QUINTO  TROVÁRIO

 

 

                              PARA  AO  SER  RETORNAR,  À  RAIZ

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número ao acaso entre 492 e 606, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                             492 - Para ao ser retornar, à raiz

 

                                             Para ao ser retornar, à raiz,

                                             Há-de o poema rimar,

                                             Em metros de acaso servis,

                                             Com as margens que nos talham os perfis

                                             De humanidade singular.

 

                                             O poema captura,

                                             À esquina do verso emboscado,

                                             A minha estrutura

                                             E a fenda por onde sangro de lado.

 

                                             Salta de improviso

                                             Sobre a presa

                                             Na métrica irregular e sem aviso

 

                                             Que de nosso imo é a defesa

                                             Na eterna busca falhada de certeza.

 

 


493 - Raças

 

Geneticamente

Não há raças humanas.

Maior é a variabilidade existente

Dentro de qualquer uma de que te ufanas

Do que entre quaisquer dois

Daqueles grupos depois.

 

Não há raças,

Há diferentes desenhos e sinais

Em taças

Dos mesmos cristais.

 

 

494 - Cego

 

Cego investir para a meta

Contra a força dos próprios impulsos

- É triunfar, na dominante calha que me afecta.

As fadas do êxito atam-nos os pulsos,

Quando por elas abençoados:

À deriva dos ventos e das velas,

Querem-nos tão desalmados

E desaustinados

Como elas.

 

 

495 - Colectivos

 

Em termos colectivos não logramos crescer

Senão mui devagar e aos repelões.

É bom revisitar e rever

Estes baldões,

De parto tantas dores

E ais,

Estrebuchamentos transfiguradores

Insurreccionais.

 

Espelhos de nossa condição,

Da estreiteza destas baias,

Ensinam-nos que da vida a ebulição

Não pára, contra tudo e todos,

Viola todas as raias,

Anseio permanente de novos bodos.

 

E, à hora menos aguardada,

Outra convulsão redentora

Nos espera na estrada

Com o recado subentendido e salutar

(Na demora

Onde todo o engano

Hiberna)

De que, para o espírito humano,

Nenhuma ortodoxia que vingar

É eterna.

 

 

496 - Autonomia

 

Uma autonomia contingente,

Liberdade condicionada,

É o homem, em toda a frente.

Se, todavia, os eventos não fada,

Configura-os, contudo.

Perde até, porém, tal vantagem,

Quando, na clivagem,

De ver-se tão miúdo,

Dele próprio descrê.

Então é que os deuses de qualquer fé

Podem tudo.

 

 

497 - Dorme

 

Quanto mais profundamente

Alguém dormir, mais estremunhado

Acorda, surpreendente,

Para a realidade que lhe corra ao lado.

 

Por muito que se esquive,

Ninguém indefinidamente

Entre parêntesis vive.

 

 

498 - Ignora

 

Só acredita no triunfo

Quem ignora a própria condição.

A nossa não joga o trunfo:

É de mortais que para o chão

Raso

Se irão,

A mais curto ou longo prazo.

 

 

499 - Desatar

 

Desatar o nó cego da mente e do coração

De almas obscuras mas almas como as mais,

Ciosas, todavia, da escuridão

Em que asfixiam nos tremedais!

 

Aflitas a todo o momento,

Aspiram à libertação

Sem deveras a desejarem

Em nenhum evento,

De viciadas no desespero

Para alguma vez arejarem.

Com indisfarçável desconfiança

Ouvem aquele que, sincero,

Procura ajudá-las,

A mostrar-lhes como se alcança

A luz fora das valas.

 

Anos e anos de recalcamento

Forjaram nelas uma couraça

Tímida, refechada, esquiva,

Que nenhum vento

Trespassa,

Por mais que insista, em recidiva.

 

Não, nunca as remoço

Libertas das agruras:

Apenas no fundo do poço

Se antolham seguras.

 

 

500 - Espalharam

 

Se alguém não é louco

Mas todos espalharam aos quatro ventos

Que o é, valem de pouco

Dele os protestos: quão mais violentos,

Mais para confirmar servirão

Dos mais a afirmação.

 

Quando como louco alguém é tido,

Todos os actos dele são olhados

Como do louco o sortido,

Os válidos protestos, transmudados

Em negação,

Os medos legítimos, considerados

Paranóia em ebulição,

Os instintos de sobrevivência

Que ninguém represa,

Rotulados, à evidência,

Como mecanismos de defesa.

 

É um beco sem saída:

Quem ali entrou

Sair já não pode, em seguida.

A vida real acabou

Trocada pela fingida.

 

 

501 - Encumeada

 

Dom da democracia

É a multiplicidade:

Ideológica, racial, cultural…

Lenta encumeada que desafia,

Dos longes na profundidade,

O espírito da humanidade

A conquistar do topo o esquivo fanal.

A partir do escuro mundo tribal

Muralhado na uniformidade,

O trilho do múltiplo é a pegada

Sofrida,

Esforçada,

Que trepa à compreensão civilizada

Dum mundo aberto, na totalidade,

Dum mundo à humana medida:

À medida da diversidade.

 

 

502 - Desgraça

 

De ontem o vencido

É de hoje o triunfador.

Desgraça é que o mártir sofrido

Que dava esperança no cárcere da dor,

Fora das grades quando se perfila,

Não logra incuti-la.

 

Dele o carisma,

Derrubado o muro da opressão,

Perde a força e se abisma

Na desilusão.

 

Contrito,

O herói, afinal,

Tomba do pedestal

Do mito

A mero mortal.

 

 

503 - Crimes

 

O que vale aos criminosos

Dos crimes contra a Humanidade

É que da História os passos são morosos

E a tempo nunca chegam de punir

A impunidade.

Mesmo quando condena,

Vem fora de horas a pena,

Prescreveram os crimes e, a seguir,

Já nenhum dos culpados

A penitência pode cumprir

Dos casos julgados.

 

 

504 - Dramático

 

O mais dramático na vida

Dum poeta, dum artista,

É que nunca o aceitarão

A nenhum tal como é nem no que envida:

Todos o querem como os outros são

E apenas isto têm em vista.

 

Esta definitiva solidão

É tudo o que um artista

Conquista

De verdadeira e derradeira

Comunhão

Que, apesar de tudo, subsista.

 

 

505 - Agarrar

 

Tenho o triste vezo

De quanto mais sentir

A vida fugir

Mais me agarrar nela preso.

 

Atingida a hora da rendição,

Perdido o brio,

Em vez da cara erguida ante a fatalidade,

Imploro ao portal, à porta, ao portão

Da ciência, da crendice, da necedade

Por um fio

De ilusão.

 

E lá se vai a dignidade

Vergada fatalmente à podridão.

 

 

506 - Imprevisto

 

Num mundo normalizado,

Pragmático, em que vivemos,

Então o imprevisto às alturas é guindado,

O misterioso atinge extremos.

Quantas vezes a aberração

É o que nos fica à mão!

 

Dos afectos improgramáveis e gratuitos,

Entretanto, a graça

Entre os dedos fortuitos

Nos acode,

Nos congraça

E salvar-nos apenas ela nos pode.

 

E enche-me de imprevisto

Aquilo por que então existo.

 

 

507 - Velhice

 

Da velhice doente

A tragédia

É morrer antecipadamente

Na fadiga, no enfado, na rédea

Que freia

Angustiadamente

Quem a rodeia.

 

 

508 - Teima

 

Quanto mais o pragmatismo

Político-económico

Teima no monótono abismo

De o mundo uniformizar,

Imbecil e atómico,

Mais os factos irão demonstrar

Que do mundo o encanto

É devir, em todas as idades,

Um recanto

De caleidoscópicas diversidades.

 

 

509 - Partilhadas

 

Nunca nossa angústia, inquietação,

Partilhadas poderão ser por inteiro

No derradeiro

Patamar do coração,

Todos nascemos e morremos em segredo.

