TRILHOS EM CONTRAMÃO
Aluno
Dum mestre o aluno
Que mestre do mestre não fica,
Lado a lado coaduno
Com um porta-moedas de pelica:
O dinheiro que ali reúno
Esta chave o autentica:
- É um péssimo mealheiro aquele aluno!
Quem
Que diremos
Para alguém
Que não sabemos
Quem é, quem,
Nem como, sobretudo,
Mas que vislumbremos
Que pode ser tudo
Que eternamente quisemos?
Crescer
Crescer a pensar
Pode ser
Para não olhar,
Para não ver.
A dádiva disto, o presente
É impedir de ver
O que estiver à frente.
Para não ter de viver,
- Para não ser gente.
Apesar
Apesar de tudo, amar,
Viver,
Sentir,
Arriscar,
Querer,
Insistir,
Crer,
Ir,
Ser...
Apesar de tudo: o conselho
Que o novo tira do velho.
Morte
Se a morte existira,
Fora a vida continuar
Depois que o sonho se delira.
O sonho findar
E ninguém na moradia
Vazia,
Vazia da pessoa.
E ninguém com a energia
De desligar
A ficha do candeeiro que destoa.
Conta
Não é o golo que conta,
O que conta é o que ele traz,
O que oferta aonde aponta,
A adrenalina que faz,
A felicidade quase
Da nova fase.
Nada é mais infeliz
Que um golo que não traz,
De raiz,
Felicidade atrás.
Nada mais vazio
Que um golo que abolorece
No frio
Duma veia que não aquece.
Abraços
Abraços,
Aquele além
Em que ninguém sabe de quem
São os braços.
Apertado e apertador
Em percentagem igual,
O abraço foi a melhor
Maneira natural,
A matriz
Sem par
De a ti próprio te abraçar
Quando estás feliz.
Precisa
Dum corpo quando se não precisa
É que um corpo se ama,
Quando não urge o tacto que avisa
É que urgente o tacto reclama.
Na véspera do desejo
É que os corpos farão sentido
E sentido devirão mutuamente vivido
No ensejo.
Do corpo não precisas,
Do corpo não preciso
E então,
Sem precisão,
É que deslizas
E deslizo,
Volitando,
Dos corpos precisando.
Teu corpo não quero
De teu corpo pela forme,
Não quero saciar, degustar, pelo mero
Desejo que me tome
E consome.
Quero teu corpo como palavra,
Como te quero,
Como tudo que és, a lavra
Que venero.
Não te quero pela fome,
Embora esfomeado de ti,
Quero-te por tua luz que me tome
E me jogue ao Infinito em que te vi.
Absurda
Há uma absurda felicidade
Em teu beijo.
Quero tua escravidão com a severidade
Com que sou teu escravo em meu desejo.
Quero tua demência
Porque já sou louco em ti,
Quero tua carência
Com a emoção com que em ti me fundi.
Quero em teu mar perder-me, gota
Que em êxtase por ti além se esgota.
Escapa
Tudo quanto vale a pena
Escapa ao entendimento.
Espreita, de repente, à empena,
Encontro-o no momento
E tenho de saber
Como o sentir, assimilar, absorver...
E é um tormento:
Não há como o entender!
Chega
Chega a hora em que é de desistir,
Em que desistir é um acto de coragem:
Assumir
A derrota.
Para salvar a frota
Na viagem,
Desistir e trocar de rota.
Pior
Pior é o instante de desistir.
Pior ainda, porém,
É o instante de o decidir,
O instante em que alguém
Se encorajou
E logra proclamar: acabou!
Pior que o instante em que acaba
É o instante que o decide.
Aí a dor assoma pela aba
E a derrota agride.
Pior que perder isto ou aquilo
É ser obrigado a decidi-lo.
Querer
Apenas entendes afinal não querer
O que sempre lutaste por atingir
Quando o logras mesmo ter
Real, à mão, não em sonho a iludir.
Aí findas a descobrir
Que qualquer meta, qualquer,
Sempre a fugir,
Há-de, no fundo, ser
A fingir.
Lindo
Ninguém que eu amo
É velho ou novo.
É apenas lindo – reclamo
E aprovo.
Alguém que eu amo
É alguém que eu amo apenas,
- Proclamo
Em todas as arenas.
E quem amo é o mais lindo do mundo,
O melhor...
- E é o mais elegante e profundo
Que o mundo me poderia propor.
Tocar
A tua mão,
Ao me tocar, leve,
Fez a respiração
Ter sentido, breve.
Respiro com sentido o ar
Só quando algo é tão intenso,
Tão denso
Que me impede de respirar.
Sabe
Sabe a amor
Quando entre nós e o mundo
Alguém vem, querido, se interpor,
Fecundo.
Sabe a amor quando o que vemos
O vemos com alguém:
Não vejo apenas Lua do mar nos extremos
Mas Lua com quem...
Nem há vento além
Mas vento e, ao lado,
Alguém por ele a ser sacolejado.
Quando amo, tudo é quem amo, sumário,
O resto é cenário.
Comem
Que os olhos comem também
São mentiras que consomem.
A verdade, porém,
É que só os olhos comem.
O mais diria
Que é fruto da fantasia.
Na mesa e no amor
Tudo disto anda em redor.
Amar
Amar é ver noutrem o perfil
Que sentir nos faz por mil,
É não saber como é quem se amar
Para além de ser quem amamos devagar.
É olhar quem amamos
Com o traço
Com que olhamos
Um abraço,
Um afago,
Um prazer...
Olhar tão preciso e vago
Que nem precisa de ver.
Ver sem observar,
De olhos fechados.
O que vale a pena vemo-lo, singular,
Fechados os olhos, de iluminados.
Prémio
O amor é o único prémio
Que a vida tem a oferecer.
O resto é o grémio
Do que houver para entreter.
O resto são caminhos
Ao desatino.
No meio dos incontáveis descaminhos,
Só o amor é o destino.
Evento
O amor é o evento incomum
E sortudo
Em que deixamos de ser um
Para ser tudo.
Noutro qualquer
Me transmudo:
Apesar de tudo deixo de ser
Para ser acima de tudo.
Não
Quem ama não é o que é,
É o que o amor o deixa ser.
O amor suga, consome da copa ao pé,
Seca quanto lhe aprouver,
Devora, apaga a chama,
Para depois acender
O fogo que reclama
Quando muito bem quiser.
O amor faz finca-pé
No peito de quenquer:
O amor não é,
Obriga a ser.
Momento
Há um momento em que o amor
Alastra para o exterior.
É a vida do movimento,
Não apenas a do sentimento.
Há um lugar
Superior
Em que em vez de amor
Temos de amar.
Mata
O amor mata
Mas é a única vivência
Que vale a pena, na ocorrência
Da vida que se desata.
Por mais irracional,
Por mais injustificável que seja,
É mesmo por tal
Que o amor se almeja.
É que, se tem justificação,
Perdeu o valor:
Então
Já não é amor.
Herói
O que dum herói faz um herói
Não é aquilo que faz,
É o que sente e lhe dói
Quando atrás do que não lhe apraz.
Herói é quem,
Desfeito de medo,
Vai em frente e faz o que convém,
Na boca com o credo.
Se calhar geme,
Mas vai.
Treme,
- Não cai!
Bandoleiro
O amor é o maior bandoleiro
Que dentro de ti poderás ter.
Nada manipula mais que o amor verdadeiro,
Nada mais cruel que um amor a ser.
Nada mais chantagista que, ao vivo,
O amoroso furor.
Nenhum vício é mais vinculativo
Que o amor.
Vício
Um vício é uma quadrilha
Dentro em nós:
Quando entras, envencilha
E já não podes fugir, desatar os nós.
Quadrilha com um porvir
Sem desquite:
Tudo acaso te permite,
Menos sair.
Todo
O amor todo te dirige,
Conduz-te todo,
Exige,
Coordena-
-Te de modo
Que todo inteiro te condena.
Quando amas,
Amor é tudo o que és,
Todo tu feito chamas
É o que te é permitido de vez.
Ileso
Da chantagem como da vida
Ninguém sai ileso.
Igual é do amor a medida
E o peso.
Da chantagem como da vida
Ninguém sai.
O amor, mesmo levado de vencida,
Mesmo morto, nunca se vai.
Expectativas
Quem é comandado
Por expectativas
Continua a acreditar, enganado,
(Quando já nos mais tudo são notas negativas)
Que ao comando se mantém
Daquilo a que se atém.
Nenhuma decisão é, no fundo, decidida
Quando me meto à estrada:
Mentida,
Toda a decisão é já tomada.
Minha margem de disputa
É muito, muito diminuta.
Atingir
Quando logro atingir o que quero
Reparo que o não quero, afinal:
É que atingi já o topo mero
E então é de parar,
Pondero,
No meio do arraial.
Aí falta-me o ar,
Aí não consigo respirar.
Ninguém se mata por não ter,
Mas por um dia ter tido,
Ninguém morre por não ser,
Mas por um dia ter sido.
Atingido o topo,
Qual doravante meu escopo?
Vemos
Vemos o que nossa expectativa
Quer que vejamos.
Quando algo nos efectiva
A prenda que buscamos,
Nada mais vemos, à partida e à chegada,
Que uma expectativa realizada.
E é tal o interdito
Que nem ouvimos o que então for dito.
Por aqui, a consolação
Tem nela o germe da desilusão.
