SEXTO  TROVÁRIO

      

 

                                    AQUI  VIVIFICADO, O  AMOR

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 607 e 678, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

                                             607 - Aqui vivificado, o amor

 

                                             Aqui vivificado, o amor,

                                             Na tropelia do verso irregular,

                                             Captura o estupor

                                             Do calor

                                             Que nos surpreenda, ao caminhar.

 

                                             O poema rima,

                                             No metro inesperado,

                                             O que nos encima

                                             E o poético termo fatalmente inadequado.

 

                                             Sinto a arder as profundezas,

                                             Das palavras jogo-lhes os gravetos

                                             E as chamas nunca aos versos ficam presas.

 

                                             Mas insisto em acolhê-las em meus tectos,

                                             Já que mais sou quão mais for em meus afectos.

 

 


608 - Esperança

 

A esperança que não tenho muitas vezes

Os milagres que, mesmo fingida,

Faz no meio dos reveses!

 

Não há crédulo maior

Que um desesperado da vida.

 

Mentir-lhe, radical,

Iludi-lo com vigor,

É quase um dever moral.

 

Que solidariedade mais pedra angular

Se lhe pode prestar?

 

 

609 - Expectativas

 

Para teu casamento

Não cultives expectativas ilusórias.

Só porque o barco baloiça não é tempo

De saltar borda fora,

Acorrentado a trágicas histórias

E memórias.

 

Todas as relações mudam na demora

Dos dias e dos anos:

Nem sempre ela gera danos.

Alguns dos melhores eventos

Que, após os desenganos,

Ocorrem nos casamentos

São as mudanças.

 

A quantas te arrimas!

É a trilha de amadurecimentos

Rumo à meta que nunca alcanças

E, contudo, aproximas.

 

 

610 - Falte

 

Embora ele nunca falte aos religiosos ritos,

Faltam-lhe as graças divinas

Que nela, tão atreita a negligenciar os mitos,

Superabundam, atentas e finas:

Amor, doçura,

Clemência, a firmeza da brandura…

 

Para ele, religião

São regras e leis.

Para ela, não:

É a música da vida com todos os decibéis.

 

 

611 - Topo

 

Minhas obras, meu gesto,

Estarão no topo um tempo mais,

Até que um próximo grande apresto

Me relegue para segundo plano.

Marido e pai e outros caracteres que tais,

Porém, a vida inteira duram, de ano em ano.

 

Se troco deles o papel

Por um lugar temporário na trama

Da dança das cadeiras da fama,

O papel de fantasia em que me enrolo

Arranca-me a pele,

Sou um tolo.

 

 

612 - Qualidade

 

A qualidade de nossos relacionamentos

Com familiares e amigos,

De Deus abrigos,

É a medida,

Em todos os momentos,

Da vida.

 

Ao amor

Não é um ou outro dos eventos

A ameaça maior,

Não:

É a ausência de atenção.

 

Outrem não negligencio

Por deixar de amá-lo,

Deixo de o amar pelo intervalo

Em que lhe perco o fio:

Não há mais fruta nos ramos

Porque nos negligenciamos.

 

Bem entendido,

Cada dia é um milagre imerecido.

 

A vida, efémera, se esfuma;

O amor, não, nem há nada que o resuma.

 

Daquilo que o não é o que é importante

Aprende a discriminar a cada instante.

 

Então, de seguida,

Não perdes, inútil, a vida.

 

 

613 - Íntimo

 

De ninguém ninguém sabe nada,

Do íntimo, deveras,

Todos uns aos outros nos mentimos

Em cada palavra dada.

 

Só dos bichos e dos mortos as esferas

Atingem da verdade os cimos

Da estrada:

São o antes e o após as esperas

Humanas da jornada.

 

 

614 - Congregar

 

É mais fácil ódios concitar

Que congregar amizades.

Voz ao coração não desistas de dar,

Porém,

Correndo embora risco de inverdades,

De ser mal compreendido mais além,

Por parte daqueles com quem,

Desperto,

Só sabes comungar

De coração aberto.

 

Não desistas

De atar teu fio nas tramas

Do manto com que revistas

Aqueles que amas.

 

 

615 - Incurável

 

Mais clara ou mais nebulosamente

Vemos

Que nascemos sozinhos,

Sozinhos vivemos

E morremos sozinhos,

Fatalmente.

Mesmo nos chilreios mais alegres dos ninhos,

No mais fundo inconsciente,

Lateja, cruciante, no coração

Dos passarinhos

A incurável dor de tal condenação.

 

Não há, porém, homem sem homem:

Há o cireneu que nos aligeire a cruz.

Na radical solidão,

Ante as dores que nos consomem,

Um lenitivo traduz

A força que, não vergando o destino,

Inconformada eternamente o desafia:

O amor fraternal, toque divino

Que nos alivia.

 

 

616 - Inquieto

 

Não tenho, não dou nem quero paz,

Vivo inquieto a desinquietar

Tudo e todos, à frente e atrás,

Que logre alcançar.

 

E o pior

Que me trama o destino que tramo

É que quem firo com mais rigor

É quem mais amo.

