TRILHOS DA LONJURA
Viagem
Se vale a pena, ao corpo não requer
A viagem por fazer, nem aviões,
Nem caminhada alguma de quenquer:
Sem do sítio sair nos faz correr
E o corpo petrifica, se o impões.
As melhores viagens são aquelas
Que nos farão parar e, nem por isso,
Deixarão de trazer-nos, por sequelas,
Levar-nos a mexer e abrir janelas:
Pelo assombro nascemos com o enguiço.
Custo
Quem quer a liberdade a todo o custo
Que lhe importa oprimir para ser livre?
Tirano é o libertino radical,
Libertino extremista: o preço é justo.
Acredita que vale quanto o livre
Para fazer aquilo que, afinal,
Apenas há-de ser o que bem quer:
- Tirano é o libertino com poder.
Mais
Importa colocar em todo o amor
Mais amor até que ame sem medida,
Mais gente do amor dentro, para o impor
Mais cheio, sempre a enchê-lo de seguida.
Importa de mais vidas toda a vida
Dum amor preencher: um filho apenas
É mais vida na vida repartida
Dum amor que os merece às mil centenas.
Inteiro
Só quando um imo inteiro desvendarmos,
O corpo inteiro então desvendaremos,
Que o corpo é consequência de visarmos,
Nunca a causa daquilo a que apontemos.
Quando amamos, o corpo é sempre efeito,
Nunca causa, pois vem depois de tudo,
De tudo atrás, jamais levando a eito
Nem à frente do preito a que me grudo.
O corpo é, pois, o fim que me aparece,
Que todo o meu começo me merece.
Argumento
Mais vale um argumento de matar
O adversário que aquele outro argumento
de matar o argumento que adiantar
O adversário que enfrente no momento.
Sem vida, um adversário raramente
Um qualquer argumento tem em mente.
Aliás, pode tê-los, na medida
Em que houver argumentos mas sem vida.
- É a lógica de toda a ditadura:
Do lar ao mundo doemos-lhe a figura.
Concentrado
O amor é tudo o que existes
Concentrado em toque leve,
Mão na mão, com mil despistes
Do coração, pulo breve.
Depois do toque da mão
A palavra não importa,
Que o que quero ouvir então
É o que a pele diga à porta.
Só a pele vai conseguir
Falar o amor, a seguir.
Viver
Procuro sempre viver,
Não apenas andar vivo,
Não num vazio esmoler
Com gente em redor que esquivo.
Só quando em mim dentro houver
(E não em redor do arquivo)
Gente é que sinto viver.
Dentro
Chantageado e chantagista
Moram dentro da chantagem,
São de vítimas a lista,
Ambos na mesma triagem.
E, por muito que se enganem,
Tudo faz que ao fim se danem,
Repartido por igual
De ambos eles todo o mal.
Pinta
O pintor que pinta, pinta
O que os olhos nunca vêem,
O que ultrapassar a tinta
Do que vir e os mais nem crêem.
Pinta o que no dado dado
Não é dado a ser olhado.
Só nos vale a pena ver
O que se ver nunca pode.
Pintar vale então por ser
O que nem ver nos acode.
Vingança
Amar, amar a vingança
É o amor que sobra à solta
A quem ama e não alcança
Quem recusa amar de volta.
A estranheza desta via
De só na vingança envolta
Se saciar o amor sem volta,
É que nunca se sacia.
Certo
Se a vida entrou no rumo certo,
Algo está prestes a perder-se.
Não há caminho no deserto
E o mapeado não se exerce.
Fomenta a vida extraversão
E assim nos talha a nós caminho.
Rumo que finde em nosso chão
A lado algum leva vizinho.
Morte
A morte mata mais gente
Do que a que leva consigo.
É o pecado mais ingente
Que ela deixa sem abrigo.
A morte não mata, breve,
Só corpos que ao caixão leve.
Deixa para trás pessoas.
