QUINTO TROVÁRIO
PARA AO SER RETORNAR, À RAIZ
Escolha um número ao acaso entre 492 e 606, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
492 - Para ao ser retornar, à raiz
Para ao ser retornar, à raiz,
Há-de o poema rimar,
Em metros de acaso servis,
Com as margens que nos talham os perfis
De humanidade singular.
O poema captura,
À esquina do verso emboscado,
A minha estrutura
E a fenda por onde sangro de lado.
Salta de improviso
Sobre a presa
Na métrica irregular e sem aviso
Que de nosso imo é a defesa
Na eterna busca falhada de certeza.
493 - Raças
Geneticamente
Não há raças humanas.
Maior é a variabilidade existente
Dentro de qualquer uma de que te ufanas
Do que entre quaisquer dois
Daqueles grupos depois.
Não há raças,
Há diferentes desenhos e sinais
Em taças
Dos mesmos cristais.
494 - Cego
Cego investir para a meta
Contra a força dos próprios impulsos
- É triunfar, na dominante calha que me afecta.
As fadas do êxito atam-nos os pulsos,
Quando por elas abençoados:
À deriva dos ventos e das velas,
Querem-nos tão desalmados
E desaustinados
Como elas.
495 - Colectivos
Em termos colectivos não logramos crescer
Senão mui devagar e aos repelões.
É bom revisitar e rever
Estes baldões,
De parto tantas dores
E ais,
Estrebuchamentos transfiguradores
Insurreccionais.
Espelhos de nossa condição,
Da estreiteza destas baias,
Ensinam-nos que da vida a ebulição
Não pára, contra tudo e todos,
Viola todas as raias,
Anseio permanente de novos bodos.
E, à hora menos aguardada,
Outra convulsão redentora
Nos espera na estrada
Com o recado subentendido e salutar
(Na demora
Onde todo o engano
Hiberna)
De que, para o espírito humano,
Nenhuma ortodoxia que vingar
É eterna.
496 - Autonomia
Uma autonomia contingente,
Liberdade condicionada,
É o homem, em toda a frente.
Se, todavia, os eventos não fada,
Configura-os, contudo.
Perde até, porém, tal vantagem,
Quando, na clivagem,
De ver-se tão miúdo,
Dele próprio descrê.
Então é que os deuses de qualquer fé
Podem tudo.
497 - Dorme
Quanto mais profundamente
Alguém dormir, mais estremunhado
Acorda, surpreendente,
Para a realidade que lhe corra ao lado.
Por muito que se esquive,
Ninguém indefinidamente
Entre parêntesis vive.
498 - Ignora
Só acredita no triunfo
Quem ignora a própria condição.
A nossa não joga o trunfo:
É de mortais que para o chão
Raso
Se irão,
A mais curto ou longo prazo.
499 - Desatar
Desatar o nó cego da mente e do coração
De almas obscuras mas almas como as mais,
Ciosas, todavia, da escuridão
Em que asfixiam nos tremedais!
Aflitas a todo o momento,
Aspiram à libertação
Sem deveras a desejarem
Em nenhum evento,
De viciadas no desespero
Para alguma vez arejarem.
Com indisfarçável desconfiança
Ouvem aquele que, sincero,
Procura ajudá-las,
A mostrar-lhes como se alcança
A luz fora das valas.
Anos e anos de recalcamento
Forjaram nelas uma couraça
Tímida, refechada, esquiva,
Que nenhum vento
Trespassa,
Por mais que insista, em recidiva.
Não, nunca as remoço
Libertas das agruras:
Apenas no fundo do poço
Se antolham seguras.
500 - Espalharam
Se alguém não é louco
Mas todos espalharam aos quatro ventos
Que o é, valem de pouco
Dele os protestos: quão mais violentos,
Mais para confirmar servirão
Dos mais a afirmação.
Quando como louco alguém é tido,
Todos os actos dele são olhados
Como do louco o sortido,
Os válidos protestos, transmudados
Em negação,
Os medos legítimos, considerados
Paranóia em ebulição,
Os instintos de sobrevivência
Que ninguém represa,
Rotulados, à evidência,
Como mecanismos de defesa.
É um beco sem saída:
Quem ali entrou
Sair já não pode, em seguida.
A vida real acabou
Trocada pela fingida.
501 - Encumeada
Dom da democracia
É a multiplicidade:
Ideológica, racial, cultural…
Lenta encumeada que desafia,
Dos longes na profundidade,
O espírito da humanidade
A conquistar do topo o esquivo fanal.
A partir do escuro mundo tribal
Muralhado na uniformidade,
O trilho do múltiplo é a pegada
Sofrida,
Esforçada,
Que trepa à compreensão civilizada
Dum mundo aberto, na totalidade,
Dum mundo à humana medida:
À medida da diversidade.
502 - Desgraça
De ontem o vencido
É de hoje o triunfador.
Desgraça é que o mártir sofrido
Que dava esperança no cárcere da dor,
Fora das grades quando se perfila,
Não logra incuti-la.
Dele o carisma,
Derrubado o muro da opressão,
Perde a força e se abisma
Na desilusão.
Contrito,
O herói, afinal,
Tomba do pedestal
Do mito
A mero mortal.
503 - Crimes
O que vale aos criminosos
Dos crimes contra a Humanidade
É que da História os passos são morosos
E a tempo nunca chegam de punir
A impunidade.
Mesmo quando condena,
Vem fora de horas a pena,
Prescreveram os crimes e, a seguir,
Já nenhum dos culpados
A penitência pode cumprir
Dos casos julgados.
504 - Dramático
O mais dramático na vida
Dum poeta, dum artista,
É que nunca o aceitarão
A nenhum tal como é nem no que envida:
Todos o querem como os outros são
E apenas isto têm em vista.
Esta definitiva solidão
É tudo o que um artista
Conquista
De verdadeira e derradeira
Comunhão
Que, apesar de tudo, subsista.
505 - Agarrar
Tenho o triste vezo
De quanto mais sentir
A vida fugir
Mais me agarrar nela preso.
Atingida a hora da rendição,
Perdido o brio,
Em vez da cara erguida ante a fatalidade,
Imploro ao portal, à porta, ao portão
Da ciência, da crendice, da necedade
Por um fio
De ilusão.
E lá se vai a dignidade
Vergada fatalmente à podridão.
506 - Imprevisto
Num mundo normalizado,
Pragmático, em que vivemos,
Então o imprevisto às alturas é guindado,
O misterioso atinge extremos.
Quantas vezes a aberração
É o que nos fica à mão!
Dos afectos improgramáveis e gratuitos,
Entretanto, a graça
Entre os dedos fortuitos
Nos acode,
Nos congraça
E salvar-nos apenas ela nos pode.
E enche-me de imprevisto
Aquilo por que então existo.
507 - Velhice
Da velhice doente
A tragédia
É morrer antecipadamente
Na fadiga, no enfado, na rédea
Que freia
Angustiadamente
Quem a rodeia.
508 - Teima
Quanto mais o pragmatismo
Político-económico
Teima no monótono abismo
De o mundo uniformizar,
Imbecil e atómico,
Mais os factos irão demonstrar
Que do mundo o encanto
É devir, em todas as idades,
Um recanto
De caleidoscópicas diversidades.
509 - Partilhadas
Nunca nossa angústia, inquietação,
Partilhadas poderão ser por inteiro
No derradeiro
Patamar do coração,
Todos nascemos e morremos em segredo.
O mais profundo e significativo de nós,
No rol
De nosso degredo,
Em nenhum caso vem após
À luz do sol.