O mais profundo e significativo de nós,

No rol

De nosso degredo,

Em nenhum caso vem após

À luz do sol.

Por mais que saiamos da toca,

Vivemos a medo

De credo na boca,

Não há chave para a grade da prisão

De nossa condição.

 

 

510 - Compreendido

 

Ser compreendido é um ideal

A que poderemos aspirar,

Embora incompreendidos cheguemos ao final

Até pelos que nos nasceram a par.

 

Conhecer-nos inteiramente,

Conhecer alguém,

É o desafio mais transcendente

Que desde Adão nos retém.

 

Filósofos, sábios, artistas,

Psicólogos, em inúmera multidão,

Todos o tentam em todas as pistas,

Em vão.

 

O mesmo enigma apaixonante

Lhes fica, insolúvel e hesitante,

Eternamente na mão.

 

Dom maravilhoso

Da natureza humana,

Somos um mistério tenebroso

A qualquer luz que sobre nós dimana.

 

Secretos como viemos

Para a sepultura iremos,

 

Laica ou religiosamente

A confessar-nos sincera e persistentemente.

 

 

511 - Finar

 

Nascemos para ir perdendo

Gradualmente

Tudo o que formos tendo

De melhor, a lucidez da mente,

Os afectos, qualidades, bens,

Até cada qual se finar, indigente,

Sem revoltas nem améns,

Após toda a prova,

Numa cova.

 

Quão mais céptico e objectivo

Cada um procura ser,

Mais fiel às ilusões,

Sem poder

Livrar-se do fascínio

Vivo

Das multidões,

Dos eventos,

Das coisas: do escrínio

Dos acontecimentos.

 

E lá torna, impenitente,

Extasiado,

À paisagem permanente

E ao pão levedado,

- Aos horizontes

Que sugerem insuspeitas pontes.

 

 

512 - Fragilidade

 

Um homem,

Que fragilidade obstinada em viver,

Escrava de mil genéticos programas que a domem,

Condenada à contemporaneidade que tiver

De sorte e azar,

Sem roteiro nem credenciais

O ignoto diário a enfrentar,

Ao acaso da soalheira e dos vendavais!

 

Mil obstáculos para dirimir

Em cada dia

E tantas mais responsabilidades a assumir

A bem ou à revelia,

Queira-o ou não.

 

Para a desoladora conclusão

De que nada valeu a pena,

Os eventos têm a importância

Com que cada qual lhes acena.

 

É tal a irrelevância

Com que acabam por nos aparecer,

Tempos volvidos,

Que se acaba por envergonhar quenquer

Da paixão com que foram vividos.

 

 

513 - Sujas

 

Activada por sujas mãos

De impunes e honrados cavalheiros

É a bomba que explode nos desvãos

De míseros cheiros.

E eles bebem descansadamente à ganância,

A muitas léguas de distância.

 

 

514 - Contentes

 

Contentes, poucos chegamos ao fim

Por respondido havermos

Da vida a todos os acenos.

No derradeiro confim

Levamos para a sepultura os termos

Não proferidos,

Os drenos

Que à sangria não opusemos,

Os actos requeridos

Que jamais quisemos,

Os sentimentos

Amarfanhados de cotio ante os eventos.

 

Consciência cruciante

De que mil oportunidades havidas

Foram desbaratadas a cada instante,

Com a certeza desesperante

De que tê-las aproveitado

É que, de evidência,

Encheria plenas as medidas,

A contado,

De nossa existência.

 

 

515 - Impotência

 

A impotência universal para a remediar

É a suprema revelação

Da miséria da humana condição.

Da ciência o limite liminar,

A impotência da religião,

A inutilidade da cultura,

A precariedade da afeição,

A ineficácia da finura

Da boa vontade para nos aliviar

Garantem que nascemos condenados

E nada nos pode trocar os fados.

 

Tal condenação,

Porém,

Nada prova que não seja também

A definitiva salvação.

 

 

516 - Mintam

 

Mintam quanto queiram, à vontade,

Sobre o homem que calhar,

Nunca lhe destruirão a liberdade

De pensar.

 

É o que enfuria os ditadores,

Os tiranos.

Comprem as armas de horrores

Que comprarem aos desenganos,

Montem as polícias

Que montarem às sevícias,

Torturem com os métodos e instrumentos

Com que inventarem tormentos,

Divulguem as mentiras que enredem deles nas iras,

- Embora com tudo isto junto,

Morrerão fatidicamente frustrados,

Incapazes de dominar no mais tosco bestunto

Os pensamentos libertados.

 

Jamais lograrão

Alterar esta verdade.

É a grande maldição

Que o prepotente invade

E que o faz,

Por muito que lhe desagrade,

Não morrer nunca, afinal, deveras em paz.

 

 

517 - Ninho

 

A beleza,

O modo como germina,

Ninguém num relâmpago a tem como presa,

Entre a multidão rumorosa não lhe cava a mina,

Nem entre centenas de detritos da corrente

Por entre que caminhemos apressadamente.

 

O silêncio, a calma, de tudo aquilo o alheamento

São o ninho da gestação.

E, se um pensamento,

Uma obra de arte brota repentina do chão,

São sempre o ponto culminante

Dum longo período de incubação

Vida adiante

Em que a fermentação

Foi constante.

 

 

518 - Garantir

 

Cada língua

É um acto de liberdade.

Vingo-a

Quando ela me persuade,

Entre eventos que nos consomem,

Por garantir a sobrevivência

Da essência

De cada homem.

 

Das línguas a multiplicidade

E dos renovos

A complexidade

São os únicos tesoiros guardados

Pelos povos

De tudo o mais despojados.

 

Por cada língua que morre

Morre uma possibilidade

De ser

Para uma individualidade

Qualquer

Que doravante jamais no mundo ocorre,

Aconteça o que acontecer.

 

 

519 - Fundamentalismo

 

O fundamentalismo religioso

É um desafio extremado

A um mundo que protagoniza o primado

Da Técnica e da Ciência,

Do saber orgulhoso

De experimental dependência,

Arredando o primado da pessoa

Duma forma intolerante, extremista,

Sobranceira, à toa,

E, portanto, fundamentalista.

 

O religioso fundamentalismo

Não é o primeiro:

É o sintoma derradeiro

Com que crismo

O que não passa

Duma hodierna doença

De planetária presença

E ameaça.

 

 

520 - Aceitar

 

Como posso interferir

Tanto com a Natureza,

Com a Ciência a inquirir,

Com a Técnica a moldar-lhe a inteireza,

 

E, neste deslumbramento,

Aceitar que, estando triste,

No rol

De cada momento

Ainda persiste

Uma qualquer manhã de sol?

 

A manhã é indiferente,

Como se eu nem fora gente…

 

E, no entanto, ao pé da dor que nos devora,

Somos simplesmente

Um pequeno deus que chora.

 

Ou, atabalhoada, à toa,

Uma pobre pessoa.

 

 

521 - Linguagem

 

A imaginação

Não é dum pensamento devaneio,

É a linguagem dum corpo são

A meio

Do casamento

Com o pensamento.

 

 

522 - Fraqueza

 

É fraqueza humana

Sentir falta dum objecto,

Que então todo o valor dele emana

E é de menos prescindível aspecto

Que outros quaisquer menos vãos

Que seguro nas mãos.

 

Quando o encontro, é que ele me descobre

De quanta mentira meu sentir me cobre.

 

 

523 - Convêm

 

As palavras não convêm ao sentido,

Inefavelmente secreto,

Tudo fica logo um pouco alterado,

Falsificado,

Um tudo-nada néscio, vago vagido

Inconclusivo e discreto.

 

Acolho-o, porém,

É o liço que me enlice.

O que para um é tesoiro de sabedoria,

É também,

Para outrem que o ouvisse,

Sempre uma tontaria,

Tudo tolice.

 

 

524 - Via

 

Que alegria encontrar a via de regresso!