Pobreza
Pobreza é todo o caminho
Ir dar
Ao mesmo lugar:
É o terreno maninho.
Não é o que és
Que é na vida de reter,
É o que podes vir a ser
De lés a lés.
Não és o que tens ou sentes, sem porvir,
És o que podes vir a sentir.
Morrer
Morrer não é haver outro espaço
Onde imprimirmos o passo.
Morrer é viver noutra condição
Este mesmo chão.
Pode ser, aliás,
Viver muito mais.
A morte ocorre no aquém
Quando alguém fica contentado com o que tem.
A vida é tudo em todo o lugar,
Menos contentado ficar.
Entes
Limitados,
Podemos estar contentes,
Nunca contentados.
O contente quer mais,
O contentado
Ficou saciado
Para andanças que tais.
Verdade
A verdade não custa,
Custa é apagar
A mentira que usamos colocar,
À justa,
Como defesa,
Sobre ela,
Tornando-a indefesa
Cadelinha à trela.
O que nos leva a ir
Da zona de conforto
Desconforta, a seguir,
E não queremos trocar de porto.
De êxtase nenhum momento
Desejável
É, porém, alimento
Confortável.
Dentro
Só o que ocorre por dentro,
No mundo interno,
Na fundura do centro
- É eterno.
Só há lonjura entre nós
Para haver espaço
Após
Para um abraço.
É de tal sorte
A amizade pura
Que é como a morte:
Para sempre dura.
Entenderão
Um dia todos entenderão
Que o espaço,
Entre um e outro o desvão,
É para o abraço
Que trocarão.
Só há espaço
Entre dois
Para o lugar do abraço
Depois.
Todo o espaço é o lugar
Do abraço por dar.
O espaço em branco que advier
É um abraço por oferecer.
Génio
Génio não é o que cria
Obras-primas, é o que as vive.
Faz da vida, com ousadia,
A obra mais brilhante
Que dele derive
Infinita a cada instante.
E o talento supremo da genialidade
É a felicidade.
Vício
Se a felicidade é um vício,
A infelicidade alheia
Ainda o é mais.
Para quem da vingança quer algum resquício
O maior vício que lhe ameia
Não é sentir-se feliz entre os demais,
É muito mais
A infelicidade doutrem sentir
A vir, a vir, a vir...
A quem à vingança se dedica
Nenhuma felicidade se lhe aplica.
O vingador não é feliz,
Foi arrancado,
No prado,
De raiz.
Matar
Matar uma derrota
É não vingá-la
Abandoná-la
Na lota,
Sem lhe mexer,
Peixe morto a apodrecer.
Vai ficando para trás
A ressequir com o pó,
Até de vez fenecer.
Ficarás
Com a recordação só,
Não com o imenso buraco
Que em teu peito,
Feito
Um caco,
Escava, fazendo gala,
Quando pretendes vingá-la.
Desforra
Não há desforra.
Quanto mais a tentas,
Mais aforra
A perda que tiveste
Em novas derrotas cruéis e lentas
Que teu dia reveste.
Se não digeres
E não vais em frente,
Se não queres
Soltar-te, de repente,
Então perdeste,
Da vida no jogo, mais este.
Perder não é derrota que te dão.
Voraz,
É derrota que, por tua mão,
Te dás.
Vitórias
Por mais vitórias que alardeies,
Se as lograste para vingar a derrota
Estarás sempre, no que saboreies,
A saborear a azeda compota
Da derrota.
E nem sinais
De qualquer outra coisa mais.
Pode ter outro nome,
Até simular a luz duma lanterna
De furtacores,
Em tua fome
A iluminar outros sabores,
- Mas é a derrota eterna.
Mascarada
Desforra é a derrota mascarada.
Se a derrota hoje te brada
E o resto da tua vida
É a desforra perseguida,
Sentirás, ao correr de teu intento,
Da derrota o sabor nojento.
A derrota esticas,
Levando-a contigo em teu inferno.
De vez derrotado, ficas
O derrotado eterno.
Incluída
Uma vitória incluída na vingança
É pouco feliz.
Quando muito, alcança,
Na contradança,
Ser menos infeliz.
Nunca perderá o sabor a derrota,
Derrota que a vitória pretende apagar
Indefinidamente
Da rota
Que não segue em frente.
Nada irá eternizar
Mais uma derrota que nos abala
Do que tentar
Constantemente
Desforrá-la.
Reinventa
Qualquer arte reinventa a realidade,
Da realidade trepando aos céus,
Para voltar, límpida e polida como jade,
Mais fascinante que os mais altos coruchéus.
E é o inferno que a alimenta,
Parto sofredor:
O que a acalenta
É do Infinito a dor.
Mãos
Mãos de artista, mãos alugadas
A ninguém.
Qualquer arte tem direito de fruir das dedadas
Que elas têm.
Sempre que ela quer, a magia
Vem
E cria.
Lama
É chafurdando em lama
Que atingirás alma,
Melancolia é a cama
Do estado criativo que te acalma,
Um estado feliz
Na dor,
Por mais infeliz
Que seja o criador.
Entranhas
O artista não vê as entranhas,
Tem de sê-las.
Tem de as sentir, tocar com as mãos tacanhas,
Saber a que sabe o lodo e as estrelas.
Tem de as ser,
Saber o que elas são
E, no que elas são, renascer
Entranhado na lama do chão.
Corriqueiras ou estranhas,
Não é sobre as entranhas
Que ele se pronuncia.
Furando além das inúteis banhas,
Ele cria
As entranhas.
Vêem
O que os olhos não vêem,
Que os ultrapassou,
É sobre o que escrevo aos que lêem
E nem crêem
Que algures se comunicou.
Ler,
Só o que não se pode ver.
Criar pode doer
E dói,
Senão não é criar, é fazer.
E o fazer apenas mói.
Imaculadas
Se tens as mãos imaculadas, as mãos,
Por mais que teu suor
Encha de cimento teus desvãos,
Então não é amor.
Amor é andar a caminho
Com o pó e o suor da estrada
A enlamear cada pegada
À medida que me avizinho.
Acena
Quando por todo o lado
Tudo te acena:
“Fica descansado,
Que vai valer a pena”,
Seja lá qual for
O horror,
- Então, entranhado,
É amor.
Lugar
Colocar quenquer
No lugar
De quem se quer
É alagar
O território vago, assim,
Por dentro de mim.
Nenhuma lâmpada é de trocar pelo sol
A germinar o arrebol.
Depois quenquer vai
E quem se quer fica,
Nunca mais sai,
Sempre ali à bica,
Mesmo quando sei lá bem quem é,
Como nem quando for,
Que tamanho e nome tem de fazer fé,
Que vícios ou virtudes vem propor...
Fica
E tudo então se nos complica.
Condensa
“Tens a tua vida e eu a minha”
- Todo o desamor ali condensa.
Quando se ama é nossa das horas a gavinha,
Em teu e meu já ninguém pensa.
Tudo é nosso,
O mais são restos
Que não remoço
Em meus aprestos.
Quando se partilhar uma vida
Nunca haverá duas, em seguida.
Orgasmo
O orgasmo é o juiz do mundo,
O mais infalível.
Depura, joeira, exige, facundo,
Ingerível.
Tal se fora requerido,
Trepa ao topo da montanha
Para descobrir quem nos é querido
E ganha
Ser quem à base nos acompanha.
E depois cumpre de novo o escopo
De trepar até ao topo.
Custa
O que mais custa não é magoar-me
O que isto dói:
Não doer é o que mais talvez desarme,
Não sentir nada é que mói.
Cruzaste por mim tal se nada ocorrera:
Já te foste
E nem um cheiro, uma gavinha de hera,
Uma palavra, um olhar em que aposte...
Cruzaste por mim na curva da estrada
Tal se eu não fora nada.
Depois
Amar um corpo sem haver depois
É uma entrega ao esquecimento,
Preferir mexer a dois
Só para não parar um momento.
E só depois entender
Quão diferente é o movimento
De apenas andar a mexer.
Se não mexer tudo,
Do cabelo
Ao nervo por baixo da pele
E do pêlo,
É que me iludo
E continuo parado
A meio de quanto me impele,
Ali posto de lado.
Após
Após o orgasmo
Cai de podre o que não dá frutos.
Após um tem de haver outro, de pasmo,
Ou não houve um sequer, se não germinar produtos.
Houve um simulacro,
Um arremedo de cataclismo,
Sem o apelo sacro
Do abismo.
Só depois do orgasmo
Orgasmo acontece,
Quando me pasmo
Com o que oferece.
Só depois da obra vem a coda,
Inteira a sensação,
A vida toda
De supetão.
Se não valeu a vida
Em inédito pleonasmo
Erguida,
Não foi deveras orgasmo.
Milionário
O milionário é imbecil
Se usa o dinheiro
Ou é infeliz, se no carril
De ser dele usado o dia inteiro.
Ou escraviza
Ou é escravizado.
Fugir ou morrer é o que giza,
Não há escolha noutro lado.
O que lhe resta
É escapar de vez ao que de nenhum modo presta.
Momento
A vida vale o momento
Em que foges dela,
Em que logras evadir-te a contento
Para o limbo duma estrela,
Sobre o horto
Que olhas da janela,
Em que não estás morto,
Embora morto para ela.
Morto de prazer e enredo,
De adrenalina e verdade,
Morto de medo,
Morto de ansiedade.
