PRIMEIRO TROVÁRIO
OS CAMBIANTES DA VOZ TODO O SER ME REGULA
Escolha ao acaso um número entre 1 e 134, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1 - Os cambiantes da voz
Os cambiantes da voz todo o ser me regula,
No amor identificando-me a matriz
Donde o arvoredo da utopia pula,
A regra respeitando do que a nunca anula,
Para ao ser retornar, à raiz.
Aqui vivificado, o amor
De novo trepa ao sonho, à Infinidade,
Da norma trilhando a via e o suor,
Até que a ser amor de novo nos persuade.
E a utopia à lei se funde
E o amor mais ser devém
E o dever com o sonho se confunde.
Ser e amor, lei, utopia se unem além
Na festa onde Tudo é o Infindo que nos foge e vem.
2 - Os cambiantes da voz todo o ser me regula
Os cambiantes da voz todo o ser me regula
No verso regular de métrica acertada,
Em poemas de rimas onde se rotula
Cada pendor da vida que mais estimula
A ver o que o ser for ao perpassar na estrada.
Toco o ser com a ponta da palavra atenta,
Desvendo-lhe a faceta mais inesperada,
Tomando-lhe o sabor com que se condimenta,
Ao ritmo duma incerta mas fiel passada.
E aquilo que é de súbito se nos revela
Em pendores estranhos a uma luz diversa
Por trás de que entrevemos, por acaso, a estrela
Que o viandante guia pela noite adversa,
Cuja passada trôpega então torna tersa.
3 - Sai
Quando o filho sai de casa,
Ficam com mais tempo os pais,
Mais força que lhes apraza,
Laços criam com os mais
Familiares, amigos,
Atam novas relações…
O contacto oferta abrigos
De felizes comunhões,
Podem jogar para fora
Mil e uma irritações,
Vai o antigo stresse embora…
Tudo são ocasiões
De ser importante e ledo
Para os mais a que aproveite
Como, mais tarde ou mais cedo,
Para se sentir aceite.
4 - Murmura
Um ladrão, ante a caverna,
Murmura, convicto e rijo:
- Mas que belo esconderijo!
O artista, numa superna
Faísca de arroubos reais:
- Bom para pintar murais!
O avarento, a catar oiros:
- Cave de esconder tesoiros…
E só o sábio diz a eterna:
- Que bela, bela caverna!
5 - Silêncio
Importa mesmo anunciar
Que o silêncio uma ninhada
De feiuras vai criar:
A dúvida acumulada,
Qualquer desentendimento,
Auto-estima destruída,
Depois o ressentimento…
- E anoitece em toda a vida.
6 - Empírico
Se examino a natureza
Só com empírico olhar,
Descubro que na represa
Do corpo vem colocar
O imo do Homem tal num grande
Palácio onde raro ocupa,
Dos quartos por onde ele ande,
Os mais bonitos que agrupa.
7 - Sobrepõe
Se sobrepõe-se o interesse
A todo o tipo de afectos,
Honra e justiça se esquece,
Humanidade e projectos,
Para obter, a mal ou bem,
O que a quenquer lhe convém.
Na vida de engano, torto
Se finda o mundo assim morto.
8 - Caída
Quando a mulher desolada
Se encontra e sem conselheiro,
É uma bolsa de dinheiro,
Jóia caída na estrada,
Mesmo à mercê do primeiro
Que ali passe de jornada.
Se calha encontrá-la um homem
Virtuoso e de elevados
Princípios, estes achados
Manda apregoar que os tomem:
Talvez os bens encontrados
Busque alguém e ambos se somem.
Quantas vezes, ao contrário,
Sem escrúpulos alguém
É o adulador que advém
No caminho temerário.
Sempre este julga que tem
Direito à presa, sumário!
9 - Angústia
Os espíritos maiores,
Pela angústia avassalados,
Aos desânimos piores
Acabarão inclinados.
Serão os mais susceptíveis
De acaso desesperar
E das desgraças visíveis
Vencidos irão tombar.
E uma queda das alturas
É a pior que configuras.
10 - Chutada
Que é que eu tenho a ver com isto,
Com a vida que me atola?
Não fui tido em conta, existo,
Ao calhar chutada bola.
Por vezes duma pessoa
Se apodera a vida acaso,
Arrasta-a, jogando à toa,
Tece-a a história a que der azo.
E, contudo, não é real,
É a fantasia que a cria.
Mas deixa-nos, no final,
Espezinhados na via.
11 - Diferença
Não é estrato social
A diferença entre as gentes,
Mas o que foi cada qual,
São os corações e mentes.
De escalões médios ideias
Recolhemos dominantes;
Do povo comum, a meias,
A vida e calor constantes,
Sinto-lhe os ódios e amores.
Do que eu fizer de tais veios
É que talho meus pendores:
Cumes, vales e entremeios.
12 - Investigador
O investigador não basta
Aos factos se confinar,
Urge discernir a casta
Do que se repercutir,
Do que se ramificar
Dos dados com que bulir.
Mais se as ondas se estenderem
Pelos séculos além,
Se nos mitos se esconderem,
Em lendas com que encantar.
Distorce-os isto, porém,
Como eco a reverberar.
Não localizando a voz,
Qualquer eco, todavia,
Distorcido embora após,
Apontar-nos pode ainda
O rumo donde viria
Na direcção com que finda.
Qualquer facto é uma pedrinha
Lançada ao lago da história.
Mui rápida se adivinha
Que se afoga sem mais rasto:
Mas a ondulação memória,
Se na perspectiva a engasto,
Nos deixa que nos permite
O ponto localizar
Onde caiu que a desquite.
Guiados pela ondulação,
Ou mergulhar ou dragar
Poderemos sempre então.
O anel de ondas viabiliza
Descobrir o que podia
Doutro modo, a outra brisa,
De vez irrecuperável
Parecer à luz do dia
Ao mais persistente e fiável.
13 - Tratamos
A forma como entendemos,
Tratamos a informação
Depende de como a vemos,
Se nos diz sim ou diz não,
Positiva ou negativa:
Se ouves falar num pequeno
Rol de indivíduos que viva
Num terrível mal terreno,
Não ignores que maior
Será o número daqueles
Que, como tu, dão sabor
Ao bem-estar que interpeles.
Quase todas as terríveis
Histórias da informação
De algo de cruel visíveis
As escaras no-las dão,
Mas que apenas acontecem
A um pequeníssimo grupo.
Os demais, se desfalecem,
É da festa em que me ocupo.
14 - Falsa
A religião que é certa
É sempre a falsa questão
Que o coração nos aperta
Em vez da libertação.
O trigo, após a colheita,
Terá de ir para a moagem.
Poderá ser pela estreita
Via nortenha a viagem
Cujo piso está melhor,
Embora seja a mais longa.
Ou antes o sul propor
Que, mais curto, se prolonga
Por mil curvas e buracos.
Ou, se calhar, pelo leste,
Que custa mais uns patacos
Por trepar montanha agreste.
Ou, então, pelo ocidente,
Com perigo de atolar-nos,
Mas chega lá de repente,
Excepto quando afogar-nos.
Contudo, quando cheguemos
À moagem, quem atende
Não lhe importa donde viemos,
Pergunta a quem se lhe rende:
"Pois então, ó meu amigo,
É mesmo bom o teu trigo?"
15 - Caminho
O caminho da cidade
Com o do lar se confunde,
Tricotado idade a idade
Pelas gerações que funde.
Os artistas se esgueirando
Pelos bastidores, rumo
À noite escura, contando
Do palco o breve resumo,
Vão aos mais novos que virem
Pedir para os substituírem.
São séculos iludidos
Pedindo às urbes sentidos.
16 - Corpo
O meu corpo é um automóvel,
Pego nele para dar
A volta à volta do imóvel,
Para em forma o conservar.
Um coração rijo faz
Que os actos do dia-a-dia
Mais fácil e mais capaz
Logo os executaria.
A vida é boa, a saúde
Ainda a leva a ser melhor.
Das virtudes a virtude
É a de que eu não desafore.
17 - Cadeira
Na mesma cadeira nos sentemos dias
E dias a fio: logo ali veremos
Como nos sentimos proprietários, guias,
Como senhorios com o mais que temos.
Às vezes foi só no dia
Em que obrigam a mudarmos
Nossa vida onde se via
De tudo conta nos darmos.
Mudo de casa e relações humanas,
Mudo de emprego, muda a geografia:
Reparo então que enchi de mil praganas
Toda a gaveta do que em mim havia,
Tanto as de armários quanto as de alma,
Futilidades acabadas!
Mofo e bolor olho com calma:
- Como vi nisto asas de fadas?
Quando é preciso abandonar
Um território que fiz meu
É que em cigarra, se calhar,
Mais que em formiga, o camafeu
De minha vida cultivar
Vejo eu então que deveria:
Mais festa a vida ali vivia.
18 - Choro
Para o choro de mãos dadas
Entre as almas enlutadas
Importa encontrar com quem.
Os rituais que se tem
Religiosos ou não,
Mais quantos em frente vão
Para o que der e vier,
Ajudam-nos a fazer
A imprescindível viagem
Desde o estupor da paragem,
Da revolta inicial,
Até que ao fim cada qual
Reorganiza, fio a fio,
Nova teia do cotio.
Que tempo demora a rota,
Cada qual tem sua nota!