Ninguém facilitar nos pode esta demanda,

Eu próprio dificulto o viável processo

De reencontrar a fé, temo não ver onde anda

E não reconhecer, mesmo quando passar

Junto a mim, fiel, quem a protagonizar.

 

Fico cego e arrepender-me

Por si só de nada serve.

O perdão ninguém vender-me

Irá poder do que o preserve.

 

Houve um momento em que a luz iluminou,

Em que começámos a ver e seguimos a estrela,

Mas o entendimento racional o escudo perfurou,

O escárnio do mundo deu a risada amarela,

 

O desânimo veio,

O fracasso;

De permeio,

O cansaço;

E a final consumação

É a decepção.

E eis-nos, de primeiro encegueirados,

Novamente desencaminhados.

 

Alguns procuram o resto da vida

E, não reencontrando,

Postulam que tudo foi lenda indevida,

Desencaminhando

 

Quem

Nunca deveria ter ido por aí além.

 

Inimigos impetuosos

Outros devêm,

Difamam e prejudicam os caminhos deleitosos

Que, de qualquer modo,

São da vida

O único vero engodo

À nossa medida.

 

 

525 - Metáfora

 

Quer você acredite

Que alguém viveu deveras uma vida passada,

Quer lhe palpite

Que é uma metáfora da conjuntura armada

Na vida presente,

Ou venha no ADN na corrente

Ou da cultura na jornada,

De mão a mão

Transportada

Geração a geração,

Ou conclua, afinal,

Que a vida passada é a de algum

Guia espiritual

Que no imo apoia cada um,

- O efeito curativo

Adiante,

Qualquer que seja o motivo,

É um milagre cativante.

 

Por entre os demos

Da noite escura

O que todos por igual vemos

É que uma luz fulgura.

 

 

526 - Controlar

 

Em qualquer dependência

Parte do sofrimento é a danação

De não haver alternativa senão

Satisfazê-la, na ocorrência.

 

Os desejos obcecar e controlar

Poderão o dependente.

Uma dependência ao curar,

Inadiável restitui ao presente

 

A liberdade de escolher.

É o que, normalmente,

Aumenta o respeito

Por ele próprio de quenquer

Que a cura tome a peito.

 

 

527 - Algo

 

Todos parecem requerer

Algo diferente

Para felizes virem a ser:

Dinheiro, fama, amizades,

Boa sorte permanente,

Miraculosas faculdades…

 

Os exemplos, porém, destes itinerários,

Mostram que andam pejados de falsários.

 

São as mentiras que a aranha tece,

A capturar na teia a mente

De quem as estremece

Mistificadamente contente.

 

De ilusão em ilusão,

Devagarinho,

Eternamente se desviarão

Do caminho.

 

Jamais serão felizes

Só porque nunca acertam nas matrizes.

 

 

528 - Desça

 

Importa, durante a oração,

Que o espírito desça da mente

Para o coração.

A inteligência não é competente

Para rezar.

Não é do espírito concentração

Nas palavras

Quando a orar

Te lavras:

Basta a repetição

Como uma criança,

Gaguejando,

Balbuciando,

E a fonte que fértil te alcança

Brota do coração.

 

 

529 - Crença

 

Eis a balança do abismo

Em que sempre há tergiversado

A crença de infância:

Não há religião sem fanatismo,

Nem fanatismo sem, ao lado,

Tolerância.

 

 

530 - Vestido

 

Ficas vestido ao falar,

Estar nu é não ter palavra,

Que a palavra veste o homem,

Talha-lhe o molde ao lugar.

Em nome do ancestral que a lavra

Tece a carne aos que a retomem.

 

De salvação o porto

Vem sempre do antepassado morto.

 

 

531 - Religiões

 

As religiões são ramos

De árvore única comum.

As raízes divisamos

Subterrâneas no zunzum

Que ora em prolongado viveiro

Através do mundo inteiro.

 

Todas crescerão,

Retirado o véu,

Na mesma direcção,

O céu.

 

É o destino talhado nas matrizes

De todas as raízes.

 

Depois o tronco sai da terra,

Direito e limpo.

Como quenquer que a ele se aferra,

Por ele grimpo.

 

E logo é um embondeiro de ramagens mil,

Todos no tronco lhe podem enxertar

E gravar

O respectivo perfil.

E, de todos os horizontes,

As mil rameiras

São para o comum tronco as pontes

E as fronteiras.

 

 

532 - Si-próprio

 

O si-próprio original

É uma semente

Dotada dum potencial

De maravilha omnipresente

Que a tudo a que se prende

A prazer rescende.

 

 

533 - Raia

 

Há uma forma obtusa de ignorância,

A de não ter reflectido nem ser informado,

E uma forma inspirada, noutra instância,

Quando é uma ignorância tão culta que acabe

Por entender quão pouco sabe.

É ignorância pura a dum lado,

A do outro raia o sagrado.

 

 

534 - Desenvolve

 

Quando uma comunidade perde alma,

Desenvolve neuroses,

Da paranóia que nada acalma

À xenofobia:

Do estrangeiro, do estranho, do invulgar, cada dia,

Todos breve devirão algozes.

 

 

535 - Misteriosamente

 

Esquecemo-nos e a vida entra,

Não compreendemos e ela se reforça,

A morbidez nos desconcentra,

Há uma perda querida que o coração nos torça

E, misteriosamente, na hora,

Eis que a vida envereda por uma via prometedora.

 

 

536 - Papéis

 

És, ao mesmo tempo, vítima e vilão

E ambos os papéis já representaste,

Do alvor ao serão,

De tua vida no engaste.

E, contudo, nenhum deles é real,

É tudo de tua cabeça.

Crias tua vivência decidindo qual

A parte do todo em que teu olhar tropeça.

 

E podes muito bem nem reparar

No que, no fundo, andes a procurar…

 

 

537 - Simultâneos

 

Finalmente entendes

Que não és corpo, mente ou coração,

Nem o espírito puro que apreendes,

Mas, simultâneos, aqueles todos em cada ocasião.

 

Este é o assunto

Do trilho da morte que é a vida em seu conjunto.

 

 

538 - Realização

 

A realização a qualquer nível

Apenas teve até agora

Um inimigo invencível:

O que dentro de nós mora,

O pensamento que intuí

Que o homem tem acerca de si.

 

Diminui o perigo

Então, após:

Já encontrámos o inimigo

E ele somos nós.

 

 

539 - Receias

 

Quando receias as pequenas mortes,

As mortes de qualquer derrota ou perda,

Tens por igual receio de viver.

Quer dizer que tens medo, em iguais sortes,

De viver e morrer. Que vida lerda,

Que modo de existir para quenquer!

 

 

540 - Crença

 

No momento da morte vais experienciar

Aquilo em que acreditas,

Tua visão se há-de radicar

No que crês. E é o que fitas:

Tua percepção não terá esquiva,

Alimenta-se da tua última perspectiva.

 

 

541 - Mensagem

 

Todos estamos enviando

Uma mensagem à vida

Acerca da vida, quando

A vida vivemos de seguida,

Mensagem que se vai modificando

Em vida vivida.

 

A questão não é ser mensageiro

Mas qual a mensagem

Que, useiro e vezeiro,

Ando a transmitir nesta viagem.

 

 

542 - Entregar

 

És ao mesmo tempo mensagem e mensageiro,

És criador e criação.

Mesmo ao entregares a mensagem, ligeiro,

De a entregar atravessas o inteiro

Chão.

 

De facto, de a entregar o trilho

É de a produzir o cadilho:

 

São, na verdade,

Uma única e mesma realidade.

 

 

543 - Poucos

 

Bem poucos costumam usar

Deles as intuitivas faculdades

Para neles próprios penetrar,

Contactar as afectividades,

Antes de pensarem ou dizerem

O que os sentimentos pretenderem.

 

Mesmo depois da asneira

Bem poucos o fazem,

E eis porque da vida leveira

Todos os pesos os arrasem.