 

 

617 - Deixar-vos

 

Ao deixar-vos, uma ambição

Levarei daqui:

De que em vida não

Vos desiludi.

 

De que a graça merecerei

De continuarmos juntos fraternamente,

Anhos da mesma grei,

Para além de qualquer idade,

Eternamente,

Violando de vez nossa física precariedade.

 

 

618 - Repartir

 

Repartir bens equitativo

É do lar que for carente:

Para todos o mesmo caldo esquivo,

Igual broa paciente.

 

A justiça social

Aguarda a hora adiada.

Há-de ser obra do alicerce, do fundamental,

Dos que a fartura enfartada

Não perverteu ainda.

 

Se muito brilha

A abundância advinda

Que tantos engrola

Não partilha,

Quando muito esmola.

 

 

619 - Importante

 

De nossa vida

A mais importante medida

 

Não é o reconhecimento público que a alcança

Mas a herança

 

Que para trás deixamos:

As pessoas que tocámos

 

E com que extremos

O fizemos.

 

Rumo a que plenitude

Fizemos que tudo mude.

 

 

620 - Chegar

 

Tentei chegar à criança

Com palavras.

E a palavra não a alcança,

Ninguém nos ouve em tais lavras.

 

À criança tentei chegar

Com livros e dar-lhe amplexos

E ei-la apenas a lançar

Olhares perplexos.

 

Desesperado, gritei:

"Como é que lhe abro o postigo?"

Meu ouvido lhe aprestei

E ela diz: "Brinca comigo!"

 

 

621 - Flui

 

Da energia feliz a medida

Que flui para o exterior

É a vivência assumida

Do amor.

 

Um amor que se tornou

Emoção de fundo,

Que contigo perene ficou,

Fecundo.

 

Então tua energia,

Numa atitude de oração,

Para o mundo fluiria

Em cachão.

 

Terás de manter-te, em rigor,

Num estado de amor,

 

Para a medida de teu fito

Visar o Infinito.

 

 

622 - Pendor

 

Há um pendor contagioso

Na mente humana.

O nosso maior gozo

Emana

De partilharmos, de algum modo,

Uma mente única, um todo.

 

Sobre nós temos controlo,

Podemo-nos recuar, distanciar,

Ler diversamente da vida cada rolo,

Diferentemente pensar.

Mas do mundo a visão dominante

É a do campo gigantesco que houver diante.

 

A chave de progredir

É haver bastantes pessoas

Que logram misturar, neste campo a gerir,

Promessas boas,

Uma expectativa maior

De amor.

 

É o que permite elevar

Nossa energia interior,

Patamar a patamar,

Rumo ao potencial maior

Que a humana condição

Nos permita desde agora neste chão.

 

 

623 - Rápido

 

Quem rápido demais

Transpôs da adolescência para a parentalidade

As fantasias sexuais,

Quando desperta no real,

Descobre que a sexualidade,

O perto apressando, colocou, afinal,

Num instante de temporais,

O amor longe demais.

 

 

624 - Pecam

 

Pais que maltratam

Não são os que pecam com remorsos.

São os que magoam, desacatam

Corpo e alma de crianças,

Cujos torsos,

Desmembrados por dentro e por fora,

É o que apenas alcanças,

Não demora:

 

São os que ficam indiferentes a rir

Ao fim de tudo destruir.

 

 

625 - Receie

 

Há muito quem receie desenhar

Um rumo ao que deseja.

A vida é barco sem leme a navegar

Por falta de quem, por si olhando, farol seja

E, ao mesmo tempo, horizonte,

Tornando o sonho navegável,

Erguendo a ponte

Até um novo mundo finalmente abordável

De inéditos ensejos

Para todos os desejos.

 

 

626 - Separação

 

Duma separação interpessoal toda a ironia

Provém de como alguém de quem me afasto,

Cada dia,

No rasto,

Se torna, subitamente

E de facto, mais presente,

 

No que leva a recordar,

Na comparação que obriga

A fazer com quem eu lidar,

A que a freima me interliga,

Na parecença até que identifico

Nos filhos que se vão de donde eu fico.

 

A separação não existe realmente:

O mundo inteiro é um perene meu presente.

 

 

627 - Grupo

 

É bom encontrar

Um grupo de amigos,

Coadjuvá-los a celebrar,

A orar,

Convidá-los a unir-se a nós,

Ofertar abrigos,

Escutar feitos e planos

Deles, dos pais, dos avós,

Abençoá-los à despedida

Sem contabilizar danos

Nem enganos

E saber que, à ida,

Percorrem deles o caminho

Como nós o nosso,

Num destino solidário sozinho

Onde, ao envelhecer, eu como eles me remoço.

 

Cada um deles tem o seu próprio sonho,

Desejo,

Aposta secreta no coração.

Contudo, ao horizonte que me proponho

Todos nos encaminhamos, em cada ensejo,

Juntos da corrente no infindo turbilhão.

 

Uns aos outros pertencemos,

No imo partilhando a mesma reverência,

A mesma fé por que vivemos,

Igual voto

Em nome da íntima vivência

Em que, tal como eles, eu me adopto.

