EM SEIS DEGRAUS
Criança
Todos somos a criança ingénua,
Nunca entendemos a natureza do mundo,
Como infinitamente resiste a matéria, estrénua,
E como a vida, no fundo,
Sopro que me invade,
É só fragilidade.
Problema
O problema começa
Quando a imposição do emprego
Tropeça
Com a da família que a mim me lego.
E à frente passa aquela
De todo o amor que por mim apela.
Capacidade
O amor requer
A capacidade de cada um querer
O que para o outro é bom.
E depois,
Então,
O que é bom para os dois.
Caminho
O caminho para a felicidade todo o dia
É uma empresa
Que requer a magia
Da integral libertação da tristeza.
Ao vento da vida, sem isso,
Apaga-se todo o chamiço.
Passaria
A vida é anedótica,
Quantas vezes em nós tropeça!
Não fora, porém, de vez em quando caótica,
Passaria muito depressa.
E era um tédio
Sem remédio.
Rumores
Embora frequentemente fundados
Em factos confirmáveis,
Os rumores nunca são dados
Fiáveis:
O distorcido
É a maior traição do sentido.
Monge
Toda a gente precisa de alguém.
Até o monge, o solitário,
É num convento que tem
O reconforto primário.
Cada um de nós, de raiz, na identidade
É sempre comunidade.
Percepciono
Tudo o que percepciono é aparência,
No mundo, nos outros, no lar...
Ora, se pela aparência me ficar,
Corro o risco de me prender numa falsa evidência
E de perder, por ela traídos,
Todos os tesoiros escondidos.
Casamento
O casamento é um contrato?
Daí é que vem a confusão:
Negoceia-se qualquer trato,
A vida privada, não.
É que o amor e a ternura
Ou são gratuitos ou não têm lisura.
Místico
O amor, em todo o lado,
É mistagógico:
Quem é que, estando apaixonado,
Gosta de ser lógico?
Gosta é de ser místico por inteiro:
É o único religioso verdadeiro.
Limite
Prisioneiro,
Ninguém pode para sempre permanecê-lo:
No limite, leveiro,
Dobra da vida o cotovelo
E acorda do lado de Lá
Sem as grilhetas de cá.
Conheces
Amor,
Conheces minha fraqueza,
Mas a fraqueza maior
Que cruel a mim me lesa
Não a conheces de cor?
- É que és tu, minha beleza!
Logicamente
Logicamente, tem de haver um começo
Onde tropeço,
Por mais que os recuos sejam distantes.
Perguntamo-nos, todavia, sempre também:
- Está bem,
Mas que é que havia antes?
Indiferente
De tanto que se coadune
Com o que bulimos,
Aquilo que mais nos une
Não o sentimos.
A menos que o mundo, enquanto indiferente gire,
No-lo tire.
Porquê
Para quê nascer
Se para apenas morrer?
Porquê existir
Se é para se extinguir?
Que objectivos ateus
Teria então Deus?
Mundo
Quando quem mais amamos no mundo
Desaparece,
O mundo permanece
Mas não é o mesmo, fica ao longe, muito ao fundo...
E acontece
Que tudo em nós arrefece.
Alcance
Quem me dera que fosse meu!
É assim, desde que o vi:
O céu,
Fora de alcance mas sempre ali.
Em todo o sentido e por todo o lado
É o nosso fado.
Difícil
Por vezes é difícil distinguir
Entre o criminoso e as circunstâncias.
Aí findamos por descobrir
Como a vida, nalgumas instâncias,
É toda à custa
De ser injusta.
Esquecer
É difícil esquecer a dor.
Porém, bem pior
É recordar a doçura:
A felicidade que no-la apura,
Deixa, nas matrizes,
Cicatrizes.
Carregamos
Toda a gente leva o mesmo:
O mesmo fardo,
O mesmo problema onde me retardo...
- Todos carregamos a esmo
Muito mais em comum
Do que julga qualquer um.
Medo
Quem tem
Medo de morrer
Terá, porém,
É medo de viver.