 

 

544 - Sem

 

Sem Deus é impossível viver ou morrer,

Mas não é impossível pensar que é o que ocorrer.

 

Se convicto estiveres

De que morres ou vives sem Deus,

É o que vais sentir, no fim, ao te acolheres,

Sejam quais forem os céus.

 

Podes sentir desta maneira

Sempre que tal é teu desejo,

Mas podes abandonar o pendor desta ladeira,

Quando desejares permitir-te outro ensejo.

 

Isto recobre, na justa medida,

Tudo o que quenquer

Que receie morte ou vida

Precisará de saber.

 

Não podes mudar a realidade final

Mas podes mudar a vivência

Afinal

Dessa experiência.

 

 

545 - Pensamos

 

O que ocorre na vida da gente

É o que na vida da gente ocorre

Por causa do que ocorre na mente

Da gente que pela mente vive e morre.

 

O que a correr estiver

É o que pensamos que está

E o que vai acontecer

É o que pensamos que irá.

 

Em maior ou menor medida

Esta é a verdade da vida.

 

 

546 - Perspectiva

 

Que te leva a escolher

Duma ou doutra perspectiva reparar e ver?

 

Quando cruzas com alguém caído na rua,

Com a barba por fazer,

A beber uma garrafa, a pele seminua,

Que te leva, da leitura no desafio,

A escolher

Se é rebelde ou vadio?

 

Quando o aviso do patrão

Te informa de que foste despedido

Que te leva a ver desastre na ocasião

Em vez de oportunidade dum novo sentido?

 

Quando um maremoto

Afoga milhares em completa inocência,

Que te leva a ver catástrofe no feito remoto

De Deus em vez da omnipotência?

 

Tudo vem de tuas próprias ideias

Sobre o que os dados representam:

Com elas caldeias

Como em ti assentam.

 

O que implica, porém,

Que, para o ganho ou para a perca,

Tudo provém

De tuas ideias de ti próprio acerca.

 

 

547 - Corpo

 

Teu corpo não é quem és

Mas uma coisa que tens.

O tempo não passa de ti através,

Algo é do qual passas através, com teus améns,

Como, sem magias,

Através duma sala cruzarias.

 

O espaço não é espaço realmente

Como sítio onde não há nada,

Já que tal ente

Não existe do Cosmos na parada.

 

O tempo é.

Dizemos que passa mas não passa

Em direcção a nada.

Quem pelo próprio pé

Passa com uma direcção, com toda a graça,

És tu, és tu que passas do tempo através,

Que da passagem do tempo crias a ilusão,

À medida que vais passando ali resvés,

Através do único momento que é.

 

É eterno

O momento que é e, portanto,

À medida que te deslocas, subalterno,

Ao longo dele, vais tendo a impressão, o encanto,

Literalmente,

De deixar

Simplesmente

O tempo passar

A correr pelos teus pés,

Porque tu és.

 

Observas o tempo sequencialmente

Embora ele exista em todos os espaços

Simultaneamente,

Indiferente

A teus passos.

 

 

548 - Desejas

 

Desejas conhecer plenamente quem és

E depois recriar-te a ti próprio de raiz

Na próxima versão disto mesmo em que te vês

De divino matiz.

É o desejo de toda a vida:

Crescimento, evolução, sem chegada nem partida.

 

Vais querer saber

Tudo o que a saber houver

Relativamente a estares vivo,

A seres tu próprio em teu secreto arquivo,

A seres divino

Por radical destino.

 

Desta vez no céu,

No reino espiritual,

Mora a alegria,

Sem véu

O fanal

Alumia.

 

A vida no físico reino

Pode ser igualmente alegria pura.

A maioria, porém, por destreino

Nem sequer o figura.

Esqueceram, pois, não têm em mente

Quem são verdadeiramente.

 

O reino espiritual

É um tempo de maior conhecimento.

No entanto, chegará o momento

Em que tal,

Por mais que seja luminescente,

Já não é suficiente.

Teu imo vai procurar

Quanto sabe dele próprio experienciar,

 

Na nova dele ideia

Acerca dele próprio cheia.

 

Ora, isto apenas pode ocorrer fecundo

No físico mundo.

 

 

549 - Árvore

 

Olha a grande árvore à frente

De tua janela.

Agora que te cobre inteiramente

Com a sombra dela,

Não sabe mais de húmus, sol nem vento

Que quando era rebento.

 

Toda a informação de que precisou

Para se tornar no que tornou

Estava contida desde antigamente

Dela na semente.

 

Não teve de aprender,

Limitou-se a precisar de crescer.

 

Para operar,

Usou a informação arquivada,

Na memória celular

Guardada.

 

Tu não és diferente

De tal árvore ingente.

 

Antes que me chamem

Eu lhes responderei

- É o que os mundos proclamem

De Deus por lei.

 

Então para quê falar

Com quenquer que seja,

A Deus orar,

Já que já temos à partida o porvir que se almeja?

 

Toda e qualquer árvore há-de precisar

De sol e vento

Para estimular

Dela o crescimento.

 

Toda a vida é interligada,

Não há qualquer pendor

Do Todo, do indivíduo ou da jornada

Que actue sem se interpor,

Que actue independente

De qualquer outro agente.

 

A vida cria, teimosa e fugitiva,

Continuamente de forma interactiva.

 

É mutuamente que produzimos, atarefados,

Quaisquer resultados.

 

Não há, nem hoje, nem no porvir,

Outra maneira de os produzir.

 

A tua conversa com os mais,

A informação que te chega do exterior,

São raios de sol nos trigais

A germinar ao calor

As sementes aí

Enterradas dentro de ti.

 

Há muito no mundo exterior

Que te pode encaminhar,

Fundo e devagar,

Para tua verdade interior.

 

Porém, indivíduos, lugares, objectos, eventos

São meras chamadas de atenção,

Os fermentos

São do coração.

 

No rumo para o ninho,

Aqueles serão sinais num caminho.

 

É para que serve o penhor

Do mundo exterior.

 

O mundo físico é para te proporcionar

Ao que vislumbras e sentes intimamente

O contexto onde o venhas concretizar

Exteriormente.

 

 

550 - Sentidos

 

É no mínimo suspeito

Qualquer dado

Que não pode ser verificado

Pelos sentidos, à prova sujeito.

Visão parcial, exclusivista,

Da vital experiência percorrida,

Esta perspectiva materialista

Permite-nos apenas meia vida.

 

Toda a interioridade

Que sou eu

Não existe para ela de verdade,

Morreu.

 

Bom ou mau,

É indiferente,

Não passo dum qualquer calhau

Do real perdido na corrente.

 

 

551 - Era

 

A era do iluminismo

É a da maior crueldade,

Mais fria, distante no abismo

Da guerra, injustiça, ferocidade.

Deus não logra atravessar as rijezas

Da peneira de nossas certezas.

 

 

552 - Plano

 

Um plano de mudança consciente

É do mesmo imaginário que nos criou problemas

Que provém usualmente.

Pode, pois, lançar-nos novamente,

Dele com os lemas,

 

Para o desconfortável buraco

Que, sem hesitar,

Por mor do mau impacto,

Acabámos de deixar.

 

Qualquer saída

É mais que mudar de agulha na curva pretendida.

 

 

553 - Fidedigno

 

O artista que dialoga com a musa

É o teólogo maior,

E o teólogo que pensa, fala e não recusa

Escrever poeticamente

Vem propor

O mais fidedigno fermento,

Certamente,

De religioso conhecimento.

 

 

554 - Convincente

 

Para o filósofo musical,

A beleza é mais convincente que a verdade,

O movimento, mais central,

Na estrutura da vida, que a perenidade,

A canção,

Mais expressiva que a sentença

Do silogismo,

A comoção

Provocada pela presença

É bem mais que o abismo,

Onde à flor de água não me aguento,

Do seu entendimento.