Sempre imperioso há-de ser
Respeitarmo-lo em quenquer.
19 - Dedo
Qualquer dedo acusador
De quem nos procura aponta,
Não o incompetente-mor,
Mas a falta que mais conta,
A indisponibilidade,
Quer de tempo, quer mental.
E, se a produtividade
Quer tempo, espaço e real
Estabilidade em ganhos,
Tem de privilegiar,
E com não menos tamanhos,
Como se relacionar
Com o público, clientes,
Todos e quaisquer utentes.
Saber e psicologia
É que colmatam a via.
20 - Instalou
O que é mais preocupante
É que subrepticiamente
Se instalou, como garante,
Que terei de ter em mente
As coisas, para aplacar
Angústias, necessidades
Básicas que eu enfrentar…
São dogmáticas verdades.
Isto é esforço de carteira
Mas de espírito, não, nunca.
Este pecado é a certeira
Machada que o chão me trunca.
À medida que os objectos
Perdem toda a novidade
E o primo prazer dejectos
Deixa da festividade,
Damos connosco obrigados
Por outros a substituí-los,
Sempre, sempre encadeados,
Cadeia donde, intranquilos,
Não escaparemos mais.
Sem preencher o vazio,
Dos alívios parciais
Nunca a sede mata o rio.
Um oco núcleo nos rói
Toda a vida aonde mói.
21 - Empurramos
Empurramos minorias
(Como seropositivos,
Idosos…) e maiorias
(Povos do sul tenebrosos…)
Para estatutos que são
Sociais mortes verdadeiras,
Que a todos reduzirão
A cavar da tumba as leiras,
Cadáveres ambulantes
Pela sombra envergonhados.
Pairarão longos instantes
Num limbo de tristes fados
Até que os corpos se fundam,
Com um alívio secreto,
Às almas que tanto abundam
Num mundo sem lar nem tecto,
Sangradas por solidões
Geradas por mãos alheias
Que negaram corações
Mantendo as carteiras cheias.
Mesmo ajuda monetária
É passaporte discreto
Para uma discricionária
Consciência não pôr veto,
Calma ficar sem rebate
Num egoísmo que se acate.
22 - Sonhámos
Sonhámos a Liberdade,
Até que um dia chegou,
Foi a festa na cidade,
Tudo cantou e dançou.
Ninguém, porém, se lembrou
Da responsabilidade
E ninguém nos ensinou
A guardá-la bem guardada,
À liberdade alcançada.
Soltam-se os recalcamentos:
Ignorámos o passado
E trancámos o futuro.
Liberdade de momentos,
Foi-se embora em todo o lado,
Já ninguém vive seguro.
Foi-se embora a liberdade,
Fica a liberdadezinha:
Vive o crime a impunidade,
Caluniam na cozinha,
Difamam na praça pública,
Prendem sem acusação
Em cada cela a República,
Sem provas acusarão
E a mentira ampliarão
Ao jornalista, ao leitor,
Ao juiz, seja a quem for…
- Seremos livre um país,
Não livre o povo que eu quis.
23 - Lado
O nosso lado criança
É aquele fundo de nós
Que viver permite. E alcança
Em intimidade, a sós,
Um genuíno entusiasmo,
Encantamento inocente
Pelo que a vida, com pasmo,
Nos proporciona em torrente.
É o que ajuda a não levar
A dificuldade a sério.
Aí vamos encontrar
Da criatividade o império,
Os nossos veros recursos.
Ninguém é mais limitado
De ser forte por discursos,
De vencer, sempre em cuidado,
De expectativas alheias
Ter de à força ir colmatando,
Prender-se nas mil correias
Dos papéis que à mão vão dando…
É ali que nos entregamos
Por inteiro ao que sentimos.
A criança estende os ramos,
Mergulha em quanto intuímos.
24 - Espírito
O sofrimento não pende
Só de eventos exteriores
Mas sempre em parte contende
Do espírito com humores.
A mesma doença pode
Ser vivida por tragédia
Por alguém a quem sacode
E ser bênção intermédia
Para outrem que, entretanto,
Vê nela uma mensageira.
E o mesmo dum outro manto
Irá recobri-la inteira
Se em momento diferente
Da vida a tiver presente.
É de espírito um estado
Que diz se sofro ou me evado.
25 - Completamente
Nem completamente mau,
Nem somente positivo,
Nem bom o convés da nau,
Nem tudo só negativo:
Amor e ódio são chegados:
Quando um deles forte versa
Por demais num só dos lados,
Muda no outro e vice-versa.
O extremo produz o inverso
Que, se extrema, dá o reverso.
E não há como fugir
À lei que tal infligir.
26 - Grão
Grão de areia é um microcosmo
Em relação a uma estrela
Que há-de ser um macrocosmo
Comparada à areia bela.
Mas então, por sua vez,
Um microcosmo será
Se o sistema solar vês
No tamanho que terá.
Este macro micro fica
Se à Galáxia o comparares.
Nesta o mesmo se pratica
Do total Cosmo se olhares.
Tudo é, pois, mui relativo.
O que importa na medida
É que a lei com que aqui vivo
Em tudo vive esculpida.
27 - Males
Muitos são os males grandes
De que as doenças injustas,
Inexplicáveis, com que andes
Nos afastam, quer nas custas,
Quer na prevenção, no alerta
De que algo importante a sério
Tem de alterar-se, em desperta
Vida de que tenho o império.
Ao de tal ser prevenido
Viro no rumo devido.
Se o mal me não prevenira
Como o abismo é que então vira?
28 - Surpresas
A doença é sempre um teste
Para quem nos rodear
E as surpresas que reveste
Acabam por revelar
O que é cada qual deveras
Além do papel que esperas,
Além do choro e da reza,
O que é que, de facto, preza.
29 - Somada
De estar doente a aflição
Somada à própria doença
Constitui a provação
Que, se amarga nos traz tença,
Revolta, também capaz
É de nos interiormente
Transmudar muito eficaz.
E aquilo que por ingente
Tomámos deixa de o ser,
Enquanto valorizamos
O que outrora nem sequer
Algo era em que reparámos.
Ao mergulharmos no fundo
De nós próprios cá por dentro,
Vamos entender que o mundo
De nosso imo onde me adentro
É ser transporte, na essência,
De algo que é superior.
E acatar esta evidência
É quanto basta propor
Para não me preocupar
Com qualquer situação
Que se vá desenrolar,
Seja qual for a questão.
30 - Rebentar
A doença é uma chamada
À nossa realidade
E à do mundo, uma morada
Em que vivo nesta idade.
Ao nos rebentar à frente
Recorda-nos que esta vida
Tem um fim e que é cogente.
Aproveitá-la convida,
Volta não volta, a alterar
Alguma coisa na forma
Como a andamos a levar.
Apanha-nos mesmo, em norma,
Em dia pouco oportuno,
A meio duma viagem
Onde ao sol e ao vento enfuno
Após anos de triagem,
Ou dum período a meio
De trabalho inadiável,
A todo o momento cheio,
Que ora se adia, inviável…
Irrompe na nossa vida,
Inoportuna visita
Que não vemos quem convida,
Mas que instalada nos fita
E, sem querer consultar-nos,
Dali passa a comandar-nos.
31 - Uno
Tudo é diferenciação
Dum Uno na Infinidade.
De Deus uns lhe chamarão,
Força Cósmica que invade
É o nome que outros lhe dão,
Energia Universal,
Poder Criador, senão
O Cosmos como total,
Ou até nem lhe irão dar
Qualquer nome, pouco importa.
E, num segundo lugar,
Tudo é sempre aberta porta
À constante mutação.
Depois, os antagonismos
Complementares serão.
Tudo, mesmo os cataclismos,
Tem um pólo positivo
E um negativo também:
Ante o branco, o preto arquivo,
Frente ao calor, frio vem,
Ao bom contrapõe-se o mau…
Encarar a realidade
É sempre transpor o vau
Para a oposta que a degrade.
Não há nada igual em si,
Tudo tem a frente e o dorso,
Quanto maior frente vi,
De dorso maior o escorço,
Tudo o que um princípio tem
Um fim terá fatalmente…
Tudo o que existe contém
Dois pólos num igual ente,
Nada existe sem o oposto.
Do contínuo movimento
Dos dois lados deste rosto,
Da energia vela o vento,
Ambos de igual importância,
É que ininterruptamente
Pode ir fluindo a elegância
Do Cosmos florindo em frente.
32 - Fechada
Nós morremos e depois
Somos a fotografia
Fechada numa moldura.
Deste lado os arrebóis
Nunca mostram a alegria
Do dia que Além perdura.
33 - Onda
Qual onda que chega à praia,
Choro no carro, na cama,
No trabalho ou onde à raia
Chega da memória a trama,
Da memória em que a dor fale
Que fundamente me abale.
A maré transporta os ecos,
Ensopa a praia varrida
Que absorve as águas e secos
Findam os leitos, volvida
Qualquer onda de memórias
Da nossa praia de histórias.
Ao chorarmos, libertamos
A parcela negativa
Da memória que tenhamos,
Homenageamo-la viva.
E a parte triste é mondada,
Ao mar interior tirada!
34 - Abandonam
Dos que morreram as almas
Andam sempre a nos dizer
Que os problemas como as palmas
Abandonam de quenquer.