- Aí, vivo,
É que tudo vale, furtivo.
Dinheiro
O dinheiro liberta e prende,
Em dose igual,
Na dor igual que contra nós contende,
Em estilhas iguais, fatal.
Se não usado para fugir,
Então é para agarrar,
Sitiar,
Refugiar
Do que vier a seguir.
O viciado em dinheiro
É dele prisioneiro.
Se não é para se escapulir
Quenquer,
O dinheiro há-de servir
Então para prender.
Atingiu
Quem atingiu tudo o que quis
É tão falhado
Como o que tudo falhou, por um triz,
Em todo o lado.
Uma vez todo o matiz
Alcançado,
Finda parado,
- É um infeliz.
Limite
Se andas a milhas do limite, andas morto.
Se no limite, morto andas.
Viver é o perene desquite
De equilibrar-me nas andas
Da balança instável
Do quase.
Nunca estamos lá,
É sempre na fase
Insuperável
Do quase-limite que nunca aqui está.
Parece agora
E afinal agora é nunca.
Esta demora
É que de vida a vida junca.
Isola
A maior maldade
Da mediocridade
É que isola os capazes
Do rebanho com as tenazes.
Os que valem a pena
Comprime-os e condena
A não terem voz,
Um balido entre mil após.
Por mais que se ergam, ninguém os descobre,
Perdidos no redil
Que os encobre,
Onde quanto não é vil
Entre ruídos mil
Sossobre.
Píncaro
Quem é o píncaro da felicidade?
Quem sonha outrem ser
Ou outrem que é o sonho da humanidade
Sonhado por quenquer?
De que vale o sonho feito realidade?
E a realidade que vale
Sem sonho a que gradualmente se iguale?
Tamanho
O amor é do tamanho de tudo
E nem sequer tem tamanho.
Quando alguém o logra medir, contudo,
Não é amor, é um arreganho,
Um amor de trazer por casa:
Tem paredes incluídas,
Na lareira tem carvões,
Extinta a brasa,
Tem divisões
Erguidas,
Tem fronteiras por dentro
E ninguém ao centro.
O amor não tem fronteiras
Nem métricas fitas,
Com o amor não te limitas
Vidas inteiras,
Mesmo quando aos portões
Houver limitações.
Não há muros
Mesmo onde houver diferenças,
Não há silêncios nas sentenças
Mesmo onde houver mágoas e apuros.
Há o infinito alcance
Para onde quer que me lance...
Densidade
Falta densidade
Ao mundo,
Falta profundidade
Ao fundo.
Falta quem pense
Antes que um acto o condense,
Que se disponha a reflectir
Antes de agir.
Agir é que faz tudo ocorrer?
É o preconceito de quem não quer
Uma estratégia estruturada,
A única que abre os portões de entrada.
Sem tal, prosseguir
É pior que não agir.
Dobrar
Amar é sempre a dobrar,
Nada curva mais que amar.
Agonizado de felicidade,
Encontro-me comigo
Ao centro de mim.
Ir ao centro requer flexibilidade
Tão sem abrigo,
Tão sem fim,
Que não é para quenquer,
Apenas alguns eleitos a logram ter.
Quem, pois,
Quem um fará de dois?
Crescer
Crescer, que a rebeldia
É muito pouco.
Viver cada dia
Como o derradeiro
É dar um louco
Aval
A uma tristeza sem igual.
Cada dia é o primeiro,
Com projectos, planos e caminhos.
Aos poucos armam-se os ninhos:
Aí, então, iremos rebelar-nos
E, nada maninhos,
Revelar-nos.
Perder
Perder obriga a levantar,
Inquirir e encontrar.
Perder encontra o que ganhar perde:
Ganha aquilo que o ganhar, no que herde,
Afinal perde.
Tudo de bom que perder traz
Só o grande vencedor dele é capaz.
É tão útil a derrota
Que vencer é o momento em que entendes
Que o vencedor é aquele cuja cota
Mais vezes somou derrota
- E aí te rendes.
Lágrimas
As lágrimas valem o peso em liberdade,
Em lágrimas se mede a vida.
Quem nunca chorou de verdade
Nasceu morto, a bandeira no chão, vencida.
Poder chorar
É poder continuar.
Lágrimas que pelos dias deslizas
São de alma teu limpa-pára-brisas.
Aprender
Aprender a sofrer
É aprender a viver.
Suportar, tenaz,
O sofrer que viver traz.
Suportá-lo é ficar pronto a colher
Tudo o que não seja sofrer.
Então o que presta
- É a vida em festa!
Seguro
Sofrer pelo seguro,
Eis o guião para todas as vidas.
Todo o sofrimento que apuro
Merece seguranças garantidas,
Um chão regular
Para poisar.
Importa aprender a sofrer
E, por fim, saber
Sofrer puro
Para jogar pelo seguro.
Tolo
Só um tolo ama acima de tudo,
É tonto.
Mas talvez só o tonto, contudo,
Viva acima sobretudo.
Só ele há-de estar pronto,
À altura
Que viver acima de tudo
Configura.
Tretas
Não tretas, mas actos,
Que minha fé opere mais que o nada,
Mais que o que já fiz de ritos exactos,
Que me leve a alguma pousada!
Que me tire deste jejum
No meio do prado,
Que me leve a algum lado,
Nem que seja a lado nenhum!
Encaixotar
Encaixotar a vida é entender
Que o que importa
Em caixas nunca irá caber.
Colocar a vida à porta
Entender é também
Que apenas o que não é desejável
Para ninguém
É na vida encaixotável.
Erguer
Para alguém se erguer
Não precisa de se dobrar,
Muito menos de cair do lugar,
Basta ceder no dogmatismo, ceder.
Uma leve cedência
E ei-lo a levitar
Sobre a credência,
O mundo inteiro a contemplar.
Ceder
Ceder para não desistir
É a resistência a crescer.
A força, aos poucos, sentir
A voltar a nascer.
Ceder, não como norte,
Como suporte
Para resistir.
E ir.
Revoluções
Todas as veras revoluções
Começam num “eu cedo”
E aí começam os heróis,
Mantendo renovado o credo.
Nenhum herói diz “eu caio”
Ou “eu me entrego”.
Ceder é resistir quando saio,
A coragem de manter raiz no apego.
Muitos são capazes
De mudar o mundo por aí.
Muito poucos, porém, são verazes
A mudar-se a si.
Território
O amor é um território
A que só trepa quem ama.
Embora o amado seja um simplório,
A mais vil das criaturas,
Quem o amar nele aclama
O píncaro das alturas.
Será sempre, dele na chama,
O inefável a quem ama.
O amor
É do Todo-Poderoso
O instaurador
Dos arrebóis:
Apaga com gozo
O antes e o depois.
Bom
Ser bom é também
Amar sem olhar a quem,
Pronto estar sempre para amar,
Pessoa, animal, objecto, terra e mar...
Sem medo de ser demais,
De poder doer,
De poder acabar nos tremedais.
Amar sem mais
E ser.
Futuro
O futuro do mundo
Depende de encontrar um cão, um gato perdido...
O futuro depende, fecundo,
De encontrar todo o caído,
O excluído.
E do fundo
Havê-lo erguido.
Doente
O mundo só pode estar doente
Quando um cão abandonado
O não faz parar, de ausente,
Quando um cão morto o não houver travado,
De repente,
Em estado
Consciente.
Mendigo
O mendigo,
De bolsos cheios agora,
Vai embora.
Vira costas, já não quer nada comigo.
A rua em que ganha a vida
É a rua em que a vida ganhei:
Não foi da nota em meu trabalho recebida,
Foi da nota que lhe dei.
Ganhei o dia, após o amanho,
Dando, como o dia deve ser ganho.
Se ganho dando todo e cada dia de suor,
Então é amor.
Fome
Um abraço com fome
É fome sem abraço,
É fracasso que se come
A meio do cansaço.
Do fracasso da fome para além,
Quando há fome que não come,
Tudo ficas aquém,
Por detrás da fome.
Nenhum amor resiste
Quando a fome persiste.
Bom
Ser bom,
Além de não magoar,
É também conseguir olhar
Quando o mais fácil é não.
Abrir os olhos
Quando fácil é fechá-los.
Ser alguém sem antolhos,
Entender que, se anda à frente dos olhos,
Sejam quais forem os abalos,
É para ser visto,
Cancro seja embora ou quisto.
Um homem como eu
E quase lhe sinto o medo sob as veias,
A dor por debaixo das ameias
Do castelo que ruiu.
Quase lhe vejo, sem ter de comer,
A família a doer.
Demais
Não há coisas boas a mais,
O bem demais não existe.
Problema é quem não tem coisas tais
Que aliste.
Nem casa, nem pão, nem água,
Nem felicidade
Que mesmo por momentos quebre a mágoa
Da inacessibilidade.
O problema que arranha
É quem não tenha.
Diferença
A injustiça
Fatal
Da diferença é que a diferença se enliça
No que devia ser igual.
Entre iguais como os humanos,
A diferença no essencial
Não devia nunca ser esta base de enganos
Universal.
Primeiro, comida
Casa,
Bebida...
Depois, debaixo de tal asa,
As diferenças
De mil e uma sentenças:
As que valem a pena,
Que enricam a diversidade,
Que dão cor a cada cena
Da comédia da Humanidade.