 

 

555 - Moldamos

 

Sem conhecer a natureza,

Quem somos não podemos saber

Nem que fazer.

A natureza molda-nos com fereza

Quanto nós a moldamos a ela.

Deste mútuo compromisso

Na competitiva escada, parcela a parcela,

Da realização de ambos se ata o liço.

 

 

556 - Protectoras

 

Nossas pequenas e protectoras intenções

No domínio da espiritualidade,

Quantas vezes mera epidérmica sentimentalidade,

A pó serão reduzidas em quaisquer ocasiões.

 

Podemos arrancar-nos a pele,

Dilacerar-nos as entranhas,

À medida que nos atropele

A natureza terrível das sanhas

Do que inocentemente me inclino

A designar por angélico e divino.

 

 

557 - Satisfeitos

 

A comprar e a possuir

Nunca satisfeitos findaremos.

E o vazio que se imiscuir

Após o esforço que empenhemos,

 

Tão intenso, para deter algo

Indicia

Que, apesar dos degraus que galgo

Para a oca de comprar fantasia,

Nunca chegarei deveras a dispor,

Ao fim e ao cabo, seja do que for.

 

A prova final de que nada possuo

É que no fim tudo aí fica:

Da morte o recuo

A tudo se aplica.

 

 

558 - Discípulos

 

Discípulos sérios e dedicados

Interrogam a natureza do Universo

E seus traçados.

Jesus ri-se de cada irmão converso

 

Com tais perguntas pretensiosas

E prega a ignorância sagrada,

Perante o Belo, de nossas prosas,

E a inefabilidade divina, sempre além selada.

 

 

559 - Provisórios

 

Provisórios sempre e fatalmente

São nossos conceitos sobre a natureza do real,

Motivo pelo qual

Mais bem servidos eventualmente

Poderão ser, afinal,

Por uma poética sensibilidade

Que perscrute a realidade.

 

Da vida o sentido em vista,

Religioso, eterno,

Pode ser menos externo,

Menos racionalista

E, nos mais fundos impactos,

Menos dependente dos factos.

 

É sempre o imaginário

Que da vida nos paga o melhor salário.

 

 

560 - Perda

 

A perda do sentimento de ser

É o efeito mais grave

Da vida quantificada, racionalizada

De quenquer,

Por bens de consumo transformada,

Industrializada,

Que produzimos sem entrave,

Diligentemente,

Na era presente.

 

Quando outrem olha para nós

Só vê o que capta.

Nosso rosto original sob pós e mais pós,

Coberto por camadas de estatística e biografia,

Nada se lhe adapta

E bem precisa seria

Uma arqueologia

Do si-próprio para descobrir,

Em tais vertigens,

No porvir,

As nossas origens.

 

 

561 - Prometeica

 

É prometeica a nossa era,

Subjaz a nosso esforço

Para explorar da vida a totalidade,

Mais que a mera

Ânsia de ir além de todo o escorço,

- O desejo de imortalidade,

Vergados os dados enfermos,

E o de tudo sabermos.

 

O fogo dos deuses que roubámos

Lucila na luminosidade

Dos ecrãs de computador,

No fulgor

Da televisão que sintonizamos,

 

Ofusca-nos no brilho

Dum foguetão, do voo no rastilho,

 

Ou duma bomba nuclear

A explodir no ar…

Consideramo-nos evoluídos,

Mas cuidado, Prometeu humano,

Da vida com os sentidos

E o recorrente

Engano

E o consequente

Dano

Que dali nos persegue eternamente!

 

 

562 - Imaginar

 

Podemos imaginar nossa relação

Com o divino,

Como os místicos da tradição,

Recorrendo ao imaginário clandestino

Do amor e da sexualidade,

Ou, inversamente,

Utilizar a linguagem da religião

Para traduzir nossa sensualidade,

Do prazer nossa vivência congruente.

 

São convergentes e reversíveis

Nossos mais profundos níveis.

 

 

563 - Intersectando

 

Intersectando movimento e estagnação,

A vida devém interessante

E digna de ser vivida.

A mudança enobrece a tradição

E o respeito pelos ancestrais garante

Solidez à vitalidade promovida

E ao movimento

Que invento.

 

As águas dum ribeiro

Correm sem parar,

Embora ele seja o mesmo, sempre ali inteiro,

A par

O estático perante

A corrente incessante.

 

 

564 - Incapaz

 

Incapaz de reconhecer a flébil alma profunda

Que de mim próprio contém o meu sentido,

Nos lugares errados é que a busca dela abunda,

Incorrectamente a imaginamos e temos lido.

O mim-próprio não é fabricado

Por esperteza, formação,

Por feitos ou por educação,

Não é produto acabado

De auto-análise ou compreensão.

 

É uma dádiva, de raiz um dom

À espera de ser aceite

E cujo deleite

É de quem o acarinhar

Dele no espontâneo desabrochar.

 

 

565 - Requisitos

 

A razão é distante e requisitos contém

Limitados a uma vida ordeira.

As artes são íntimas, o que convém

Às conjunturas melindrosas de que se abeira,

Por excelência,

A humana existência.

 

 

566 - Algo

 

Algo em nós não quer civilizar-se,

Unir-se íntimo demais à clara luz

Nem a humanos feitos onde a disfarce,

Medicina, ideias, artes, tudo o que tal traduz.

 

Algo não pretende qualquer união,

Tenta desesperado preservar

A individualidade do coração,

A integridade de meu ser larvar.

 

Algo quer ser inexpressivo,

Silencioso, impenetrável,

Já não vivo

Nem vulnerável.

 

Quer retornar à natureza muda,

Já não amado nem desejado,

Como a beleza em que se escuda

Qualquer árvore, mero fado,

 

Puramente involuntária nas funções,

Destituída de intenções.

 

E então a pedra?

Uma fundura em nós dela nos medra.

 

 

567 - Descobrirmos

 

Para nos descobrirmos no presente

De viver no presente teremos de abdicar,

Porque estar presente, é dado assente,

Não é o mesmo que verificar presente estar.

 

Seja como for,

Eis o que o real virá

Impor:

- O que é nunca será!

 

 

568 - Significado

 

Outrora

Buscava um significado para tudo.

Agora

Vive apenas com o que é, conformado e mudo.

 

O problema de que não dá fé

É que, afinal, o que é não é.

 

 

569 - Lamentável

 

Da vida a desordem complicada,

Lamentável sob qualquer ponto de vista,

É o que é, uma realidade dada,

Tal como as ansiedades, as recordações

Que arrolo à lista,

As antecipações…

 

Tudo existe de pé

No presente precioso

E tudo constitui o que é,

Dele no tecido misterioso.

 

 

570 - Divertem-nos

 

Divertem-nos os contos policiais

Porque clarificam nosso próprio mistério,

Iluminando dos crimes fundamentais

O império:

A transgressão ousada e que nos gratifica

Que o mero facto de viver implica.

 

Somos todos filhos de Adão,

Do crime o arquetípico guião.

 

Já todos vivemos no Paraíso

E já todos o perdemos

Por um crime que cometemos

E que, em nossa falta de siso,

Já esquecemos.

 

Continuamos a tentar desvelar

O mistério, descobrir o criminoso disfarçado,

Mas não deixamos de procurar

No sítio errado.

 

 

571 - Sujeitam-nos

 

Não se limitam nossos humores

A brotar e se evolar.

Germinam e sujeitam-nos, senhores,

A uma alquimia particular

Que nos transmuda, lento e lento,

À profundidade ajudando e ao desenvolvimento.

 

Pode ser deles a presença

Momentaneamente dolorosa

Mas sempre têm uma vertente criativa

Cuja sentença

Gozosa

Imprime em nós uma marca positiva.

 

 

572 - Saudáveis

 

Quão maus saudáveis nos sentimos

Menos reflexivos nos tornamos,

Mas o senso do real diluímos

E em nossa humanidade recuamos.

 

Quando reparo em meu passado,

Distingo um cortejo de erros e derrotas.

