A  PEGADA  DA  IRONIA

 

 

 

 

 

Principiamos

 

Desde que nascemos principiamos a morrer,

Pouco importa o dinheiro

Que se tiver.

Acontece é que alguns chegam lá primeiro...

 

 

Sentir-se

 

Há muita mulher a sentir-se culpada

Por não ficar no lar

Só dos filhos a cuidar.

 

Há muito homem com a carreira trepada

Ao primeiro lugar,

Sem mais nada nem ninguém contar.

 

E depois afirmam ambos entender

Que casamento de verdade

É o que promover

Uma parceria de igualdade...

 

- Será que nosso porvir

É que irá deixar de existir

Racionalidade?

 

 

Suo

 

Como opera a sauna?

- Enfrento da selva os dilemas,

Do dia por entre a fauna,

E para fora de mim suo na sauna os problemas.

 

 

Trabalhar

 

Enquanto tanto tempo desperdiçamos

A trabalhar para ganhar dinheiro

De que precisamos

Para adquirir um outeiro

De bens de que não necessitamos,

- O que, afinal, importa

São os pequenos prazeres abandonados à porta.

 

Quando é que nossa falta de siso

Ganhará juízo?

 

 

Correrei

 

Amo-te tanto, tanto

Que, se me fugires daqui,

Correrei tão rápido para o teu canto

Que chegarei lá muito antes de ti.

 

 

Difícil

 

É difícil viver

Com alguém que receies pelo tabu

De poder ser

Melhor que tu.

 

 

Informaram-nos

 

Informaram-nos de que os nazis

Nos bombardearam com o produto

De um dia fazer perder o apetite sexual.

Aos meus noventa e cinco anos, ponho os pontos nos is:

Começo a gora a sentir o fruto

De tal...

 

 

Bebe

 

Bebe, que nem o calor

Leva a tanto nos desidratarmos:

Não há como o amor

Para nos engasgarmos.

 

 

Dúvidas

 

Têm as dúvidas a mania

De se formar

Quando tempo há, nalgum dia,

Para pensar.

 

 

Aprende

 

Se para ti o mundo for um esgoto,

Mantém a cabeça bem de fora

E, dextro ou canhoto,

Aprende a nadar, já agora.

 

 

Repositório

 

Memória,

O repositório de quanta ocorrida

Vanglória,

Toda destinada a ser esquecida!

 

 

Quantas

 

Quantas vezes uma casa

É tal qual um casamento:

Queremos tanto nela entrar que nos abrasa

E, de repente, já só queremos sair, a todo o momento.

 

 

Tempos

 

Tempos felizes!

Damos-lhes valor, inapreciáveis,

Quando, em todos os matizes,

Devêm irrecuperáveis.

 

 

Salva

 

Médico não salva vidas,

Nem a medicina, acaso.

Prolongam, com as medidas,

A futilidade a prazo.

 

 

Carregam

 

São sempre as mulheres

Que carregam o mundo às costas.

Os homens, entre teres e haveres,

Passam a vida a retalhá-lo às postas.

O que viso

É entender se isto tem algum juízo...

 

 

Estúpido

 

És o mais estúpido dos entes

Que jamais viveram no lombo da terra,

- Afirma-lo, logo, consentes.

 

Ora, se o sabes, a isso te aferra:

Quantos no mundo têm inteligência

Para admitir semelhante pendência?

 

Se calhar mais ninguém, afinal,

Meu grande, grande anormal!

 

 

Parte

 

Quando o jovem descuidado

Parte um vaso antigo,

O dono grita, desvairado:

“Sabes a idade deste artigo?

Século XVII, desastrado!”

 

“Desculpe! O desastre reprovo,

Mas fico mais descansado:

Julguei que era novo...”

 

 

Voar

 

Grita a criança, entusiasmada:

“Quem me dera voar assim!”,

Fatos de voo à largada

Vislumbrando num confim.

 

“Só de mim morta por cima!”

- Arrepia a mãe o engodo.

“Está bem” – a criança anima. -

“Eu espero... O tempo todo!”

 

 

Cidade

 

A cidade é muito menos

A floresta de betão

E bem mais os mil acenos

Duma humana multidão

Confinada, como é lógico,

Em tal jardim zoológico.

 

Por isso os extraterrestres

Descem lá do seu pináculo

A ver as cenas silvestres

Cá deste humano espectáculo.

 

No zoológico jardim

Divertir-se-ão sem fim.

 

 

Monstros

 

Os monstros são bem reais

E nós como um monstro somos.

Quando um filho nasce aos pais,

Tal dum monstro eis logo assomos:

- Se um mal alguém lhe atravessa,

Eu arranco-lhe a cabeça!

 

 

Cena

 

Sempre uma cena de choro

É difícil de encenar.