Sonhador
Sonhador sem eira nem beira,
O sonho é o mais grácil espaço
Daquilo que faço
Na minha esteira.
É o que me leva a andar,
Por ele me mexo e luto,
Insisto e persisto em avançar,
Não desisto até ao fruto.
Sou um sonhador
Da verdade
Que é o mais lindo teor
Da fugidia realidade.
Por mais que seja inapto,
É pelo sonho que a capto.
Tenho
Tenho tudo o que quero.
Quem tem tudo e busca mais
É um zero,
Embora o elevem a cumes geniais.
Quando temos tudo,
Tudo o mais que em redor fica na estrada,
Aquém ou além, é, sobretudo,
Nada.
Muito
Entre ter muito dinheiro
E ter muita felicidade,
Quando me inteiro,
Não há nada, na verdade.
Os melhores momentos da vida
Ocorrem quando pouco ou nada
Na carteira convida
A festa pegada.
A importância do dinheiro
Afinal é um peso,
Quando dele me abeiro,
Ileso,
E debaixo dele fico soterrado,
Por todo o lado
Preso.
Acima
Acima da felicidade não há nada,
É o vazio.
Não quero mais que o que tenho em cada jornada
E confio.
O verdadeiro engenho
Com que vida fora vou
É desfrutar apenas do que tenho
E sou.
Desafio
O grande desafio é ser feliz.
Quando me levanto,
Tudo o que quis
Do dia em todo o recanto,
Na fruta dos meus quintais,
É ser feliz e nada mais.
É que mais não existe,
Ser feliz é o topo da fasquia,
A maior riqueza que persiste
Em cada dia.
Feliz
Feliz de quem logra encarar
Cada vitória e cada derrota
Como constituintes naturais, a par,
Dele próprio na própria rota!
Profissional
Derrota ou vitória,
Ou pessoal,
É igual a memória
E a glória.
A capacidade
Construir do imo por dentro,
De à felicidade ou infelicidade
Relativizar,
Enquanto vida além me adentro,
Sem deixar
De fruir
De quanto delas puder extrair.
Sozinho
O psicólogo é o deleite
E o carinho
Comunitariamente bem aceite
De andar sozinho.
Quando queres e não tens força
De andar só, dado o abalo,
O custo apenas orça
A procurá-lo.
Perito em estar calado,
Perito em ouvir
O fundo dorido de teu brado
Antes de seguir,
És tu a te quereres discernir.
Conhecer-me
A mim próprio conhecer-me
Era o mais assustador
Que poderia ocorrer-me.
Há que fugir de mim um ror
Não vá mesmo acontecer
Que, por má sorte,
Venha demais a saber
O que sou e o que transporte.
Sozinho
Andar sozinho, a melhor maneira
De fugir à solidão.
Só comigo, comigo à beira,
Ouvindo o que houver a dizer em meu serão,
Tocando com minha própria mão
O próprio medo,
A própria frustração,
O ponto negro em que cedo.
Solidão é incapacidade
De andar sozinho,
De nos sentarmos ante nós de verdade,
De olhar, dizer e mudar água em vinho.
Dizer o que é de dizer,
Fazer o que é de fazer.
Sem fugas, sem os mais:
Os outros são forma de evitar-me e a meus sinais.
Andamos por ali, à volta de nós,
Acreditando, para não doer,
Que noutrem é que andam os nós
Por resolver.
Ligeiramente doutrem perto
Leva-nos a crer
Que fora de nós decerto
Andaremos a viver.
Mas não, andamos sempre cá dentro,
Nem sequer existe o fora
Para mim que ando em meu centro
Perenemente em cada agora.
Quanto mais ando para fora de mim,
Mais para dentro de mim ando,
É o espelho sem fim
Em que me demando.
Quão mais de mim saio,
Tanto mais em mim entro,
Quão mais me traio,
Mais me centro.
De mim fugir, por invivível,
É definitivamente impossível.
Estar sozinho é a cura
Dos problemas que consomem
O homem
Que procura.
Tudo
Ninguém merece ter tudo,
Ter tudo é de celebrá-lo,
Milagre que é, sobretudo,
Raridade de enorme abalo.
Um dia a porta tranca a aldraba
A graúdo e miúdo.
E ter tudo acaba
E acaba tudo.
Desvalorizas
Quando tens tudo,
Tudo desvalorizas,
Crês que é teu agudo
Estado natural.
E ajuízas
Mal.
Dás nisto o passo primeiro
Para breve o derradeiro.
Círculo
É um círculo o amor:
Quão mais longe chegas,
Mais perto de ao princípio te sobrepor,
Quão mais longe te apegas
Mais perto de não ter saído
Do lugar vivido.
Já lá estiveste,
Já lá foste,
Embora aposte
Que nem te mexeste.
Para cúmulo do chiste,
De entrada
Sabes bem que mais existe:
- Que não existe mais nada.
Perfeição
O amor é a estrutura social
Mais próxima da perfeição.
Uma comunidade com o amor como axial
Seria sem mácula então:
Ninguém, de futuro,
Ficaria seguro.
Todos teriam, a toda a hora,
De transformar com todo o fervor,
Desde agora,
Amor em amor.
Cria
Nenhuma ideologia cria ninguém
Mas alguém cria a ideologia.
Nenhuma aparência cria também,
Alguém cria a aparência, todavia.
Não é um curso ou profissão
Que modela uma pessoa,
É uma pessoa que, à toa,
Os modela ou não
Rente ao chão.
Não é a mentira
Que ganha as eleições,
Sempre na mira
Do que de melhor em ti ecoas
Nas ocasiões.
Não é a mentira, são as pessoas.
Toca
No que toca
Ao amor,
Não pode dizer-se
Senão boca a boca,
Tal o calor
Que exerce.
Quanto mais por telefone!
Aí fica o mundo insone...
Incondicional
Para amar, a condição
É ser incondicional.
Somos capazes de amar sem paredão
Nem separador portal.
Estamos do mundo no confim
Para ensinar o amor.
E assim,
Ensinando o amor, fecundo,
Podemo-nos propor
Ir mudando o mundo.
Mudar
Quando mudamos de amor,
Mudar o mundo é de meninos.
Ante a dor
Que é que importam os destinos?
É uma dor
Dentro da qual ficarei mouco.
Depois de morrer o amor
Até o mundo sabe a pouco.
Médico
Se médico nenhum
É capaz de o extrair,
É o amor, o comum mais incomum
A seduzir.
Todo o lugar onde fomos felizes
Entristece
Quando nas matrizes
Fenece.
Nada mais triste, maninho
Nos gramados,
Que um lugar sozinho
Onde fomos acompanhados.
A cada jorna,
O ganho que nela fiz.
Nunca ninguém retorna
Onde foi feliz.
Pior
O pior da vida é saber
Que não há tempo que logre apagar-te.
Vou para longe a correr
E comigo te levo, dentro a acartar-te.
O pior é que vives onde vive
O que nunca acaba,
Não há esquiva que me esquive
E tudo te gaba,
No pior consistes:
- Saber que tu existes.
Continua
O pior da vida é que há os teus braços
E tu continuas e continua a vida
E não há o que nos fomos em nenhum dos traços,
Não há os abraços
Que curavam cada ferida.
Existes, eu sei,
E já não podemos ser o que não fomos nunca.
São pétalas mortas do jardim do rei
O que as pegadas nos junca.
Intensivos
O amor, só nos cuidados intensivos.
Se for noutro corredor,
Então, embora entre os vivos,
Não é amor.
O amor quer cuidados permanentes
Que o impeçam de morrer.
Doutro modo, entre os doentes,
Não é amor sequer.
Esperar
Se te permite esperar,
Não é amor.
O amor não espera no lugar
Nem o consegue impor.
Se tens discernimento
Para esperar o momento,
Então, seja o que for,
Não é amor.
Em amor, quando o repetem,
Até as horas se derretem.
Frágil
Se não é frágil,
Por mais ágil
Que tal for,
Não é amor.
Se amor houver,
Então
Há-de também haver
Uma qualquer
Solução.
Problema?
É o quotidiano tema,
Adivinho.
E é do amor o caminho.
Desespero
Se até o desespero nos une,
É amor.
Se o queres testar, reúne
Com o perdedor.
Quando perdes
E nada tens a oferecer,
Quando menos hás-de valer
Que o tostão furado que herdes,
Aí vais entender
Quem te ama.
Se de abraços te recama
Quando nada tens,
É amor, não são os bens.
Infeliz
Quem diz “fico feliz por ti”
Está pensando, no fim,
“Fico infeliz por mim,
Por não ser eu a estar aí.”
A entrega dum prémio
É um agraciado
Como proémio
Dum milhar que é postergado.
Tudo
Não te conto tudo,
Que tudo é demais.
O segredo é com que grudo
As relações germinais.
O que fica por dizer
Obriga a crescer.
Se não há mais a dizer,
A conversa acaba.
Resta a baba
Para ser.
Ora, então tudo se aldraba
No que vier a acontecer.
Real
Só o que não existe no mundo sensorial
É real.
O resto anda por lá,
Corpo, matéria, aspecto,
Cor, densidade, cheiro,
- Mas afecto
Não há
Nem dele me abeiro.
Por mais que o reviste,
O resto não existe.
Nada
Nada que vemos, provamos,
Cheiramos, ouvimos, tocamos,
Nada é aquilo que lá está.