E, se perdeste quem amas,
Já lhe não cantas mais loas,
Morreste nas tuas chamas.
Águias
Andam águias a adejar
Se se atira o amor ao mundo.
E não há no céu lugar
Bastante a um amor tão fundo.
Se, quando olhas para o céu,
Todo é diminuto a mais
Para lhe lançar ao léu
O que sentes que é demais,
Então, do fogo ao calor,
Tudo é deveras amor.
Redutor
Nada é mais redutor
Que em dois corpos reparar
Só vendo o que ambos a par
Farão em nome do amor.
Entre dois corpos importa
O que entre os dois estiver.
É sempre entre que há uma porta
Ou não e nada é de ver.
E, se alguém julga que é física,
Mais que doente é de tísica.
Acreditar
Se te leva a acreditar
No que sentes, é o amor.
Não vai o amor precisar
De sensações, ao se impor.
É de mãos atrás das costas
Que abraçamos um amor,
Deixando entrar o que gostas,
Entrar-te em lume e fulgor.
Assim te irei abraçar,
Sem a pele interferir
No que não cabe em lugar
Algum de o corpo gerir.
Parar
Parar naquele momento
Em que todo o movimento
Só serve para estar quieto
É um segredo bem secreto
Que fará parte do rol
Só dum minúsculo escol:
Estar quieto é um tal estar
Que antónimo é de parar.
Preciso
Temos o preciso
Para termos tudo.
O amor é conciso
E é nada, contudo.
O amor, quando em alta,
É que em tudo está.
Nem o que nos falta
Falta nos fará.
Ficção
Toda a realidade é curta
Ao viver uma ficção.
A maior que a mim ma furta
É sempre a do amor-paixão:
Quando tudo em meu redor
Me parece uma ilusão,
Então deveras é amor.
Tudo
Ser feliz não é ter tudo,
Antes tudo é nunca ter
E tudo nunca sentir.
Ali pensando, contudo,
Que o bastante que tiver
É tudo o que pode haver
Na vida que quer seguir.
O maior tudo de tudo,
Do pequeno ao mais graúdo.
Direito
Há muito já que o direito
Deu, afinal, para o torto.
Quem tem direito tem jeito
Para se perder no porto,
Sem direito, e acabar morto.
Quem tem um direito a haver
Raramente o irá colher.
Quem tem um direito é ralo
Vir então a saboreá-lo.
Contabiliza
O amor não contabiliza,
É tentar sempre, tentar
A derradeira baliza
Do jogo que se jogar
E mais além ainda visa.
Nenhum “não” é derradeiro
Quando alguém ama, nenhum
Definitivo ou cimeiro.
Não há mesmo “não” algum
Quando alguém amar inteiro.
Ilegal
Se obriga a ser ilegal,
Então é amor que, afinal,
Ilegal é todo o amor.
Tudo o que houver em redor,
Quando se amar, está fora
Da lei que lá dentro mora.
Qualquer amor, afinal,
Há-de ser sempre ilegal.
Pior
Pronto estar para o pior
É meio caminho andado
Para o pior ter ficado
Pronto para se te impor.
É aumentar a timidez
Já de si fraca de vez
Daquilo que for melhor.
Espera
Só espera de que aconteça?
É meio caminho andado
Para não acontecer.
É meio caminho adiado,
Passo a passo, peça a peça,
Caminho por percorrer
Para aquilo que é esperado
Não vir nunca a acontecer.
Tirar
Ninguém entende se a vida
É prémio ou é castigo.
Ninguém entende, em seguida,
Mesmo da lei ao abrigo,
Se tirar a alguém a vida,
Assinando este proémio,
Dando está castigo ou prémio.
Pilar
Em pilar de quatro faces
Repousa a felicidade:
Família, comunidade,
Trabalho mais fé que abraces.
Sendo todas desiguais,
Imprescindíveis são todas:
Lar e labor pesam mais,
Terra e crenças são as codas.