Se não, porque é que não
Arrisca de vez, então?
Vês
Tudo é doença, tristeza e sofrimento
A cada canto.
Tu, porém, não: vês a esperança do momento,
A possibilidade, entretanto,
Mesmo no improvável
Abres caminho ao viável.
Vir
Para pôr de pé
O mundo que houver de se fazer,
Se eu vir o que ele é,
Terás tu de ver
Em complementar contra-pé,
O que pode vir a ser.
Melhor
Na vida quenquer
Tem de bem ponderar:
É melhor ter e não precisar
Que precisar e não ter.
Daí o aforrar
Enquanto tempo houver.
Digno
Um amor
Digno de se morrer por ele
É aquele amor, aquele,
Cujo teor
O torna digno de se viver por ele.
Aliás, de viver para ele.
Menos
Dinheiro
Não é felicidade
Mas também é verdade
Que, na dolorosa circunstância,
Sofro menos se meu celeiro
For de abundância.
Investir
Quando estamos sozinhos,
Sem poder investir afectos nos semelhantes,
Fazemo-lo em animais maninhos,
Atribuindo-lhes, por instantes,
Valores que nenhum deles, porém,
Alguma vez tem.
Jornalista
O jornalista, por trás,
Vive de lhe correr bem
O que, porém,
Corre mal aos mais.
É uma sevícia
A ganância da má notícia.
Livre
Quem livre quiser ser,
Não pode pôr-se a pedinchar
A liberdade que quer,
Terá mesmo de lutar.
Tudo o mais
São ilusões por onde vos extraviais.
Diante
Às vezes é preciso alguém de fora
Para nos fazer ver,
Sem demora
Nem antolhos,
O que nos estiver
Diante dos olhos.
Hora
Temos vindo a representar
De escravos, súbditos, empregados,
Reféns a resgatar
De acorrentados...
- Eis a hora, eis,
De criar nossos próprios papéis!
Universo
O Universo inteiro é movimento,
Constante transformação.
Fica em aberto, a todo o momento,
Uma nova ordem em gestação,
Efeito da muda, por norma,
De qualquer parte que o forma.
Aberto
Não é o mais forte
Nem o mais inteligente
Que alcança
Sobreviver à morte,
Mas o ente
Mais aberto à mudança.
Errónea
Qualquer decisão
Que não procure o benefício colectivo
É errónea no chão
Que queira vivo,
Da comunidade à nação completa,
Do continente ao planeta.
Cósmica
Uma força cósmica ordena o real e a vida
No Universo de que sou parte.
Nada comigo a gestão dela comparte,
Desmedida.
Dela uma qualquer compra e venda?...
- Só mesmo de cegos com a cega venda!
Silêncio
Guarda silêncio, quieto.
Sente em ti a pulsar todo o Universo.
Ao conhecimento enfatuado impõe o tecto
Que, desde o princípio do tempo, é o berço
Insondável do verso e do reverso.
E solta ao Infinito o teu afecto.
Rever
Olhar para trás,
Rever o percurso feito
E o que foi superado, eficaz,
É a prova irrefutável
Da cumeeira a que orça
Nossa força.
Mostra
Ser vítima
Não é coisa pouca:
Mostra à comunidade legítima
Os efeitos penosos, de pôr uma pessoa louca,
Tudo por mor
Da falta de amor.
Muda
A muda interna dum grupo não se ajusta
À estrutura comunitária que o oprime?
Exigirá mudas urgentes para não sofrer à custa
Do que com ele não rime.
Até que, de algum lado, se arrime
À saída justa.
Outra
No meio da desgraça,
Cuidemos que deve haver outra forma:
Semear com outra traça,
Justiçar por outra norma...
- O imaginário ao nosso serviço
Há-de quebrar-nos de vez o enguiço.
Julgar
Melhor é julgar uma mulher
Pelo que é,
Com boa fé,
Do que o julgamento presa
Apenas ser
De sua beleza.
Sempre
Pela justiça, pela liberdade!
Há sempre os que correm
Pelo sonho além, assim...