 

 

628 - Doença

 

A uma paixão

Que fazer

Para a arrancar

Do coração?

É duma doença sofrer

Que se não pode curar.

Só o tempo a vai ter à mão,

Mas devagar, devagar, bem devagar…

 

 

629 - Anos

 

A desilusão

Dum amor sonhado

Durante anos e anos!

Uma vez revelado,

É inconsistente,

Pejado

De desenganos

E traição,

Quando comparado

Com as pedras angulares

Que dão

À vida um sentido e um chão

- Os afectos familiares.

 

 

630 - Sentimento

 

Por vezes, num casamento

Há um evento

 

Em que o sentimento muda.

Seja o que for que se nos gruda,

 

Nunca mais sentimos o mesmo.

Quando nisto me ensimesmo,

 

Verifico que pode ocasionar

A tragédia de o amor acabar.

 

 

631 - Felicidade

 

A felicidade provém

De saber que nossa vida

Alguma importância tem

E que há quem

Melhor se sente e à vida revida

Após

Devido a nós.

 

O amor é uma cadeia:

Prende na teia

 

Mas, firme nos elos encadeados, liberta

A vida por fim desperta.

 

 

632 - Parceiro

 

Ter o parceiro certo

É deveras importante,

Mas feliz não pode tornar-nos, decerto,

A todo o instante.

 

Há muito quem o cônjuge ame

Mas a quem apenas isso,

Por mais venturas que acame,

Da felicidade não acende o chamiço.

 

 

633 - Outrem

 

Crer que outrem me pode fazer feliz

É para connosco uma grave injustiça,

É crer que alguém

O controlo de raiz

Detém

De nossas emoções na liça.

 

Quem as almas conhece

Sabe que não é verdade:

De dentro de nós vem e acontece

O sentimento de felicidade,

Não de qualquer, por mais singular,

Outro lugar.

 

Apenas eu sou o instrumento

De aferir e alimentar meu sentimento.

 

 

634 - Separações

 

As separações farão sempre sofrer,

Cavam o vazio dentro de nós.

Só damos conta dos benefícios que houver

Com o tempo, após.

 

Benefícios do sofrimento…

Primeiro sentimos tristeza,

Depois, uma manhã, após o vento,

A calmaria que o coração preza.

 

Primeiro perdemos o apetite,

Não vemos árvores nem flores,

Até ao dia em que, sem porquê nem palpite,

Acordamos novos, com inversos humores.

 

Olhamos em redor e vemos então

Que a vida continua e o chão nos junca.

E, transposta a provação,

Estamos mais fortes que nunca.

 

 

635 - Dois

 

Quando deixam de se interpor

O eu e o tu

Entre as pessoas?

- No momento do amor,

Quando dois se amam sem tabu,

Tanto que apregoas

Que nalgum misterioso sentido, nalgum,

São apenas um.

 

 

636 - Erro

 

Aprender com um erro a viver

É a tragédia em bênção transmudar,

É a humanidade inteira confortar,

Já que todos acabamos por cometer

Erros na vida

E todos somos humanos,

Mas também capazes sem medida

De dar e receber amor sem causar danos.

 

E todos o faremos, afinal,

Se oportunidade tivermos para tal.

 

 

637 - Acolhe

 

Estás neste momento rodeado

De centenas, milhares de anjos e anjos.

Acolhe o que te indicam. E, alumiado,

Retransmite depois o eco dos banjos,

Estes ensinamentos aos demais.

 

Porque vai ser ao dar que tu recebes,

E ao curar que és curado e em névoa não te esvais.

Do milagre a esperar, não te apercebes

Que à tua espera está, desde o Infinito.

 

Que assim é saberás, se te transformas

No milagre que quer dum outro o grito

E que ele aguarda para além de quaisquer normas.

 

Doutrem no abraço

É que transpões o tempo e o espaço.

 

 

638 - Magníficas

 

Cada cultura tem as próprias tradições

Magníficas e singulares

Que honram uma verdade maravilhosa e radical,

A libertar-nos dos grilhões:

 

Mais relevante que nossos desejos particulares

Algo acima de nós há fundamental

Que vale mais, em profundidade,

Que nossa necessidade.

 

A própria vida é um patamar

Bem mais significativo e profundo

Do que todo o mundo

Acaba por imaginar.

 

É no amor, na mútua preocupação,

Na criatividade e no divertimento,

No perdão,

Ao darmos as mãos no argumento

Do esforço colectivo

Para alcançar de todos um objectivo,

Que serão encontradas

Sem colaterais danos

As satisfações mais gradas,

Os mais magníficos encontros humanos.

 

Aí, visceral,

Ultrapassa

Cada qual

O mesquinho metro que o traça.

 

 

639 - Colectivamente

 

Todas as almas interagem

E criam colectivamente

Em todos os momentos do presente.

Todas deste modo reagem:

Há sempre qualquer coisa, qualquer,

De inter-relacionado a ocorrer.

 

Esta inter-relação é que produz, incontida,

A surpreendente tapeçaria da vida.

 

Cada fio por seu caminho,

Mas não à própria conta:

Seria menosprezar o apurado alinho

Como o grande quadro é criado ponta na ponta.