Por mais que saiamos da toca,
Vivemos a medo
De credo na boca,
Não há chave para a grade da prisão
De nossa condição.
510 - Compreendido
Ser compreendido é um ideal
A que poderemos aspirar,
Embora incompreendidos cheguemos ao final
Até pelos que nos nasceram a par.
Conhecer-nos inteiramente,
Conhecer alguém,
É o desafio mais transcendente
Que desde Adão nos retém.
Filósofos, sábios, artistas,
Psicólogos, em inúmera multidão,
Todos o tentam em todas as pistas,
Em vão.
O mesmo enigma apaixonante
Lhes fica, insolúvel e hesitante,
Eternamente na mão.
Dom maravilhoso
Da natureza humana,
Somos um mistério tenebroso
A qualquer luz que sobre nós dimana.
Secretos como viemos
Para a sepultura iremos,
Laica ou religiosamente
A confessar-nos sincera e persistentemente.
511 - Finar
Nascemos para ir perdendo
Gradualmente
Tudo o que formos tendo
De melhor, a lucidez da mente,
Os afectos, qualidades, bens,
Até cada qual se finar, indigente,
Sem revoltas nem améns,
Após toda a prova,
Numa cova.
Quão mais céptico e objectivo
Cada um procura ser,
Mais fiel às ilusões,
Sem poder
Livrar-se do fascínio
Vivo
Das multidões,
Dos eventos,
Das coisas: do escrínio
Dos acontecimentos.
E lá torna, impenitente,
Extasiado,
À paisagem permanente
E ao pão levedado,
- Aos horizontes
Que sugerem insuspeitas pontes.
512 - Fragilidade
Um homem,
Que fragilidade obstinada em viver,
Escrava de mil genéticos programas que a domem,
Condenada à contemporaneidade que tiver
De sorte e azar,
Sem roteiro nem credenciais
O ignoto diário a enfrentar,
Ao acaso da soalheira e dos vendavais!
Mil obstáculos para dirimir
Em cada dia
E tantas mais responsabilidades a assumir
A bem ou à revelia,
Queira-o ou não.
Para a desoladora conclusão
De que nada valeu a pena,
Os eventos têm a importância
Com que cada qual lhes acena.
É tal a irrelevância
Com que acabam por nos aparecer,
Tempos volvidos,
Que se acaba por envergonhar quenquer
Da paixão com que foram vividos.
513 - Sujas
Activada por sujas mãos
De impunes e honrados cavalheiros
É a bomba que explode nos desvãos
De míseros cheiros.
E eles bebem descansadamente à ganância,
A muitas léguas de distância.
514 - Contentes
Contentes, poucos chegamos ao fim
Por respondido havermos
Da vida a todos os acenos.
No derradeiro confim
Levamos para a sepultura os termos
Não proferidos,
Os drenos
Que à sangria não opusemos,
Os actos requeridos
Que jamais quisemos,
Os sentimentos
Amarfanhados de cotio ante os eventos.
Consciência cruciante
De que mil oportunidades havidas
Foram desbaratadas a cada instante,
Com a certeza desesperante
De que tê-las aproveitado
É que, de evidência,
Encheria plenas as medidas,
A contado,
De nossa existência.
515 - Impotência
A impotência universal para a remediar
É a suprema revelação
Da miséria da humana condição.
Da ciência o limite liminar,
A impotência da religião,
A inutilidade da cultura,
A precariedade da afeição,
A ineficácia da finura
Da boa vontade para nos aliviar
Garantem que nascemos condenados
E nada nos pode trocar os fados.
Tal condenação,
Porém,
Nada prova que não seja também
A definitiva salvação.
516 - Mintam
Mintam quanto queiram, à vontade,
Sobre o homem que calhar,
Nunca lhe destruirão a liberdade
De pensar.
É o que enfuria os ditadores,
Os tiranos.
Comprem as armas de horrores
Que comprarem aos desenganos,
Montem as polícias
Que montarem às sevícias,
Torturem com os métodos e instrumentos
Com que inventarem tormentos,
Divulguem as mentiras que enredem deles nas iras,
- Embora com tudo isto junto,
Morrerão fatidicamente frustrados,
Incapazes de dominar no mais tosco bestunto
Os pensamentos libertados.
Jamais lograrão
Alterar esta verdade.
É a grande maldição
Que o prepotente invade
E que o faz,
Por muito que lhe desagrade,
Não morrer nunca, afinal, deveras em paz.
517 - Ninho
A beleza,
O modo como germina,
Ninguém num relâmpago a tem como presa,
Entre a multidão rumorosa não lhe cava a mina,
Nem entre centenas de detritos da corrente
Por entre que caminhemos apressadamente.
O silêncio, a calma, de tudo aquilo o alheamento
São o ninho da gestação.
E, se um pensamento,
Uma obra de arte brota repentina do chão,
São sempre o ponto culminante
Dum longo período de incubação
Vida adiante
Em que a fermentação
Foi constante.
518 - Garantir
Cada língua
É um acto de liberdade.
Vingo-a
Quando ela me persuade,
Entre eventos que nos consomem,
Por garantir a sobrevivência
Da essência
De cada homem.
Das línguas a multiplicidade
E dos renovos
A complexidade
São os únicos tesoiros guardados
Pelos povos
De tudo o mais despojados.
Por cada língua que morre
Morre uma possibilidade
De ser
Para uma individualidade
Qualquer
Que doravante jamais no mundo ocorre,
Aconteça o que acontecer.
519 - Fundamentalismo
O fundamentalismo religioso
É um desafio extremado
A um mundo que protagoniza o primado
Da Técnica e da Ciência,
Do saber orgulhoso
De experimental dependência,
Arredando o primado da pessoa
Duma forma intolerante, extremista,
Sobranceira, à toa,
E, portanto, fundamentalista.
O religioso fundamentalismo
Não é o primeiro:
É o sintoma derradeiro
Com que crismo
O que não passa
Duma hodierna doença
De planetária presença
E ameaça.
520 - Aceitar
Como posso interferir
Tanto com a Natureza,
Com a Ciência a inquirir,
Com a Técnica a moldar-lhe a inteireza,
E, neste deslumbramento,
Aceitar que, estando triste,
No rol
De cada momento
Ainda persiste
Uma qualquer manhã de sol?
A manhã é indiferente,
Como se eu nem fora gente…
E, no entanto, ao pé da dor que nos devora,
Somos simplesmente
Um pequeno deus que chora.
Ou, atabalhoada, à toa,
Uma pobre pessoa.
521 - Linguagem
A imaginação
Não é dum pensamento devaneio,
É a linguagem dum corpo são
A meio
Do casamento
Com o pensamento.
522 - Fraqueza
É fraqueza humana
Sentir falta dum objecto,
Que então todo o valor dele emana
E é de menos prescindível aspecto
Que outros quaisquer menos vãos
Que seguro nas mãos.
Quando o encontro, é que ele me descobre
De quanta mentira meu sentir me cobre.
523 - Convêm
As palavras não convêm ao sentido,
Inefavelmente secreto,
Tudo fica logo um pouco alterado,
Falsificado,
Um tudo-nada néscio, vago vagido
Inconclusivo e discreto.
Acolho-o, porém,
É o liço que me enlice.
O que para um é tesoiro de sabedoria,
É também,
Para outrem que o ouvisse,
Sempre uma tontaria,
Tudo tolice.
524 - Via
Que alegria encontrar a via de regresso!