Imunitário
Um sistema imunitário
Emocional permanente
Defende do afecto vário
Negativo que em mim sente.
Mais rápido do que espero
Me cura com fiel esmero.
O fisiológico espelha
O que dentro me aconselha.
Compra
Não cumpre a compra de bens
A promessa de felizes
Nos tornar e não reféns.
São de sentir as matrizes
Que connosco vivenciamos
Que, se boas, dão raízes:
Como nos relacionamos
Com os mais, se equilibrados,
É que nos livra dos amos;
O envolvimento nos fados
Da comunidade em volta
É que ao sonho traz traslados.
Então, numa vida solta,
O Infindo em todos os lados,
É feliz a humana escolta.
Foca
O que se sentir feliz
No que o faz feliz se foca.
O que se sente infeliz
O que infeliz torna evoca.
O que goza satisfeito
Foca aspectos positivos,
O que sofre insatisfeito
Afoga-se em negativos.
Se atento no inatingido,
Ficarei decepcionado,
Mas, se é no já conseguido,
Progrido por todo o lado.
Desagradável
A emoção desagradável
Não é bem valorizada:
É o porteiro confiável
Da nossa melhor entrada.
Do melhor de nossos traços
Na tela se pintarão
A empatia, os abraços,
O altruísmo, a compaixão
E, no fim, a confiança
Que os corações nos alcança.
E cultivo a gratidão
Do positivo que tem
A vida que tenho à mão
E que a mais ninguém advém.
Muda
Viver sempre interessado
Na muda das estações
É de espírito um estado
Melhor do que apaixonado
Ficar pelas ilusões
Duma primavera ausente
Que se quer perdidamente.
Santinho
Se convences o santinho
De que é livre de pecado,
Pedras atira ao caminho,
Joga bombas no mercado
Num entusiasmo daninho.
E não é preciso esforço,
Que é bem fácil convencê-lo:
Basta-lhe um mínimo escorço
De álibis – todo é desvelo!
Mentirosa
Toda a mãe é mentirosa,
Diz o que devera ser.
Monstros, fantasmas? Mal glosa
O que o filho lhe requer:
Sempre ali, de olhar atento,
A mãe protege o rebento...
Da boa intenção é a lira,
Mas é sempre uma mentira.
Nobre
Um coração nobre não,
Não abandona um amigo
Se em dificuldade então
Ou se se lhe perde o abrigo
Num ambiente que é ominoso
Velhacouto criminoso.
A amizade ou é eterna
Ou é uma reles baderna.
Estilo
Não é técnica ou estilo,
Pois cada conceito novo
Requer, provoca, tranquilo,
A técnica onde o perfilo.
Um artista, como um povo,
É sempre instável, aberto,
De impressões novas coberto.
Contumaz
É contumaz o saber
E tanto que, usando-o mal
Sábio quem presume ser,
Antes ele há-de querer
Do céu vir ao pantanal
Que da terra desdizer:
Antes no inferno maldito
Que o dito dar por não dito.
Irmãs
A verdade e a semelhança
São irmãs tão parecidas
Que o verosímil alcança
Ter da verdade as medidas
E o verdadeiro, se não
For verosímil, então
De repente nos falece
Porque falso nos parece.
Trabalhar
Custa a se acomodar tanto
A lavrar para viver
Quem se habituou, entretanto,
A uma vida airada ter,
Que esta tal dificuldade
É que as artes a inventar
Findou, por necessidade,
Que são artes de furtar.
Em vez de comer o pão
Do seu rosto com suor
Finda a comer o ladrão
Suor e pão, doutrem labor.
Próprio
Viver do próprio quenquer,
Mas que grande penitência!
Já do alheio, se puder,
Mesmo a pão e água na essência,
Seja lá qual for o abalo,
É sempre um grande regalo,
Tão saboroso recheio
Tem sempre o sabor alheio!
Ladrões
Há muitos ladrões de ofício,
Muitos ofícios ladrões
Que não pagam benefício,
De quem labora os quinhões.