 

É a vida e não é

Uma experiência singular:

Ambos os vectores de pé,

A par.

 

É a experiência da Singularidade

Que a Si própria se conhece a Si mesma,

Através da experiência da resma

Das individuações, em cada individualidade.

 

Apenas há um único conjunto de objectivos,

Servidos por experiências distintas diferentes,

Admiravelmente coordenadas entre os vivos,

Entre as gentes.

 

De objectivos este único conjunto

Serve para a Divindade

Se exprimir e experienciar de verdade,

Com todo o esplendor dela ali junto,

 

E para Ela própria se recriar e definir,

De novo e sem demora,

Em cada momento do devir

Do doirado, eterno Agora.

 

A maneira como se exprime,

Como a Ela própria se experiencia,

Como a Ela própria se define,

Depende de ti: é a escolha de teu dia.

 

É a decisão que tomas e trespassa

Cada dia que passa,

 

É a escolha

Que teu dia-a-dia recolha,

 

A escolha de cada momento

Que corre e se esvai no vento.

 

Estás a operá-lo individual e colectivamente:

Todo o acto presente

 

É, na fundura do coração,

De autodefinição.

 

Quando te unes ao núcleo de teu ser

És lembrado destas realidades.

Aqui rejuvenescido

Hás-de ser,

Reintegrado, reunido

A todas as tuas potencialidades,

Caso tenhas os objectivos esquecido,

Caso tua memória tenhas perdido

E acaso, talvez,

O teu sentido

De quem realmente és.

 

E se, ao invés,

Tens uma consciência clara,

A experiência plena e rara

De tudo isto em teu imo assumido,

Então o que vai ocorrer

É que no núcleo de teu ser

Serás restabelecido.

 

 

640 - Dádiva

 

O mero acto de revelar

Minha natureza mais profunda

É uma forma de me libertar

E uma dádiva generosa e fecunda

Que invade,

Discreta, a comunidade.

 

 

641 - Voto

 

Por um voto de castidade

Todos podemos optar

E gozar,

Não obstante,

Duma sexualidade

Plena e vibrante.

 

A beleza de partilhar

Uma vida sexual apenas com uma pessoa

É avivada dizendo aos outros não,

Demais não dando ao desejo atenção,

Sublimando-o pelo imaginário que em fascínio

Voa,

Sem repressão,

Descobrindo que do mundo o escrínio

É nele mesmo, do belo em fruição radical,

Um parceiro sexual.

 

 

642 - Abordam

 

Muitos abordam o amor perguntado

Quando

 

Irão encontrar quem os grude

Ao próprio crescimento e plenitude.

 

Em alternativa, é dar atenção

À vida própria, desenvolver talentos,

Enriquecer a cultura com exultação,

Devir alguém interessante a todos os momentos.

 

Ou, em rumo convergente,

Atender a uma comunidade carente.

 

Duma vida a feitura cuidada

É uma forma positiva que a todos agrada

 

De se preparar em autenticidade

Para a intimidade.

 

 

643 - Jardim

 

Para muitos o jardim é o Paraíso

Onde encontram a obra preciosa

Que os invade

De eternidade,

Quando o juízo

Do belo ali se goza

Em total gratuitidade.

 

Ali parou o tempo, indeciso,

E uma freima qualquer

Volta a ser prazer.

 

Nosso lar

Pode além sempre apontar

O lar eterno

Onde fruímos de paz e tranquilidade

Em cada trejeito terno,

Em cada gesto que nos grade.

 

Olhar por uma janela

Não é jamais apenas ver

O que há lá fora, na paisagem bela,

Em perene alvorecer.

 

É também um ritual

Em que, a partir do quadro conjuntural

 

Presente,

Olhamos em frente

 

Para um Universo que, na essência,

Contém os segredos de nossa existência.

 

 

644 - História

 

A história no interior da história familiar

De esclarecimentos é repleta,

Novas possibilidades a gerar,

Discreta.

 

Podemos necessitar

De coragem

Para mais um nível descer,

Trocar a claridade da miragem,

Ainda que ilusória em quenquer,

Pela confusão e perplexidade

Dos abismos da profundidade.

 

Nossas histórias habituais

Proteger-nos usam do mistério

De nossas vidas reais.

Caem-lhe então sob o império,

Fatais.

 

Temos, porém, a oportunidade

De nossa história aprofundar,

De descobrir,

Num muito inferior patamar

Ao de nossas expectativas,

O entendimento e conforto a haurir,

A cura

De que ando, em gestas lesivas,

Canhestramente à procura.

 

 

645 - Trocado

 

O pai devém problema apenas

Quando o espírito dele fundo e subtil

Trocado é por terrenas

Máscaras mil,

Quando, em vez de mentor,

Devém impostor.

 

O paternalismo

É a versão desviada e corrupta

Do real, íntimo abismo

De que quenquer desfruta.

 

Convém aniquilá-lo

Mas sem perder este pai omnipotente

Cujo halo

De pedra angular radical

Terá de andar presente

Ao expulsarmos o impostor imperial.

 

 

646 - Semeia

 

A procriatividade

Semeia, auguro,

Para além da criatividade,

Um futuro,

Proporcionando, com esperança,

Confiança.