Ninguém facilitar nos pode esta demanda,
Eu próprio dificulto o viável processo
De reencontrar a fé, temo não ver onde anda
E não reconhecer, mesmo quando passar
Junto a mim, fiel, quem a protagonizar.
Fico cego e arrepender-me
Por si só de nada serve.
O perdão ninguém vender-me
Irá poder do que o preserve.
Houve um momento em que a luz iluminou,
Em que começámos a ver e seguimos a estrela,
Mas o entendimento racional o escudo perfurou,
O escárnio do mundo deu a risada amarela,
O desânimo veio,
O fracasso;
De permeio,
O cansaço;
E a final consumação
É a decepção.
E eis-nos, de primeiro encegueirados,
Novamente desencaminhados.
Alguns procuram o resto da vida
E, não reencontrando,
Postulam que tudo foi lenda indevida,
Desencaminhando
Quem
Nunca deveria ter ido por aí além.
Inimigos impetuosos
Outros devêm,
Difamam e prejudicam os caminhos deleitosos
Que, de qualquer modo,
São da vida
O único vero engodo
À nossa medida.
525 - Metáfora
Quer você acredite
Que alguém viveu deveras uma vida passada,
Quer lhe palpite
Que é uma metáfora da conjuntura armada
Na vida presente,
Ou venha no ADN na corrente
Ou da cultura na jornada,
De mão a mão
Transportada
Geração a geração,
Ou conclua, afinal,
Que a vida passada é a de algum
Guia espiritual
Que no imo apoia cada um,
- O efeito curativo
Adiante,
Qualquer que seja o motivo,
É um milagre cativante.
Por entre os demos
Da noite escura
O que todos por igual vemos
É que uma luz fulgura.
526 - Controlar
Em qualquer dependência
Parte do sofrimento é a danação
De não haver alternativa senão
Satisfazê-la, na ocorrência.
Os desejos obcecar e controlar
Poderão o dependente.
Uma dependência ao curar,
Inadiável restitui ao presente
A liberdade de escolher.
É o que, normalmente,
Aumenta o respeito
Por ele próprio de quenquer
Que a cura tome a peito.
527 - Algo
Todos parecem requerer
Algo diferente
Para felizes virem a ser:
Dinheiro, fama, amizades,
Boa sorte permanente,
Miraculosas faculdades…
Os exemplos, porém, destes itinerários,
Mostram que andam pejados de falsários.
São as mentiras que a aranha tece,
A capturar na teia a mente
De quem as estremece
Mistificadamente contente.
De ilusão em ilusão,
Devagarinho,
Eternamente se desviarão
Do caminho.
Jamais serão felizes
Só porque nunca acertam nas matrizes.
528 - Desça
Importa, durante a oração,
Que o espírito desça da mente
Para o coração.
A inteligência não é competente
Para rezar.
Não é do espírito concentração
Nas palavras
Quando a orar
Te lavras:
Basta a repetição
Como uma criança,
Gaguejando,
Balbuciando,
E a fonte que fértil te alcança
Brota do coração.
529 - Crença
Eis a balança do abismo
Em que sempre há tergiversado
A crença de infância:
Não há religião sem fanatismo,
Nem fanatismo sem, ao lado,
Tolerância.
530 - Vestido
Ficas vestido ao falar,
Estar nu é não ter palavra,
Que a palavra veste o homem,
Talha-lhe o molde ao lugar.
Em nome do ancestral que a lavra
Tece a carne aos que a retomem.
De salvação o porto
Vem sempre do antepassado morto.
531 - Religiões
As religiões são ramos
De árvore única comum.
As raízes divisamos
Subterrâneas no zunzum
Que ora em prolongado viveiro
Através do mundo inteiro.
Todas crescerão,
Retirado o véu,
Na mesma direcção,
O céu.
É o destino talhado nas matrizes
De todas as raízes.
Depois o tronco sai da terra,
Direito e limpo.
Como quenquer que a ele se aferra,
Por ele grimpo.
E logo é um embondeiro de ramagens mil,
Todos no tronco lhe podem enxertar
E gravar
O respectivo perfil.
E, de todos os horizontes,
As mil rameiras
São para o comum tronco as pontes
E as fronteiras.
532 - Si-próprio
O si-próprio original
É uma semente
Dotada dum potencial
De maravilha omnipresente
Que a tudo a que se prende
A prazer rescende.
533 - Raia
Há uma forma obtusa de ignorância,
A de não ter reflectido nem ser informado,
E uma forma inspirada, noutra instância,
Quando é uma ignorância tão culta que acabe
Por entender quão pouco sabe.
É ignorância pura a dum lado,
A do outro raia o sagrado.
534 - Desenvolve
Quando uma comunidade perde alma,
Desenvolve neuroses,
Da paranóia que nada acalma
À xenofobia:
Do estrangeiro, do estranho, do invulgar, cada dia,
Todos breve devirão algozes.
535 - Misteriosamente
Esquecemo-nos e a vida entra,
Não compreendemos e ela se reforça,
A morbidez nos desconcentra,
Há uma perda querida que o coração nos torça
E, misteriosamente, na hora,
Eis que a vida envereda por uma via prometedora.
536 - Papéis
És, ao mesmo tempo, vítima e vilão
E ambos os papéis já representaste,
Do alvor ao serão,
De tua vida no engaste.
E, contudo, nenhum deles é real,
É tudo de tua cabeça.
Crias tua vivência decidindo qual
A parte do todo em que teu olhar tropeça.
E podes muito bem nem reparar
No que, no fundo, andes a procurar…
537 - Simultâneos
Finalmente entendes
Que não és corpo, mente ou coração,
Nem o espírito puro que apreendes,
Mas, simultâneos, aqueles todos em cada ocasião.
Este é o assunto
Do trilho da morte que é a vida em seu conjunto.
538 - Realização
A realização a qualquer nível
Apenas teve até agora
Um inimigo invencível:
O que dentro de nós mora,
O pensamento que intuí
Que o homem tem acerca de si.
Diminui o perigo
Então, após:
Já encontrámos o inimigo
E ele somos nós.
539 - Receias
Quando receias as pequenas mortes,
As mortes de qualquer derrota ou perda,
Tens por igual receio de viver.
Quer dizer que tens medo, em iguais sortes,
De viver e morrer. Que vida lerda,
Que modo de existir para quenquer!
540 - Crença
No momento da morte vais experienciar
Aquilo em que acreditas,
Tua visão se há-de radicar
No que crês. E é o que fitas:
Tua percepção não terá esquiva,
Alimenta-se da tua última perspectiva.
541 - Mensagem
Todos estamos enviando
Uma mensagem à vida
Acerca da vida, quando
A vida vivemos de seguida,
Mensagem que se vai modificando
Em vida vivida.
A questão não é ser mensageiro
Mas qual a mensagem
Que, useiro e vezeiro,
Ando a transmitir nesta viagem.
542 - Entregar
És ao mesmo tempo mensagem e mensageiro,
És criador e criação.
Mesmo ao entregares a mensagem, ligeiro,
De a entregar atravessas o inteiro
Chão.
De facto, de a entregar o trilho
É de a produzir o cadilho:
São, na verdade,
Uma única e mesma realidade.
543 - Poucos
Bem poucos costumam usar
Deles as intuitivas faculdades
Para neles próprios penetrar,
Contactar as afectividades,
Antes de pensarem ou dizerem
O que os sentimentos pretenderem.
Mesmo depois da asneira
Bem poucos o fazem,
E eis porque da vida leveira
Todos os pesos os arrasem.
544 - Sem
Sem Deus é impossível viver ou morrer,
Mas não é impossível pensar que é o que ocorrer.