A dor física findou,
Preocupações mundanas
Se esvaíram com o voo,
Não se ralam com que ganas
Alguém fica com a casa,
Nem se importam por não termos
Lá estado na morte rasa,
Quando faleceram ermos.
Nada disto importa agora
Que deveras estão bem.
E assim tal qual, sem demora,
Me devo sentir também.
35 - Ritmo
Marcham ao ritmo da descrença,
Dizem que querem científicas
Provas das quais uma os convença.
Mas é difícil as magníficas
Provas alguém ver quando tem
As vendas postas e voltadas
Costas e mentes, com desdém,
A tudo menos a antiquadas
Crendices ocas, preconceitos,
Em que ele sempre acreditou.
Terei de rir-me de tais preitos:
Que posição mais se fundou
De fé na falta ou na adesão,
Quem se baseia mais em provas?
Eles não vão, eles não vão
A lado algum: como os inovas?
36 - Lagarta
Como a lagarta, caminhando
Para o casulo que a transmuda,
A velha pele vai largando
E em borboleta então se muda,
Assim nós somos, vida fora,
Metamorfose no casulo,
Até que um dia, à final hora,
A borboleta deu o pulo,
Quando este corpo em pele morre
E do outro lado libertada
A flébil alma voa e corre
De luz enchendo a madrugada.
37 - Resíduo
Há um resíduo emocional
Que fica das obras de arte.
Um romance especial
Que personagens acarte
Vivas em minha memória,
Meses, anos fará história.
Aquilo que as personagens
Operam vive em nosso imo
Contando em novas imagens
Quem somos, do fundo ao cimo.
Poemas guardamos em mente
Para o porvir ser presente,
Ofusca-me uma pintura,
Uma música dotada…
É um projector que me apura
Da vida a leiva ignorada,
Recanto mal entrevisto,
Nunca olhado enquanto existo.
E, quando o museu se encerra,
A capa do livro fecha,
Cala a música na terra,
Do projector fica a flecha
De luz, permitindo olhar
Tudo dum outro lugar.
38 - Perdido
Quando tudo se podia
Ter perdido num segundo,
É que damos a valia
A quanto temos no mundo.
Prestamos mais atenção
Aos nadas do dia-a-dia,
Pela vida gratidão
Maior temos que a que havia,
Por quem para nós for bom…
É que estar morto devia
Mas não estou: canto em tom
Que em tudo canta a magia.
39 - Leitura
A leitura engrandece o pensamento,
As articulações mentais alarga,
Os músculos esforça em cada evento
Dos neurónios que aguentam toda a carga.
As nossas opiniões deita por terra
Intolerantes, frágeis, limitadas,
Com factos convincentes, sem mais guerra,
Pelas novas ideias anotadas.
Estimula a leitura o crescimento
E retarda à velhice o vil momento.
É um elixir, portanto, que dá vida
E lhe conserva após toda a medida.
40 - Temer
Por que é que os homens se agarram
Tanto ao passado já morto?
É do medo com que esbarram
De pensar seu próprio horto,
Por temer ser rejeitados
E sofrer, de vez chagados.
Então é doutrem versão
Que tomarão como sua,
Acolhem alheio chão,
Não escolhem própria rua.
O mapa alheio decoram,
Mais e mais o seu ignoram.
41 - Exigente
Exigente arte é viver,
Com os mais relacionar-se
Por igual arte há-de ser,
Mas nenhuma comparar-se
Pode à de se conseguir
Fruir seu imo a seguir
Que é jamais se perder pé
Em ser deveras quem se é.
42 - Impotência
A impotência é descobrir
Que o ego, afinal, não pode.
E a doença que surgir
É o sintoma que o sacode,
A ver se ele aprende a ler
E não se engana ao nos ver.
43 - Nasce
Um homem nasce e a emoção ganha.
Como não sabe resolvê-la,
Esta emoção que ali o apanha
Transformar-se-á na negra estrela
Duma emoção mal resolvida,
A densidade duma vida.
A densidade ali se prende
Ao encadear das gerações.
Dentro do espírito se aprende
Esta armadilha a que se rende
A limpidez dos corações.
Retorna sempre, sempre igual
Esta emotiva densidade.
Se nós quebrarmos a fatal
Repetição idade a idade,
Finda a vivência em tal matéria,
Paga de vez a coima e a féria.
Sobrepor vidas e mais vidas
São emoções presas cá dentro
De pais a filhos repetidas,
São mil pegadas renascidas,
Sempre a brotar do peito ao centro.
Como fugir? De vez quebrar
Repetições: o imo limpar!
44 - Religação
Da interioridade a fuga,
Da religação com o eu,
Com o Cosmos que madruga,
Universo, a olhar o céu,
É a maior fuga que lembra
A história da humanidade,
Que de sempre nos desmembra,
Que sempre nos persuade.
A religação pedida
Irá ser vezes sem conta
Vida fora e vida a vida,
Mas o ego sempre a remonta,
Pelo sistema de crenças
Tenta desviar a atenção
Por nulidades imensas,
Materiais, sem coração.
Até mesmo um sol intenso
Pode às vezes ser tapado
Pela peneira que penso
Que não sou por nenhum lado.
45 - Nó
Teu ego é um nó de sentidos
Que te leva a acreditar
Nas ilusões que, a lograr,
Apesar dos desmentidos,
Juram feliz te fazer,
Em todo o tempo e qualquer.
Quando és criança teu ego
Vai requerer a magia
Que dos adultos é o pego:
"Meu bebé de fantasia
Como é tão inteligente,
Ao rir, que pérola o dente!"
Acreditámos então
Ser mesmo o melhor do mundo.
Artimanha do ego à mão
Para impedir de ir ao fundo
Contactar a nostalgia,
Sem fim o abismo que havia
Duma dor que nós cá temos,
Que é de alma ausência, vazio
Do eu sublime que ignoremos.
Dele nos rói tal desvio,
Que unir-me impõe de verdade
Por dentro à sublimidade.
46 - Cremos
Tudo em que cremos é fruto
De nossa teia de crenças,
Nada tem da fé conduto,
Que a fé cobra outras avenças.
Com três anos, no que cremos
Foi que éramos uns heróis,
Da fé cá nem sombra vemos,
Tudo é luz de falsos sóis.
Alguns jovens acreditam
Que são adultos e sabem
Mais que os outros no que fitam.
De fé visos onde cabem?
Acreditam os adultos
No melhor que há para a vida
E acabam ao fim sepultos
Num desengano à medida.
Envolvida não há fé:
No que a pessoa acredita
É num ego a pôr-lhe ao pé
O que a sobreviver dita.
Perde ao fim toda a jogada
Que vida fora fizer.
A morte é a vida frustrada
Destas crenças de quenquer.
47 - Cai
Onde o ego cai, se desmonta,
É numa desilusão:
A certeza perde tonta
Que antes o erguera do chão.
Desmonta-se a intolerância,
Manifestações arcaicas,
Envelhecidas na infância
De pretensões farisaicas.
Na desilusão um homem
Fica em vazio, é um zero.
Ou às alturas que o tomem
Se conecta, um pólo mero,
Ou resiste e se revolta:
A escolha é dele de vez.
A desilusão à solta
Como nos vem do entremez?
É sempre através da perda:
Do trabalho, de estatuto,
De dinheiro que não se herda,
Por alguém querido um luto…
É perda, enfim, da ilusão.
Se o homem logra aceitar
Que a perda atraiu ao chão
Para o ego desmontar,
Para se desiludir,
Para, enfim, se conectar
Com seu íntimo e subir,
Que bom foi jornadear!
48 - Revolucionários
Um ego nunca permite
Revolucionários termos
Que o imo superno incite,
Deste no sábio palpite
Para devirmos e sermos.
Este tem uma estratégia:
Falar forte ao coração.
Como à mente um ego rege-a
Mas não a uma afeição régia,
Não controla o furacão
De emoções que alguém sentir.
Vividas intensamente,
Um canal irão abrir
Por onde a luz a fremir
Há-de entrar convictamente.
O que é vivido ao limite
Virar-se-á dele ao contrário.
Aquele que tal concite
Vivencia e fica quite
Da vida com todo o erário.
Então vai evoluindo
Por todo o matiz da terra.
Contra-ataca o ego, vindo
A emoção que houver fluindo
Trancar no peito que cerra.
Envia à mente mensagem
Com teorias pretensiosas:
"De choramingas que imagem!
Forte sê como os que reagem!"
E mais idênticas glosas.
E os vasos comunicantes
Comunicando se vão.
Ganha a luz contra as constantes
Guerras do medo grassantes,
Ou o ego, lógica à mão,
Com tudo o que é previsível,
Confortável, controlado,
Mas doente irremissível
No que dele é inatingível?
Qual dos dois gere meu fado?
A doença é a derradeira
Arma da luz dentro em mim.
Quando se retira inteira
De alguém, nada mais se abeira
E o ser murcha, adoece ao fim.
O imo supremo, lá em cima,
Irá ficar expectante
De que eu veja que não rima
Comigo a doença e que acima
De tudo eu me mude adiante.
Deixemos de acreditar
No lema da luta, força,
Culpa e medo que me atar,
Comecemos a deixar
E energia em mim que torça
Por aquilo que precisa,
Para em troca o céu nos dar
Um diamante tal que alisa
O peito onde se divisa
Mais que o sol a luz brilhar.