A mulher, por norma, chora as perdas que isto grade:
As palavras não morrem,
Os homens, sim.
Sementes
Mesmo as árvores mais altas
Crescem de sementes pequeninas.
Lembra-te disto, quando contas as faltas
Ao que te destinas,
Não vás tu procurar
O tempo apressar.
Corda
Do mundo a mais bela melodia
Torna-se monstruosidade
Se a corda que a tangia
Desafinar a tonalidade.
É o que dentro de nós ocorre por todos os lados,
Quando os íntimos nós os largamos deslaçados.
Traço
Sou o traço incomensurável
A esticar-se, irrefragável,
Do que cismo
Ao que fito:
Um pé no abismo,
Outro pé no Infinito!
Virando
A vida é muito veloz
E feroz.
Faz-nos ir do céu ao inferno,
Ódio roendo o que era terno,
Virando do avesso o mundo,
- Num segundo!
Remédio
O remédio é pior
Que a própria dor:
Para não ter o amor por dono
Não me apaixono.
Então, do que não me invade,
Toda a vida é uma saudade.
Revira
O amor revira a vida,
O desespero, também.
Aquele, a trepar na subida,
Este, a tombar falésia além.
Todavia, é o mesmo o processo,
Ora do direito, ora do avesso.
Espera
Amas-me? Espera, que esperar
É a mais difícil parte.
E eu quero também me habituar,
Saber que estás comigo, destarte,
Mesmo quando, vida fora em qualquer povoado,
Não estás a meu lado.
Liberdade
A liberdade dum amor que se assumir
É, a par,
Nada ter a pedir
Nem a esperar.
É o segredo duma dança
Que a todos toca e nenhum de vez alcança.
Eliminar
O sofrimento,
Encarado sem temor
A todo o momento
E para o eliminar em profundidade,
É o corredor
Da liberdade.
Infligida
Da dor infligida pela natureza
A beleza
É a do desafio:
- A de ganhar-lhe sempre por um fio.
Após a frustração,
A alegria da reconciliação.
Humano
Quando o humano é tão humano
Que nenhum dano
Nele se insira,
Disto o ensino
É que ele respira
O divino.
Droga
O poder de dominar
É a droga e o veneno
Do sonho que se sonhar
E do projecto imperial, sempre num perene aceno.
A barca de cada um tem de navegar
Entre ambas as escarpas sem se afundar.
Fenómeno
Criticar, ser criticado
Não é fenómeno de mútua exclusão
Mas de recíproca escuta e interpelação,
Até que a fornada do mundo haja fermentado.
Para que vida fora possamos cozer as broas
Da mesa das aventuras boas.
Tradição
A tradição religiosa
Não é um museu,
É a memória do fundamento que, glosa a glosa,
Estimula a criação contínua que se perdeu.
Um museu aqui é coisa morta:
Todos lhe fecharão a porta.
Ovelhas
Sem procurar o bem comum da humanidade, aldeia a aldeia,
Andaremos como ovelhas sem pastor
A ser comidos pela alcateia
Da mundial ganância e despudor.
Quando o mundo sucumbir em cacos,
Que é dos fortes? Que é dos fracos?
Vislumbro
Vislumbro, no horizonte da estrada,
Lampejos de Infinito que me consomem.
Sou mesmo uma ninharia esmagada
Por inúmeras infinidades que me tomem.
É quando não sou nada
Que deveras devenho homem.
Viver
Viver, em toda a idade,
Em todo o lado,
É, de verdade,
Arriscado.
E o maior risco
É o de quem crê que é só um petisco.
Esperança
Se a esperança for apenas nesta vida,
Somos mesmo dignos de compaixão.
Nascemos sem porta de saída,
Sob o império,
Então,
De candidatos ao cemitério.
Sem
O homem não pode viver
Sem esperança,
Sem o sentido entender
Da pergunta do Outro que o alcança.
É o único caminho do poder
Que o relança.
Precisam
As religiões e o mundo
Precisam mais de reformas,
Cada uma com o melhor de que os fecundo,
Do que de dogmas que, só de normas
Que os regulam,
Afinal os estrangulam.