Se convicto estiveres
De que morres ou vives sem Deus,
É o que vais sentir, no fim, ao te acolheres,
Sejam quais forem os céus.
Podes sentir desta maneira
Sempre que tal é teu desejo,
Mas podes abandonar o pendor desta ladeira,
Quando desejares permitir-te outro ensejo.
Isto recobre, na justa medida,
Tudo o que quenquer
Que receie morte ou vida
Precisará de saber.
Não podes mudar a realidade final
Mas podes mudar a vivência
Afinal
Dessa experiência.
545 - Pensamos
O que ocorre na vida da gente
É o que na vida da gente ocorre
Por causa do que ocorre na mente
Da gente que pela mente vive e morre.
O que a correr estiver
É o que pensamos que está
E o que vai acontecer
É o que pensamos que irá.
Em maior ou menor medida
Esta é a verdade da vida.
546 - Perspectiva
Que te leva a escolher
Duma ou doutra perspectiva reparar e ver?
Quando cruzas com alguém caído na rua,
Com a barba por fazer,
A beber uma garrafa, a pele seminua,
Que te leva, da leitura no desafio,
A escolher
Se é rebelde ou vadio?
Quando o aviso do patrão
Te informa de que foste despedido
Que te leva a ver desastre na ocasião
Em vez de oportunidade dum novo sentido?
Quando um maremoto
Afoga milhares em completa inocência,
Que te leva a ver catástrofe no feito remoto
De Deus em vez da omnipotência?
Tudo vem de tuas próprias ideias
Sobre o que os dados representam:
Com elas caldeias
Como em ti assentam.
O que implica, porém,
Que, para o ganho ou para a perca,
Tudo provém
De tuas ideias de ti próprio acerca.
547 - Corpo
Teu corpo não é quem és
Mas uma coisa que tens.
O tempo não passa de ti através,
Algo é do qual passas através, com teus améns,
Como, sem magias,
Através duma sala cruzarias.
O espaço não é espaço realmente
Como sítio onde não há nada,
Já que tal ente
Não existe do Cosmos na parada.
O tempo é.
Dizemos que passa mas não passa
Em direcção a nada.
Quem pelo próprio pé
Passa com uma direcção, com toda a graça,
És tu, és tu que passas do tempo através,
Que da passagem do tempo crias a ilusão,
À medida que vais passando ali resvés,
Através do único momento que é.
É eterno
O momento que é e, portanto,
À medida que te deslocas, subalterno,
Ao longo dele, vais tendo a impressão, o encanto,
Literalmente,
De deixar
Simplesmente
O tempo passar
A correr pelos teus pés,
Porque tu és.
Observas o tempo sequencialmente
Embora ele exista em todos os espaços
Simultaneamente,
Indiferente
A teus passos.
548 - Desejas
Desejas conhecer plenamente quem és
E depois recriar-te a ti próprio de raiz
Na próxima versão disto mesmo em que te vês
De divino matiz.
É o desejo de toda a vida:
Crescimento, evolução, sem chegada nem partida.
Vais querer saber
Tudo o que a saber houver
Relativamente a estares vivo,
A seres tu próprio em teu secreto arquivo,
A seres divino
Por radical destino.
Desta vez no céu,
No reino espiritual,
Mora a alegria,
Sem véu
O fanal
Alumia.
A vida no físico reino
Pode ser igualmente alegria pura.
A maioria, porém, por destreino
Nem sequer o figura.
Esqueceram, pois, não têm em mente
Quem são verdadeiramente.
O reino espiritual
É um tempo de maior conhecimento.
No entanto, chegará o momento
Em que tal,
Por mais que seja luminescente,
Já não é suficiente.
Teu imo vai procurar
Quanto sabe dele próprio experienciar,
Na nova dele ideia
Acerca dele próprio cheia.
Ora, isto apenas pode ocorrer fecundo
No físico mundo.
549 - Árvore
Olha a grande árvore à frente
De tua janela.
Agora que te cobre inteiramente
Com a sombra dela,
Não sabe mais de húmus, sol nem vento
Que quando era rebento.
Toda a informação de que precisou
Para se tornar no que tornou
Estava contida desde antigamente
Dela na semente.
Não teve de aprender,
Limitou-se a precisar de crescer.
Para operar,
Usou a informação arquivada,
Na memória celular
Guardada.
Tu não és diferente
De tal árvore ingente.
Antes que me chamem
Eu lhes responderei
- É o que os mundos proclamem
De Deus por lei.
Então para quê falar
Com quenquer que seja,
A Deus orar,
Já que já temos à partida o porvir que se almeja?
Toda e qualquer árvore há-de precisar
De sol e vento
Para estimular
Dela o crescimento.
Toda a vida é interligada,
Não há qualquer pendor
Do Todo, do indivíduo ou da jornada
Que actue sem se interpor,
Que actue independente
De qualquer outro agente.
A vida cria, teimosa e fugitiva,
Continuamente de forma interactiva.
É mutuamente que produzimos, atarefados,
Quaisquer resultados.
Não há, nem hoje, nem no porvir,
Outra maneira de os produzir.
A tua conversa com os mais,
A informação que te chega do exterior,
São raios de sol nos trigais
A germinar ao calor
As sementes aí
Enterradas dentro de ti.
Há muito no mundo exterior
Que te pode encaminhar,
Fundo e devagar,
Para tua verdade interior.
Porém, indivíduos, lugares, objectos, eventos
São meras chamadas de atenção,
Os fermentos
São do coração.
No rumo para o ninho,
Aqueles serão sinais num caminho.
É para que serve o penhor
Do mundo exterior.
O mundo físico é para te proporcionar
Ao que vislumbras e sentes intimamente
O contexto onde o venhas concretizar
Exteriormente.
550 - Sentidos
É no mínimo suspeito
Qualquer dado
Que não pode ser verificado
Pelos sentidos, à prova sujeito.
Visão parcial, exclusivista,
Da vital experiência percorrida,
Esta perspectiva materialista
Permite-nos apenas meia vida.
Toda a interioridade
Que sou eu
Não existe para ela de verdade,
Morreu.
Bom ou mau,
É indiferente,
Não passo dum qualquer calhau
Do real perdido na corrente.
551 - Era
A era do iluminismo
É a da maior crueldade,
Mais fria, distante no abismo
Da guerra, injustiça, ferocidade.
Deus não logra atravessar as rijezas
Da peneira de nossas certezas.
552 - Plano
Um plano de mudança consciente
É do mesmo imaginário que nos criou problemas
Que provém usualmente.
Pode, pois, lançar-nos novamente,
Dele com os lemas,
Para o desconfortável buraco
Que, sem hesitar,
Por mor do mau impacto,
Acabámos de deixar.
Qualquer saída
É mais que mudar de agulha na curva pretendida.
553 - Fidedigno
O artista que dialoga com a musa
É o teólogo maior,
E o teólogo que pensa, fala e não recusa
Escrever poeticamente
Vem propor
O mais fidedigno fermento,
Certamente,
De religioso conhecimento.
554 - Convincente
Para o filósofo musical,
A beleza é mais convincente que a verdade,
O movimento, mais central,
Na estrutura da vida, que a perenidade,
A canção,
Mais expressiva que a sentença
Do silogismo,
A comoção
Provocada pela presença
É bem mais que o abismo,
Onde à flor de água não me aguento,
Do seu entendimento.
555 - Moldamos
Sem conhecer a natureza,
Quem somos não podemos saber
Nem que fazer.