49 - Caminho
Viver o caminho dói,
Passar por todas as bermas,
Fruir todos os afectos.
Se não entendo o que foi,
Porque trilho trilhas ermas,
Porque tombam os meus tectos,
Terei de aceitar tudo isto
Com o coração aberto,
Pejado de acolhimento.
Quão mais de aceitar existo
Menos violento desperto
Quanto me vier do evento.
Quando receber sinais
Para agir, então actuo
Tal qual se me está a pedir.
Porém, o homem não quer mais
Tal papel, prefere o amuo
A inactivo se sentir.
Quer para si o papel
De mais que um eu superior,
Quer poder controlar tudo,
Delinear a granel
O caminho a se propor,
Ser piloto e o mapa mudo,
Cérebro da operação,
Deveras quer é ser Deus,
Sobre tudo com poder.
Preocupado fica então
Na gesta com marcos seus,
Em demarcar o que houver,
A tal ponto que a função
Que é dele não realiza,
A vivência de passar
Apenas pelo seu chão,
Pelo caminho que visa
Enquanto peregrinar.
Não desiste, quer comando
Em tudo o que é operação,
Dos céus o que é mais secreto.
Nunca comunica quando
O alto detém o timão,
Jamais se entrega em concreto.
Bloqueia ali. Se atraído
Falso alarme de doença
Houvera para entregar-se
E se recusa o pedido,
Já de balanço a sentença
Foi feita sem mais disfarce:
Sem entrega, é candidato
A susto novo, ora a sério.
A maior entrega vai
Ser da morte o final acto.
Se ante este supremo império
Por fim o homem em si cai,
Vislumbra o céu e se entrega,
Mesmo que entregue jamais
Tenha nada em toda a vida,
É um privilégio que adrega,
Só por si, nestes sinais
Que lhe mostram a subida.
Entrega de hora final
Vai poder por fim limpar
Séculos de afastamento,
De desconexão real
Da terra ao que ao céu ligar,
Da razão ao sentimento.
50 - Poderás
Poderás sempre aprender
Antes que algo prejudique.
Mesmo após o mal fazer,
A aprender há quem se aplique.
E há quem, nunca a aprender dado,
Sempre ande prejudicado.
Há quem lance para a frente
Pedra a um elástico presa
Que atrás volta de repente,
Deixa a mão que a lançou lesa.
Se segunda vez a lança,
A pedra de novo a alcança.
Vai ficando magoada
Mas não entende que não
Pode lançar a pedrada
Porque só magoa então.
E continua a atirá-la
E ela sempre a magoá-la.
É castigo ela magoar-se?
Não, porque é o efeito de ela
A pedra atirar que esgarce
Quem a atirou, na sequela.
E se pára de a atirar?
Pára a pedra de voltar.
De magoar pára também,
Mas o corpo já magoado
Vai doer um tempo além,
De ter sido apedrejado.
Mas a dor vai aplacar
E, com o tempo, findar.
Só que, entretanto, o ferido,
Ao não ter o fim à vista
À dor que o tem consumido,
Talvez na pedrada insista:
E a pedra, sempre a voltar,
Não mais deixa de o magoar.
Mas há uma terceira via:
Não chegar nunca a lançar
A pedrada em nenhum dia.
Assim nunca magoar
Há-de o corpo alguma vez,
Fica são todo o entremez.
51 - Crês
Se crês em definitivo,
Não o porás nunca em causa,
Não duvidas, morto-vivo.
Crença tal que não tem pausa
Por teu ego claramente
Foi plantada em tua mente.
Ele quer que nada mude,
Detesta o desconhecido.
Se duvidas que te ajude
A crença, tomas sentido,
Irás ter de repensá-la
E a teu ego o medo abala,
Que pode perder controlo
Sobre o que tens na cabeça.
Teu ego ofertou-te o bolo
De amares só peça a peça,
Porque amar perdidamente
Fará sofrer toda a gente.
Após anos a portar-te
Sempre amando a meio gás,
Tudo em causa nesta parte
Pões um dia para trás,
Duvidando de tais crenças
Por já ver a quem pertenças.
Só podes manter aquilo
Em que a mente te acredita
Se autêntico em forma e estilo
A dúvida o verifica:
Provas a autenticidade
Quando intuis tua verdade.
Verificas a intuição,
A mais profunda, de essência,
A que vem do coração
Que é só de tua vivência,
Vês se ela acolhe essa ideia
Que crês que é de que se creia.
Se sim, é uma fé deveras,
Uma crença verdadeira.
Se a dúvida mantiveras,
Um peso, um temor, que arteira,
Leve e livre alma proibira,
Então é fé de mentira.
É alimentada pelo ego,
Através da educação,
À sociedade no apego,
De evitar com a intenção
O ignoto ou o descontrolo,
De tua vida contrapólo.
Por não deixar-te enrolar
Mais de armadilhas de dor
Nem ocasião vai dar
De viver um grande amor.
E às vezes, à tua frente,
Te aguarda à espera, presente.
52 - Conflituas
Sendo o que esperam de ti,
Não desiludes ninguém
Nem conflituas dali
Com quenquer que a ti te vem:
Muito mais fácil viver
Com outrem será qualquer.
O problema é que se torna
Difícil cada vez mais
Contigo viver à jorna,
Que a ti não te ouves jamais:
Tentando ser o que esperam,
Não vês que forças te geram,
Não contas com o teu eu,
O teu ser, a tua essência,
O vector que se perdeu.
Abandonado em latência,
Engendra-te um furacão
A te chamar a atenção.
Começa a te arder o peito
De insatisfação tremenda.
Foge a maior parte ao feito,
Compensa na compra e venda,
Roupas, telemóvel, carro,
E o muro não prende o barro.
Vêm após as doenças,
Novo apelo de atenção.
E delas fazem pertenças,
Habituam-se à lesão,
Parte ora do quotidiano,
Integrada de ano em ano.
As perdas vão vir então,
Uma e outra e a derradeira,
A deserta solidão.
Esta não é verdadeira,
É o Universo a retirar
Todos do que é o teu lugar,
A limar o teu caminho
Para de vez te encontrares
Com teu íntimo, em teu ninho,
Sem com nada te alheares.
Continua a maioria
A fugir, fugindo à via.
Não gostam da solidão
E a questão não é gostar:
Ausência de multidão
Ao redor a partilhar
É o convite à experiência
Mais radical da vivência.
É o retorno ao ambiente
Mágico do interior
Em que teu imo se sente.
Quanto mais vivido for
Mais mágico ele se torna,
Mais mel em teu dia entorna.
Porém, o maior problema
É que todos têm medo
Deles próprios, por lema,
Medo de ouvir o segredo,
Do que vão ver, vão sentir,
Medo de sofrer ao ir.
Cuidam que ir dentro do peito,
Ao seu mais profundo eu,
Os colará, deste feito,
A um sentimento sandeu
Onde é tudo negativo,
Muito mais morto que vivo.
Ora, ao invés, todo o humano
Encontrar-se sempre adora
Com o ambiente sem engano,
Mágico, que no imo aflora,
Onde muda, de alma solta,
- E então muda tudo em volta.
53 - Cão
O cão que a bola te traz
Fica à espera que lha atires
Para correr dela atrás.
Só uma espera, se bem vires:
Não lha atiras e ele espera,
É uma expectativa mera.
Numa atitude passiva,
Ele não julga nem pensa
Ou que não gostas, na esquiva,
Ou que és mau, antes dispensa
Ver-se acolá rejeitado,
Oprimido aqui, de lado.
Ao entender que não vais
Jogar a bola, se afasta
Tal se nada houvera mais:
Não julga, aceita, isto basta.
Não tendo ressentimento,
Volta após ao mesmo evento.
Não tem medo de se expor,
Arrisca, talvez consiga.
Se não se consegue impor,
Repisa, em paz e sem briga.
Devíamos ver bem todos
Dos animais estes modos.
Os homens não são assim,
Antes de tentar já vão
Temer não chegar ao fim.
A arriscar isto é um senão,
É de se expor ser temente
E já não seguir em frente.
Quando sofres a derrota,
De novo ao partir à luta,
Fechas o peito na cota,
A desfeita na disputa
A temer que se repita,
E sofres já de desdita.
Animais e homens, correctos,
Estão ambos, afinal.
Daqueles, só uns aspectos
Devem estes em real
Aprendizagem colher,
Na harmonia que há-de haver.
54 - Controlar
Controlar será querer
Que tudo saia previsto,
O futuro que vier
Dominar, só então benquisto,
Domar o desconhecido
Não aceite, antes temido.
Tudo querer à maneira,
Se o não for, não é de todo.
Não abrirá sua leira
A receber nenhum bodo,
Delimita como quer
Sem desvios a sofrer.
Quem controla, na cabeça
Decide como há-de ser
E tal tem de ser a peça.
Não aceita se outra quer
A vida, a impor o seu rumo,
Que ele é que manda, em resumo.
Quem controla as circunstâncias
É ele, o ego escondido,
Disfarçado de ganâncias,
Que teme o desconhecido.
E aquele que lhe obedece
Garante que ele acontece,
Faz sempre o que o dono quer
E não faz nada por si
Nem a seu modo sequer,
Não há nada deste ali,
E então não vai empenhar-se,
A tarefa é só disfarce.