Carris
A vida em nós nós a sentimos
Como aquilo em que vivemos,
Sabendo
Que não nos damos a vida em que vimos
Correndo
Nos carris do mundo onde corremos.
Acalenta
Vale a pena ler o que nos abala
E acalenta a esperança,
Porque não cala
A negra realidade.
Então não acata, antes nos lança
Contra a fatalidade.
Mundo
O mundo é muito, muito grande.
E, por mais que demande,
Nunca conhecemos
Deveras ninguém
Senão quando sabemos
O que lá dentro tem.
Arrancar
O mais impuro
Dos sinais:
Todos a trabalharem no duro
Para arrancar tudo aos mais.
E ninguém a produzir
Deveras, a seguir.
Provando
Faz-te esperar,
Provando que te é superior?
Todavia, se precisa de provar,
Então sabe que o não é, como é de supor.
Eis como nos escapam das mãos como enguias
As nossas fantasias.
Pagar
Um presente
Que implique uma dívida de gratidão
A pagar concretamente
Não é um presente, é um ladrão.
Um presente, ou é gratuito
Ou pesa muito.
Anjos
Todos os que fazem o que o imo manda
Em múrmuro rumor
E obedecem à voz que do Além comanda
São anjos do Senhor,
Em corpos incarnados
Disfarçados.
Obedeço
Quando obedeço do íntimo à Voz que me comanda,
Sou o viajante que sabe donde vem e para onde vai,
Na locanda,
Por entre copos de vinho
De quem entra e quem sai,
A falar a quem perdeu o próprio caminho.
Alcance
Ter-te nos meus braços
É ter ao meu alcance, embora de fugida,
Tudo o que ainda me surpreende, sem embaraços,
Na minha vida.
Que portal me abres tu, cimeiro,
Para um novo mundo inteiro?
Salvou-lhe
Salvou-lhe o filho
De afogar-se nas túrbidas águas.
O pai apertou-o ao peito, de o livrar do infausto sarilho,
Mas com um calor doutras fráguas:
- Naquele abraço auguro
Que abraça o quase perdido futuro.
Prática
A prática da equidade na justiça,
Do amor, das vidas na liça,
Agrada mais ao senhor dos Céus
Que os sacrifícios de crentes ou ateus.
Doutro modo, estes não são mais que indiferentes enguiços
De deuses postiços.
Mundo
Que forma e cor
Tem o amor
Que convém
Ao mundo de Além?
Quem mo dera saber
- E ser!
Visão
Driblando os escolhos,
A visão é uma verdade superior
Que tenta entrar em nós com fulgor
Através dos nossos olhos.
E o mesmo acontece
Com as palavras inaudíveis com que a mente estremece.
Confia
Confia no que és,
Verás que não há morte.
Da cabeça aos pés,
Desta sorte,
Só há vida:
A deste lado e a do outro, de seguida.
Poderoso
És mais poderoso do que pensas.
Vês e ouves o que outros não vêem nem ouvem,
Amuralhados nas próprias despensas.
Quando teus actos, cumprindo a fundura, a louvem,
És, embora a incarná-la sozinho,
Do Infinito um adivinho.
Dia
Cada dia
Tem um elemento
Que me desafia
E exorta:
Todo o momento
É uma porta.
Continuar
Todo o homem é do tipo
De continuar a andar
(Mesmo se me equipo
Do acaso, ao calhar),
Embora nunca saiba qual a escolha plena
Dum destino que valha a pena.
Verá
Quem for capaz de trair
Verá sempre em alguém
Que anda a trair também.
Que alguém honesto possa existir
Nunca o desonesto, por mais que reflicta,
Acredita.
Divórcio
Em todo o casamento
Há sempre uma boa razão
Para o divórcio, nalgum momento.
Vê bem, pois, se não deslizas
No chão
Que pisas.
Defende
Quem defende os amores
Dos que estão
Sendo esmagados no chão
Por interesses maiores?
Quem denuncia a contradição
Do poder dos senhores?