Se a cebola, com decoro,

É o que te fizer chorar,

Pensar nisto ao choro exorta:

- “Que triste é a cebola morta!”? 

 

 

 

Andamos por cá emperrados

Porque emperrados brigamos

Contando, em todos os lados,

Porque emperrados andamos.

 

 

Ignorar

 

Ignorar o que dizem dele, ao escritor

É o que lhe garante, afinal,

O melhor

Da saúde mental.

 

 

Pergunta

 

O que a tudo chega com sistemático atraso

Interiorizado

Pergunta se não é o mundo que anda, por acaso,

Arbitrariamente adiantado.

 

 

Lugarejos

 

Há recantos tão isolados,

Lugarejos do fim do mundo,

Que, quando a ambulância vem pelos recém-nados,

Demora tanto a lá chegar ao fundo

Que, quando finalmente houver parado,

Já o bebé estará quase criado.

 

 

Certeza

 

Todos os dias são bonitos

Desde que os pinte

Com a certeza dos requisitos

De onde vem o jantar do dia seguinte.

 

 

Morte

 

Porque é que adoro o pinheiro?

Quando meu pai me morreu,

Vendo-me eu lá sem parceiro,

Com morte no travesseiro,

Perguntei, rasgando o véu

 

De criança mal segura:

“Que tempo irá demorar

Este pinheiro a trepar

Até me elevar à altura

De chegar ao pai, no céu,

Onde agora se meteu?”

 

 

Jornalistas

 

Os jornalistas, como os mais,

Alguns são inteligentes,

Estúpidos os restantes, por norma os principais.

Crêem na verdade uns poucos, renitentes,

A maioria

Historia

O mais sensacionalista manjar

Que logre inventar,

Preso nos dentes.

 

Importa-lhe bem o que apronta!

O que lhe importa

É rechear a horta

Mais do banco a conta.

 

Direito à informação?!

É mas é direito ao crime

Sem punição,

Na distorção

Mais sublime.

 

 

Ideias

 

Todos temos ideias estranhas

Mas a quem vive sozinho

Quem é que aponta o trabuco

Dizendo-lhe coisas tamanhas

De mansinho,

Como que não seja maluco?

 

 

Religião

 

Tomam a religião como quem

Toma um remédio, o qual,

Se não fizer bem,

Também não há-de fazer mal...

 

- Depois se queixam

Da dor de barriga que tais atitudes deixam!

 

 

Vizinho

 

Se teu vizinho tiver

Casa digna, bom trabalho,

À educação e arte aceder,

De segurança a um migalho

Com que conte ao mal se ver,

 

Tens de viver barricado,

Fugindo em carro blindado,

 

Proteger os teus pertences

Com alarmes que mal vences,

 

Câmaras de segurança,

Guarda-costas por fiança?!...

 

- Quanta falta de juízo

Quanto àquilo que é preciso!

 

 

Ébrio

 

O ébrio promete à mulher

Que vai deixar de beber.

 

Um mês depois cai-lhe à beira

Com enorme bebedeira.

 

- “Não ocorreu coisa boa!

Não eras nova pessoa?!”

 

- “Sabes, mulher, acontece

Que este novo eu me parece

 

Que mais bêbedo saiu

Que o outro que há um mês morreu!”

 

 

Brotou

 

A vida no planeta

Brotou sem dinheiro,

Ninguém lhe comprou chupeta

Nem babeiro.

 

A fauna, a flora, as fileiras animais,

Os bosques, lagos, selvas equatoriais,

 

Tudo a evoluir,

Sem nenhum banqueiro financiar

O que irá brotar

A seguir.

 

Do dinheiro o poder singular,

Benéfico ou adverso,

Ninguém o pode equiparar

À vontade do Universo.

 

O dinheiro é separação:

Quem o tem é poderoso,

Tudo o mais, não,

Desprotegido e sem gozo.

 

Mas é um poder transitório:
Sem o pobre, o rico não é ninguém,

Entre iguais o pedestal devém

Inglório.

 

E motivo de riso:

É divertidamente irrisório,

De tanta falta de siso,

Andar alguém por aí, sem motivo nem disfarce,

A pavonear-se!

 

É que, bem olhado,

Mesmo apojado de milhões,

O milionário que supões

É um pavão depenado.

 

 

Quer

 

Quem não quer educação

Com arte,

Quer que se descarte

Qualquer pendão

Imaginativo e transformador,

Não se vá ele pôr

A imaginar um mundo

Sem partidos nem deputados...

- Quem lhes pagaria, com que fundo,

Os ordenados?

 

 

Regra

 

O que na regra é o melhor

É uma infinda variedade

De formas que é de supor

Que a infringirão de verdade.