A natureza molda-nos com fereza
Quanto nós a moldamos a ela.
Deste mútuo compromisso
Na competitiva escada, parcela a parcela,
Da realização de ambos se ata o liço.
556 - Protectoras
Nossas pequenas e protectoras intenções
No domínio da espiritualidade,
Quantas vezes mera epidérmica sentimentalidade,
A pó serão reduzidas em quaisquer ocasiões.
Podemos arrancar-nos a pele,
Dilacerar-nos as entranhas,
À medida que nos atropele
A natureza terrível das sanhas
Do que inocentemente me inclino
A designar por angélico e divino.
557 - Satisfeitos
A comprar e a possuir
Nunca satisfeitos findaremos.
E o vazio que se imiscuir
Após o esforço que empenhemos,
Tão intenso, para deter algo
Indicia
Que, apesar dos degraus que galgo
Para a oca de comprar fantasia,
Nunca chegarei deveras a dispor,
Ao fim e ao cabo, seja do que for.
A prova final de que nada possuo
É que no fim tudo aí fica:
Da morte o recuo
A tudo se aplica.
558 - Discípulos
Discípulos sérios e dedicados
Interrogam a natureza do Universo
E seus traçados.
Jesus ri-se de cada irmão converso
Com tais perguntas pretensiosas
E prega a ignorância sagrada,
Perante o Belo, de nossas prosas,
E a inefabilidade divina, sempre além selada.
559 - Provisórios
Provisórios sempre e fatalmente
São nossos conceitos sobre a natureza do real,
Motivo pelo qual
Mais bem servidos eventualmente
Poderão ser, afinal,
Por uma poética sensibilidade
Que perscrute a realidade.
Da vida o sentido em vista,
Religioso, eterno,
Pode ser menos externo,
Menos racionalista
E, nos mais fundos impactos,
Menos dependente dos factos.
É sempre o imaginário
Que da vida nos paga o melhor salário.
560 - Perda
A perda do sentimento de ser
É o efeito mais grave
Da vida quantificada, racionalizada
De quenquer,
Por bens de consumo transformada,
Industrializada,
Que produzimos sem entrave,
Diligentemente,
Na era presente.
Quando outrem olha para nós
Só vê o que capta.
Nosso rosto original sob pós e mais pós,
Coberto por camadas de estatística e biografia,
Nada se lhe adapta
E bem precisa seria
Uma arqueologia
Do si-próprio para descobrir,
Em tais vertigens,
No porvir,
As nossas origens.
561 - Prometeica
É prometeica a nossa era,
Subjaz a nosso esforço
Para explorar da vida a totalidade,
Mais que a mera
Ânsia de ir além de todo o escorço,
- O desejo de imortalidade,
Vergados os dados enfermos,
E o de tudo sabermos.
O fogo dos deuses que roubámos
Lucila na luminosidade
Dos ecrãs de computador,
No fulgor
Da televisão que sintonizamos,
Ofusca-nos no brilho
Dum foguetão, do voo no rastilho,
Ou duma bomba nuclear
A explodir no ar…
Consideramo-nos evoluídos,
Mas cuidado, Prometeu humano,
Da vida com os sentidos
E o recorrente
Engano
E o consequente
Dano
Que dali nos persegue eternamente!
562 - Imaginar
Podemos imaginar nossa relação
Com o divino,
Como os místicos da tradição,
Recorrendo ao imaginário clandestino
Do amor e da sexualidade,
Ou, inversamente,
Utilizar a linguagem da religião
Para traduzir nossa sensualidade,
Do prazer nossa vivência congruente.
São convergentes e reversíveis
Nossos mais profundos níveis.
563 - Intersectando
Intersectando movimento e estagnação,
A vida devém interessante
E digna de ser vivida.
A mudança enobrece a tradição
E o respeito pelos ancestrais garante
Solidez à vitalidade promovida
E ao movimento
Que invento.
As águas dum ribeiro
Correm sem parar,
Embora ele seja o mesmo, sempre ali inteiro,
A par
O estático perante
A corrente incessante.
564 - Incapaz
Incapaz de reconhecer a flébil alma profunda
Que de mim próprio contém o meu sentido,
Nos lugares errados é que a busca dela abunda,
Incorrectamente a imaginamos e temos lido.
O mim-próprio não é fabricado
Por esperteza, formação,
Por feitos ou por educação,
Não é produto acabado
De auto-análise ou compreensão.
É uma dádiva, de raiz um dom
À espera de ser aceite
E cujo deleite
É de quem o acarinhar
Dele no espontâneo desabrochar.
565 - Requisitos
A razão é distante e requisitos contém
Limitados a uma vida ordeira.
As artes são íntimas, o que convém
Às conjunturas melindrosas de que se abeira,
Por excelência,
A humana existência.
566 - Algo
Algo em nós não quer civilizar-se,
Unir-se íntimo demais à clara luz
Nem a humanos feitos onde a disfarce,
Medicina, ideias, artes, tudo o que tal traduz.
Algo não pretende qualquer união,
Tenta desesperado preservar
A individualidade do coração,
A integridade de meu ser larvar.
Algo quer ser inexpressivo,
Silencioso, impenetrável,
Já não vivo
Nem vulnerável.
Quer retornar à natureza muda,
Já não amado nem desejado,
Como a beleza em que se escuda
Qualquer árvore, mero fado,
Puramente involuntária nas funções,
Destituída de intenções.
E então a pedra?
Uma fundura em nós dela nos medra.
567 - Descobrirmos
Para nos descobrirmos no presente
De viver no presente teremos de abdicar,
Porque estar presente, é dado assente,
Não é o mesmo que verificar presente estar.
Seja como for,
Eis o que o real virá
Impor:
- O que é nunca será!
568 - Significado
Outrora
Buscava um significado para tudo.
Agora
Vive apenas com o que é, conformado e mudo.
O problema de que não dá fé
É que, afinal, o que é não é.
569 - Lamentável
Da vida a desordem complicada,
Lamentável sob qualquer ponto de vista,
É o que é, uma realidade dada,
Tal como as ansiedades, as recordações
Que arrolo à lista,
As antecipações…
Tudo existe de pé
No presente precioso
E tudo constitui o que é,
Dele no tecido misterioso.
570 - Divertem-nos
Divertem-nos os contos policiais
Porque clarificam nosso próprio mistério,
Iluminando dos crimes fundamentais
O império:
A transgressão ousada e que nos gratifica
Que o mero facto de viver implica.
Somos todos filhos de Adão,
Do crime o arquetípico guião.
Já todos vivemos no Paraíso
E já todos o perdemos
Por um crime que cometemos
E que, em nossa falta de siso,
Já esquecemos.
Continuamos a tentar desvelar
O mistério, descobrir o criminoso disfarçado,
Mas não deixamos de procurar
No sítio errado.
571 - Sujeitam-nos
Não se limitam nossos humores
A brotar e se evolar.
Germinam e sujeitam-nos, senhores,
A uma alquimia particular
Que nos transmuda, lento e lento,
À profundidade ajudando e ao desenvolvimento.
Pode ser deles a presença
Momentaneamente dolorosa
Mas sempre têm uma vertente criativa
Cuja sentença
Gozosa
Imprime em nós uma marca positiva.
572 - Saudáveis
Quão maus saudáveis nos sentimos
Menos reflexivos nos tornamos,
Mas o senso do real diluímos
E em nossa humanidade recuamos.
Quando reparo em meu passado,
Distingo um cortejo de erros e derrotas.
Recordá-lo é minha chaga do lado,
Espero não ter de averbar deles mais quotas.