O dono do mando manda,
O outro obedece e esquece,
Sem empenho algures anda,
Sem dedicar-se, arrefece.
O dono não deixa espaço
De ninguém ao próprio passo.
Ninguém logra dedicar-se
Àquilo que for-lhe hostil:
Não poder no labor dar-se
É hostilidade servil.
O controlador se irrita,
Que a tarefa o sonho evita.
Pois, quando ele a idealizou,
Era perfeita, perfeita.
O acto tudo esbarrondou,
O outro fez-lhe a desfeita,
Não é mesmo dedicado,
O que mortal é um pecado.
É que o dono do controlo
Não percebe que, ao matar
Criatividade no bolo
Dum labor de partilhar,
O empenhamento aniquila
Do que ante ele se perfila.
O céu responsabiliza
De controlo assim o dono,
Pois não disponibiliza
A ninguém nenhum abono
De esforço, e ao fim espera
Converter quem não tolera.
55 - Deuses
Os deuses são sempre aquilo
Que os homens fizerem deles.
Os judeus marcam o estilo
De seu Deus em suas peles
E meio mundo marcaram
Com os dedos que o traçaram.
O outro meio igualmente
Por outro trilho igual sente.
Quem de ambos nunca fez parte
Tem num terceiro igual arte.
E não há como fugir
À marca que eu perseguir:
Ou não sou e nada é nada
Ou sou eu e abro uma estrada.
56 - Jamais
Deus jamais escolheria
Um homem de preferência
A outro, em nenhuma via,
Nem um povo em prevalência
Ante outro que preteria.
Ante o céu, nossa vigília
É toda uma só família.
57 - Fardo
O fardo do corpo os pés
Suportam inteiramente.
A cabeça, sem revés,
Suporta o fardo da mente.
E o coração por onde ardo
Do espírito aguenta o fardo.
58 - Separarem
Há indivíduos como etnias
Que serão sempre odiados
Por segregarem seus dias
Dos demais homens e fados:
Chamam-se a si como aos seus
Os escolhidos de Deus.
Quando na família grande
Um filho a si se declara
Favorito de quem mande,
Em volta o ódio espalhara
Tanto mais quão mais se gaba
E os outros mais menoscaba.
Os irmãos vão odiá-lo,
Vêem-no à vontade morto.
Se o não matam, um abalo
Não vem, se zarpar do porto
Da vida, que, ao virar costas,
Dos mais liberta as apostas.
59 - Vivida
Tem a tristeza de ser
Vivida antes de a alegria
A lavra ocupar que houver.
A infelicidade um dia
Termina ao fim por passar,
Fica a festa em seu lugar.
60 - Acaso
Tudo acaso há começado
Só numas quantas palavras.
Depois ter-se-á transformado
Em insultos sem cuidado,
Ameaças pelas lavras,
E depois morreu um homem,
Guerras houve que os consomem…
Tudo por mor das palavras.
Num mundo de belas rosas
Tão cheirosas, tu que lavras
Palavras, são só palavras?
- Palavras são poderosas!
61 - Compreender
Compreender não é procura,
Entre o que me for estranho,
Do que meu se configura,
Nem projectar, a meu ganho,
O que for de meu desejo,
Nem quadro em que me revejo.
É acolher o que se opõe,
Valorar o sem-valor
Que doravante se impõe,
Do inesperado o estupor,
O antagónico, o diverso
Em que enfim eu me converso.
É a minha pedra de toque:
Cresço sem usar reboque.
62 - Errância
Ninguém volta por inteiro
Duma errância prolongada,
Descobridor pioneiro
Ou militância exilada,
Que a lonjura é sem remédio,
Quebrada à estreiteza o tédio.
Uma parte de nós fica
E jamais chega a partir,
Outra longe pontifica,
Não volta em nenhum porvir:
Quem volta não volta igual,
Quem fica muda o real.
O encontro, ao fim, verifica
Que é um desencontro o que fica.
63 - Tentativa
A tentativa de impor
Por única língua a língua
Do dinheiro e força-mor
É violência, deixa à míngua
Da barbárie o vitimado,
Na cidade enclausurado,
Dentro até da própria casa,
Dentro do televisor,
Da rádio que mais lhe apraza,
Dentro do computador…
Corrói a nossa cultura
E o nome nos desfigura.
Matando a diversidade,
O atentado configura
Contra a vera identidade,
Destrói a literatura,
Atenta, ao pintar o dia,
Contra tudo o que é poesia.
Onde é que estou, afinal,
Onde estarei amanhã?
Perdi a raiz vital,
Estou solto, palha vã,
Ao acaso em todo o lado,
Pé não tomo no meu fado.
Não há pior solidão
Que a dum homem mutilado
De alma dele e coração,
Dele próprio um ausentado,
Que de si se vai despindo,
Na praça se diluindo
Do grande mercado-mundo:
Quanto maior, mais sozinho,
Já não cidadão fecundo.
Consumindo em desalinho,
Gastar é a meta superna,
- Eis a barbárie moderna.
64 - Estrelas
De pó de estrelas somo feitos
E não é apenas sentimento
Poético, é um facto, pois que atreitos
Astros primevos, num momento,
A explodirem foram antes
Em supernovas que forjaram
Os elementos importantes
Que pelo espaço semearam.
Deles forjaram mais estrelas,
Sistemas novos, novos sóis,
Por fim a vida, nas sequelas
De intermináveis arrebóis.
As nossas ânsias de entender
Quaisquer estrelas farão parte
De honrar de avós aquele ser
Que em nós enfim se ainda reparte.
65 - Milagre
Um milagre verdadeiro
É que os meios de instrução
Degolado por inteiro
Não tenham no coração
O espírito curioso,
Científico inquiridor.
Este delicado gozo
De planta rara a dar flor,
De estímulos para além,
Requer bem mais liberdade.
Sem dela o que lhe convém,
Definha e morre em verdade.
66 - Resulta
Eis o novo pensamento:
Se resulta, deve ter
Algo especial este intento;
Mais tarde descobriremos
Porque resulta o que quer
Que seja que aqui nós temos.
Isto implica enorme avanço
Ante o que antes vigorava:
É impossível o que alcanço
Daqui vislumbrar, pois não
Vejo como se operava.
Muitas ideias, em vão
Qualificadas de tontas
Por nossa cultura outrora,
Do saber são hoje as pontas
Pelos mesmos reforçadas
Que, em aziaga dantes hora,
Maltrataram por danadas.
67 - Egoísta
Por mais egoísta que seja,
Há na humana natureza
Algo que o destino preza
Doutrem que feliz se almeja
Por a nós ser necessário,
Vantagem embora alguma
Se não tire do fadário,
Excepto o prazer, em suma,
De o ver prosseguir inteiro,
Tal o meu se a mim me abeiro.
68 - Injúria
A maior injúria, ofensa,
Mesmo agressão criminosa
Ao pobre, cuja doença
Ou cuja fome ominosa
São elidíveis, curáveis
Quase a simbólicos custos,
É ignorar os miseráveis
Ou, em termos mais injustos,
Nem sequer querer saber
Que eles existem e morrem
Aos milhões, sem ninguém ver,
No mundo vil a que acorrem.
Tudo fica clandestino,
Ninguém quer saber da morte.
Iguais a nós no destino,
São bem desiguais na sorte.
69 - Pagar
Neste mundo em que a distância
Já não determina quem
É meu vizinho, a ganância,
Não pagar o preço a bem
Pela igualdade, não é
Só questão de coração,
Na razão é não ter fé:
Os destinos sempre vão
Intimamente ligados,
O que tem ao que não tem.
Os que os olham separados
Tão mais se enganam também.
70 - Principal
Tem sido a tecnologia
A principal energia
Por detrás de cada aumento,
A prazo, no rendimento
Do mundo rico e jamais
Os pobres explorar mais.
Implica que o mundo inteiro,
Mesmo regiões no atoleiro,
Atrasadas hoje em dia,
A esperança alumiaria
De virem a aproveitar
Da tecnologia a par.
É que o desenvolvimento
Económico é um aumento,
Não jogo de soma zero
Em que dum o ganho mero
É doutrem perda fatal,
Antes somam ganho igual.
Neste jogo singular
Todos poderão ganhar.
71 - Repetidas
A beleza das ideias
É que podem ser usadas,
Repetidas às mancheias,
Sem se esgotar, acabadas.
Nunca em uso são rivais:
Pode um sempre utilizá-las,
Que não diminui aos mais
Poder algum de empunhá-las.
Um mundo antever podemos
Em que toda a gente alcança
Prosperidade. E aqui vemos
Ao mundo o que dá confiança.
72 - Fábula
Sempre é uma fábula a história
Muitas vezes repetida:
Nem de Colombo há memória,
Nem Cabral foi do índio vida…
E o mesmo é do pensamento
Sobre desenvolvimento.
Quando visto em pormenor,
Sempre é fingido o teor
Do que quer que se empreenda,
Só atento ao que o caso renda:
- A verdade sobre os pobres,
Afinal, é o que lhes cobres!
E a pobreza mundial
Assim nos cava o coval.
Mas oficialmente, não,
Não há tal judiação…
73 - Vergar
Poucos terão a grandeza
De vergar a própria história,
Mas cada um, com certeza,
Pode trabalhar a escória
Para mudar, por momentos,
Alguns acontecimentos.