É o que à luz dos sentidos
E sentimentos vividos
Aparenta que por ali andará...
A aparência
Da evidência
É o que sempre nos enganará:
Nada é o que anda acolá.
Tua
A felicidade que não é tua
Corrói, martiriza,
Afunda-te num algar que te acua
Prostrado, derrotado,
Ante o que de bom desliza
Diante de ti, por todo o lado.
Nada magoa mais
Que a felicidade dos demais.
Nascemos
Tantos anos após
E cada dia nascemos outra vez.
Todos os dias um para o outro mais nós,
Menos eu e tu, mês a mês.
Em todos os refolhos
Em que da vida repararmos,
Quando abrimos os olhos
É para nos olharmos.
Osso
Se, sempre que estiver, estiver até ao osso
E por dentro do osso estiver,
Então posso
Dizer:
Sempre que estiver, está
Inteiro e superior
E transmuda tudo o que há:
- É o amor.
Custa
O que custa dinheiro
É barato.
Só o que não tem preço merece, por inteiro,
Existir de facto.
O toque dela que quiseste profanar,
A pele dela que quiseste manchar
É o que merece existir.
E nenhuma ameaça me ameaça
Se não incluir
A pele por onde ela passa.
Normal
Nada mais estranho que o normal
Nem mais incompreensível.
Anda por andar, fantasmal,
Faz por fazer o exequível
E nada o contagia.
Ora, se não é contagiante, vírus fatal,
Nunca amor poderia
Ser, afinal.
Parte
Há quem chega e há quem parte,
Há quem abrace o abraço,
Quem o abraço reparte
E quem o abraço espera
E desespera.
É o traço
De tanta gente sozinha,
De tanto sozinho abraço.
Contudo, caminha, caminha, caminha...
Pela praça
Do estertor,
Se até sozinho te abraça,
É amor.
Liberta
Se te liberta do que nunca foste
E for
Inteiramente incoerente,
É o amor
Em que aposte
Toda a gente.
Se tiver coerência alguma,
Não amas coisa nenhuma.
Migalhas
Com migalhas se mata a fome,
Embora comendo um pão inteiro.
Se sabe a migalhas quanto se come,
Do amor me abeiro,
Que amor algum
Mata a fome
Em lugar nem tempo nenhum.
Molho
Para um homem grande,
Um molho de jornais são possibilidades
Com que acaso descomande
Da vida as grades.
Para um homem pequeno,
O molho de jornais que obtenha
É, no meio do terreno,
Um monte de lenha.
Um
Ser apenas mais um
Nunca faz a diferença,
Todos ficam em jejum.
Se apenas mais um te sentes, porém, na presença
Dos demais
Aí é que a sentença
Vos tornará desiguais.
Só quem apenas mais um se sente
Logra dos mais ser diferente.
Desprezámos
Se aquilo que desprezámos
Tem valor,
Desprezíveis, sem pudor,
Nos julgamos.
Porque antes ou depois do tempo certo,
O ciúme desperto
À chegada
É sempre na hora errada.
Dois
Entre dois que se amam
Tudo vem da capacidade
De erigir um edifício:
Pedra a pedra o muro acamam,
Tijolo a tijolo da subjectividade,
A fugir da solidão ao precipício.
É complexa a engenharia
Com que tramam, enredam, enramam,
Os dois a real fantasia
De que se amam.
Quanto o logram, ilumina
O amor quanto das mãos germina.
Pedra
Toda a relação
É de pedra.
Fica na mão
Dos que a encastelarão
Enquanto medra,
Se é para separar
Ou para unir
O par,
A seguir.
Sente
Não é o que se não vê
Que se não sente.
Mesmo estando à tua frente,
É o que se não sente
Que se não vê.
Quando se ama, o amor é
Aquilo que, com afã,
Ocupa todo o ecrã.
Onde pode tomar pé
Aquilo que amor não é?
Satisfaz
O amor nunca satisfaz,
Nem à partida nem à chegada,
Não requer paz.
Se não te faltar nada,
Não é amor.
O amor quer mais, nem que seja amargor
Sobretudo
Quando já tem tudo.
Quando
Quando amamos, embora encontrado o amor,
Do amor andamos à procura.
Se cuido que já o encontrei, amor então não se configura,
Que amor é busca constante e com vigor,
Daqui para ali
E dali para acolá.
O que ele é nunca lho vi,
O que tem nunca bastará.
Torto
Todo o amor brotará torto
E assim é que se endireita.
Amor direito é um aborto:
É uma lei que nele espreita.
Nada decide nem sobre o amor prevalece.
Se algo acima dele pões, então o esquece,
Que se algo tem poder sobre ele, fenece.
Quando amamos, singular,
O único trilho viável é amar.
Topo
Ao ameaçar quem está no topo
Quem é da classe baixa
Apenas mostra, com tal escopo,
Porque é que não encaixa
No topo.
Para alguém do topo conseguir afastar
Duma penada,
É só até ao topo trepar...
Mais nada.
Doloroso
Doloroso, doloroso
Não é não ter,
Haja o que houver
No sentido.
O pesar mais pesaroso
É já ter
Tido.
Contentado
Se te deixa contentado,
Não é amor, que era exigente.
Porém, por outro lado,
Se for
Contente,
Então é amor,
Que é de ir em frente.
Incapaz
Incapaz é só quem sabe
Que ser capaz poderia.
Se nunca soubeste o que acabe,
És feliz no que principia.
Quem ignora o mundo inteiro
Que o rodeia
É feliz no atoleiro
Da própria aldeia.
Sabe
Quando tudo sabe a pouco,
Que fazer?
Quando abandonamos um lugar louco
Em que tudo se tiver
E nada se sentir?
Para que serve tudo se para nada servir?
Que é que eu sou
Quando o sonho se finou?
Jogo
Quem entra em jogo a perguntar,
Num desafogo,
Se um dia pode desistir de lutar,
Já perdeu o jogo.
Intuir
Que podes vir a querer
Desistir
É meio caminho para o fazer
E, um pouco além,
O outro meio caminho também.
Maior
Maior que os homens não é o poeta,
É o que logra ser o mais pequeno,
Tão concreta
E recta
É a grandeza que o mantém sereno.
Só quem é grande o bastante
Cabe no mais exíguo dos buracos.
Enfiar-se no buraco é, adiante,
Criar o clima,
Num mundo em cacos,
De o ver de cima.
Desgraça
A desgraça vem de dentro para fora,
É o que sobra do embate
Entre o que nos acontece e em nós mora
E o que em nós o rebate,
Abate
Ou condecora.
A desgraça não passa
A cada passo:
É o mal que dentro abraço
No que de fora me abraça.
Vale
Que vale a vida
Se vai acabar?
Que sentido faz apostar
No que acabar em seguida?
Apostar no cavalo perdedor?
Apostar neste viver, por escasso,
Por mais que seja sedutor,
É um fracasso.
Olhar
Ao olhar
Atrás ou à frente,
Estou a julgar,
Nenhum olhar é inocente.
Todo o humano é um juiz:
Toda a vida, a todo o momento,
Tem o cariz
Dum julgamento.
Preferir
Quantidade a qualidade preferir
É jamais se desiludir:
Sem porvir, porém.
Mais um ou mais uma encontrar
Que tem?
É apenas um passo dar.
Encontrar o “um” ou a “uma”
É que é problema, em suma.
E em tua mão, a par,
Não tens nada que o resuma.
Comportas
Quando fazes o que não comportas
Aí é que te arriscas, por vezes,
A ser feliz, por vias tortas,
Pouco importam os reveses.
Por vezes, a felicidade superna
É dar um passo maior que a perna.
Sempre a felicidade é, porém,
Dar um passo por múltiplos aléns
Quando nem
Pernas tens.
Diz
Quem diz a felicidade
No passado ou no futuro
É um infeliz.
Até porque a felicidade
Que me invade
Ou que eu auguro
Não se diz.
Tu
Tu
É dizer tudo.
Sem tabu
Nem incréus
Nem termos de veludo.
Tu, o mundo inteiro em duas letras.
De minhas lavras
Que mais impetras
Se em duas letras moram todas as palavras?
Auto-estima
Auto-estima:
Agarra em ti
E leva-te até lá acima,
Que ela mora aí.
Para aumentá-la
Não tens espera pior
Que aguardá-la
De algo exterior.
Se na atitude fores culto,
Tens de acreditar
Que até um insulto
Te pode elogiar.
Pobreza
A maior pobreza é cuidar
Que ganhar a vida por inteiro
É ganhar
Dinheiro.
O maior pobre
É aquele a quem, quando molhar o bico,
Não mais sobre
Que ter muito dinheiro para ser rico.
Impotente
O maior impotente
Não é o que se não logra levantar,
Mas o que não logra cair, por mais que tente.
Cair vai implicar
Um poder
Além da média para crescer.
Quem, ao tentar subir,
Não logra crescer
É quem não logra cair.
Da Lua os crescentes
É da noite que saem.
Só os impotentes
É que não caem.
Certeza
Quando tens a certeza
De que sabes o que é o amor,
O que tua ideia reza
É que dele não tens nem o palor.
O amor não se sabe nem pensa,
Não aprisiona nem liberta,
O amor está, disponível da despensa,
Faz o certo na hora certa.
O amor são mil e um verbos que tome
No calor
Dum só nome:
- Amor.