Recordá-lo é minha chaga do lado,

Espero não ter de averbar deles mais quotas.

 

Também logro, todavia, ver

Como os fracassos ajudam a moldar-me

E à minha vida, qual hoje pode ser.

Prazeres recentes são o carme

 

Modelado em dor passada

E os momentos criativos e felizes

De minha vida arroteada

Todos deitaram raízes

 

Nos pestilentos humores

De fracassos anteriores.

 

 

573 - Simplicidade

 

Descobrimos da simplicidade a magia

Vivendo em contacto com o mundo natural,

Em sintonia

Com as peculiaridades do ciclo anual.

 

Vivemos num lugar real

Que é nosso, nos impele,

Somos parte dele.

 

O exótico desvio enriquece

(Um restaurante italiano,

Uma asiática mercearia que apetece,

Um estendal de roupas africano…)

 

Mas exige uma base na vida

Marcada por nossa paisagem,

Nossos animais, aves, verdura consabida,

Nossas árvores e plantas

Em redor de nossas antas,

Que a tudo isto é que os corações reagem.

 

 

574 - Ignore

 

Embora ignore a vida interior

Ou a vida simbólica da poesia

Dos actos e dos eventos

Que marchetam de calor

A romaria

Dos ventos

De cada dia,

O mundo interior não desaparece,

Ganha força com a negligência,

Vai influir dos gestos na messe

Com ignota persistência.

 

Mal familiarizados

Com tal modo de agir,

Ignoramos, alheados,

Como sempre ele anda a progredir.

 

E, em lugar de lhe corresponder,

Perdemos a vida,

Do imo a nos proteger

Numa aposta perdida.

 

 

575 - Teia

 

Tem o imo uma teia de regras

Que iguais não são às da vida.

O itinerário que integras,

Constante, na história erguida,

 

É o invés do evento de alma

Que é cíclico, repetitivo,

Nem por cumpri-lo se acalma

Nem jamais dorme em arquivo:

 

O tema familiar

Há-de sempre retornar,

 

O passado importa mais

Que o futuro aonde vais,

 

Vivos e mortos desempenham

Iguais papéis, quando advenham.

 

As emoções e a sensação

De significado são,

 

Qualquer que seja a relevância,

De extrema importância.

 

Os prazeres são intensos

E a dor, com frequência,

Pode atingir os caboucos densos

De nossa existência.

 

Na dor e na alegria

É o que me germina cada dia.

 

 

576 - Irrompe

 

Hoje em dia, muitos vivem

Apenas para o exterior

E, quando o mundo interior

Irrompe e se agita,

Sem esquivas que o esquivem,

Pedirão ajuda em grita

Ao terapeuta, à mão perita.

 

Tentam explicar

Os míticos desenvolvimentos

Fundos do íntimo mar

Na língua da experiência e comportamentos.

 

Nenhuma ideia terão

Do que lhes vem ocorrendo,

Tão longe moram então

Do imo fundo por que andam vivendo.

 

A fiel alma é-lhes tão estranha,

Vivem num mundo tão compacto

Que ninguém consciência ganha

Do que ocorre fora do reino sabido do facto.

 

 

577 - Memória

 

A memória mantém tudo unido

No indivíduo e na comunidade.

Quando nos esquecemos

De quem temos sido,

Perdemos

O pleno sentido

De quem somos na realidade.

 

Os que se afastaram da frágil alma

Ou que na dor se pretendem defender

Duma experiência que os jamais acalma

Hão-de muitas vezes tender

A apagar recordações.

 

Afastam-se do palco real da dor,

Destroem construções

Ligadas a tragédias

Ou, num individual estertor,

Ocupam as horas intermédias

O mais que podem, para a memória

Não lhes penetrar as consciências,

Não cantarem vitória

As reminiscências.

 

A memória é poderosa,

Tem sobre nós efeitos,

Faz de nós, operosa,

O que somos e a que somos atreitos.

 

Cava-nos profundidade,

Liga o passado ao presente,

A superar a disjunção que nos invade

Duma vida cujo sinal

Em demasia é real.

 

Centra a atenção no imaginário dos eventos,

Em lugar de em eventos à letra.

A memória é feita de elementos

Que a magia

Impetra:

- A memória também é poesia.

 

 

578 - Tecer

 

A incapacidade de tecer na vida

Fantasias autónomas, emoções apaixonantes,

Dá sinais gritantes

De alma dividida.

 

Ideal não é tornar-nos sadios

Mas viver de forma criativa,

Reagir com brios

Ao que nos cativa,

Ao humor, sentimentos e ideias

De que as horas andem cheias.

 

Se não respondermos desta forma

De alma a tais expressões

Que moldam a vida, lhe entalham a norma,

Rápido elas desenvolvem tufões,

 

Tornadas nossas inimigas,

E nós desenvolveremos, por entre as brigas,

 

A psique dividida,

De nossa época comum teor de vida:

 

Uma vida sã mas sem finalidade, entediante,

E paixões incompreensíveis descontroladas adiante.

 

 

579 - Espírito

 

Muitos de nós o espírito procuram

Um pouco por todo o lado.

Mesmo os mais peritos em espírito descuram

E obliteram que ele vive instalado

De nós bem mais perto

Que nós de nós mesmos, decerto.

 

Basta uma fina membrana

De pragmatismo e literalismo

E logo nosso olhar se engana,

Enquanto cismo

Em tais poeiras e pós,

E o espírito se oculta de nós.

 

Não lhe vemos o clarão

Da névoa devido à interposição.

 

Uma momentânea preocupação

Com o mundo real onde me erijo

A flébil alma empurra para um esconderijo,

Dando a ilusão

Enganadoramente evidente

Para quem o real aliste,

De que ela não está presente

Ou até de que nem existe.

 

 

580 - Despertar

 

A fiel alma do mundo para ver

E, neste itinerário,

Para despertar a nossa própria, a de quenquer,

Teremos de superar a confusão

Que nos traz a convicção

Do preconceito primário

De que o facto é real

E o imaginário

É, de modo fatal,

Uma ilusão.

 

É rigorosamente o contrário:

O facto é que é ilusão,

Que é parte duma história,

Repleto de imaginação,

Prenhe de memória.

A imaginação é real

Porque do mundo cada percepção

É colorida pela narrativa ancestral

Ou pela lente de imagens cheia

Através da qual

Se nos encadeia.

 

Todos somos poetas e artistas

Em nosso dia-a-dia,

Reconheçamo-nos ou não deles nas pistas

E nas listas,

Creiamos ou não destas na magia.

 

 

581 - Invés

 

Algo em nós pretende

Aventurar-se, explorar,

E tende

A descobrir, reinventar.

E, ao invés, algo pretende usufruir

Do que já foi adquirido,

E então tende a ir

Proteger, conservar, quedar-se em sentido.

 

Na melhor conjuntura

Ambos os pendores influirão,

Exploramos a planura,

Do despenhadeiro a altura

E retornamos a casa, ao pátrio torrão.

 

Descobrimos

E conservamos,

Reinventamos,

Miramos os cimos

E acaso nada mudamos.

 

Raro a vida, porém,

É tão equilibrada como convém.

 

Ao invés,

Ou na aventura desgovernada

Fincamos os pés

Ou na ordem implantada.

 

 

582 - Lago

 

Alma, o lago subterrâneo profundo

Onde todos os dias sobem à tona

Desejos, ideias, devaneios de que me inundo,

A ofertar novas rotas a quem dele se adona.

 

Da matéria que no lago pode ser descoberta

Se os sonhos nos fornecem um alerta,

 

Então a matéria da vida transcende em todo o lado

O que consideramos apropriado,

 

O que se enquadra em nossos planos

Ou se adequa à vida ordenada pelos anos,

 

Ou o que quenquer

Pretenda viver.

 

Estar vivo é enfrentar

O princípio da morte

Que governa sem parar,

Aos baldões

Da sorte,

Nossos juízos e acções.

