SÉTIMO  TROVÁRIO

 

 

                 DE  NOVO   TREPA  AO  SONHO,  À  INFINIDADE

 

 

                     

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 679 e 769, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                             679 - De novo trepa ao sonho, à Infinidade

 

                                             De novo trepa ao sonho, à Infinidade,

                                             O poema com o metro irregular,

                                             Rimando dele a pobre mendicidade

                                             Com a opacidade

                                             Do que o sonho promete e não quer dar.

 

                                             Nas palavras em síncope perdidas

                                             O encontro naquele desencontro busco,

                                             Do cotio pelas lidas,

                                             Meu eterno lusco-fusco.

 

                                             O poema entreabre o véu

                                             Donde vislumbro

                                             O céu.

 

                                             E, enquanto na palavra a noite alumbro,

                                             Do alvor que em mim desponta me deslumbro.

 

 


680 - Encontrares

 

Que ocorrerá

Se encontrares o que procuras?

Despojado não ficará,

Sem metas seguras,

O dia que ali chegar?

 

Que farás, após conquistado

O derradeiro lugar?

Uma vez saciado,

De toda a alegria na vida

Não findarás privado,

De todo o motivo de viver,

Em seguida?

 

Cuida nisto, pequeno ser,

Até compreenderes porque é que o Universo

Se expande e se contrai

Do infinito das eras ao infinito,

Sem jamais repetir o mesmo verso,

Porque é que os espaços ermos arroteando vai,

Aguilhoando e serenando a par teu peito aflito.

 

 

681 - Admiro

 

Admiro para trás

A tapeçaria de minha vida.

É sempre um emaranhado de linha multicolorida,

Rugoso de nós, desde miúdo e rapaz,

De meus alinhavos diários disto e daquilo,

Dum lado.

Doutro emerge um padrão doutro estilo,

O inesperado desenho coerente, coerente dum fado:

 

- Eu ignoto de mim,

Vário e surpreendente até ao fim.

 

 

682 - Livro

 

O livro é dono de casa

De múltiplas tarefas,

As magníficas do que me abrasa,

As deploráveis de poluentes trasfegas.

 

Espalha o conhecimento,

Mas igualmente a maldade,

Ilumina num momento,

Engana após o que invade,

 

Liberta e também manipula,

Exalta e também rebaixa,

Cria além de quanto nos regula,

Cancela vidas onde mal encaixa.

 

Sem ele era inviável a cultura,

Estiolaria a História

E o futuro, no que augura,

Era uma sinistra nuvem premonitória.

 

Quem o livro odeia,

Odeia a vida.

É que, por mais horríveis ódios que nele leia,

Quase por inteiro, ao invés, a letra imprimida

 

A balança inclina

Para a generosidade e a luz.

Nela, frágil, traduz

Nossa marca divina.

 

 

683 - Nómada

 

Nómada desperto de ontem,

Dormito no sedentário

De hoje, onde os sonhos não contem,

Aqui, sumário.

 

Sou encruzilhada retesa

Entre uma e outra natureza.

 

Aqui me confino

E macero dia a dia.

Acolá me destino,

Desmedida a fantasia,

E me exalto nos ralos

Intervalos.

 

Num pendor me desventuro,

Sem mais tender ao cimo,

No outro me aventuro

E redimo.

 

 

684 - Esvai

 

Honrarias, vaidades, riqueza,

Tudo esvai do tempo a voragem.

Um homem apenas vale pela grandeza

De alma atingida na viagem.

 

O pulsar dum coração

Generoso

Não o apaga a multidão.

Mesmo extinto,

Continua a bater fogoso

Na memória daqueles a quem deu,

Distinto,

Algum calor.

 

Aí principia do céu

A adivinhar-se o palor.

 

 

685 - Memória

 

Quer ver o que é o inferno?

É a memória rigorosa

De quanto praticou de baixo, de subalterno,

Pela vida fora,

A palavra irreflectida tenebrosa,

Pensamentos e acções

Cruéis e maus,

Armadilhados de abismos e fundões,

Sem pedras de passagem nem vaus.

 

É saber que podia

Ajudar o irmão

E não lhe deu a mão

Ao transpor a atropelada via.

 

O inferno é claridade,

Mais nada.