 

 

Peso

 

Roupa, a imagem exterior,

Tem peso, até mesmo as meias,

Em quem político for,

Mais até do que as ideias.

 

 

Sábado

 

Há quem se ame levantar

Sábado um pouco mais tarde.

Vai-se este ritmo estragar:

É a razão porque a cobarde

 

Manhã de segunda-feira

Tem tanta dificuldade

Em se erguer da travesseira.

Mal o ritmo que esta grade

 

A recuperar começa,

Chega sábado outra vez.

Naquilo outra vez tropeça,

Vai de revés em revés.

 

 

Acho

 

Porque será

Que te acho tão irresistível

Quando me mandas

Ao deus-dará,

Em bolandas,

Com teu jeito tão incrível,

Tão educado, tão terno,

- Para as profundas do inferno?!

 

 

Público

 

O público funcionário...

Impossível carregar a fundo

No acelerador

E correr,

Mas que maravilhoso fadário,

Jucundo

E acalentador

Saber

Que o poderá sempre algum dia fazer!...

 

A impossível possibilidade,

Na perene lazeira do lazer,

Não há nada que mais agrade.

 

 

Procuram

 

Todos procuram abrigo

Embora lhe neguem acaso a pista.

É que todos namoram o perigo

Quando o perigo não exista...

 

 

Pelotão

 

Porque, a todo o momento,

Decidi ser quem sempre sonhei,

Terminei

Diante dum pelotão de fuzilamento.

 

 

Fácil

 

É mais fácil deixar morrer

No topo do cerro

Um inocente do que reconhecer

O próprio erro.

 

 

Sábios

 

Todos falam,

Como se sábios em tudo.

Porém, quando lhes perguntamos, calam,

Sobretudo

Porque, à chegada,

Afinal, não sabem nada.

 

 

Conduzam

 

Quem acolheu todos os desafios

E aprendeu tudo, agora

Pede, por todos os fastios,

Que o conduzam de lá para fora.

 

 

Tipos

 

Dois tipos de gente

Da verdade falam sempre em benefício:

O louco e a criança.

Ao louco, evidentemente,

Metemo-lo no hospício.

E à criança acatamo-la

Com a verdade que alcança?

- Não, educamo-la!...

 

 

Trilhos

 

“Porque tens cabelos brancos?”

- Pergunta a criança à mãe.

“Cabelos brancos me vêm

Quando tu, com teus tamancos,

Por trilhos maus vais além.”

 

E a criança, logo após:

“Então porque é que só brancos

Têm ambos os avós?!”

 

 

Menina

 

A menina conversava

Com a professora dela.

Esta, paciente, ensinava

Que era mesmo uma balela

Que a um humano, mesmo cheia,

Engolirá uma baleia.

 

A menina contrapôs

Que Jonas foi engolido

Por uma baleia atroz.

A professora o sentido

Rediz: “ Nunca! A este nível

Fisicamente é impossível.”

 

A menina olha outras zonas:

“Quando eu morrer, lá no céu,

Irei perguntar ao Jonas!”

E a mestra, do lado seu:

“E que ocorre, lá no eterno,

Se o Jonas caiu no inferno?”

 

“Aí é mesmo lugar

De a senhora perguntar.”

 

 

Educadora

 

A educadora, observando

Toda a turma a desenhar,

Olha uma criança, quando

Intensa a vê trabalhar.

“Qual vai ser o teu desenho?”

“É Deus! É com que eu me empenho.”

 

“Mas como é Deus ninguém sabe...”

“Esperem o meu produto,

Um instante, até que acabe:

- Vão sabê-lo num minuto.”

 

 

Foto

 

Todos na fotografia,

Tenta a mestra convencer

À compra, naquele dia,

Da foto de se reter.

 

“Quando vocês forem grandes,

Dirão: olha a Catarina,

Hoje advogada a que mandes

Tratar do que for da sina.

 

E o Miguel, médico agora,

De lhe fiar quem adoeceu...”

Logo uma voz corrobora:

“E a mestra ali! Já morreu...”

 

 

Tosse

 

Ai, doutor, receite-me um dos seus produtos

Sem demora:

Tenho um ataque de tosse de cinco em cinco minutos

Que dura meia hora...

 

 

Intransponíveis

 

Todas as religiões,

Uma vez implantadas,

Não têm dúvidas nem recolhem interpelações

Do mundo pelas estradas:

Têm montanhas intransponíveis de certezas

E muitas rezas.

 

Têm soluções definitivas

Que alistem

Para quanto vivas,

Até para os problemas que não existem!

 

 

Cabo

 

Cá vamos dando cabo de Deus:

Ele não liga ao mal do mundo

Mas, a quem bate à porta dos céus

De pecado mortal imundo,

É vê-lo a atirá-lo, implacável,

Para o inferno

Eterno

Inapelável!