 

Apoia e ensina

A próxima geração que vier

Sem a nocturna sina

De a temer.

 

 

647 - Debilito

 

Debilito a nobreza da paternidade

O imperialismo ao confundir,

Nos negócios, no governo, na familiaridade,

Com a genuína liderança paternal

De servir,

Incondicional.

 

Errados nos queixamos do patriarcado,

Em vez do paternalismo

E da frouxidão de autoridade.

 

Patriarcado é o pai originário,

O mito alçado,

O pai primitivo com que cismo,

Celestial entidade,

De Deus tributário.

 

Destas profundezas abismais

Impregna tudo o que é criado

Com as possibilidades seminais

Que dele são o inadiável fado.

 

 

648 - Louco

 

O louco pelo ciúme

Absoluto controlo e posse requer,

Poder jamais assume

Abdicar de qualquer poder.

 

Como o absoluto nos está fora de alcance,

Eis porque inevitável no inferno nos lance.

 

 

649 - Ciúme

 

O ciúme é alimentado

Por masoquismo poderoso e encegueirante

Em que um ofendido se compraz, entusiasmado,

Na própria vitimização ultrajante.

 

Cada nova ofensa ou suspeita

Profunda satisfação

Provoca, atreita

Fatalmente do próprio à negação.

 

Procura provas o masoquista

Que lhe infligirão

Mais dor em cada pista

E deleita-se com descobertas infindáveis

Cada vez mais execráveis.

 

O ciúme evidencia,

No doentio negror,

Do sofrimento a alegria

E o atractivo da dor.

 

 

650 - Familiarização

 

Todos os dias nos é pedida

Maior familiarização com a vida.

 

É uma forma de viver intensamente

E também, coerente,

 

Uma maneira que conforte

De nos prepararmos para a morte,

 

Porque a morte é o enfrentamento decidido

Do derradeiro desconhecido.

 

Não é obrigatoriamente mórbida ideia,

Pois só vivemos deveras uma vida cheia

 

Se autorizarmos a morte insana

A desempenhar um papel na vida quotidiana.

 

Quando nos abrimos a outrem ou à comunidade

Morremos um pouco para a verdade

 

Que se nos viera a tornar

Detrás familiar.

 

Estas pequenas mortes, em contrapartida,

Abrem trilhos para uma nova vida.

 

 

651 - Odisseia

 

Cada um de nós é um caminheiro

Dele na odisseia particular.

Em nosso itinerário pioneiro

Todos somos vulneráveis, a precisar

Da hospitalidade dos mais,

De ter da compreensão deles sinais.

 

Convém, porém, ter um coração desperto

Para com os outros nos identificarmos,

De nossas carências por meio do postigo aberto

E das experiências que protagonizarmos.

 

 

652 - Algo

 

Sabe o outro algo que ignoro

Acerca do lugar

Onde quero estar.

Se apenas a mim me adoro,

A mim próprio somente me ouvindo,

Ficarei condenado

Em círculos a andar,

Minhas pegadas perseguindo

Na maldição de meu fado.

 

Se outrem não falar comigo

Do que vislumbra e suspeita

Não saberei que rumo sigo

Nem o que quero seguir na viela estreita.

 

Se amigos e vizinhos não escutar,

Preso no labirinto irei ficar

 

Do que julgo querer

E nunca o irei saber.

 

Obediência é comunhão,

Mas, se em comunidade eu não viver,

Torna-se uma escravidão

Para quenquer.

 

E a porta de saída

Já por ninguém é atingida.

 

 

653 - Cama

 

Na cama abandonamos

O plano das práticas actividades

E nos mundos do sonho penetramos

Onde copulamos com amor, caídas as grades,

E, ao fazê-lo,

Procuramos,

No fogo prometido além do gelo,

A quem amamos

E que, na cabra-cega do azar,

Nunca logramos encontrar.

 

A cama é um oratório

Onde nos deitamos

Em vez de ajoelhar,

Local premonitório

De física oração,

Pelo desejo inspirado,

Pelo prazer sustentado,

Sementeira de estrelas pelo chão:

Nenhum altar

É tão sagrado.

 

 

654 - Sexo

 

O sexo jamais é um acto

Físico puramente.

É sempre numinoso, num recanto a recato,

Mesmo quando não é perfeito

Ou de sombra é pejado nocturnamente.

Na violação a que vive atreito,

A gentil alma é brutalmente

Maltratada

E não o corpo apenas.

A violação, os maus tratos sexuais

Sacrilégio são na paisagem sagrada,

Porque o corpo, nas alegrias e nas penas,

De alma são manifestações reais,

É um templo onde divino e humano

Se entrelaçam de mil formas,

Mano a mano,

Em tudo quanto conformas.

 

Os maus tratos sexuais

São sinais

 

De que nos andamos a esforçar

Por expulsar

 

O divino

De nosso desejo mais fino.

 

E assim o acabamos a anular

Em nosso destino.

 

 

655 - Divino

 

O divino deve ser procurado

Na cama, à noite.

