas


Quando superas o grave problema,

Não te detenhas no difícil momento,

Mas na alegria de ter atravessado o tormento,

De transpor mais uma prova como lema.


Quando saíres dum tratamento,

Que o teu tema

Saja a bênção de Deus na cura extrema,

Não no iniludível sofrimento.


Leva na memória

O bom que germinou na dificuldade.

É a prova da tua capacidade


E dar-te-á confiança na vitória

Perante qualquer

Muro que se te antepuser.



Milagres


Nos pequenos milagres te concentra

Da vida diária.

És capaz de ver a beleza primária,

Que a trazes dentro em ti e se te adentra.


O mundo é um espelho, devolve a precária

Face em que cada qual se centra,

Reflexo que em si após inelutável entra.

Com defeitos e limites, seja, pois, tua alegria gregária,


Mesmo em meio à crise.

No fim de contas, o mundo

Esforça-se por te ajudar, seja qual for o deslize.


É o teu motivo mais profundo,

Mesmo quando em volta o sumário

Pareça rezar daquilo o contrário.



Lixo


Há um lixo emocional amontoado

Nas tulhas do pensamento,

São dores do passado,

Inúteis de momento,





Precauções que importaram nalgum lado

E hoje não servem a nenhum evento.

Separa o lixo inútil entrevado,

Deita-o fora a teu contento.


Faz parte de tua história,

Não deves abandonar marcas de vida?

Sentir o que já não sentes não é memória,


É grilheta para abrir e que se elida.

Estás mudando e, a cada momento,

Convém que te acompanhe o sentimento.



Tristeza


Não és o que aparentas

Nos momentos de tristeza,

És muito mais, com certeza.

Enquanto muitos partiram, por razões que bem tentas


Entender, tu permaneces, mesmo com pegadas lentas.

Milhões já desistiram da beleza,

Não choram nem se entediam, esperam a correnteza

Do tempo a passar, sem mais ementas.


Por que é que tal existe,

Que nada os renova

Na corrente esquiva?


Estás triste:

- É o que prova

Que tens alma viva.



Maré


De repente, no meio dum confronto interminável,

Tens uma ideia

E em segundos vence a tua maré cheia.

Pensas: por que perdi um tempo inestimável,


Quando, da energia desgastável,

Podia ter poupado mais de meia?

A verdade é que, desenvencilhada, qualquer teia

Parece tão simples que é negligenciável.


A vitória hoje fácil porém, é o resultado

De milhentas vitórias pequenas despercebidas.

Entende, pois, a norma do fado


E, em vez de te culpar de tantas idas,

Alegra-te por, finalmente, lograres acabar

Por chegar.




Dois


Há dois tipos de oração.

Num pedes, dizendo a Deus o que fazer:

Não dás tempo nem espaço ao Criador para ser.

Ele, sabendo o que é melhor, desencadeia a melhor acção,


E tu ficas com a sensação

De nunca te ouvido ter.

No segundo tipo, mesmo sem compreender

Os trilhos da salvação


Deixas que em tua vida

Se cumpra o desígnio criador.

Pedes também, mas rematas a prece convencida:


Cumpra-se a Tua vontade, Senhor.”

O esclarecido toda a prece peneira

Para orar apenas desta maneira.



Pequeno


Das línguas as palavras mais importantes

São de pequeno teor:

Sim, Deus, amor...

Com facilidade saem, são gritantes,


E preenchem gigantescos espaços hiantes.

Uma outra, quase um pormenor,

Muitos insistem em àquelas justapor,

Embora em dizê-la fiquem hesitantes:


É o não.

Quem nunca o diz é generoso, compreensivo, educado,

Já que aquele termo é maldito, egoísta, materialão.


Mas dizer sim a outrem e não a si, cuidado:

Com os lábios nunca digas sim

Quando o coração te disser não, ao fim.



Mandamentos


Há os culturais mandamentos

A que nunca deverás obedecer.

Primeiro, Deus é sacrifício: há que sofrer,

A próxima vida é que tem edénicos condimentos.


Segundo, são de criança os divertimentos,

Vive tenso. Terceiro, os outros hão-de saber

O melhor para nós: que no-lo mandem fazer.

Quarto, o dever é dar a outrem felizes momentos,


Mesmo que renunciemos ao deveras importante.

Quinto, não bebas felicidade, que podes gostar

E não a terás adiante.

Sexto, somos culpados, o castigo é de aceitar.

Sétimo, o medo é um alerta, não corras riscos...