Queremos ordem e decoro

Mas a borbulhante vitalidade

Que borbota do fundo do lago onde moro,

Estoira a costura

De todas as noções

De normalidade

E compostura.

 

 

583 - Mito

 

O mito é a narrativa

Sugestiva

 

Em que nos descobrimos

Quando conscientes devimos

 

De que a vida, mais que por memórias,

É moldada por histórias.

 

O mito em acção

A determinado momento

Pode provir da família, como frumento,

E de correntes de imaginação,

Poderosas mas ocultas,

Cuja força e estrutura

Insepultas

Se farão sentir na cultura.

 

Nossa humanidade basilar

Também explica o estrato e o fito

Mais profundo do mito

Que vivemos em todo o lugar.

 

Vogamos sempre num mito

Mas as narrativas culturais

Variam a gesta e o delito

Dum lugar aos outros mais

E, mesmo na mesma cultura,

Transformam-se do tempo pela usura.

 

 

584 - Maior

 

Das religiões o maior mistério

É o da incarnação,

O divino, espiritual, assumindo a sério

A forma humana, terrena condição.

 

Quantas heresias

Marcaram as eras e os dias

 

No pesponto

Deste ponto!

 

É mui difícil apreciar

Como o absolutamente espiritual

Se revela no absolutamente vulgar,

Material.

 

Nossa tendência natural

É procurar

A espiritualidade na atmosfera rarefeita

Da abstracção especulativa

E não na vida concreta, estreita,

Que nos cerca, objectiva.

 

Contudo, foi sempre aqui

Que, inesperada, a descobri.

 

 

585 - Acredite

 

Aquele que acredite honestamente

Nas próprias convicções

Pode ser um perigo veemente

Para as multidões,

Porque a falta de humor assinala

Um defeito basilar.

 

O riso do sábio é uma antessala

Da sabedoria que o moldar

E a sabedoria

É a confiança profunda de cada momento

Que se alia

Ao conhecimento.

 

Há risos cínicos e cruéis

E outro tipo de riso, todavia,

Que exprime as posturas fiéis

De quem confia,

Em toda a medida,

Simplesmente na vida.

 

 

586 - Ter

 

Que é requerido

Para ter e possuir deveras?

É tornar algo tão querido

Que não suportamos esperas

Nem separar-nos logramos

Dele, se com ele estamos.

 

É semos incapazes de vê-lo

Negligenciado,

Em atropelo,

E mal usado.

 

É não crer que alguém

Possa ser-nos garante

De gostar daquilo também

O bastante.

 

Ora, assim sendo, em seus tramos,

Nosso materialismo jucundo

É sinal de que não gostamos

Do mundo.

 

 

587 - Modos

 

Há modos de conhecer

Que não levam a entender.

 

Um filme, um teatro, um romance

Não temos de compreender

Para os apreciarmos.

Do conhecimento bem ao alcance

Podemos ter quem amarmos

E, à medida que os anos correm, serenos,

Compreendermo-lo cada vez menos.

 

Todavia, pode ser pleno nosso empenhamento

No drama do casamento.

 

Podemos conhecer o nosso cão

E nada entender, com certeza,

Das vivências que o motivarão

Nem da sua natureza.

 

Podemos compreender o mundo cada vez menos

E que somos parte dele sentirmos plenos.

 

Estarmos próximos de nós

É um modo de conhecimento

Que não requer, antes nem após,

Da compreensão o complemento.

 

Podemos conhecer as imagens

Que povoam nossos sonhos

E como mudam nas triagens

De períodos alegres a medonhos

E não ter delas, entrementes,

Qualquer significado em nossas mentes.

 

Quanto a nosso imo,

Quanto mais envolvidos estivermos

Mais estimo

Que menos ocorre dele sabermos.

 

 

588 - Parte

 

Quando apenas parte do potencial

De nós vivemos,

Nossa vida é incompleta.

Não é que tudo, afinal,

De viver teremos,

Mas que quão mais possibilidades despoleta

Em nós o imaginário,

Mais rico da vida o itinerário.

 

Defendermo-nos do estranho

É um modo de nos distanciarmos

De nossas potencialidades.

Diminuir as relações é perda, não ganho,

Maneira de nos amputarmos

Das vertentes que nos levam a outras idades.

 

O estrangeiro mais estimulante

É a própria vida, a fiel alma,

Rosto e fonte de vitalidade germinante.

De mostrar-nos a vida não pára nem nos acalma

Com novas possibilidades

E talvez tal abundância

É o que a tremer nos traz em ânsia.

 

Contentarmo-nos com o que temos e somos

Parece mais seguro

E da ordem implantada agarramo-nos aos pomos

E fico podre de maduro.

 

Não há, porém, limite conveniente,

Quando recuso um dom da vida

Fico calejado emocionalmente,

O hábito de actuar por medo instala-se em seguida,

Cada vez mais rigidamente.

 

Desta sorte,

Ao recusar a vida, escravizamo-nos à morte.

 

 

589 - Conduz-nos

 

A fiel alma conduz-nos à inconsciência

E fá-lo por nosso bem.

Quando nos apaixonamos, não há evidência,

Quando somos absorvidos pelo trabalho, também,

Quando nos domina uma depressão furtiva,

Perdemos o controlo e a perspectiva.

 

A frágil alma toma o poder

E, a partir dum recanto sombrio,

Dirige como quer

Do quotidiano o fio.

 

Ignoramos, em rigor, o que andamos a fazer

Ou se fazê-lo deveríamos.

Neste nevoeiro ao permanecer,

Podemos ir dar

A um lugar

Que queríamos

E que ao longo da vida procurámos,

Do par certo em companhia,

Num bom emprego que nunca alcançámos,

Em nós com outra confiança

Numa indefinível aliança.

 

Manha e consciência de si

Preza a nossa cultura

Mas deveria ser óbvio, logo ali,

Que esta abordagem apenas assegura

Competição e agressão desaustinadas,

Pela ansiedade aguilhoadas.

Viver do intelecto é de incerteza oscilar

Na corda bamba, a mal se equilibrar.

 

É mais sólida a radical alma,

Dela o território de tufão e calma

Cumpre o protocolo

Algures sob o solo.

É ctónica, preza

A profundeza

Onde as sementes enterramos

E os mortos que amamos.

 

É o bom terreno

Para o desenvolvimento pessoal,

E não aquele carregado de intenções,

Cercado e pequeno,

A partir do qual

Podemos vislumbrar,

Inchados de pretensões,

O que se estiver a passar.

 

É sempre no invisível

Que se situa meu verdadeiro nível.

 

 

590 - Natal

 

No Natal celebramos o nascimento

Do Deus menino,

Ou a infância da divindade,

Ou a divindade da infância,

Ou o aparecimento

Clandestino

Da luz e da vida - da verdade,

Dentre as trevas e pousio do Inverno - a ignorância,

Ou apenas, na prosa que a desdoira,

Uma criança numa manjedoira…

 

É um mistério que veneramos,

Um mistério cujo traslado,

Na teia dos ramos,

Não pode ser nem contido nem explicado.

 

 

591 - Crêem

 

Historiadores, cientistas e outros que tais

Ainda crêem que deles os conceitos

Dos factos a experiência sujeitos

São mais factuais

Que ficcionais.

 

No entanto, as revisões encadeadas

Que vão revolucionando estes conhecimentos

Evidenciam que, aos níveis mais fundamentais

E em todas as leiras lavradas,

Estendemos aos ventos,

Em gesto sumário,

E vivemos nas fiadas

Duma grandiosa teia de imaginário.

 

 

592 - Súbditos

 

Se os súbditos tomarem decisões inteligentes

E a eles próprios se educarem,

Poderá o líder, entrementes,

Proporcionar a concentração, orientação e estrutura

Que faltarem

Ao projecto que se inaugura.

