PEGADA  CLÁSSICA

 

 

 

 

 

Livres

 

Lutamos sempre, em cegueira,

Livres de fazer escolhas.

E só de alguma maneira

Quando entendo, nas recolhas,

 

Que nunca o destino está

Todo inteiro em minha mão,

É que consigo acolá

Ter paz ao trilhar o chão.

 

Farei o melhor que posso

E reconheço também

Que apanhado sou no fosso

 

Do fado que a vida tem.

É sempre num jogo a dois

Que me talho e sou depois.

 

 

Corre

 

O homem transforma o mundo

Mas a si não se transforma:

Já corre os astros, jucundo,

Mas vive e morre, por norma,

 

Tal qual há milhares de anos.

Teremos de ir aos milhões

Para ver outros arcanos

Dos trilhos a que te apões.

 

De índigo há, porém, mil auras

Com que o australopiteco

Nunca deparou: instauras

 

Nisto o novo de teu eco.

Verdade é que é muito lento...

- Mas quão novo é teu momento!

 

 

Ataque

 

Sem ataque não há dano

E sem dano não há vítima.

Tudo, pois, foi por engano,

Torna a paz então legítima.

 

Sem vítima, quem culpar?

Sem culpado, que castigo?

Sem castigo, que dor dar?

- Sem dor é a paz meu abrigo.

 

Para a paz permanecer

Nem o inimigo possível

Será mesmo então de ver

 

Nem o perigo tangível:

Terei de prender-me à fonte

Por trás de todo o horizonte.

 

 

Maranha

 

A maranha das leis tem muitas sombras,

Nem todas têm a ver com a justiça.

De injusto a justo a raia ali se enguiça,

É quase imperceptível entre alfombras.

 

É crucial o equilíbrio nesta liça,

Ou duma iniquidade a vida ensombras.

Teu gosto de ganhar de que o alfombras,

De teres a razão ou só cobiça?

 

Todos têm direito a uma defesa

E o melhor é de dar pelo cliente.

Todavia, a esperar que, ao fim, se preza

 

A justiça por meta permanente:

Supremo é sempre o sonho que em nós mora

De que a justiça ao fim é vencedora.

 

 

Voou

 

Viu o menino aquela brilhante ave

E com ela voou com alegria,

Esquecido de vez da gelosia

A que o rosto encostou, sem ver-lhe o entrave.

 

Mas depois reparou, com olhar grave,

Que tal pássaro acaso poderia

Fugir montanha além com a magia

E o quis prender numa gaiola suave.

 

Não é que então perdeu todo o interesse?

Ave presa, de feia, se esmorece

E em breve finda morta de tristeza.

 

Profundamente em choque, pensa nela

Mas nem lembra a gaiola, mas aquela

Asa a voar céus além feita beleza.

 

 

Dure

 

Ninguém diz à Primavera:

“Tomara que chegues logo,

Dure bastante o teu fogo,

Até não ser eu quem era.”

 

Antes, na esperança mera:

“Vem com o teu desafogo,

Abençoa o que eu advogo,

Fica o mais que se pudera.”

 

Uns e outros mais não somos

Que a Primavera dos pomos

De esperança do porvir.

 

Não podemos ter por lema

Mais do que acolher o tema

De quanto à frente surgir.

 

 

Mediação

 

Toda a mediação humana

Que para a cumeeira aponte

É relativa à semana

Do tempo deste horizonte,

 

À encosta duma cultura,

Às ervagens que apresente

De tradições, na figura

A que agarrar o presente.

 

Porém, quando, em vez do cume,

É isto só que apresente,

A que a vida se resume,

 

É traição no ponto assente:

Isto é sempre relativo

A um Infindo eterno esquivo.

 

 

Medo

 

Não tenho medo da morte,

Logo, nem da epidemia,

Dum contágio de má sorte,

Do que me molestaria...

 

De que é que então tenho medo?

Do sofrimento de alguém.

Na ferida este é que é o dedo

Que dum punhal a dor tem.

 

Como irei ultrapassá-lo?

Com afeição e respeito

Por quem sofre aquele abalo

 

Que então aperto a meu peito.

Se, por fim, o não consigo,

Bastante não sou amigo.

 

 

Assumir

 

A responsabilidade

Assumir dos próprios actos

É o que importa, de verdade,

Da vida para os contratos.

 

Inculpar a educação

Ou a falta de dinheiro

Ou qualquer outra questão

É não ver nunca o argueiro.

 

De mim sou eu responsável,

Eu é que irei mudar tudo:

Minha mente pouco fiável,

 

Tudo a que de mau me grudo...

Mudar o que for preciso

Para o mundo ter juízo.

 

 

Criança

 

Tudo é novo e empolgante,

Tudo é deveras possível

- E a criança corre adiante

Num mágico mundo incrível.

 

Depois somos rejeitados,

Vêm desapontamentos...

De crenças atrofiados,

Tudo são sérios momentos.

 

E se um dia, ao despertar,

For em busca do que quero,

Do sonho de além chegar,

 

Ao cais do reino onde impero

Ver a possibilidade

Onde a magia me invade?

 

 

Mil

 

Há mil oportunidades

Diante de toda a gente,

Sempre, em todas as idades,

Em transcurso permanente.

 

Todos andam na estação

E os comboios param diante.

De olhos fechados estão,

Nunca dão conta do instante.

 

Não têm olhos abertos

De ver e entrar no comboio.

Vão-se os momentos desertos,

 

Sem trigo, cheios de joio.

- Mas a ocasião, destarte,

Anda aí por toda a parte.