Dois
Mesmo quando o feito a dois
Souber a tudo,
Pode não ser amor depois,
Contudo.
Só quando o que for
A dois
Souber depois,
Então é amor.
Senão pode faltar ser
Para além de fazer.
Prazer
O amor não é medido em prazer.
Há muito amor
Que nem prazer requer.
Quando é o amor a se impor
Nem de prazer precisa:
É que o amor,
Mesmo sofredor,
É prazer que giza.
Ganância
A pior ganância é a sentimental:
Quis mais que tudo o que tinha,
Quer mais que tudo o que tem.
E tem tudo, afinal,
Na terra que crê maninha
E que o sustém.
Um amor em ânsia,
Que ganância!
Mulher
Uma mulher interessante
E sem nenhum interesse.
Teve-me como se tem, por um instante,
Uma gripe que adiante esquece.
Fui a gripe a que se habituou,
Que às vezes até a deixava confortável.
Até à hora de sumir-se, operou,
Fui uma morbidez admirável.
Fui a passageira gripe
De que qualquer mulher de acaso se equipe.
Vencedor
Vencedor não é quem sabe
O momento de avançar.
É quem sabe e não menoscabe
O momento de recuar.
E que, sem hesitação,
Recua então.
Ganhar uma corrida, vezes demais,
É encontrar
Força para chegar
Depois dos mais.
Milagre
Crer num milagre
É crer no que não existe.
Ora, viver consiste,
Muitas vezes em não crer no que existe.
O que fará que consagre,
Então,
Toda a confiança e atenção
Àquilo que não existe.
Ser feliz, dos casos na maioria,
É crer firme no que não existe e, todavia...
Seguro
Não há lugar seguro no mundo,
Se és vivo, és inseguro.
Seguro se viver queres, no fundo,
Então não queres viver,
Auguro,
Apenas não morrer.
O que é de viver,
Arbitrário,
É rigorosamente o contrário.
Quem passa pelos dias
Para não morrer
Nas manhãs frias,
Já está morto há muitos dias.
Eternidade
Amar-te é a fresta de eternidade
Que me foi dada e tenho de agarrar
Com ambas as mãos, com humildade
E voracidade
A par,
Com toda a pele,
Com todo eu que o Infinito impele.
Caminho
Estou a caminho de ti,
De te ser.
Loucura de quando me chamas para aí
E eu largo a correr.
Sempre que dizes posso, quero agora...
Loucura sentida
Da demora
Que me agarra à vida
Com vigor.
Se me agarra à vida, é amor.
Fechado
Estou fechado e livre estou
E, apesar de a caminho do abismo,
Para o abismo é que vou,
Tão voluntário que nele apenas cismo.
Tenho um amor suicida
E, racionalmente falando,
Não creio noutro amor em vida,
Senão neste nos fadando.
Abotoado
É um lugar onde tens tudo
Mas não podes de lá sair,
Estás abotoado naquele sobretudo.
Não é camisa-de-forças, porém,
Que te refeche o porvir.
É que só ali tens um além,
É aquilo que te promete um conteúdo.
É o amor este aquém
De estilete tão agudo
Que perfura infinito além
Tudo.
Defeito
O grande defeito
Da felicidade
De alguém que é perfeito
É que algo falta sempre em metade
Da felicidade
Para tudo andar ao jeito.
O maior defeito
Do perfeito bem-estar
É não haver lugar
A bem-estar perfeito.
Dor
Para ser feliz
Importa não sentir dor
Mas sabendo as cores vis
Do que a dor sentida for.
Mais feliz é o ex-doente
Que o que doente jamais foi.
O quase-morto é patente
Que é mais feliz, mesmo esquivo,
Que o que, sempre vivo,
Ignora a que a morte dói.
Vento
Um vento de mudança
É o que somos ou deveríamos...
Gente que alcança,
Capaz de levantar o vento.
E então íamos, íamos:
Somos mais que nós,
Somos mais do que ataduras de cipós...
- Somos o radical elemento:
Qualquer dia ainda somos nós o vento.
Queixa
“Que tempo horrível!” – alguém se queixa.
É normal,
Já que dele a deixa
É, afinal:
Nas nuvens não há magia,
Apenas poluição;
Não há estrelas a iluminar-lhe o dia,
Apenas do pinheiro de Natal a iluminação;
Não encontra alegria nem conforto,
Apenas intérmina rotina ansiosa
Dos que se acotovelam sem entusiasmo no porto
De cuja partida aventurosa
Nenhum goza;
Andam à procura do presente
De última hora,
Fatalmente,
A ser
Aberto sem demora,
Sem prazer;
A correr à refeição
Que lhe não traz alegria,
Tomada com quem não vê há um tempão
E que nem ver lhe importaria...
Entender
Tenho de entender quem sou,
Embora doa.
Só quem tremeu
Entendeu.
E aqui me vou
Na senda boa.
Os que por aqui não vão
Tremendo,
Não são,
Vão sendo.
Tanto o temem
Que nunca tremem.
Perdidos por dentro das peles,
Alienados sem alibi,
Que andam eles
A fazer por aqui?
Casa
A casa não são metros, são silêncios
E vazios.
A dor no peito esvaziado enche-os
De todos os frios.
O amor, porém, vence-os,
Enchendo os móveis de esteiras sonhadas de navios.
- E então aos silêncios venci-os.
Dois
Dois estranhos, um casal
E as terríveis descobertas:
Ele detesta, não dá o aval
Às arestas nela abertas;
Ela detesta nele
Tanta gesta que o impele!
Disputas,
Dificuldades,
Contas prestadas que geram lutas,
Lágrimas de adversidades...
E voltarão sempre ao território da ternura,
De nomes esquecidos,
De bolor já comida a envelhecida escritura,
Dois estranhos unidos
Pelo que os apaixona
Com a coragem iludida-desiludida que o abona.
Buraco
Que dia é o dia
Em que tu não estás?
Que buraco se enfia
Em meu peito ineficaz,
Ao pôr meus braços de parte
Por não poderem abraçar-te?
Que inutilidade
É a minha identidade?
Pobreza
A única pobreza que nos anda a tolher
De verdade
É ter
Apenas a realidade
Para viver.
Ricos, pois, seremos,
Que ainda bem que o sabemos.
Esmolas
Muito insiste
O engano em que te enrolas:
Viver de esmolas não existe,
Existe é morrer de esmolas.
A pobreza assusta muito,
É um final sem fim:
Vai-nos acabando por dentro, em passo fortuito,
Levando-nos aos poucos da raia do confim.
Primeiro vai o orgulho,
Depois a autoconfiança
E, se não atender ao gorgulho,
Rói-me inteiro no que alcança.
Fico sem nada,
Nem sequer uma estrada.
Resta-nos pedir esmola, no fim,
Postos nas mãos de quem nos pôs assim.
És
És água,
Que me entras e sais por todos os poros.
Trago-a, afago-a
Da cachoeira íntima em murmurantes coros.
És ar
Que invisível me sustenta.
Minha ao te chamar
O mundo se inventa
E acalenta
Lume e luar.
Acordas
Quando acordas: uma frincha de Deus,
Teus olhos a entreabrir o azulíneo dos céus...
Poderia apenas ficar
No estupor singular,
Feito produto
Mimando o Absoluto.
Vem, porém, a vida,
De seguida...
Palavra
Nenhuma palavra reúne
O que nos une.
O silêncio é fundamental
Entre dois que se queiram falar, afinal.
O silêncio é que tira a venda
Ao amor que se entenda.
“Amo-te” – fala em silêncio:
- É que o amor convence-o.
Matematizem
Matematizem o mundo inteiro,
A mensurável face,
Para que o amor cimeiro,
Até que enfim, passe.
Senão, para que o matematizo,
Se não for
Para o amor
Que viso?
Sonhaste
Sonhaste,
Tiveste
E acabou.
Lá se foi o sonho, grande traste!
Segredo que preste
É gerar novo sonho
Em troca do que findou.
Então ponho-o
No espaço em branco já exaurido
Do sonho perdido.
E aqui vou
Sobrevivido,
De voo
Renascido.
Torna
Ficamos maiores
No que nos torna mais pequenos.
Crescemos de fora nos pendores
O que dentro perdemos em infantis acenos.
Quer crescer a criança,
O adolescente quer crescer
E tarde demais cada qual alcança
Que tal querer
É só de quem, da vida ao sereno,
Se sente pequeno.
Ora, pequeno também o adulto se sente
E quer ser pequeno mais e mais:
Quereria o sonho presente
Da vida em todos os arraiais...
Ver
Crescer é ver melhor para trás
E pior para a frente.
É ter a vista incapaz
De crescer com a gente.
Cada vez menos discerne
O que estiver adiante,
O que leva a que cada vez mais se governe
Com o que atrás de mim a encante.
Então, ao trepar da vida as encostas,
Eu vou de costas.
Apesar
Se quer
Encontrar
A mulher
Que vai amar,
Apesar dos desenganos
De cem anos,
Vá em frente,
Tente!
É improvável a cena?
Só o improvável vale a pena.
Intangível
É a beleza.
Uma felicidade previsível
É uma tristeza.
Olhos
Olha com olhos de ver
O que só tu consegues,
Mais ninguém.
Eu consigo ver além
O que não logra quenquer
E tu também
Quando o persegues.
Vê qualquer um
O que não vê mais nenhum.
É destas visões que, fecundo,
Evolui o mundo.