Quando outorgam, todavia,

Ao líder poder em demasia,

Vítimas em breve se tornarão

E os líderes, algozes

De apontado ferrão,

Ferozes.

 

Todo o que erigir

Enérgica e definitiva estrutura externa

Vai sucumbir

Diante das formas institucionais

E a regra substituirá, superna,

Da sabedoria os gestos vitais.

 

 

593 - Espírito

 

O espírito é o factor

Mais criativo,

Inspirador,

De sentido vivo

Propiciador,

De quanto aliste

Que na vida existe.

 

É, porém,

O mais perigoso também.

 

Quando o espírito nos visita,

Impele-nos para a acção,

Para o comprometimento,

Nossa ambição

Incita

Ao prosseguimento

De objectivos e ideais,

Fomenta nosso altruísmo e visão

Gerais.

Destes todo e qualquer elemento

A qualquer alma serve de alimento

Embora, quando o confira,

Note que também a fira.

 

Deles as ladeiras contrárias

São por igual importantes

Para as almas tumultuárias:

A espera, a dúvida, a reclusão asfixiantes,

O não-sair, o não-saber, o não-ver,

O virar-se para si, sem mesmo qualquer querer…

 

Quando o espírito não se enraíza em alma

Nem por ela for orientado,

Rapidamente assume a palma

Da interpretação literal em seu traslado:

E é de terceiros a brutal conversão

E a cega, insensível ambição…

 

A imensa força dele

Transmuda-se em violência,

Embora de tal sem consciência,

E o altruísmo falso impele

À interferência

Com que invades

Doutrem as liberdades.

 

Dele a criatividade

Reveste a forma de produtividade

Sem limites

E a busca de perfeição,

Nos seus palpites,

Devém fementida convicção

Da ciosa posse exclusiva da verdade.

 

E apenas à destruição

Então nos persuade.

 

 

594 - Pingos

 

A vida nem sempre corre

Como planeamos,

Em pingos de chuva escorre

E perde-se por entre os ramos.

 

Não é, todavia, um senão

Ao que convém.

Embora o não entenda, é o que é bom,

O que o Universo me confirma que está bem.

 

 

595 - Propriedade

 

A propriedade de imóveis que tens,

De roupas, carros, jóias, móveis de estilo,

Longe de proporcionar felicidade,

Convertem um homem num escravo dos bens.

Antes de algo comprar, como perfilo

O que me invade?

 

Todas as coisas requerem atenção,

Com o tempo convertem-se em tiranas

Que exigem cuidados de prisão:

Dos ladrões protegê-las das ganas,

Mantê-las em bom estado,

Usá-las com contenção

E cuidado…

 

Ter é depender:

Quem tão pouco livre é que tolere as garras,

Quem vai querer

Comprar amarras?

 

 

596 - Fiada

 

O tempo não é linear fiada de tijolos

Do primeiro soluço ao último suspiro,

Reduzido a letra morta entre os dois pólos.

 

É fluir espontâneo que confiro,

Tão natural como o ar que respiro.

 

E é uma memória,

Vislumbre confuso de dobras e espirais,

De um dia ter mais glória

Por importar mais,

De este evento reflectir aquele,

De uns tantos se destacarem,

Por excepcionais

No que os impele…

E todos a desalinharem,

Em desvario singular,

Dum tempo rectilíneo linear.

 

E somos este estranho vento

A desgovernar

Cada momento.

 

 

597 - Somos

 

Mudos e cegos somos. Contudo, a par,

Temos de ver e de falar.

 

Não a cara nem o nariz cheio,

Não a mão nem o músculo liso,

Não a garganta, o pulmão,

Nem, no meio,

O coração

Que viso:

Estes poderiam ser vistos e tocados

Se com o bisturi procurados

Na mesa de dissecação.

 

É, ao invés, a escuridão inominável,

Invisível, imperscrutável,

Que aqui nos mora no centro,

Sempre desperta, sempre diferente

Do que creio quando nela me adentro,

Sempre a pensar e a sentir, independente,

O que nunca se pode saber que pensa e sente,

Que espera compreender toda a vida

Desesperadamente

E ser compreendida.

 

Nossa solidão

Não é a do recluso, náufrago ou prisioneiro,

É a desta escuridão

Que apenas vê por reflexão,

Do efeito vasculhando o esconso mistério pioneiro,

Que sente por comando remoto

E apenas escuta termos

Provindos de inabitados ermos,

De ouvido estranhamente fino e boto.

 

Nossa paixão é comunicar o que quero

E é o nosso desespero.

 

 

598 - Carga

 

Transporto comigo uma carga de memórias,

O homem não é instantâneo,

Corpo físico em reacção de momento,

São histórias

Evocadas em simultâneo

Dos quadrantes de todo o vento.

 

É um incrível acervo de recordações,

De variegadas

Sensações,

De fósseis às camadas,

De seminais

Intérminas excrescências de corais.

 

Não sou um homem que já foi miúdo,

Mas o que recorda o miúdo que foi.

Difere o tempo em fiada de contas que grudo

E o tempo que tudo retoma, espiral que remói.

Posso amar o miúdo que fui,

Pois eu não sou ele,

Ele é outra pessoa que aqui já não intui,

Mas marca a ferro o lado de dentro de minha pele.

 

Aquele já morreu

Mas arrasto-lhe o cadáver no meu eu.

 

 

599 - Reforma

 

Temida

Ou sacralizada,

A reforma vivida

É bem pouco igual à reforma sonhada.

A mudança de vida

Raro se desenrola à medida

Do que foi quando imaginada.

Como tudo em qualquer jornada

Percorrida

Alguma vez da vida na estrada.

 

 

600 - Ritual

 

O ritual é uma ajuda,

O tempo a delimitar:

A muda

Está prestes a se desencadear.

 

E a grelha de partida

Faz parte da confrontação,

O primeiro período em que é erigida

A mutação.

 

O ritual, uma cancela,

É o símbolo dela.

 

 

601 - Projecto

 

Não há projecto a implementar

Quando a resignação

Toma o lugar

Da aceitação.

 

A rotina é o único fruto

Da resignação sem remédio

E as pevides de tal produto

São o tédio.

 

 

602 - Recolheremos

 

Repudiada a moral moralista

A mil léguas da reflexão,

Recolheremos das pegadas na pista

O que semeámos de antemão.

 

E os que ignoram o que semearam,

Sabê-lo-ão,

A ilusão desfeita,

No momento em que aparam

A colheita.

 

 

603 - Zangas

 

Como de pequenos riachos

Se engordam os grandes rios,

As pequenas zangas, em cachos,

Transmudam-se em enormes desafios

E a vida, antes afável,

Devém insuportável.

 

 

604 - Descoberta

 

Os caminhos da descoberta pessoal

Mostram que gastamos nossa energia

A fugir da vida como é tal e qual,

Por troca da que seria.

 

Preferimos olhá-la

Através de nossos óculos, sem reparar

Que tais óculos são, à nossa escala,

Nossos limites a aflorar,

Do caminho à borda da vala.

 

 

605 - Trágicos

 

Muitos eventos da vida

Menos difíceis eram de gerir

E menos trágicos, se a conjuntura vivida

O fora de modo não definitivo no porvir.

 

O que inquieta mais o homem

É o carácter de irreversibilidade

Dos eventos que o consomem

Idade a idade.

 

Quando cuidamos

Que é para sempre o que vivemos,

Criamos

A tensão interior de que murcharemos.

 

 

606 - Pergunta

 

A pergunta posta pela reforma

A quem nela entrar

É a de qualquer muda de vida, em norma:

Sabes mudar?

 

Somos um povo refractário à mudança,

Pouco dotado para a transformação.

Damos a impressão

De andar visceralmente atados à trança

De nossos hábitos, da repetitividade,

E não somos conhecidos

Por nossa mobilidade.

 

Perdidos os sentidos,

Qualquer reforma, afinal,

Em breve devirá letal.

 

Em vez de vida nova e de festa

Devém lixo que não presta.