Ora, é na totalidade
De todos estes eventos
Que escritos são de verdade
Duma geração os ventos.
É a partir destas migalhas
De coragem contra as falhas,
De assumida convicção,
Que a história humana é formada.
Cada vez que um homem chão
Lutar por ideal jornada,
Ou agir por melhorar
Destinos de quem calhar,
Ou combater a injustiça,
Produz onda bem pequena
Mas é esperança na liça.
Se as ondas cruzar, serena,
Produzidas aos milhões,
De energia vagalhões
Serão já, focos de audácia.
Constrói-se então a corrente
Que pode, com contumácia,
Derrubar muros em frente
Da opressão mais poderosa
E violência criminosa.
74 - Medo
Aquele que recear
Assalto, doença, perda,
Um caso em particular,
- É quanto em vida ao fim herda.
Medo é um íman poderoso:
Ao que temo é a que me entroso.
75 - Fluem
Todas as expectativas
E atitudes das pessoas
Duma cultura, se vivas,
Fluem juntas, em coroas,
Um único são geral
Vale em messe cultural.
76 - Campos
Nossos campos de intenção
Agirão muito depressa,
Exactamente trarão
O que espero que aconteça:
Se eu tiver medo, me trazem
Aquilo que eu recear,
Se eu odeio, se comprazem
Então com o que odiar…
Felizmente, o negativo
Depressa decai, furtivo:
A ligação ao divino
Quebra se a ele me inclino,
Já não irradio amor,
Seca a fonte do vigor.
77 - Agir
Sempre que nós esperamos
Qualquer coisa negativa
De quenquer com quem lidamos,
Esta nossa expectativa
É uma oração formulada
Que vai agir a criar
Tal realidade esboçada
No indivíduo que visar.
As mentes vivem ligadas:
Então nosso pensamento,
As esperanças geradas
Vão influir, no momento,
Os outros a repensarem
Do mesmo modo que nós.
Mal ou bem que por mim arem
São germes que colho após.
78 - Anseios
Se as nossas expectativas,
Anseios de nossa fé,
Fazem a oração obrar,
Então de nós, sem esquivas,
Irradia, finca pé,
Uma força a energizar
O mundo, quer entendamos
Ou não tudo o que operamos.
Se toda a oração afirma
As nossas expectativas,
Nossa fé, qualquer que seja,
Logo em todas se confirma
Que serão orações vivas,
Nem que a crença nunca o veja.
Sempre a rezar, pois, estamos
Pelo porvir por que ansiamos.
Mas não nos apercebemos,
Por junto, do que fazemos.
79 - Real
Tudo aquilo que esperamos,
Consciente, inconscientemente,
Bom ou mau, é o que ajudamos
A real tornar presente.
É um poder nossa oração
Que de nós vai promanar
Sempre em toda a direcção,
Por todo e qualquer lugar.
Na maioria, porém,
Que pensa em forma vulgar,
O poder fraco devém,
Contraditório, de azar.
Mas noutros que muito alcançam,
Criativos, bem movidos,
Forte é o campo por que avançam
Incônscios de tais sentidos.
De qualquer modo, o modelo,
Forte ou fraco, é igual em todos:
Sempre aquilo por que apelo
Devém real por quaisquer modos.
80 - Átomos
Quando os átomos olhamos,
Partículas são primeiro.
Se mais fundo vasculhamos,
Delas se esvai o areeiro,
Só padrões, pura energia
Vibra a um nível todo o dia.
O que como, em tal vector,
Afecta-me a vibração
Do corpo meu portador.
Uns alimentos serão
O que me aumenta a energia,
Outros são o que a entibia.
As doenças são a queda
Desta energia vital.
E abaixo dum ponto, a moeda
Compra lenta um estendal
De forças para actuar
A me desincorporar.
81 - Trilhos
Nossos campos de energia
Entre todos se misturam
E só os mais fortes resistem
E marcam de cada dia
Os trilhos que se inauguram
E no futuro persistem.
É a dinâmica inconsciente
Que desenha o mundo humano.
De nossa energia o estado,
A esperança mais premente,
Têm contágio programado.
Eis porque, na multidão,
Gente deveras decente,
Impelida por zangados,
Dum linchamento é peão,
Dum motim mui repelente,
Dos crimes mais condenados.
Um filme, a televisão,
Um livro, um computador,
Eis porque tanta influência
Sobre um espírito chão
Acabam a lhe antepor,
Para boa ou má tendência.
O campo de cada um
Na terra funde-se aos mais
Criando todas as normas,
Filiações em comum,
Tribalismos regionais,
Hostis e amigáveis formas.
A cultura é contagiosa:
Viajar põe-me estrangeiro.
É ver que lá não só pensam
Noutro verso e noutra prosa,
Como outro é o sentir inteiro
Que na atitude condensam.
82 - Dúvida
Tudo em dúvida só pomos
Se é proibido duvidar.
Se uma autoridade somos,
Sejamos, não há lugar
Ao respeito sem tal lança,
Mas antes à insegurança.
Mas segurança total
É tirania, afinal:
Quando se amordaça o povo,
Da revolta choca o ovo.
83 - Liga
Escola é tudo o que liga,
Liga às crianças em si,
A fantasia interliga
Aos métodos que haja ali,
Liga o sonho com a acção,
Riso e sério em união.
Mas se o adulto comprova
Que, à medida que cresceu,
A vida desliga a trova
De toda a fé que viveu,
Mais uns dos outros desliga
Tal se tudo fora briga,
Como é que pais, professores,
Cada vez mais desligados,
Se transformam nos fulgores
Da luz que une, bem colados,
Como se fora magia,
Estudo e sabedoria?
84 - Aprende
Ninguém nada nos ensina
Senão se aprende connosco,
Nem direito tem de cima
Para baixo de olhar, fosco,
Senão para dar a mão
Ao encontro de seu chão.
Aprender é uma experiência
De encontro de duas rotas
A conjugar na vivência
Dum só sentido, iguais cotas.
Corre em múltiplas carteiras,
A escola é das derradeiras.
85 - Linguagem
A linguagem verdadeira
É a música que nos vem
Do coração, pura, inteira.
A outra, a outra que tem
Palavras e mais palavras,
É exercício malabar
Em que mondamos as lavras,
Andando sempre a tentar
Iludir num cantochão
O bailar do coração.
86 - Rouba
Na verdade, o Pai Natal
Rouba sempre um bocadinho
Ao que sonho, bem ou mal.
Do sonho tendo o cadinho,
Porém, nas mãos fraternais,
Dá-me sempre muito mais.
E eu, tão pronto a meu apego,
Que nem vejo que estou cego!
87 - Primeiros
As crianças não serão
Os segundos pais dos pais:
É que muitas vezes são
Os primeiros, tais e quais,
E para sempre, de vez.
E por nunca descansarem
De educar os pais a três,
Na hora de se deitarem
Fique-lhes isto em abono:
- Já merecem bem o sono!
88 - Principezinho
Transformam uma criança
Num principezinho bufo.
Lamentam quando isto entrança
Um tirano no tartufo
Que lhes mói a paciência,
- E não vêem a evidência!
89 - Atributo
Ignoram que autoridade
É efeito de inteligência
Combinada com bondade.
É atributo, competência
Que se vê que não iniba,
- Nunca proa que se exiba.
90 - Entendem
Entendem o que lhes falta,
Mas, porque se reconhecem
Incapazes da ribalta,
Dado que nunca a merecem
Por não fazerem jamais
O que outros farão, rivais,
Só lhes resta ter desdém
Como a raposa, refém
Pelas uvas do apetite,
E mais quer quem mais o evite.
91 - Tradicionais
Quem sabe que seus exemplos
Nunca são recomendáveis
Do lar repete que os templos
Tradicionais e fiáveis
Estão perigosamente
Sempre em perigo eminente.
É doença e não saúde
Com que isto sempre se ilude.
92 - Bebem
Aquilo em que nós tocamos
Dá verdade ao que sentimos
Ou são inversos os ramos
Que bebem de nossos limos,
São os nossos sentimentos
Que real tornam tudo aquilo
Em que tocam os momentos
Da vida em rio tranquilo?
Ou ambos, às escondidas,
É que nos pautam as vidas?
93 - Afasta
Sempre mentir para dentro
É remediar remorsos.
Não mente, que é fingimento,
Afasta de nós esforços
Para os outros encontrar
E acaba a nos afastar
Deles e nós, chão maninho,
Sem notar, devagarinho.
94 - Verdade
A verdade não é bem
Aquilo que nos parece.
As emoções que alguém tem
Tornam, delas por benesse,
Tão irrepetível tudo
O que vivemos que, após,
Os eventos, por miúdo,
Se perdem no tempo, a sós.
Por mais que os tente dizer,
Já não são exactamente
Como os vivera quenquer,
Serão mentira somente.
95 - Desencontro
Por que é que quando crescemos
Há o desencontro do riso?
É sérios que envelhecemos,
Mais uma falta de siso.
Quem é incapaz de chorar
Conseguir nunca vai rir:
Se chorar não motivar,
Rir menos vai conseguir.
Múmias frias nos tornamos
Bem antes de que morramos.
96 - Riso
O riso democratiza
Os sentimentos de todos,
Torna as pessoas que visa
Descontraídas nos modos.
Mas educar continua
A ser sempre contrariar,
Contrair tudo o que estua
E tudo domesticar.