Também logro, todavia, ver
Como os fracassos ajudam a moldar-me
E à minha vida, qual hoje pode ser.
Prazeres recentes são o carme
Modelado em dor passada
E os momentos criativos e felizes
De minha vida arroteada
Todos deitaram raízes
Nos pestilentos humores
De fracassos anteriores.
573 - Simplicidade
Descobrimos da simplicidade a magia
Vivendo em contacto com o mundo natural,
Em sintonia
Com as peculiaridades do ciclo anual.
Vivemos num lugar real
Que é nosso, nos impele,
Somos parte dele.
O exótico desvio enriquece
(Um restaurante italiano,
Uma asiática mercearia que apetece,
Um estendal de roupas africano…)
Mas exige uma base na vida
Marcada por nossa paisagem,
Nossos animais, aves, verdura consabida,
Nossas árvores e plantas
Em redor de nossas antas,
Que a tudo isto é que os corações reagem.
574 - Ignore
Embora ignore a vida interior
Ou a vida simbólica da poesia
Dos actos e dos eventos
Que marchetam de calor
A romaria
Dos ventos
De cada dia,
O mundo interior não desaparece,
Ganha força com a negligência,
Vai influir dos gestos na messe
Com ignota persistência.
Mal familiarizados
Com tal modo de agir,
Ignoramos, alheados,
Como sempre ele anda a progredir.
E, em lugar de lhe corresponder,
Perdemos a vida,
Do imo a nos proteger
Numa aposta perdida.
575 - Teia
Tem o imo uma teia de regras
Que iguais não são às da vida.
O itinerário que integras,
Constante, na história erguida,
É o invés do evento de alma
Que é cíclico, repetitivo,
Nem por cumpri-lo se acalma
Nem jamais dorme em arquivo:
O tema familiar
Há-de sempre retornar,
O passado importa mais
Que o futuro aonde vais,
Vivos e mortos desempenham
Iguais papéis, quando advenham.
As emoções e a sensação
De significado são,
Qualquer que seja a relevância,
De extrema importância.
Os prazeres são intensos
E a dor, com frequência,
Pode atingir os caboucos densos
De nossa existência.
Na dor e na alegria
É o que me germina cada dia.
576 - Irrompe
Hoje em dia, muitos vivem
Apenas para o exterior
E, quando o mundo interior
Irrompe e se agita,
Sem esquivas que o esquivem,
Pedirão ajuda em grita
Ao terapeuta, à mão perita.
Tentam explicar
Os míticos desenvolvimentos
Fundos do íntimo mar
Na língua da experiência e comportamentos.
Nenhuma ideia terão
Do que lhes vem ocorrendo,
Tão longe moram então
Do imo fundo por que andam vivendo.
A fiel alma é-lhes tão estranha,
Vivem num mundo tão compacto
Que ninguém consciência ganha
Do que ocorre fora do reino sabido do facto.
577 - Memória
A memória mantém tudo unido
No indivíduo e na comunidade.
Quando nos esquecemos
De quem temos sido,
Perdemos
O pleno sentido
De quem somos na realidade.
Os que se afastaram da frágil alma
Ou que na dor se pretendem defender
Duma experiência que os jamais acalma
Hão-de muitas vezes tender
A apagar recordações.
Afastam-se do palco real da dor,
Destroem construções
Ligadas a tragédias
Ou, num individual estertor,
Ocupam as horas intermédias
O mais que podem, para a memória
Não lhes penetrar as consciências,
Não cantarem vitória
As reminiscências.
A memória é poderosa,
Tem sobre nós efeitos,
Faz de nós, operosa,
O que somos e a que somos atreitos.
Cava-nos profundidade,
Liga o passado ao presente,
A superar a disjunção que nos invade
Duma vida cujo sinal
Em demasia é real.
Centra a atenção no imaginário dos eventos,
Em lugar de em eventos à letra.
A memória é feita de elementos
Que a magia
Impetra:
- A memória também é poesia.
578 - Tecer
A incapacidade de tecer na vida
Fantasias autónomas, emoções apaixonantes,
Dá sinais gritantes
De alma dividida.
Ideal não é tornar-nos sadios
Mas viver de forma criativa,
Reagir com brios
Ao que nos cativa,
Ao humor, sentimentos e ideias
De que as horas andem cheias.
Se não respondermos desta forma
De alma a tais expressões
Que moldam a vida, lhe entalham a norma,
Rápido elas desenvolvem tufões,
Tornadas nossas inimigas,
E nós desenvolveremos, por entre as brigas,
A psique dividida,
De nossa época comum teor de vida:
Uma vida sã mas sem finalidade, entediante,
E paixões incompreensíveis descontroladas adiante.
579 - Espírito
Muitos de nós o espírito procuram
Um pouco por todo o lado.
Mesmo os mais peritos em espírito descuram
E obliteram que ele vive instalado
De nós bem mais perto
Que nós de nós mesmos, decerto.
Basta uma fina membrana
De pragmatismo e literalismo
E logo nosso olhar se engana,
Enquanto cismo
Em tais poeiras e pós,
E o espírito se oculta de nós.
Não lhe vemos o clarão
Da névoa devido à interposição.
Uma momentânea preocupação
Com o mundo real onde me erijo
A flébil alma empurra para um esconderijo,
Dando a ilusão
Enganadoramente evidente
Para quem o real aliste,
De que ela não está presente
Ou até de que nem existe.
580 - Despertar
A fiel alma do mundo para ver
E, neste itinerário,
Para despertar a nossa própria, a de quenquer,
Teremos de superar a confusão
Que nos traz a convicção
Do preconceito primário
De que o facto é real
E o imaginário
É, de modo fatal,
Uma ilusão.
É rigorosamente o contrário:
O facto é que é ilusão,
Que é parte duma história,
Repleto de imaginação,
Prenhe de memória.
A imaginação é real
Porque do mundo cada percepção
É colorida pela narrativa ancestral
Ou pela lente de imagens cheia
Através da qual
Se nos encadeia.
Todos somos poetas e artistas
Em nosso dia-a-dia,
Reconheçamo-nos ou não deles nas pistas
E nas listas,
Creiamos ou não destas na magia.
581 - Invés
Algo em nós pretende
Aventurar-se, explorar,
E tende
A descobrir, reinventar.
E, ao invés, algo pretende usufruir
Do que já foi adquirido,
E então tende a ir
Proteger, conservar, quedar-se em sentido.
Na melhor conjuntura
Ambos os pendores influirão,
Exploramos a planura,
Do despenhadeiro a altura
E retornamos a casa, ao pátrio torrão.
Descobrimos
E conservamos,
Reinventamos,
Miramos os cimos
E acaso nada mudamos.
Raro a vida, porém,
É tão equilibrada como convém.
Ao invés,
Ou na aventura desgovernada
Fincamos os pés
Ou na ordem implantada.
582 - Lago
Alma, o lago subterrâneo profundo
Onde todos os dias sobem à tona
Desejos, ideias, devaneios de que me inundo,
A ofertar novas rotas a quem dele se adona.
Da matéria que no lago pode ser descoberta
Se os sonhos nos fornecem um alerta,
Então a matéria da vida transcende em todo o lado
O que consideramos apropriado,
O que se enquadra em nossos planos
Ou se adequa à vida ordenada pelos anos,
Ou o que quenquer
Pretenda viver.
Estar vivo é enfrentar
O princípio da morte
Que governa sem parar,
Aos baldões
Da sorte,
Nossos juízos e acções.