E de nações quanto ofício
É de ladrões desde início!
E quantas navegações
Não deixam outro resquício!
Que importa da lei o aval
Quando é de ladrões fanal?
Luzir
Luzir entre conterrâneos,
Muito mais com própria luz,
Em quantos mil sucedâneos
A inveja sempre o traduz!
Já luzir com luz alheia
Há sempre tantos e tantos!
Mesmo parca, é de mão cheia,
Mesmo feia, é só de encantos.
Alumiado
Poder ver alguém a luz
E ser dela alumiado
A qualquer homem conduz.
Ser dela à verdade alçado
E testemunhar o que é,
Só de algum iluminado,
Que os mais nem dela dão fé.
As trevas são mais amadas
Do que a luz foi algum dia
E assim são desestimadas
As mãos onde a luz luzia.
Dos homens tal é o juízo
Por ignorância ou malícia
E é desta falta de siso
Que provém toda a sevícia.
Ver
O não ver quem pode ver
É falta de objecto ou luz
Ou de seu olhar não ter
A acuidade que o traduz.
Importa adquirir visão
Para o Além captar então.
É que hoje fica ao alcance
Desde que o imo lhe lance.
Invejoso
O invejoso é sempre o amigo
Do passado e, do presente,
O declarado inimigo
Até que a morte o rebente.
Aos ancestrais que aqui amam,
Se no passado viveram
Foram os que os laços tramam
Àqueles que hoje veneram.
Como as mesmas maravilhas
Que agora tanto enaltecem
Outrora seriam cilhas
Que quebravam e aborrecem.
Vagar
Quando um bom lugar vagar,
Correm mil atabalhoados
A preencher o lugar.
Não é pelo bem comum,
É só pelos ordenados,
A cada qual cada um.
Na multidão em tropel,
Não vão encher o lugar,
Encher-se irão só com ele.
Súbdito
Mundo onde o súbdito manda
E é o senhor quem obedece,
Na confusão se desmanda
E a desordem acontece.
Nada cresce, nada opera,
Quem é mais forte triunfa,
O de baixo chora e espera.
Nem sequer do sol a trunfa
Nasce agora para todos:
Os de cima têm luz,
Cá em baixo, de treva engodos
É o que a sorte lhes traduz.
Primeiro
Motivo de ser amado
É o de então amar primeiro,
Que ao coração congelado
O derrete por inteiro.
Mesmo o que antes não quisera,
Depois de amado se ver
Muito pouco fica à espera
Antes de corresponder.
Mesmo um coração de ferro
Pelo íman é atraído
Quando a força neste encerro
Daquele amor prevenido.
Mais
Quem por herança for mais
Aceite chamar-se menos:
Só tem direitos reais
Quem por mérito os tem plenos.
A grandeza hereditária
Não vale ante a merecida,
É vigarice sumária
Ante aquela que tem vida.
Desempate
O desempate feliz
Dum combate muitas vezes
Foi a fortuna que o quis,
Não valor contra os reveses.
Vitória de venturoso?
Só ferida é de valente.
Alheio é daquele o gozo,
Ferida é deste a patente:
Só quando o sangue lhe estua
A vitória torna sua.
Pés
Tudo o que aos pés não desprezo,
Que o estimo na cabeça,
Ou com amor lhe dou peso,
Ou o ostento, linda peça,
Ou desejo por cobiça,
A mim, por fim, tanto enguiça
Que, longe de ser senhor,
Antes sou daquilo escravo,
Domina-me sem pudor,
Da prisão sinto-lhe o travo.
Sendo isto uma lua cheia,
Nada sou do que ali creia.
Viver
Só sei viver para mim
Se para mim não viver:
Quem para si vive, assim,
Para um só tenta colher.
O que vive para todos
Para si vive melhor:
De todos ao ser os bodos,
Também seus são de supor.
Maior
Não dão por grande o negócio
Pela maior qualidade
Mas por maior dele o bócio
Na comum morbilidade.