 

- A nossa estupidez é nisto infinita,

Só comparável

À pretensão precita

De ali comandar o Além.

Quem é que não anda doido, quem?

 

Deus não caminha à arreata

De nenhum burro que crê que à suja pata,

Confiável,

O ata,

Porém,

Por muito que seja um burro venerável

A eminência que crê que à mão O tem...

 

 

Norma

 

Em todas as igrejas e religiões, a par,

Há uma norma qualquer

Que diz: “Vem jantar,

Mas olha que não podes comer!”

 

 

Único

 

Único a não fracassar

Da vida em qualquer ementa,

Não é o que sempre tentar,

É aquele que nunca tenta.

 

 

Botas

 

Umas botas apertadas,

Mas que ventura sem par:

Ao doer-me os pés, que gozadas

São as horas de as tirar!

 

 

Dever

 

Se eu dever uma moeda,

Aí o problema é meu.

Se for um milhão, tu queda,

Que aí o problema é teu.

 

 

 

- Já tens setenta e cinco anos.

Como é que tu conseguiste,

Senão recorrendo a enganos,

A esposa jovem que insiste

Que contigo não há danos?

 

- Menti-lhe na minha idade...

- Ah! Disseste quê? Cinquenta?...

- Não! Ao invés, na verdade,

Disse que eram já noventa.

 

Casar assim não é louco:

Como estava já por pouco...

 

 

Amanhã

 

Agora e aqui,

Não penses no amanhã. Deixa lá,

Que ele se encarregará

De o fazer por ti.

 

 

Julgamentos

 

Os pretos, os ciganos,

Os nazis,

Os cabo-verdianos,

Os capitalistas,

Os comunistas...

- Apenas os imbecis

Farão julgamentos sobre povos inteiros.

Se és dum país esclavagista,

Não és obrigatoriamente parte da lista,

Até podes ser do porvir liberto um dos luzeiros.

 

Qualquer racismo,

Além da superficialidade,

É de irracionalidade

Um abismo.

 

Quem se guiar por tal

De homem tem apenas o animal.

 

E que este me perdoe:

Espero que lhe não doe...

 

 

Achas

 

- Achas que sou louca? –

Clamas, jogando ao lixo o meu ramo.

- Completamente. E não é coisa pouca:

É por isso que eu te amo!

 

 

Mudança

 

Quando a vida fica à toa

Das tretas e das lérias,

Uma mudança é tão boa

Como umas férias.

 

 

Álcool

 

Quando de álcool, os goles

Não morrem de velhos:

Mal uns poucos engoles,

Adoram multiplicar-se como coelhos.

 

 

Migravam

 

Os homens do paleolítico

Migravam frequentemente

Como hoje um adolescente,

A sonhar tornar-se mítico:

- Todos correm, em seguida,

Ao cheirinho da comida.

 

 

Melhor

 

Este é o melhor momento de viver:

Quase tudo o que havíamos pensado

Saber,

Sabemos que está errado!

 

 

Triunfa

 

Uma verdade científica

Não triunfa por convencer,

Pacífica,

Quenquer.

 

Mas porque os opositores

Acabam por morrer

E os novos cultores

Se familiarizaram com ela ao nascer.

 

Por tal

A ciência avança funeral a funeral.

 

 

Chora

 

Chora o menino chorão,

De tal sem razão de ser.

Porque chora ele então?

- Tem os olhos a chover!

 

 

Espírito

 

Do Espírito o pior inimigo

Sois vós, do Espírito os profissionais:

Trocai-lo sempre pelo próprio umbigo,

Confundindo-o com os traques que dais.

Ora, é sempre outro o sopro de Deus,

Este que dais brada aos céus.

 

 

Demasiadas

 

Nós, os vivos, não sabemos mostrar

Compaixão nem bom senso em tempos de dor,

Demasiadas vezes a apreciar

Doutrem a desgraça com infindo despudor.

 

 

Construir

 

Para quê construir um mundo melhor

Para criaturas cujo gozo

For o medo do que nelas for

Mais grandioso?

 

 

Cómico

 

O mais cómico de qualquer religião

É que todas condenarão,

Das outras em toda a rua,

O que farão

Na sua.

E ainda por cima têm razão!

Deus deve mesmo, se não fugir,

Escangalhar-se a rir...

 

 

 

 

 

 

 

ÍNDICE

 

Trilho Popular

 

Trilho Regular

 

Em Seis Pegadas Certas

 

A Pegada do Sonho

 

A Pegada do Ser

 

A Pegada em Contra-pé

 

Em Cinco Momentos

 

Em Seis Degraus

 

O Trilho Irregular

 

A Incerta Alegria do Amor

 

Pegada Clássica

 

A Pegada da Ironia