O mundo apenas avança
Quando discernir
Alcança
Agir.
O devaneio intocável
Devém matéria palpável.
Acredita no que vês
E arrisca apostar,
É o altruísmo de vez
Tuas mãos a executar.
Teu arquivo
Pode não ser grosso,
Mas aposta no teu exclusivo,
Estarás apostando em tudo que é nosso.
Razoável
O razoável é o mais perigoso,
Nem é bom nem mau.
Insípido, tíbio quando devia ser gostoso,
Não entusiasma nem deprime,
Frio calhau
Que ninguém arrime.
Não oferece
Lágrimas nem euforias,
Não aquece nem arrefece,
Nem sequer tem dias.
Dedo
É fácil apontar o dedo
Qualquer um.
Quando não tens mais em teu credo
Segredo
Algum,
Apontas o dedo a aguentar
O nada de teu ar.
A aguentar do peso a enormidade
Da tua nulidade.
Creio
Não creio num amor que faça mal,
Embora faça mal qualquer amor.
Amar é crer que o melhor
É soltar da mão qualquer pardal,
Que dois a voar
Valem mais do que um na mão.
Amar
É a razão da sem-razão.
Intérmina
Ama
Numa intérmina primeira vez.
Apenas então o amor te pacifica, te acena, te aclama
Desassossegando leve o entremez.
Corrente apressada,
Forte,
Nunca desesperada,
Rumo a teu norte.
Na medida certa
Com sabor a demais,
Desperta
Invisíveis frinchas celestiais.
Contido
Ser contido?
Anulado?
Ninguém logra conter
O que o leva a querer
Ser querido
Ser amado:
Ninguém pode conter
O que o faz viver.
Se a vida é,
É para que seja
Assim, de pé,
Vida de alguém que se almeja.
Só quem
É de si plenamente
Logra ser, de repente,
Plenamente de alguém.
Voltares
Para o contrariares
Não há magia:
Se voltares,
Toda a dor pode voltar um dia.
Porém, os avatares
Como os não ponderarias?
Se não voltares,
A dor vai voltar todos os dias.
Voo
Vida sem
Voo,
Ninguém
Entende o que nos juntou.
O mais admirável
Dos assuntos:
Inexplicável
É ainda estarmos juntos.
Vertigem
A vida é vertigem
À beira do precipício.
Tenho de estar lá, que meus pés o exigem
Desde o primeiro início,
Junto ao lugar da queda,
A ser quem sou, a ser quem é,
E nada em mim arreda
Para lograr manter-me de pé.
Todas as vidas exigem
A germinal vertigem.
Derrocada
Ou está prestes a derrocada
Ou a vida não sabe a nada.
Sentir que pode acabar,
Prestes, o que nos faz gente
É o que nos há-de sustentar
A pele indigente.
Se não houver perigo, o prazer
Pode até muito bem morrer.
Piorio
“És do piorio mas amo-te eternamente”
- Qualquer declaração de amor é incoerente.
O amor é riso e pranto
Vivido.
Faz tanto, tanto,
Só nunca faz sentido...
Portanto,
Quando a ele aludo,
Dou sentido a tudo.
Entender
Queres entender o amor para entender o que amas?
Não entendo.
Ao amor ninguém o entende, como reclamas,
E, assim sendo,
Qual entre nós o entendimento
Se de ti tanto me ausento?
Queres que eu entenda o que apenas se sente, mal começa;
Quero que sintas o que não logras entender de forma alguma.
Amar com a cabeça
É não amar coisa nenhuma.
Salvar
Salvar a humanidade
É a quem não cuida do futuro
Pedir aulas de autenticidade,
A quem saboreia o presente em estado puro.
Ver que há futuro
É o que impede de estar
Em pleno lugar
Onde me inauguro.
Então, por um triz,
Torno-me infeliz.
Previsível
Não é previsível nenhuma felicidade.
Alegre deveras
É a imprevisibilidade
Constante das eras,
Porta a entreabrir suspicaz
Sem vislumbrar o que surpreender por trás.
A vida vale, ao fremir
Nos campos que os anos mondem,
Pelas portas por abrir
Que ignoramos o que escondem.
Pronto
Urge descobrir
Que pode queimar
Para me sentir
Pronto a arriscar.
Uma vida sem o risco
De abrir uma porta,
Perdido o petisco,
É uma vida morta.
Poesia
Crer no amor é crer
Que há poesia,
Haja o que houver
Na rotina do dia.
Há um poema em cada beijo,
Em cada abraço trocado.
Cada corpo descoberto é um ensejo
Dum mundo deslumbrado.
Quem ama é um poeta que declama
Na estrada
Ou então não ama
Nada.
Móveis
Por mais móveis que ponha na casa vazia
Sempre vazia findará
E, quão mais vazia está,
Mais móveis colocar-lhe tentaria,
A tapar o vazio,
A esconder o nada.
Não há para navegar nenhum rio,
Para caminhar nenhuma estrada.
O silêncio
Como findá-lo?
Vence-o com amor, vence-o,
Ou não te livras do abalo!
Encontrar
Amo-te até me encontrar,
Minha perdição, meu encontro de mim.
Para me perder vou-te precisar
E para me encontrar no derradeiro confim.
Olho em redor, se não te encontro estou perdido,
Por mais familiar
Que seja o lugar
Reconvertido.
Se em redor de mim não estiveres do jeito teu,
Então é porque não sou eu.
Político
O político olha de cima,
Como Deus,
Depois não rima,
Que não tem o poder dos céus.
Olha de cima
Quando mora em baixo.
Ora, o clima
É o do sacho
Da vindima.
Para saber como se caminha
Urge pisar a terra, fértil ou maninha.
Parte do colectivo
Para o individual,
Ignorando que é o indivíduo vivo
Que faz o total.
Ora, uma pedra fora do sítio, de tocaia,
Basta a que alguém tropece e caia.
Doutrem
Há quem na vida doutrem gaste a vida,
Doutrem a felicidade a martirizar a sua.
O tanto que têm não os convida,
Do que nunca terão espreitam a rua.
Gastam-se na vida.
De que serve uma vida pela frente
Se, feitas as apostas
Ao que nela se envida,
Tudo o que se intente
A leva a virar as costas?
Segurança
Se amas com toda a segurança,
Desiste,
Que não alcança
Quem ama com toda a segurança
Nenhum amor que se aviste.
Se não temes dizer que amas,
Expor o lado infinito de ti,
Desiste, que tuas tramas
Dão de si:
Só o que medo nos leva a ter
Vale a pena ter medo de perder.
Aperta
A dor
Em nós,
Seja qual for,
É que aperta os nós
Por dentro de quenquer
E assim o leva a ser.
Sem dor, a melhoria
Em regra nunca ocorreria.
Condenação
Fatal,
Tem, porém, compensação
Final.
E a dor sempre se evita
Quando a muda por antecipação
A desquita.
Fundo
Ir ao fundo do que existe para ir
Leva-me a suportar
O porvir.
Mais um estrato a experimentar
Com a dor que implica.
Só quem o pé firme nos estratos anteriores aplica
Consegue também
Aguentar o que aí vem.
No inverso da dor viver, de fugida,
É não suportar os reveses da vida.
A dor ver como abominável
Sem deixar, afinal,
De a encarar como natural
É de sobreviver o rumo saudável.
Defeitos
Os que eu amo têm defeitos,
Cheiram mal e são crendeiros,
E a crer vivem sempre atreitos
Que o céu é o lugar
Em que, após os momentos derradeiros
Aprenderemos a amar.
Adoram, porém, tentar,
Contra o mais fácil remando,
Sem a crítica recear
Por obrarem o que vão obrando.
Falham sempre como loucos,
Se calhar,
Mas sempre loucos como poucos
Por deixarem de falhar.
Difíceis
Os que eu amo são difíceis de entender,
Falam estranho,
Têm desejos que não são de ter
E o pior ganho
É que irão, em todo o lugar,
Em busca de os saciar.
Não dirão mal de quem fez,
Nem se desperdiçam
Alguma vez
À procura das falhas que enguiçam
O voo
De quem tentou.
Continuam, com a evidência
Das fantasias,
As próprias teofanias
Da existência,
Em todo e qualquer campo que a grade
De estar vivo invade.
Olha
Olha com olhos de querer,
De roubar,
Olha com olhos de viver.
Rouba o que o mundo te destinar
E, por atacado,
Rouba também
O que não te for destinado,
Sempre além, sempre além, sempre além...
Lonjura
Olha a lonjura
Entre sonho e realidade,
Preenche-a de tua pura
Identidade.
Há dificuldade mais dificuldade
A ultrapassar,
Momentos que nem apetece olhar.
Aí é que é de olhar mais ainda
Até ver
O que fazer
Para ver outra paisagem mais linda.
Ser bem sucedido é ver bem
Quem tens à frente, ao lado e atrás também.
Para bem escolher,
Bem decidir,
Nem que venha a doer,
Nem que custe a ir...
Nem que não apeteça nenhuma escolha,
Olha sempre, olha!
Perdida
Nada magoa mais
Que a felicidade perdida
Que jamais volta aos tremedais
De tua vida.
Martiriza-te de raiz
Quando a recordas,
Tão mais funda na matriz
Que a doer abordas
Quanto mais te fez feliz.
Serve
O amor serve para tanto, não, porém, para viver.