- Ora, quem tal cumpre, despejou de alma os petiscos.



Grupo


Um grupo enorme atulha a estrada,

Barrando o caminho que leva ao Paraíso.

O puritano pergunta: “por quê os pecadores sem juízo?”

E o moralista: “a prostituta quer banquetear-se à entrada!”


O guardião social: “perdoar à adúltera que há pecado?!”

O penitente arrepanha-se: “curar quem só tem siso

Para a doença e nem agradece quando é preciso?!”

O asceta esperneia; “que derramem hás deixado


Óleo caro no cabelo! Por que não vendê-lo

Por comida?”

Jesus, sorrindo, à porta quebra o selo


E aberta a segura, desmedida:

Os iluminados entram, nem ligam à desarmonia

Da histérica gritaria.



Esperto


É esperto o adversário,

Quando pode usa das armas a mais eficiente,

A intriga convincente.

Não precisa de esforço, para ele trabalha um tumultuário


Magote de gente.

Com termos enviesados, é destruído um rosário

De anos de dedicação, de busca de acordo solidário.

Frequentemente


És vítima da armadilha solta ao vento.

Não sabes donde vem, nem como provar que a intriga é falsa:

Sem admitir defesa, condena-te sem julgamento.


Aguenta o efeito, a punição imerecida, que o que te exalça

É sofrer em silêncio, sem arma igual que te resguarde

Porque tu não és, como o inimigo, um covarde.



Inteligência


Por mais inteligência que dês ao tolo,

Ele apenas quer a tua.

Quando em seu jardim actua,

O experiente repara que alguém lhe espia o solo,





Gosta de dar palpites desde a rua,

Como semear actos, adubar ideias, regar o bolo...

Se lhe deres atenção, acabas-lhe ao colo,

O jardim já não é o teu, mas o dele, uma falcatrua.


Cada jardim tem seus mistérios

Que apenas o jardineiro decifra:

Olha o sol, a chuva, das estações os perfis sidéreos...


O tolo perde a cifra:

Sobre o jardim alheio ao dar ideias tantas

Não cuida das próprias plantas.



Fiéis


No confronto, olhos abertos

E companheiros fiéis ao lado.

De repente o companheiro há mudado

E advém adversário dos mais expertos?


Primeiro é teu ódio desregrado,

Mas aprende que os cegos não estão despertos

Mas perdidos nos poeirentos desertos

Que o confronto houver disseminado.


Olha o bom do antigo aliado,

Compreende o que o levou à muda,

Que feridas o tempo lhe tem acumulado,


Que é que fez com que o diálogo desiluda.

Ninguém é bom ou mau inteiramente:

Lembra-te quando o adversário tens em frente.



Fins


Fins não justificam meios,

Porque apenas há meios, jamais fins.

Do ignoto a vida leva a ignotos confins,

O mistério apaixonante é o dos permeios,


Ninguém sabe donde veio nem para onde vai, entremeios

Somos, de algo desconhecido afins.

Mas não é por acaso que trepámos a estes patins,

Com a surpresa nos alegramos, horizontes lindos e feios,


Paisagens ignoradas, muitas vezes metem medo...

Se apenas pensa na meta, não olha os sinais do caminho,

Se se concentra numa pergunta, o caminheiro cedo


Perde as respostas que ao lado correm de mansinho.

Quando atento, nada o cega

E, então, se entrega.




Cascata


Para o bem e para o mal

Há sempre o efeito em cascata.

Quantas vezes, quando alguém mal se precata,

Age erradamente contra quem nem deu sinal!


Então, por covardia e ressentimento, este tal

A descarregar a raiva num mais fraco desata

Que noutro descarrega e assim sempre: à malapata

Da corrente infeliz ninguém põe ponto final.


Ninguém sabe os efeitos

Da própria crueldade.

Cuidado, pois, com os adversários eleitos,


Na hora da raiva esmurra as paredes da cidade:

A criança que apanhou, ao invés da mão que sara a ferida,

Ficará marcada para o resto da vida.



Ordem


Quando chega a ordem de mudar,

Lembra os amigos que fizeste na viagem,

Os que aprenderam a ouvir música de luar,

Os que das lendas aprenderam a mensagem.


Ficas triste, se calhar.

Os consagrados, porém, quando agem,

Obedecem Àquele que mandar

Do fundo de seu imo na triagem.


Agradece aos companheiros

De jornada, respira fundo

E segue adiante pelos carreiros


Do mundo,

Da jornada e suas contradanças

Animado das lembranças.