A sexualidade une, no agrado,

Os indivíduos que acoite

E torna a vida meia

Mais radical e mais cheia.

 

E é também o caminho

Para o desejo-limite que concito,

O amor abismal jamais correspondido,

O eterno que adivinho,

O infinito

Jamais por meus braços abrangido.

 

 

 

Esta abertura entalhada pelo desejo,

O vazio em nossa plenitude,

É abertura à divindade, onde a entrevejo,

E apenas aí, onde lhe alude,

Nosso desejo, de modo credível,

É para o reino encaminhado do possível.

 

 

656 - Moldar

 

Moldar uma vida mais em sintonia

Com a nossa natureza,

Permanecer firmes na represa

Donde borbotaria

Nossa originalidade e excentricidade.

 

A intensa confiança em nós tem um custo:

Amigos e conhecidos sentirão

A fricção

Da individualidade

Quando me ajusto,

Se pretenderem apoiar a adaptação

À inconsciência

Que é a normalidade,

Por excelência.

 

Um cônjuge pode sentir-se ameaçado,

A não ser que o lar assente

Radicalmente

No amor mútuo quando é dedicado,

Sem tabu nenhum,

Ao pulsar do imo de cada um.

 

E tal é o padrão

Que os passos da vida em tudo seguirão.

 

 

657 - Conferem

 

Conferem as artes imaginação

À vida espiritual,

Para regra e dogmas lhe amenizando a propensão,

Aprofundando-lhe a intuição

Abismal.

 

Todos os lares são mosteiros

Onde podemos encontrar, pioneiros,

Solidão,

Beleza,

Comunhão,

A natureza,

Oração

E, para cada trilho em movimento,

O alimento.

 

O espírito aí pode encontrar

Dele o frumento

E o corpo, a par,

Por entre os afazeres,

A plenitude, a cada momento,

Pelas artes e pelos prazeres.

 

 

658 - Sentiste

 

Se já sentiste um temor reverencial

Ante um espectáculo da natureza

Ou no interior duma catedral,

Se intuíste a atmosfera electrizante

Que embeleza

O instante

E o lugar mais sagrado,

Estás familiarizado

Com o numinoso.

 

Pela nave gótica ao caminhares,

Saboroso,

Podes ter-te sentido esmagado

Pelo efeito combinado

De vertentes singulares,

O espaço vertical,

A cor, a imagem sacral,

O som e a esquiva esfera

Duma atmosfera.

 

O amplexo do sagrado

Reconheces

E apercebes-te de tal

Santidade

No meio do prado

Dos sentidos que enobreces,

Não do intelecto que esqueces,

Reduzido na paisagem a mera nulidade.

 

No que tem de melhor,

A religião

É o esplendor

Duma física sensação.

 

O sexo também é numinoso:

Físico obviamente,

É, menos óbvio embora,

Um gozo

Elevadamente

Espiritual

Que doira, inesperado e vital,

Qualquer hora.

 

De poder esmagador,

Supera qualquer tentativa

De entendimento ou controle.

O amor

Eternamente se esquiva

Enquanto com tudo bole.

 

Muito própria implica uma transcendência

Que obriga a nos excedermos,

De comum uma evidência

Com a religião que tivermos.

 

Quantas vezes é difícil traçar

Entre o sexual

E o espiritual

A fronteira que os delimitar!

 

 

659 - Filtro

 

O trabalho é oração,

A leitura, contemplação,

A ordens obedecer

É de Deus a palavra

Escutar e entender,

A comunidade é uma lavra

Que antecipa aqui, conciso,

O Paraíso,

Meio tempo é determinado

Por ritual,

Um meio celibato interiorizado

É um pré-requisito positivo

Para um serviço mundial

Deveras prestativo…

 

Qualquer pormenor

Da vida, por mais trivial,

Deverá ser imaginado

Através dum filtro sagrado.

 

A secularização

Da sensibilidade moderna

É de tal modo inconsciente

Que nos hiberna

E pode parecer estranha aberração

Ter em mente

Semelhante sacralização

Da vida meiga e atroz

Em todos nós.

 

Desprovidos, todavia,

Dum imaginário

Do sagrado

Na maresia

Do atarefado

Curso diário,

Cada qual é condenado

A perder a calma

Vivendo uma vida sem alma.

Ambos, falsos defuntos,

A frágil alma e o sagrado,

Caminham juntos.

 

Podemos aprender a instilar

O espírito de encanto

No lar

Onde governa

A bruxa do pranto:

A deste desencanto

Da vida moderna.

 

 

660 - Sorte

 

- Onde estamos? - perguntou ele.

Respondeu ela: - Não sei…

Que sorte que eles têm, pensei,

Por um ao outro se terem

Quando conferem

Que o vazio os atropele!

 

Ao tombarem no nada

Encontram a estrada

Um do outro na pele.

 

 

661 - Une

 

O que une casais unidos

É nunca desistir,

Nunca baixar os braços,

Força para construir

Um sonho juntos, fundidos

Até confundirem os traços.