Depois, do mundo que é belo
Resta a lua peregrina
Escondida no escabelo
Duma noite clandestina.
97 - Tempo
Tempo são prioridades
Ao tempo impostas perdido:
Se as não defino, as vontades
Meu tempo não hão podido
Travar. Ao desleixo então
O tempo engolido as deixa,
Do sonho é mata-borrão,
De o ir cegando fateixa.
98 - Límpidas
Ser feliz, lugar de férias
De águas límpidas e azuis,
Olho-o à frente e são sidéreas
Paisagens que nem intuis,
Olho-o atrás e são miragens,
Só folhetos de viagens.
Mas, se a desgraça me atinge,
Outra vez o céu se tinge.
99 - Crescimento
De crescimento hormona, eis a ambição,
A forma de falarmos do desejo.
Vezes demais é sexual tensão:
Locomotiva atrás do coração
É o desejo que ignoro que é o que vejo.
Do desejo à boleia, anda a ambição,
À procura incansável dum ensejo.
Debaixo desta máscara de Entrudo
Me iludo a mim e ao mundo, ao fim, iludo.
100 - Morte
Talvez deixe de ser tarde
Quando, pela vida fora,
Da morte a fala que tarde
Já nunca mais nos devora
Um horizonte que havia
Mas o alarga cada dia.
Logo que reabilitarmos
O direito de estar tristes
Ante quem até chorarmos
Já lhe imporá mil despistes,
Que nem sabe, de vergonha,
Onde é que a tristeza ponha.
Sempre que o medo mereça
O elogio de pendor
Que, olhando por nós, não peça
Custo nenhum por penhor
E o crédito nos não roube
À esperança que nos coube.
101 - Assustadiça
Desamparada ante a vida
Que de surpresa a tomou,
Assustadiça revida
Qualquer pessoa envolvida
No turbilhão que a assolou.
É que o coração arranha
Sempre que palpita mais,
Como se tudo o que apanha
Do afecto em teia de aranha
Desmanche pessoas tais.
Sentir sua pequenez,
Ora agora as enternece,
Ao ver que se irão de vez,
Ora as assusta, talvez,
Quando a prendê-las parece
Que o sentem delas aos medos
Que, de pequeninas, querem
Espantar cruzando os dedos.
Os pés então ficam quedos
Sem para os mais se moverem.
Do turbilhão o atropelo
Manda então sem mais apelo.
102 - Humor
Humor é linguagem séria,
Ao mesmo tempo do corpo,
Fantasia e relação.
Da vida em meio à miséria,
Forma lúdica que encorpo
De brincar toda a função,
É jogar às escondidas
Uns com os outros nas vidas.
E, se o humor nos diverte
Ao sentir-nos descobertos,
Sermos sisudos os mais
Põe à lonjura que acerte,
Torna-nos frios desertos
E apetecíveis jamais.
Talvez por isso, evitáveis,
Somos mais elogiáveis…
103 - Mundo
Num mundo normalizado
Vivemos, todo objectivo.
É mais justo em muito lado,
Mais livre, melhor, mais vivo.
Mas por vezes quantifica
Tão exageradamente
Que nada então qualifica.
No frenesim, há quem tente
Materializar aquilo
Que vivemos, a tal ponto
Que desvalora, tranquilo,
O que sentimos, de pronto.
Então opõe o visível
Ao que é mesmo vivencial,
Como se sentir, credível,
Afastasse o material,
Como se nunca objectivo
Fora quanto fora vivo.
104 - Silêncio
À custa de imaginarem
Que o silêncio é decifrável,
A linguagem que entalharem
Os adultos, sem magia,
Devém logo irrespirável,
Equívoca e fugidia.
É que na boca não dizem
O que sentem e discutem.
Odeiam que não se visem
No que são e repercutem
E, porque não se conhecem,
A palavra em arma tecem.
Ainda não aprenderam
A contornar os conceitos
Com a boca onde os prenderam.
E, sendo tão competentes
Da linguagem nos preceitos,
Somos pouco em nós agentes.
Talvez a linguagem seja
O primeiro muro erguido
Ao saber que mal viceja
Dentro de nós com sentido.
105 - Música
A música comunica.
Sem trilho intelectual,
Vai directa ao coração.
Uma canção não explica,
Pode alegrar, radical,
As almas que se lhe dão.
Se musicar com alguém,
Quem requer palavras, quem?
Ao vislumbrar o inefável
Tudo o mais é dispensável.
106 - Medo
O medo é droga potente
Usada para o combate
Ao morbo que nos atente:
Purifica mas abate,
O temperamento muda,
Desgasta os órgãos que atinge.
Quem com o medo se ilude
É mais fraco, não o finge.
107 - Rodas
Numa terra que é pequena,
Às vezes, uma pessoa,
- Professor, o padre em cena,
A rica dona com proa… -
Dita da comunidade
Toda a lei que tudo invade.
É quem em particular
Mexe na maquinaria
Que as vidas fará girar,
Eixo de relojoaria
Que ordena às rodas que façam
Girar rodas que as enlaçam,
Ao motor que bata certo,
Que o ponteiro indique as horas…
Se ao eixo o traga um aperto,
Pára o relógio a desoras.
E ante o mostrador em branco
Fica todo o povo manco.
108 - Nascemos
Todos nascemos selvagens.
O que se pode esperar
É um pouco, pelas paragens,
De ternura a nos moldar,
Docilidade aparente.
Por trás mora, renitente,
O estado selvagem, forte,
Enfuriado, forasteiro,
Em busca eterna de norte,
Peregrino viageiro.
Podemos amordaçá-lo,
Não há como aniquilá-lo.
109 - Feliz
Ser feliz é que é importante,
A felicidade apenas.
Copo em brinde que levante,
São simples coisas pequenas,
Mas tão tortuosas são
Como o é sempre o coração.
Ser feliz é amargo, esquivo,
Mas é tão doce, tão vivo!
110 - Irrespondível
Tenho em mim o homem de preto,
Vejo-o nos meus olhos, fundo,
Tem o som grave, discreto,
De autoridade em que abundo,
Irrespondível, dogmática,
Sem errar nunca a gramática.
Uma lógica capciosa
Que nos manterá gelados
De obediência temerosa.
Ah! Do medo libertados,
A fugir em desespero,
À espera dum retempero,
Para em fuga descobrirmos
Que nós sempre o transportámos
Dentro de nós sem sentirmos,
Ao maligno que gerámos,
Filho espúrio, nunca aborto,
Que em mim vive estando morto.
Se desatar a fugir,
O resto passo da vida
A fugir, sem conseguir
Ter-lhe a garra desprendida.
-Vou ficar aqui comigo,
Lutando, a ver se consigo!
111 - Sombra
O homem de preto é ficção,
Corporização dos medos
De Carnaval em feição,
Lenda em noite de degredos,
Sombra má num quarto estranho
Quando em mim meu outro apanho.
112 - Simples
Simples alma, ora serena,
Com o mundo eterna em paz.
E eu cada vez mais com pena,
Cada vez menos capaz
De assim ser, simples e chão,
Sendo antes contradição.
Mas invejo-a, todavia,
Tão pouco foi requerido
Para atingir a acalmia:
Um aconchego sumido,
Umas roupas ajustadas,
Um recanto de mãos dadas…!
Tal e qual como uma flor
Cresce em direcção à luz,
Sem juízos antepor,
Questionar o que a seduz.
- Quem me dera, aqui a esmo,
Lograr atingir o mesmo!
113 - Partir
Gostava de partir numa aventura,
De perseguir o sol com minha mala
Magrinha a tiracolo, numa pura
Ventura desta ideia que regala
De ideia nem fazer onde amanhã
Vou estar ao romper nova manhã.
Mas creio que acabava por cansar.
Um tempo decorrido, tudo igual
Acaba a parecer, todo o lugar.
É certo que um lugar tem luz pessoal
E o retorno à cidade já vivida
Ao lar dum velho amigo é sempre a ida.
As pessoas, porém, a parecer
Começam muito iguais: as mesmas caras
Noutro país irão brotar qualquer,
É com gémeas feições que te deparas,
Olhar inexpressivo em funcionário,
O camponês curioso e bem precário…
Depois já paranóicos nos sentimos,
Tal se nos perseguiram, mui secretas,
A trocarem de roupas e de limos,
Mas iguaizinhas fontes nas discretas
Ribeiras de gentios, de soslaio
Mirando como intruso meu balaio.
É superioridade que primeiro
Sentimos, raça aparte, itinerante:
Já vimos, já vivemos, sol pioneiro,
Bem mais que eles em nossa vida errante.
Eles são vidas tristes de labor,
O sono a repisar até o sol-pôr.
Depois, corridos tempos, vem a inveja:
Uma mulher num parque olha o bebé,
Rostos a refulgir, sem que o sol veja,
Um par à beira-mar abraça a fé,
No intervalo empregados, riso moço,
Mil anedotas comem por almoço…
Não demora e a dor devém constante.
Um lugar não perdeu a identidade,
Por muito que eu viaje para diante:
É o coração que rói, rói de verdade.
De hotel no espelho a cara fica turva
De tanto olhar casual que ali me curva.
No registo hoteleiro os nomes mudam
À medida que passo, terra em terra.
Não deixamos um traço dos que grudam
Da vida às leiras e que ali se aferra.