E o céu é a mesma realidade,

Claridade consumada.

 

 

686 - Inútil

 

Acto inútil é escrever

Como quanto o homem pratica.

As palavras estão gastas e qualquer

Já destilou todo o sumo a que se aplica.

 

Já tudo foi dito:

Resta-nos abrir as portas do Infinito.

 

 

687 - Seduziram

 

É mais uma utopia

A juntar às inúmeras que desde as origens

Nos seduziram e aguilhoaram,

Eras fora, na harmonia

Das vertigens

Que nos aram?

 

Sem um sonho no vazio

Da noite,

No fio

Do açoite,

Como amanhecer

De nós contentes,

Como sol acender

No sorriso entre dentes?

 

E é de nós, de nosso teor,

Que descontentes andamos.

Quão mais pobres de ideal e de amor,

Mais nos encanzinamos

A degradar a feição

De nossa humana e triste condição.

 

O sonho

Abre a porta:

Se nele nunca me ponho,

Pelo menos é de além que ele me exorta.

 

 

688 - Vida

 

A vida humana

É a demorada breve despedida

Que ao nascer principia e dali mana

Até à derradeira partida.

 

Despedida primeiro do aconchego

Do ventre materno,

Depois do refego

Terno

Da meninice, juventude,

Dos dons naturais, saúde,

Dos bens, alegrias, fartura e carência,

Até ao apagar da consciência.

 

E ficamos de vez desprendidos

Quando acabamos esquecidos,

 

Quando ninguém nos lembra o rosto nem a vivência

Nem a ninguém dói a dor de nossa ausência.

 

Findamos de vez do lado de cá,

- Mas quem garante que a aventura não continuará?

 

 

689 - Mistério

 

O homem é um mistério encarnado

Opaco aos olhos mais penetrantes.

Ninguém conhece deveras ninguém,

Caminhamos lado a lado,

Hesitantes,

Na terra de pedro-sem.

 

Os poetas mostram como são

Por imposição da poesia,

Do ser a irromper das profundezas de vulcão:

O poema, ao se manifestar,

Traz à tona, ainda a fumegar,

A verdade que anuncia.

 

Do mistério se aproxima

Apenas das artes esta débil rima.

 

 

690 - Ler

 

Ler, mais que um acto de cultura,

É um acto de inteligência,

Factura

De liberdade

Em minha vivência.

Quando leio, não fico preso

Nos muros da minha herdade,

Saio com os personagens,

Transponho da montanha o teso,

Corro pelo mundo fora,

Vejo as gentes e as paisagens,

Vivo com quem por lá mora,

Oiço cada qual e, a par,

Solidarizo-me ou não com ele,

Chego mesmo a dialogar

Até com este ou com aquele…

 

Ler abre as portas e janelas

Das casas,

Aponta-me as estrelas

E dá-me asas.

 

 

691 - Meta

 

A meta de verdade

Na terra para vossa estada

É alcançar a fragilidade

Com a Força harmonizada.

A fragilidade que é vossa

Com a Força que vos excede

E até onde pode ir afinal ir possa,

Em vossa escolha mede.

 

O caminho é aberto

Desta medição pelo acerto.

 

 

692 - Minúsculo

 

Perdido no Universo,

Quão minúsculo, irrelevante,

E, contudo, no inverso,

Conforme o tomem,

Quão valoroso e que gigante

- É o Homem!

 

 

693 - Desiludidamente

 

A pergunta, a demanda,

A procura interminável

Da outra banda,

Da comunidade inominável,

Da outra idade ao longe e ao fundo,

Desiludidamente para sempre iludida…

Transformar o mundo,

Mudar a vida…

 

E supor,

Enganado, desenganado

Que é para melhor

Este fado.

 

 

694 - Criador

 

Do criador com a energia

Principia.

 

Em teu corpo a deixa entrar

Até te plenificar.

 

Por tua cabeça deixa-a fluir,

Por teus olhos, por ti mesmo inteiro a ir.

 

Extravasá-la deixa para o mundo

Num campo de oração constante e fecundo,

 

Até veres apenas beleza e fulgor

E sentires apenas amor.