 

Para uns será uma casa,

Para outros, uma empresa,

Um hotel à beira-mar que o sol abrasa,

Um barco que algum dia ao cais se apresa…

 

Vivendo hoje em dia

O porvir com bonomia,

 

Equipas de alta competição,

Projectam bem-estar a ter à mão

 

Em mais ou menos ambiciosos planos

Em que o futuro alimenta o presente

E este aquele, anos e anos,

E assim nem sequer dão pela corrente.

 

 

662 - Acima

 

Além de colocarem a carreira

Acima das carências da família,

Do lar a estabilidade emparceira

Como dado adquirido sem vigília.

 

Ora, o amor vive de acção,

Da dedicação colocada

Em cada prestação

Um ao outro ofertada,

Na monotonia

Assim quebrada

Do dia-a-dia.

 

Sem isto,

Em breve é um extirpado

Quisto

Na lixeira abandonado

E nem sequer sei que existo.

 

 

663 - Chave

 

Logrei a chave reencontrar

Da vitória que tivera

Ao cortejá-la ao sol e ao luar,

Há tanto tempo, noutra era.

 

Embora continuando a ser

O mesmo que no ano anterior,

Um ajustamento fiz qualquer,

Pequeno mas decisivo nas leiras do amor.

 

Naquela semana pensei nela,

Dediquei-me deveras a ajudá-la

Nas familiares freimas que andem a prendê-la,

Escuto-a atento quando fala,

 

Rio-me das graças,

Conforto-a quando chora,

Demonstro-lhe o afecto que requer, dela nas traças,

E que merece aqui e agora.

 

Sou o homem que ela sempre desejou,

O mesmo que fui outrora,

E, sendo afinal apenas o que sou,

Já o Paraíso desfrutamos, sem demora,

Um do outro na companhia

Branda e saborosa do dia-a-dia.

 

 

664 - Demais

 

Tu e os filhos são para mim

O mais importante

E eu perdi tempo demais a agir em meu confim

Como se tal não fora, instante a instante.

 

Não posso mudar o passado,

Mas o futuro

E mudá-lo-ei em todo o lado,

Juro!

 

Mudando a prioridade,

Mudo a folha

Para uma nova idade

Que nos resta

E que nos acolha

Em festa.

 

 

665 - Difícil

 

É fácil ferir

Quem amamos.

Mais difícil é curar, a seguir,

As feridas, quando as tratamos.

 

É viável, entretanto,

Um casal voltar-se a apaixonar

Mesmo após vida comum que, de amor em lugar,

Foi repleta de frustrações e de pranto.

 

 

É só mudar de agulha

Para um roteiro como o de outrora

Em que acendiam do amor a faúlha

A cada hora.

 

 

666 - Cuidar

 

A cuidar da terra fomos os primeiros braços

Depois que Deus a criou.

Somos quem, de inócuos pedaços,

Cozinha a comida que o mundo sempre alimentou.

 

Somos quem cuida dos homens meninos,

Jovens, adultos e velhos,

Até às portas da morte cumprirem os destinos,

Parados deles os artelhos.

 

Estamos a tudo presentes, não há seres

Que no mundo vivam sós.

- Mas somos apenas mulheres

E ninguém dá por nós…

 

 

667 - Caminham

 

A palavra e o desejo

Caminham de mãos dadas,

Impelidos, a cada ensejo,

Pelo intuito de atar laçadas,

De abraçar, comunicar,

De entre uns e outros criar pontes,

Sem importar

Que sejam escritas ou faladas

As palavras e os desejos que rasgam tais horizontes.

 

 

668 - Transmitir

 

Uma qualidade

Das palavras mais comovente

É delas a capacidade

De transmitir amor, feitas semente.

 

As palavras são água,

Condutoras maravilhosas de energia,

Frágua a frágua

A iluminar cada dia.

 

E a palavra que de poder maior

Goza,

Do mais transformador,

É a palavra amorosa,

- A mensagem de amor.

 

 

669 - Benefício

 

Depois do amor, a confiança

É o benefício da vida a dois

Que pleno se alcança

Depois.

 

Para pôr as almas a nu,

Para expor

O corpo ao companheiro

Sem tabu

Nem pudor,

Antes convidativo e fagueiro,

Para se entregar com desenvoltura,

Para se abrir,

Para se abandonar, de alma segura,

Noutros braços,

Cujos abraços

Não dão receio de ferir.

 

A confiança de poder

Anotar ao marido, à mulher:

 

"Tens um bocado que não sentes

De feijão nos dentes."

 

Caminham o amor e a confiança

De mãos dadas em etérea dança.

 

Apenas a confiança permite

Que a energia amorosa flua

E à aproximação concite

Os humanos que caminham pela rua.

 

Já não há confiança entre dois entes

Quando um opuser resistência

A contactos pessoais insistentes,

Quando a falta de apetência

Para a carícia, o beijo,

É evidente, a falta de vontade,

Dos dias no brejo,

Para a proximidade.

 

 

Aí, o amor fanado

Deixa o letal dedo marcado.

 

É o fim que se aproxima,

Não a confiança que o encima.

 

 

670 - Escaqueirar

 

Pouco a pouco podem os prédios ir caindo,

Dos anos pela fadiga,

Ou, duma bomba explodindo,

Se escaqueirar num instante de intriga.