Queremos ordem e decoro
Mas a borbulhante vitalidade
Que borbota do fundo do lago onde moro,
Estoira a costura
De todas as noções
De normalidade
E compostura.
583 - Mito
O mito é a narrativa
Sugestiva
Em que nos descobrimos
Quando conscientes devimos
De que a vida, mais que por memórias,
É moldada por histórias.
O mito em acção
A determinado momento
Pode provir da família, como frumento,
E de correntes de imaginação,
Poderosas mas ocultas,
Cuja força e estrutura
Insepultas
Se farão sentir na cultura.
Nossa humanidade basilar
Também explica o estrato e o fito
Mais profundo do mito
Que vivemos em todo o lugar.
Vogamos sempre num mito
Mas as narrativas culturais
Variam a gesta e o delito
Dum lugar aos outros mais
E, mesmo na mesma cultura,
Transformam-se do tempo pela usura.
584 - Maior
Das religiões o maior mistério
É o da incarnação,
O divino, espiritual, assumindo a sério
A forma humana, terrena condição.
Quantas heresias
Marcaram as eras e os dias
No pesponto
Deste ponto!
É mui difícil apreciar
Como o absolutamente espiritual
Se revela no absolutamente vulgar,
Material.
Nossa tendência natural
É procurar
A espiritualidade na atmosfera rarefeita
Da abstracção especulativa
E não na vida concreta, estreita,
Que nos cerca, objectiva.
Contudo, foi sempre aqui
Que, inesperada, a descobri.
585 - Acredite
Aquele que acredite honestamente
Nas próprias convicções
Pode ser um perigo veemente
Para as multidões,
Porque a falta de humor assinala
Um defeito basilar.
O riso do sábio é uma antessala
Da sabedoria que o moldar
E a sabedoria
É a confiança profunda de cada momento
Que se alia
Ao conhecimento.
Há risos cínicos e cruéis
E outro tipo de riso, todavia,
Que exprime as posturas fiéis
De quem confia,
Em toda a medida,
Simplesmente na vida.
586 - Ter
Que é requerido
Para ter e possuir deveras?
É tornar algo tão querido
Que não suportamos esperas
Nem separar-nos logramos
Dele, se com ele estamos.
É semos incapazes de vê-lo
Negligenciado,
Em atropelo,
E mal usado.
É não crer que alguém
Possa ser-nos garante
De gostar daquilo também
O bastante.
Ora, assim sendo, em seus tramos,
Nosso materialismo jucundo
É sinal de que não gostamos
Do mundo.
587 - Modos
Há modos de conhecer
Que não levam a entender.
Um filme, um teatro, um romance
Não temos de compreender
Para os apreciarmos.
Do conhecimento bem ao alcance
Podemos ter quem amarmos
E, à medida que os anos correm, serenos,
Compreendermo-lo cada vez menos.
Todavia, pode ser pleno nosso empenhamento
No drama do casamento.
Podemos conhecer o nosso cão
E nada entender, com certeza,
Das vivências que o motivarão
Nem da sua natureza.
Podemos compreender o mundo cada vez menos
E que somos parte dele sentirmos plenos.
Estarmos próximos de nós
É um modo de conhecimento
Que não requer, antes nem após,
Da compreensão o complemento.
Podemos conhecer as imagens
Que povoam nossos sonhos
E como mudam nas triagens
De períodos alegres a medonhos
E não ter delas, entrementes,
Qualquer significado em nossas mentes.
Quanto a nosso imo,
Quanto mais envolvidos estivermos
Mais estimo
Que menos ocorre dele sabermos.
588 - Parte
Quando apenas parte do potencial
De nós vivemos,
Nossa vida é incompleta.
Não é que tudo, afinal,
De viver teremos,
Mas que quão mais possibilidades despoleta
Em nós o imaginário,
Mais rico da vida o itinerário.
Defendermo-nos do estranho
É um modo de nos distanciarmos
De nossas potencialidades.
Diminuir as relações é perda, não ganho,
Maneira de nos amputarmos
Das vertentes que nos levam a outras idades.
O estrangeiro mais estimulante
É a própria vida, a fiel alma,
Rosto e fonte de vitalidade germinante.
De mostrar-nos a vida não pára nem nos acalma
Com novas possibilidades
E talvez tal abundância
É o que a tremer nos traz em ânsia.
Contentarmo-nos com o que temos e somos
Parece mais seguro
E da ordem implantada agarramo-nos aos pomos
E fico podre de maduro.
Não há, porém, limite conveniente,
Quando recuso um dom da vida
Fico calejado emocionalmente,
O hábito de actuar por medo instala-se em seguida,
Cada vez mais rigidamente.
Desta sorte,
Ao recusar a vida, escravizamo-nos à morte.
589 - Conduz-nos
A fiel alma conduz-nos à inconsciência
E fá-lo por nosso bem.
Quando nos apaixonamos, não há evidência,
Quando somos absorvidos pelo trabalho, também,
Quando nos domina uma depressão furtiva,
Perdemos o controlo e a perspectiva.
A frágil alma toma o poder
E, a partir dum recanto sombrio,
Dirige como quer
Do quotidiano o fio.
Ignoramos, em rigor, o que andamos a fazer
Ou se fazê-lo deveríamos.
Neste nevoeiro ao permanecer,
Podemos ir dar
A um lugar
Que queríamos
E que ao longo da vida procurámos,
Do par certo em companhia,
Num bom emprego que nunca alcançámos,
Em nós com outra confiança
Numa indefinível aliança.
Manha e consciência de si
Preza a nossa cultura
Mas deveria ser óbvio, logo ali,
Que esta abordagem apenas assegura
Competição e agressão desaustinadas,
Pela ansiedade aguilhoadas.
Viver do intelecto é de incerteza oscilar
Na corda bamba, a mal se equilibrar.
É mais sólida a radical alma,
Dela o território de tufão e calma
Cumpre o protocolo
Algures sob o solo.
É ctónica, preza
A profundeza
Onde as sementes enterramos
E os mortos que amamos.
É o bom terreno
Para o desenvolvimento pessoal,
E não aquele carregado de intenções,
Cercado e pequeno,
A partir do qual
Podemos vislumbrar,
Inchados de pretensões,
O que se estiver a passar.
É sempre no invisível
Que se situa meu verdadeiro nível.
590 - Natal
No Natal celebramos o nascimento
Do Deus menino,
Ou a infância da divindade,
Ou a divindade da infância,
Ou o aparecimento
Clandestino
Da luz e da vida - da verdade,
Dentre as trevas e pousio do Inverno - a ignorância,
Ou apenas, na prosa que a desdoira,
Uma criança numa manjedoira…
É um mistério que veneramos,
Um mistério cujo traslado,
Na teia dos ramos,
Não pode ser nem contido nem explicado.
591 - Crêem
Historiadores, cientistas e outros que tais
Ainda crêem que deles os conceitos
Dos factos a experiência sujeitos
São mais factuais
Que ficcionais.
No entanto, as revisões encadeadas
Que vão revolucionando estes conhecimentos
Evidenciam que, aos níveis mais fundamentais
E em todas as leiras lavradas,
Estendemos aos ventos,
Em gesto sumário,
E vivemos nas fiadas
Duma grandiosa teia de imaginário.
592 - Súbditos
Se os súbditos tomarem decisões inteligentes
E a eles próprios se educarem,
Poderá o líder, entrementes,
Proporcionar a concentração, orientação e estrutura
Que faltarem
Ao projecto que se inaugura.
Quando outorgam, todavia,
Ao líder poder em demasia,
Vítimas em breve se tornarão
E os líderes, algozes
De apontado ferrão,
Ferozes.