O negócio não é grande
Por dar lucro sem entrave
Mas porque ao pequeno mande
Bem comum que o desagrave.
Adoece
O grande sempre adoece
Dum interesse privado:
Desdita a dita parece
Se a vê partilhada ao lado.
Então a alheia desgraça
É que é a própria ventura:
O bem é bem se não passa
Dos mais à vida e figura.
E nunca ficam ditosos
Se contra os mais nunca grassa,
Em contraste com seus gozos,
Então alguma desgraça.
Falsa
A moeda falsa melhor
Corre se corre entre as mais,
Doutro modo era maior
O risco de dar sinais.
Capa de zelo comum
É o mais seguro coberto
Do empenho próprio de algum
Oportunista que é esperto.
Dependentes
Os grandes tão dependentes
São da própria opinião
Que os erros mais incoerentes
Para a não largarem dão.
Tal descuido descuidado
Deles é a chaga do lado.
Dilema
Se te disser a verdade,
Não serei de teu agrado
E, se for de teu agrado,
Não te direi a verdade
- É o dilema ponderado
De qualquer fraternidade.
E só com peso e medida
Se lhe encontrará saída.
Pequenino
Somos todos tão pequenos
Num mundo tão pequenino
Que admira, sendo terrenos,
Termos infindo o destino.
O que a todos mais ilude
É o canto da nossa voz:
Sempre a nossa plenitude
Rasga infinitos em nós.
Antiguidade
A antiguidade da obra
Não lhe acresce a qualidade,
Apenas o tempo sobra
Contra a inveja que a degrade.
E o autor mais venerado
Há-de ser depois da morte
Do que em vida houver logrado,
Com bênçãos da boa sorte.
Subversiva
Subversiva actividade:
Desculpa da linha dura
Para impedir a verdade
Da reforma que além fura.
A linha dura, porém,
Sem aquilo ia cuidar
Que tudo, afinal, vai bem,
Nada mais ia mudar.
Sem uma pressão qualquer
É a morte sempre a crescer.
Tragédia
A tragédia, após o mal,
Trilho é de sabedoria.
Errar é-nos natural:
Reconhecê-lo, afinal,
E corrigi-lo, eis a via.
Apenas orgulho é fado
Que jamais é perdoado.
Quebrar
Quem quebrar uma promessa
A si próprio se degrada.
Perde os dedos peça a peça,
Deficiente, tropeça,
Não tem mais rumo na estrada.
É, mais que insuficiência,
De alma uma deficiência.
Falhar
Ficar feliz por falhar
Hipótese é de aprender,
De o mesmo erro se evitar
No futuro que vier.
Se pudera descartar
Todo o medo de falhar,
Apto logo ficaria
À escolha certa do dia.
Irrisório
Com tempo, mas que irrisório
Quanto antes nos molestou,
Outrora, quando durou!
E o acaso, como é inglório
Que na infância, adolescência
Nos impôs tanta inclemência
De pessoas e de eventos
Cheio apenas de tormentos!
Com o tempo, em cinza o pranto,
Como pôde doer tanto?
Terror
Num regime de terror
O que apenas nos importa
É só um dia a mais apor
Ao que hoje a dor mal suporta.
É não ver e não ouvir,
Temendo, na ocasião,
Mesmo sem nada sentir,
Ir despertar atenção.
O terror anula o ser
E, em prol da sobrevivência,
Despoleta sem querer
Quenquer a pior violência.
Eterno
Toda a gente acreditar
Quer no eterno amor possível,
Mas é confuso, em lugar,
O amor que é por nós vivível.
Tal como a vida, dá voltas
Que ninguém logra prever,
Deixa em rasto pontas soltas
De mágoas atrás a arder.
E é nisto que ao fim é eterno:
Em pontas de céu e inferno.
Mistério
Tudo, ao começo, é mistério
E é mistério tudo, ao fim.