O amor mata violentamente
Com todas as forças que tiver,
Todos os dias, metodicamente.
E é nestas pequenas mortes
Que importa a vida.
É delas nos recortes
Que a vida acontece
E devém desmedida
Messe.
Hoje mataste-me mais uma vez
E eu gostaria de passar a vida aqui,
Alegre do revés,
A ser assim assassinado por ti.
Pedra
Que importa a pedra ser eterna
Se pedra nunca deixa de ser?
Da vida é a raridade superna
Que encanta quenquer.
A certeza
De que é tão pequena, frágil, quase nada
É que é toda a beleza
Da estrada.
Mania
A segurança, a mania
De querer saber tudo,
Quando o que alcança a magia
É não saber, sobretudo.
É o espaço em branco,
Explicação por atingir,
Fenómeno por discernir...
E eu aqui no banco
A fremir,
À espera de ir...
Eterno
É o que aqui fora não existe
Que é eterno,
Rasto que subsiste,
Superno.
É o que ocorre no interior do que sinto,
Um beijo
E cá dentro de mim o salto de plinto,
Um toque da tua mão
A reviver um sabor de queijo
Num íntimo serão,
Uma palavra tua
No ouvido que estremece
Toda a rua
Onde o frio me aquece,
O cheiro do vento
Que nem
Cheiro tem...
- E é tudo um infinito sentimento.
Território
Há um território estrangeiro em cada qual.
O amor é noventa e nove por cento de descoberta,
Vale a vale,
E um por cento de prazer alerta.
E o contrário, quando pasmo
Perante o abismo do orgasmo.
Não há carinho que interrompa as veias
Nem ternura que acalme a respiração.
Ou tudo estremece, nada a meias,
Ou tudo pára e então,
Não!
- Parar, pior que morrer,
É não ser!
Pior
O pior de tudo não é chorar,
É ninguém ver,
É o mundo a derrocar
E tudo em redor como se nada estiver
A acontecer.
Lágrimas sem tecto
Nem ninho,
E tudo correcto
No mundo maninho.
Sabedoria
Sabedoria de vida é sentir
Sobretudo o que não existir
Neste mundo exterior do confim,
No fim.
Quando chego atrasado à reunião
Deste chão,
Digo apenas, com lisura,
Que estive à procura
De mim.
Nada
Nada do que importa o vemos com os olhos,
Só de olhos fechados o que importa vemos,
O orgasmo, o pânico, a adrenalina que pesemos.
Tudo o que vale a pena e nos dribla os escolhos
Não é de olhos abertos
Que o apuramos a meio dos desertos.
O que vemos é uma vidinha,
Vida de trazer por casa,
Perdida no mundo árido sozinha,
Sem um frémito de bater de asa.
Tentar
Queria tentar ver-te e não conseguir,
Os olhos sempre fechados,
Mas vi demais e, a seguir,
Estás aí fora por todos os lados.
O que existe fora tem explicação,
Uma ciência que o sustente
Ali, na trela, à mão,
Na forma, no que é, no ente.
O que a ciência explica
Não é o que eu amo,
O amor apenas se aplica
Ao outro ramo.
Ninguém pode amar
O que a ciência compreende,
O amor é o lugar
Que ao Infinito nos prende.
Alegria
A alegria passageira
Da festa, da novidade,
Deixa amargura quando o fim se abeira,
É uma alegria ligeira.
A da perenidade
É a dos que amamos
E de quem cuidamos.
Com esta por lema,
Obedecendo-lhe ao aceno,
Obliteramos o nosso pequeno
Problema.
Eterno
Caminho que pode ser traçado,
Mesmo o mais terno,
Em nenhum lado
É o Caminho Eterno.
Nome que pode ser nomeado,
No imo embora mais interno,
Por mais que seja amado,
Não é o Nome eterno.
A Eternidade viável
É definitivamente inominável.
Arte
Arte deveras
Não alardeia o que for,
A ela própria não se anuncia.
Dela o significado voa subtil pelas eras,
Apreendido pelos sentidos, no palor
Da paisagem que a neblina amanhecia,
Ao verdor
De cada dia.
Sem
Corria tudo tão sem atritos,
Tudo tão bem preparado
Que, mesmo que o quisera, os quesitos
Não poderia ter melhorado.
Havia apenas um senão, de entrada:
Não podia decidir nada.
E tão ligeiro senão
Tornava tudo vão.
Revolução
A verdadeira revolução
Deve operar
Do povo no coração,
No jeito como pensar,
Do espírito na habituação,
Nos princípios que acomodar...
Através deste postigo,
Desde o ovo,
Se transmuda um povo antigo
Num povo novo.
Vinho novo em odres velhos,
Quando ele é deveras forte,
Das aduelas os artelhos
Rebenta com o transporte.
Superior
Quem é superior,
Se tentar conduzir,
Empreendedor,
Perde-se a seguir.
Se seguir, porém, o pulsar do chão,
Encontra orientação.
É a regra de ir
Para não ir em vão.
Mudança
Apesar de toda a mudança,
Não há mudança nenhuma,
Que o que qualquer mudança alcança
É o inefável, em suma:
No fundo de cada qual
Há dele o inatingível sinal.
Podemos atirar a um rochedo
Todos os ovos do mundo
Que o rochedo permanece quedo,
Apesar dos ovos de que o inundo.
E não há forma de me dele aproximar
Senão continuando indefinidamente a atirar.
Nova
Quem introduz a lei nova
Não pode, repentinamente,
O que a lei velha aprova
Tirar da frente.
Encobre para retirar
Com suavidade,
Trigo e cizânia a deixar
Crescer juntos na mesma propriedade
Para a cizânia só arrancar, de castigo,
Quando não prejudicar as raízes do trigo.
Visto
Querer que vejam que és bem visto
É ostentação,
Não amor.
O amor põe o visto
No próprio coração,
Não do olhar alheio no teor.
Não merece ser benquisto
Quem quer ser agraciado
Para ser olhado.
Fia
Quem de todos se fia
Logo se perde.
Quem de todos desconfia
Já perdeu em tudo o que herde.
Se se fia em quem não deve,
Já se perdeu.
Se de quem deve não fia, breve
Perde quanto é seu.
Como escapar da embrulhada?
- Só do amor na mão dada:
Em tudo quanto dois são um
É que não há receio algum.
Graças
Agraciado,
Dá graças,
Que, se graças não dás,
Não passas
Dum desgraçado
Toda a vida a andar para trás.
Se agradeces,
As benesses
Tantas serão que as tragédias
Da vida viram comédias.
Tudo é de rir,
A seguir.
Erro
A ciência do erro alheio
Bem fácil é,
Se sem ódio nem interesse de permeio
E de boa fé.
Difícil é a do próprio erro,
Manietados
Do amor-próprio ao aferro
Por quantos erros de nós são gerados.
Livre é o juízo no alheio,
Seja este embora esquivo.
No próprio, de encanto cheio,
Sempre o juízo é cativo.
Pique
Não há nada que mais pique
Nem de que se piquem mais
Os naturais
Que o despique
De emulação e de inveja
Que na valeta logo a todos os despeja.
Afogado ao nascimento
Fica da luz o fermento.
Quando
Quando
Adoras e dedo que aponte
O horizonte,
Em lugar de ires para o horizonte caminhando,
Quebraste a ponte
Que, no presente,
Te encaminhava ao alvor do oriente.
Acabou a infinitude
Que te apela à plenitude,
Doravante és um finado
No encalhe de teu fado.
Morreste
Do Infinito em teu esquisso
E nem deste
Por isso.
Pó
Porque temo o pó que serei,
Para onde vou,
Senão porque sei
Que não quero ser o pó que sou?
Mas não há nada a fazer
Senão a mim me acolher.
Pior o invés seria,
Que de costas contra mim batia.
Aparência
O mal nos engana
De bem com aparência
E o amor nos leva e dana.
O bem nos engana
De mal com aparência
E o ódio nos aplana
O coração no trincafio
Deste desvario.
Para
Arrancar,
Destruir,
Aniquilar,
Demolir,
- Para edificar,
Para plantar.
Tão fácil é aquilo
Como isto é difícil de consegui-lo.
Caminho
O caminho que sofremos
Na subida
É o mesmo que corremos
Na descida.
Jamais há dois
Caminhos, pois.
Tudo, portanto, na vida
Depende da escolha havida.
Tudo o que és e que serás
Vem do que andas para a frente ou para trás.
Sem
Haja amor
Mas sem destempero;
Haja vigor
Mas sem exaspero;
Haja zelo
Mas sem rigor
Imoderado, que é atropelo;
Haja piedade
Mas sem perdão
Além da propriedade
Que convier a cada chão.
Real
Definitivamente, o real
É inviolável.
Portanto, fatal
É ser por nós inominável,
No derradeiro limite.
O caminho que concito
É mais que um palpite:
- O real é aproximável
Ao infinito.
Mistério
O mistério
E a manifestação
Caem sob o império
Da ilusão:
- Creio que o real
É o que aparece, afinal.
É o erro
Em que me enterro
E comigo enterro o mundo:
A aparência torna-o infecundo.
Iludida,
Tende a parar a ida
E finda-nos a caminhada
Na infinita estrada.
Sexo
O sexo não requer esforço,
Requer reforço:
O sexo reforça, capaz,
O que o resto traz.
O sexo não é
Nada por aí além,
O sexo é
Também.