Todo o que erigir
Enérgica e definitiva estrutura externa
Vai sucumbir
Diante das formas institucionais
E a regra substituirá, superna,
Da sabedoria os gestos vitais.
593 - Espírito
O espírito é o factor
Mais criativo,
Inspirador,
De sentido vivo
Propiciador,
De quanto aliste
Que na vida existe.
É, porém,
O mais perigoso também.
Quando o espírito nos visita,
Impele-nos para a acção,
Para o comprometimento,
Nossa ambição
Incita
Ao prosseguimento
De objectivos e ideais,
Fomenta nosso altruísmo e visão
Gerais.
Destes todo e qualquer elemento
A qualquer alma serve de alimento
Embora, quando o confira,
Note que também a fira.
Deles as ladeiras contrárias
São por igual importantes
Para as almas tumultuárias:
A espera, a dúvida, a reclusão asfixiantes,
O não-sair, o não-saber, o não-ver,
O virar-se para si, sem mesmo qualquer querer…
Quando o espírito não se enraíza em alma
Nem por ela for orientado,
Rapidamente assume a palma
Da interpretação literal em seu traslado:
E é de terceiros a brutal conversão
E a cega, insensível ambição…
A imensa força dele
Transmuda-se em violência,
Embora de tal sem consciência,
E o altruísmo falso impele
À interferência
Com que invades
Doutrem as liberdades.
Dele a criatividade
Reveste a forma de produtividade
Sem limites
E a busca de perfeição,
Nos seus palpites,
Devém fementida convicção
Da ciosa posse exclusiva da verdade.
E apenas à destruição
Então nos persuade.
594 - Pingos
A vida nem sempre corre
Como planeamos,
Em pingos de chuva escorre
E perde-se por entre os ramos.
Não é, todavia, um senão
Ao que convém.
Embora o não entenda, é o que é bom,
O que o Universo me confirma que está bem.
595 - Propriedade
A propriedade de imóveis que tens,
De roupas, carros, jóias, móveis de estilo,
Longe de proporcionar felicidade,
Convertem um homem num escravo dos bens.
Antes de algo comprar, como perfilo
O que me invade?
Todas as coisas requerem atenção,
Com o tempo convertem-se em tiranas
Que exigem cuidados de prisão:
Dos ladrões protegê-las das ganas,
Mantê-las em bom estado,
Usá-las com contenção
E cuidado…
Ter é depender:
Quem tão pouco livre é que tolere as garras,
Quem vai querer
Comprar amarras?
596 - Fiada
O tempo não é linear fiada de tijolos
Do primeiro soluço ao último suspiro,
Reduzido a letra morta entre os dois pólos.
É fluir espontâneo que confiro,
Tão natural como o ar que respiro.
E é uma memória,
Vislumbre confuso de dobras e espirais,
De um dia ter mais glória
Por importar mais,
De este evento reflectir aquele,
De uns tantos se destacarem,
Por excepcionais
No que os impele…
E todos a desalinharem,
Em desvario singular,
Dum tempo rectilíneo linear.
E somos este estranho vento
A desgovernar
Cada momento.
597 - Somos
Mudos e cegos somos. Contudo, a par,
Temos de ver e de falar.
Não a cara nem o nariz cheio,
Não a mão nem o músculo liso,
Não a garganta, o pulmão,
Nem, no meio,
O coração
Que viso:
Estes poderiam ser vistos e tocados
Se com o bisturi procurados
Na mesa de dissecação.
É, ao invés, a escuridão inominável,
Invisível, imperscrutável,
Que aqui nos mora no centro,
Sempre desperta, sempre diferente
Do que creio quando nela me adentro,
Sempre a pensar e a sentir, independente,
O que nunca se pode saber que pensa e sente,
Que espera compreender toda a vida
Desesperadamente
E ser compreendida.
Nossa solidão
Não é a do recluso, náufrago ou prisioneiro,
É a desta escuridão
Que apenas vê por reflexão,
Do efeito vasculhando o esconso mistério pioneiro,
Que sente por comando remoto
E apenas escuta termos
Provindos de inabitados ermos,
De ouvido estranhamente fino e boto.
Nossa paixão é comunicar o que quero
E é o nosso desespero.
598 - Carga
Transporto comigo uma carga de memórias,
O homem não é instantâneo,
Corpo físico em reacção de momento,
São histórias
Evocadas em simultâneo
Dos quadrantes de todo o vento.
É um incrível acervo de recordações,
De variegadas
Sensações,
De fósseis às camadas,
De seminais
Intérminas excrescências de corais.
Não sou um homem que já foi miúdo,
Mas o que recorda o miúdo que foi.
Difere o tempo em fiada de contas que grudo
E o tempo que tudo retoma, espiral que remói.
Posso amar o miúdo que fui,
Pois eu não sou ele,
Ele é outra pessoa que aqui já não intui,
Mas marca a ferro o lado de dentro de minha pele.
Aquele já morreu
Mas arrasto-lhe o cadáver no meu eu.
599 - Reforma
Temida
Ou sacralizada,
A reforma vivida
É bem pouco igual à reforma sonhada.
A mudança de vida
Raro se desenrola à medida
Do que foi quando imaginada.
Como tudo em qualquer jornada
Percorrida
Alguma vez da vida na estrada.
600 - Ritual
O ritual é uma ajuda,
O tempo a delimitar:
A muda
Está prestes a se desencadear.
E a grelha de partida
Faz parte da confrontação,
O primeiro período em que é erigida
A mutação.
O ritual, uma cancela,
É o símbolo dela.
601 - Projecto
Não há projecto a implementar
Quando a resignação
Toma o lugar
Da aceitação.
A rotina é o único fruto
Da resignação sem remédio
E as pevides de tal produto
São o tédio.
602 - Recolheremos
Repudiada a moral moralista
A mil léguas da reflexão,
Recolheremos das pegadas na pista
O que semeámos de antemão.
E os que ignoram o que semearam,
Sabê-lo-ão,
A ilusão desfeita,
No momento em que aparam
A colheita.
603 - Zangas
Como de pequenos riachos
Se engordam os grandes rios,
As pequenas zangas, em cachos,
Transmudam-se em enormes desafios
E a vida, antes afável,
Devém insuportável.
604 - Descoberta
Os caminhos da descoberta pessoal
Mostram que gastamos nossa energia
A fugir da vida como é tal e qual,
Por troca da que seria.
Preferimos olhá-la
Através de nossos óculos, sem reparar
Que tais óculos são, à nossa escala,
Nossos limites a aflorar,
Do caminho à borda da vala.
605 - Trágicos
Muitos eventos da vida
Menos difíceis eram de gerir
E menos trágicos, se a conjuntura vivida
O fora de modo não definitivo no porvir.
O que inquieta mais o homem
É o carácter de irreversibilidade
Dos eventos que o consomem
Idade a idade.
Quando cuidamos
Que é para sempre o que vivemos,
Criamos
A tensão interior de que murcharemos.
606 - Pergunta
A pergunta posta pela reforma
A quem nela entrar
É a de qualquer muda de vida, em norma:
Sabes mudar?
Somos um povo refractário à mudança,
Pouco dotado para a transformação.
Damos a impressão
De andar visceralmente atados à trança
De nossos hábitos, da repetitividade,
E não somos conhecidos
Por nossa mobilidade.
Perdidos os sentidos,
Qualquer reforma, afinal,
Em breve devirá letal.
Em vez de vida nova e de festa
Devém lixo que não presta.