 

Bairros e cidades

Pouco a pouco se transformam

Ou nos segundos se deformam

Dum terramoto que os mergulha no Hades.

 

Como alguém pode ir decaindo lentamente

Ou eclipsar-se-lhe o crânio

Num tiro inclemente,

Instantâneo.

 

Em nosso mundo interior,

A imagem que temos de alguém

Pode ir crescendo, do tempo ao calor,

Ou num instante desmoronar-se também.

 

Nossa própria imagem

Com palavras de ânimo pode fortalecer-se

Ou destruir-se, por mal intencionada linguagem

Que nos fere e corta cerce.

 

Doutros humanos a proximidade

Pode tornar-nos melhores

Ou demolir para sempre a herdade

De nossa auto-estima, feita campo de horrores.

 

Às vezes basta ao que nos trava

Apenas uma palavra.

 

Uma só e acaba a segurança da existência

Adquirida em anos de suor e persistência.

 

 

671 - Amar

 

Amar é um verbo, quer agir,

Demonstramos o amor por actos.

E quem é amado, a seguir,

Só se sente amado por factos,

 

Quando outrem lhe manifesta

O amor com beijos, abraços,

Carícias, quando se apresta

A mil generosos traços.

 

Quem ama sempre procura

Bem-estar emocional

E físico que assegura

A quem ame, radical.

 

Uma mãe não ama o filho

Se o não alimenta, não trata,

Se o não cobre, do luar ao brilho,

Se os meios lhe não acata

De crescer, tornar-se gente

E devir independente.

 

Não ama dele a mulher

O que, em vez de garantir

Despesas que o lar tiver,

Só bebedeiras curtir.

 

Quando ele cuida primeiro

Do lar, sem se lhe antepor,

Revela, cimeiro,

Um acto de amor.

 

E, quando é reconhecido,

Fica o coração em festa:

A seu par há permitido

Ser feliz por esta fresta.

 

Assim é que o verbo amar

Sempre de duas maneiras

Se poderá conjugar:

Por bens ou por mãos faceiras.

 

Dar alimento, vestir,

Dar tecto, prover estudos,

É um acto de amor gerir,

Amor dado por miúdos.

 

Tanto gostamos de alguém

Quando o beijamos

Como quando os sapatos lhe compramos

De que precisar também.

 

Em tal ensejo

Os sapatos

Cumprem a função do beijo,

Sensatos.

 

Mas nunca são um substituto:

Sem amor pelo meio,

Qualquer material produto

É forma de coacção,

De corrupção,

De muitos anseio

Para em troca, de negros humores,

Obterem doutrem favores.

 

Nem só de pão vive o homem,

Também não vive só de amor.

Só ambos conjugados consomem

Do fogo infinito o fulgor.

 

Cada um de nós é o inocente ladrão

Que lhe busca infatigável o clarão.

 

 

672 - Inviável

 

É inviável franquear um recanto

Em nosso coração a toda a gente,

Abrirmos a cada qual

O encanto

Da porta giratória, presente

A todos por igual,

Por onde entrem e saiam como lhes apetece,

Sem que tal

Nos estremecesse.

 

Se alguém se fechar, todavia,

Para não ser incomodado,

É um urso no covil durante a invernia,

Um espelho embrulhado

Num pano de flanela.

Menos provável é nós partirmos

Mas também nunca brilhamos, na sequela.

 

Ora, é urgente brilharmos, para atingirmos,

Como queremos nas ânsias dos palpites,

Os nossos limites.

 

 

673 - Ódio

 

Com ódio nada constróis

Nem com ideias forretas.

Para a planta florir aos ventos e sóis

Tens de cuidar nela de todas as facetas

E tens de lhe propor

Um pouco de teu amor.

 

 

674 - Apreciadas

 

No mundo as informações

Do fazer e parecer

Mais apreciadas serão que as visões

Do ser,

Deixadas estas à lateral

Relação confidencial.

 

É o que a todos nos distorce o rosto

Quando noutrem aposto.

 

 

675 - Espectáculo

 

No coração de quem amar

Mora o amor

Como o espectáculo, no olhar

Do espectador.

 

Apreciar outrem é admitir, então,

Descobri-lo em cada ocasião.

 

Quando ao menos um dos dois isto fizer,

Lograrão os dois crescer.

 

 

676 - Armadilha

 

Vive com teu par em conjunto

Sem um do outro depender

Porque um dia tal assunto

É uma armadilha a te prender.

 

É amar

Sem um no outro se perder,

Na mesma direcção olhar

Mas continuar diferente,

Nos rumos vários

Cada qual independente

Mas ambos solidários.

 

 

677 - Aranhas

 

Aranhas que tecem as teias,

O fio que emaranhamos

É o poder de encontrar outrem e de o apreciar,

Nossa aptidão para, às mancheias,

Amar e partilhar,

Sem cuidar sequer que recebamos.

 

 

678 - Reforma

 

A idade da reforma ensina

Aos que o outro amam que ele é diferente,

Que aceitar esta diferença inclina

A torná-lo ponto forte da vida que se implemente.

É a grande via

Rumo à maturidade e sabedoria.