 

Num estado de maior alerta,

Espera que o campo, na primeira aberta,

 

Irradie e eleve dos demais

Os campos espirituais,

 

Bem acima dos fundões de nosso grito

Até deles à intuição do Infinito.

 

 

695 - Anjos

 

Os anjos invocar podemos

Para nos ajudar,

A quantos no mundo convivemos

Ao calhar.

 

Não é fácil, porém.

É inviável aos gestos furtivos

De quem

Tenha intuitos negativos.

 

Nada opera se não estivermos ligados

Inteiramente pelo interior

À energia que anima os traslados

Do Criador.

 

E se não se envia

Muito conscientemente

Nossa energia

À nossa frente,

 

Os outros a tocar

E o mundo inteiro.

Se um mínimo de ego protagonizar

Ou da raiva respirar o cheiro,

 

Toda a energia cede e cai,

Os anjos não podem responder.

Tarde ou cedo, tudo se esvai

Num vazio qualquer.

 

Somos os agentes de Deus

Neste planeta.

Podemos afirmar e defender a visão dos céus,

Discreta,

 

E, se nos alinharmos genuinamente

Com tal porvir positivo,

Teremos energia suficiente

Para os anjos então nos darem todo o incentivo.

 

 

696 - Descrever

 

Cada religião tem um nome diferente,

Uma diferente forma

De descrever o Infinito Ente,

- Deus, Alá, Javé… -

E de vida a norma

Dele decorrente

Que o Homem deve pôr de pé.

 

Mas em todas as religiões

A experiência de Deus,

E energia do amor

É a mesma por trás dos véus

Que lhe impões

Com teu fervor.

 

Cada religião

Tem uma história própria desta relação

E uma forma exclusiva de falar dela,

Mas existe apenas uma fonte divina

A dessedentar quenquer que se inclina

Para ela.

 

Cada religião tem a sua verdade

Que tem de ser incorporada

Com a metade

Perdida e achada

Das outras mais,

Em sínteses ideais.

 

É viável atingir isto

Sem de nossas crenças tradicionais

Perder da verdade básica o registo

Nem as soberanias reais.

 

Assim, eu próprio sou ateu

De qualquer Deus, que é sempre humano,

E sou cristão visando o céu,

Intimista muçulmano

E bem terreno judeu

Como, no fundo espiritualista,

Sou budista,

Ou, nas mais fundas raízes,

Sou animista

Em múltiplos matizes

E, se em mim escabulho um pouco mais,

Sou hindu politeísta,

- E todos somos tudo, se bem reparais.

 

Este é o caminho

Que reúne

O porvir de pão e vinho

Que de longe nos chama e ao fim nos une.

 

 

697 - Divina

 

Fluir deveria,

A partir da divina ligação

Que existe em nós, em nosso coração,

A nossa interior energia,

 

Procurando a sincronicidade

Da expectativa,

Transportando toda e qualquer individualidade

Que tocar, ao mais elevado Eu que nela viva.

 

De nossas vidas a misteriosa evolução

Desta forma optimiza e despoleta,

O desvelamento e concretização

De nossas missões individuais neste planeta.

 

Ao longo do caminho há percalços, porém,

Desafios que provocam estados de medo

Que dúvidas cavam estrada além

E então, em minha alegria, cedo.

 

Este medo, pior ainda,

Pode criar imagens negativas

Que, a ocasião vinda,

Alimentam más expectativas

 

Que, por sua vez, ajudam a criar os tramos

Daquilo que nós mais receamos.

 

Temos de aprender a ancorar

A energia superior

Para a manter no lugar

Esquivo

De seu teor

Mais positivo.

 

O problema do medo

É que ele é tão subtil

Que pode apanhar-nos desprevenidos

Muito depressa: no credo

Mais adulto como no mais infantil

Somos sempre anjos caídos.

 

Uma imagem receosa é um resultado

Que não queremos,

Tememos falar dum dado,

Embaraçar-nos a nós e a quem amemos,

Perder a liberdade,

Uma pessoa querida,

Uma faculdade,

A própria vida…

 

Começo no medo,

Transformo-o em raiva,

À agressividade cedo,

Luto como carraça

Contra quem eu saiba

Que me ameaça.

 

Tudo provém dos pendores de vida

Que quero manter.