Como é que da Fé o império
Verdades me impõe a mim?
É o dogma que mata a vida
Em toda a Fé conhecida:
É Cruzada, Inquisição,
Fundamentalista Islão...
- Em crença que se organiza
Sempre aquilo é que ao fim visa.
Mesmo se mal se aproxima
É, contudo, aquele o clima.
É o pecado original
De qualquer fé que é real.
Quem é que as almas liberta
Da corda que a gorja aperta?
Quando é que a fé se persuade
Que só Deus tem a verdade?
Ódio
Da virtude faz pecado
E da verdade, mentira
Qualquer ódio cultivado
Por preconceito na mira.
A inocência então castiga
E a culpa livra na briga.
- Nem com ódio nem amor
Há juízo sem pendor.
Remédio
Remédio que era excelente
Com conta e bem aplicado,
Se fora mal preparado
É veneno que atormente.
Rio que corre no leito
Fecunda, enriquece, irriga.
Quando inchado inunda e briga,
Destrói um país a eito.
Tudo tem que ter medida,
Senão mata o que dá vida.
Chorando
É chorando que inaugura
Por castigo a sua vida
Este animal que se apura
Destinado, homem na lida,
A dominar sobre os mais
Pela culpa que anotais,
Uma culpa sem sentido:
- A de apenas ter nascido.
Instituição
Na pública instituição
Quem é recto e competente
Não há-de trepar do chão,
Mas quem engraxar luzente
A bota que convier
E que conspire intriguista
Para afastar do poder
Quem se lhe oponha na pista.
No logradouro maninho
É o que nos mina o caminho.
Derrubar
Sempre que um país consegue
Um bom homem arranjar,
Logo algo o vai derrubar
Como sina que o persegue.
Porque o derrubam, porquê?
Porque se preocupa mais
Com o país em que crê
Que com partidos boçais,
Com a família ou dinheiro.
Isto é que é do abismo o aceiro.
Ora, se me quero vivo,
O primado é colectivo.
Origem
A origem é um acidente.
Porque é que ela há-de ditar,
Ascendente ou descendente,
O rumo da vida a par?
E porque o há-de o dinheiro
Dela sempre o fiel rafeiro?
Viva civilização
Só mesmo quando ambos vão
Despejados cano abaixo
Como pútrido escalracho.
Ideal
Todo e qualquer ideal,
Quando se torna sagrado,
Imposto dogma intocado,
Devém semente do mal.
Foi assim no judaísmo
Transformado em povo eleito,
Abandonando, no preito,
A humanidade ao abismo.
Foi assim no cristianismo
Dos dogmas e excomunhões,
Matando nos corações
O Infindo com que me crismo.
E foi no muçulmanismo
Enquanto no mundo implanta
Toda e qualquer guerra santa,
Alá feito cataclismo.
Foi também no comunismo,
Mundo concentracionário
Onde, de totalitário,
Sonhar é um malabarismo.
Todo o ismo é porta fechada
Onde então nunca desponta,
No trilho de Homem que conta,
Nenhum raio de alvorada.
Nasce
Nasce o homem, por direito,
Livre, livre em todo o lado
Mas também, do mesmo jeito,
Igualmente separado.
Chegamos aqui sozinhos
E, na procura do ganho,
Mal se acendem os cadinhos,
Agrupamos em rebanho:
São mil ganhos, são mil perdas...
Vivemos na ambiguidade
Desta eterna imparidade.
- E é o que, no fundo, sempre herdas.
História
História, tudo é da história:
Findou, pois, a pretensão
Dos mestres, com toda a glória,
De eternizar um pendão.
Temporalizar também
Abre o rumo para além:
É que não fechou a porta
Para os orvalhos da horta.
Pulhíticos
De pulhíticos se trajam
Políticos mui daqui,
Tantos que os que não são hajam
Mui apartados de si.
Só prebendas e benesses,
País-teta das quermesses.
E o bem comum de castigo
Mal espreitando ao postigo...