Por muito que tu queiras, já não pasmas:
Não projectamos sombra, quais fantasmas.
114 - Psicológica
Psicológica violência
Não é só dum par de estalos,
É de arrasar a imanência
De alguém: tolhem-no os abalos
Para conduzir, de vez,
A vida com lucidez.
115 - Parar
Parar para reflectir
Ocorre se duvidamos
Do que andamos a sentir,
Nunca se certos estamos
Mas não queremos, acaso,
Enfrentá-lo em nenhum prazo.
Nesta via, tal medida
Apenas adia vida.
116 - Criam
Os outros são arquitectos
De toda a nossa emoção.
Luz criam, espaço, tectos
Onde olhos se expandirão:
No que sentimos e vemos
É por onde nós crescemos.
Como transformam recantos,
Antes lindos, luminosos,
Em esconsos, negros cantos
Onde às vezes, temerosos,
Abandonados nos vemos,
Tanto que mal nos mexemos.
Para o bem e para o mal
Deles vem de ida o sinal.
117 - Sede
A emoção é natural
Como a sede de água pura,
Fala em corpo, material.
Não é o que a vontade apura:
Que fazer, tendo esta traça,
Muitas vezes embaraça.
Da sabedoria efeito
É o que a vivência guardado
Vai deixando em cada peito.
E um passo aquém há ficado
Do poder de a compreender,
É pensar sem ver sequer.
São semáforos da vida.
Verde é paixão a avançar,
Brota sempre inatendida
No inatendido lugar,
Onde havia uma paragem
Ou proibida era a viagem.
Amarelo é intuir sonho,
Pressiona de esperança,
Apressa vida onde a ponho,
Mas o medo em nós entrança
Quando nada nem sequer
O faria então prever.
O vermelho será medo
A requerer a prudência,
Leva a parar desde cedo,
A reflectir na pendência.
Até que outra cor nos leve
A avançar como se deve.
118 - Artista
Um artista é um pobre humano
Mas imagens em que invista
Tão vivas saltam à vista
Que de modo algum o fano:
Elas, por contraste, a ele
É que emurchecem a pele.
Com as mães também é assim:
Após dar à luz os filhos,
Dão o leite, a força, enfim,
Mas vão-lhes murchando os brilhos,
Tornam-se pouco vistosas
E ninguém lhes canta glosas.
É triste mas é mui belo,
É uma lei de bem servir:
Quem quiser viver singelo
Muito tempo, terá de ir
Por aqui, que quem quiser
Dominar só vai perder.
Os que anseiam por domínio
É porque jamais o sabem:
Poucos mandam com fascínio.
Aos mais vai fazer que acabem
Em nada o tal dominar
Que ao servir rouba o lugar.
119 - Dor
Tanta dor começa aqui,
Do estômago aqui na boca,
Espalha-se em frenesi,
Por todo o corpo se entoca,
Esmaga-te os pensamentos
E não é o fim dos tormentos.
Depois vai chegar o medo
Que ao lado sempre andará
Do sofrimento bem cedo.
Mas, daqui ou dacolá
E quando menos esperas,
Eis que há luz por que nem deras.
Abre-se uma frincha estreita,
Não sabes como nem donde,
Mas é luz de quem a aceita
E, múrmura, te responde…
- As estrelas consultar
Experimenta ao luar!
120 - Importam
A qualquer hierarquia
Importam as distinções:
As igrejas são a via,
Não de Deus, mas dos brasões.
Ora, o que importa mais ver
É o que a todas é comum:
Um sacramento qualquer
É, noutra roupa, só um.
Deus aprova a boa droga,
A oração onde viceja,
Quer venham da sinagoga,
Mesquita, quer duma igreja.
121 - Pior
Não perdoar envelhece,
Torna-me doente e feio.
Nada pior me acontece,
Me rebaixa em meu anseio,
Que não perdoar e sentir-me
Logo após a destruir-me.
Bomerangue, volta a mira
Ao rosto de quem o atira.
122 - Palco
Qualquer palco é povoado
Por brilhantes jovens cultos,
Belas damas de toucado,
Cujos tormentos inultos,
Cujas paixões exaltantes
São muito mais fulgurantes
Que a cor parda da prosaica
Existência, sacra ou laica.
A vida de cada dia
Comparada às aventuras
Da gente fina e sadia
Que no palco sofre agruras
É como o anónimo rosto
Famélico e descomposto
Dum actor sem maquilhagem
Onde murcha ao sonho a imagem.
A plenitude, algum dia,
É o sonho da fantasia.
Do lado de cá da vida
É só mão pobre estendida.
123 - Excitação
Parte de qualquer viagem
Há-de ser expectativa,
De excitação a triagem
Na partida apreensiva,
Lugarejos para ver,
Gentes a se conhecer…
Tudo faz parte do gozo
E nele é que tudo entroso.
Parte importante da vida
Há-de ser o entusiasmo.
O trabalho, de seguida,
A família, em dor e pasmo…
Sem o que ele lhes transporta
Nada são, aberta a porta.
Quando a antever te recusas
O gozo, de ti te escusas.
124 - Caminha
Deus caminha pela praia
Na companhia dum homem.
Da vida as cenas na raia
Dos céus projectam-se e somem.
Nos transes mais dolorosos
Da vida do homem, porém,
Este só vê, tortuosos
Lá sendeiros que contêm
Um conjunto de pegadas.
Não por Deus o abandonado
Ter, quando mais precisadas
Eram mãos num encadeado,
Mas por Deus a carregar,
Nas mais difíceis apostas,
Todo o homem sempre estar
Com seu peso inteiro às costas.
125 - Fogo
Ou temos a chama ou não,
O fogo ou arde ou não arde,
Quase ter fogo é ilusão,
Senso não tem tal alarde.
E tal é a felicidade:
Ou se é feliz ou não é,
Ser feliz pela metade
É inviável ter de pé.
E, quando o fogo se ateia,
Que é felicidade meia?
126 - Disponível
Ser feliz vem do interior,
Não do que alguém faz ou for.
Tenho de me aperceber
E tenho de acreditar
Que feliz poderei ser
Com fama a me enaltecer
Ou sem ninguém me falar.
Há felicidade a rodos
Disponível para todos,
Tanto importa o enaltecido
Como o mais desconhecido.
Mesmo em selvagem caverna
Pode a festa ser eterna.
Ser feliz vem do interior,
Não do que alguém faz ou for.
127 - Metas
Sou feliz, que não me obceco
Com metas de perfeição.
Se a perfeição tento, peco:
É inviável tal função.
Nenhum homem é perfeito:
Ninguém perpassa na vida
Sem problemas ter a peito,
Sem uma dor consumida…
E perfeito não é nada
Neste mundo em que vivemos.
- Ser feliz é ver, de entrada,
Que é disto que nos tecemos.
128 - Irradia
É de si compreensão,
Generoso acolhimento,
Um amor interior
Que irradia coração,
A todo e qualquer momento,
Por todo o mundo em redor,
- É tal a realidade
Da vera felicidade.
Nem sequer importa nada
Se a vida correrá bem,
Nem depende da maneira
Como a pessoa é tratada
Por qualquer outro também:
É como se nada à beira
Houvera, em nenhum lugar,
Capaz de o desanimar.
- É tal a realidade
Da vera felicidade.
129 - Luz
Enquanto a luz for externa
É só vazio que traz,
De dentro se for lanterna
Então é que gera paz.
A felicidade acode
Do íntimo num ponto tal
Que controlar-se então pode,
Corra a vida bem ou mal.
A felicidade tem
A todos aberta a porta
E a cada vida convém
Que a queira e dentro a transporta.
130 - Partem
Do princípio partem tantos
De que têm de algo ter
Antes de serem felizes!
Como se evitar os prantos,
Ser feliz, tivera a ver
De mérito com matizes.
E é bem longe da verdade,
Que de perceber bem temos
Que ser felizes podemos
Sem exterioridade
De amigos, dinheiro ou fama,
Pois toda a felicidade
Só dentro de nós se trama,
Ante qualquer conjuntura
Que fora de nós se apura.
Quer seja a má, quer a boa,
Nisto são todas à toa.
131 - Bonita
Se fora mais bonita, era feliz,
Quando se encontra só, tudo são choros.
E como convencê-la que o que diz
Não vale o afável que é mais os decoros?
Triste é não aceitar aquilo que é,
Pior é crer que a muda é requerida
Para se ser feliz de boa-fé.
A beleza não logra, desprovida,
Tornar ninguém feliz, que quem for belo
Também tem de aprendê-lo de raiz.
Se alguém quer ser feliz, poderá sê-lo,
O aspecto que tiver nunca o desdiz.
132 - Apaga
Do coração a memória
Apaga as recordações
Que más são em nossa história.
Então mais bem suportado,
Diluídos os furacões,
Pode ser nosso passado.
133 - Nasce
Jamais para sempre um homem
Nasce quando é dado à luz,
Antes as freimas que o tomem
Na vida que o reproduz
Obrigam-no a prosseguir
A si mesmo a se parir.
134 - Técnica
Há quem a tecnologia
Use em fins humanitários
E outros cuja felonia
Persegue alvos mil contrários.
Nunca uma técnica tem
Nela própria mal nem bem,
Tudo vem de usos que houver
De fazer dela quenquer.
Vem o mal ou bem dum homem,
Não das coisas que o consomem.