Evito as perdas na medida

Em que, por todo o lado

Me distancio de todo e qualquer

Resultado,

Para aderir, calmo e contrito,

À vontade do Infinito.

 

 

698 - Futuro

 

O futuro aceita

Pais desajeitados,

Professores enervados,

Qualquer pessoa imperfeita.

 

Assim cresçam com a imperfeição

Com que toda a criança dialoga

Dia sim, dia não,

Enquanto na onda voga.

 

Só quem não aceita a imperfeição,

Começando pela sua,

É que não cresce, tendo à mão

Sempre à frente nova rua.

 

Só quem não reconhece

A obrigatoriedade de crescer dele no apuro

Não aceita e esquece

O futuro.

 

 

699 - Sabedoria

 

A sabedoria não é da idade,

É a verdade

 

Que vem

De buscares no coração a resposta que convém

 

E de noutrem pensares, agora e aqui,

Antes de pensar em ti.

 

A sabedoria dá vida,

Dá conhecimento,

Vai dar a paz do espírito perdida

E a do coração em tormento.

 

Mostra que a vida é um lucilar de estrela,

Orvalho de madrugada,

Um nada em que tudo se revela

Berma de estrada

 

Onde concito

A fímbria do Infinito.

 

 

700 - Aceitar

 

Mal desejes deveras a felicidade,

Logo ela te encontrará.

Levar-te-á

A aceitar com frontalidade

Tua perda, na justa medida

Em que te ponha de bem com a vida.

 

A felicidade vai-te permitir,

Nas conjunturas mais negras,

Esperança sentir

E paz

Em pleno mundo sem regras,

No caos falaz.

 

Serás excepção:

Uma estrela no céu

Com a raiz no chão

Donde virente cresceu.

 

 

701 - Flor

 

Como os dias de nossa vida

Voa a flor de cerejeira

Para longe, distraída

E leveira.

 

É um efémero evento

Maravilhoso,

Um portento natural, portento

Saudoso.

 

Não pressentes que o assina

A presença divina?

 

Desabrocha a flor,

Irradia brancura

E, após um instante de fulgor,

Já não é mais, ausência pura.

 

Pétala a pétala morre,

Expulsa-a o vento

Como a nós o tempo que corre,

Fatal, momento a momento.

 

A saudade doutra dimensão

Magoa-nos o coração,

Tenhamo-la ou não em vista,

Exista

Ou não,

No horizonte para onde aponta a pista

De nosso chão.

 

 

702 - Primeiros

 

De Deus os profetas pioneiros,

Os primeiros jardineiros,

Morrem.

Os que depois acorrem

Uns com os outros se zangam.

É humano, todos mangam

Doutrem com a ideia para o adubo:

Ou é pelo animal sacrificado que a Deus subo,

Ou é pelo vinho e pelo pão,

Ou então é de água apenas a questão,

Mas logo outro quer água mineral,

Enquanto água filtrada é para o vizinho o sinal;

Além querem lume a queimar folhas secas,

Aqui apenas ar, senão tu pecas…

 

Todos são ecologistas

Mas nunca se entendem nas pistas.

 

Um deles publica um dia

Dele o modo de tratar

Da venerável árvore da fé.

Logo tudo se enfuria,

Todas as religiões vão começar

A se defender

E a combater,

Até cada qual num território tomar pé.

 

Na Primavera,

Quando a venerável árvore cresce,

Cada jardineiro fica com o ramo duma espera,

Uma divergente prece

E, em lugar do Deus único nos céus,

Em cada galho, seu deus.

 

Ora, qualquer árvore tem de ter ramos

E, se não é podada, definha.

Quando um ramo não dá folhas, dentre os amos

Um novo jardineiro o vem cortar em toda a linha.

 

E logo ele renasce

Para o rebanho que pasce.

 

Quando o judaísmo começa a secar,

O jardineiro Jesus corta o ramo morto,

O que dois virentes ramos vem a dar,

Em vez dum, para mais torto.

Quando o cristianismo se enche de bolor,

O jardineiro Lutero o ramo poda

E um inesperado esplendor

Dos dois novos galhos traz à boda.

Quando à Primavera o bramanismo despreza,

O jardineiro Buda faz-lhe a limpeza…

 

E são assim

As contas do rosário sem fim.

 

Resta entendê-las

Como de árvore as pernadas,

Degraus de escadas

Por onde trepamos às estrelas.

 

 

703 - Impossível

 

É impossível sem Deus morrer

Mas, em contrapartida,

Não é impossível crer

Que tal ocorreu, à despedida.

 

Ora, o que se crer

É o que do lado de lá

Se irá

Viver,

 

Ao livre arbítrio ninguém,

Nem Deus, o retém,

 

Nem do lado de cá da vida,

Nem após a derradeira ida.

 

 

704 - Experiência

 

Experiência temos

Dum mundo tridimensional.

Porém, o mundo em que vivemos

Não é todo o real.

 

Complexa que baste

É a Realidade Final

Para ir infinitamente além

De quanto, mal ou bem,

Imaginaste.

 

Nenhum horizonte a abarca,

Tanto nossa vista é parca.

 

 

705 - Limite

 

A vida é eterna, o amor, imortal

E a morte é apenas um horizonte.

Ora, um horizonte, afinal,

Marca somente o limite da ponte

Cujos arcos são

Os da lonjura de minha visão.

 

 

706 - Sabor

 

Sabor a Deus: a eterna vivência

De ti próprio como criador…

Deus é o Criador por excelência

E, quando vivenciares-te a ti te vem propor

Como criador, o teu destino

É vivenciares-te a ti próprio como divino.

 

 

707 - Singularidade

 

Da singularidade do Infinito

Sou a individuação,

A vivenciar simultaneamente da vida o fito

Em sequencial progressão.

 

Do Infinito gota,

Vivo o Todo na parte,

Em simultâneo de tudo a cota

E do rosário conta por que se reparte.

 

 

708 - Morte

 

É a morte o evento através de que te moves

Para atingir o outro lado,

Passagem entre o mundo físico que removes

E o reino espiritual, teu legado.

E depois, uma vez lá imerso,

É o inverso.

 

 

709 - Uno

 

A morte

É uma reintegração.

Longe de ser o desnorte

Duma fatal desintegração,

 

Todas as realidades basilares,

Simultaneamente trinas e unas,

Devêm singulares,

Que em unidade tudo coadunas.

 

Em toda a individualidade,

Nos mil pendores que reúno,

A Santíssima inúmera Trindade

Devém o Uno.

 

 

710 - Cume

 

Magníficas e verdadeiras são

Todas as religiões da Religião.

 

E todos os ensinamentos deveras espirituais

Caminhos são para Deus, enquanto tais.

 

E nenhuma religião e nenhum ensinamento

É mais certo que outro, no respectivo elemento.

 

De trilhos há uma quantidade tamanha

De chegar ao cume da montanha!

 

 

711 - Creias

 

Não creias numa só das palavras de Deus

Nem em nenhum profeta que fale dos Céus.

 

Ouve o que te disserem e após acredita

No que o coração diz que a verdade concita,

 

Pois no teu coração mora a sabedoria

E é nele que a verdade encontra a via.

 

E no teu coração se encontra Deus contigo

Na comunhão mais íntima de amigo.

 

 

712 - Viagem

 

Não andas em viagem para o Divino,

Mas a meio dum itinerário eterno

No qual experiencias, escolhendo teu destino,

Cada vez mais a Divindade, teu ser superno,

Ao avançar por dentro dela

No mar da vida que se te encapela.

 

Sentes cada vez mais o núcleo de teu ser,

Cada vez mais a essência de quem és

E a vida continua, continua a acontecer,

Cada vez mais a teus dois lados resvés.

 

Estás eternamente em fusão com a essência

E, como parte da teia da vida,

Emerges de novo dela, florescência

Exprimindo-a mais plena em cada degrau da subida.

 

 

713 - Simples

 

Deus és tu,

Para de modo simples o dizer.

Na verdade, sem tabu,

Deus é tudo em todo o ser.

Não há nada,

Debaixo ou acima dos céus,

Qualquer que seja a fachada,

Que não seja Deus.

 

Minúscula onda a esmo

Para o oceano que não apanho,

Assim sou para Deus: o mesmo,

Mas em minúsculo tamanho.

 

 

714 - Chover

 

Como chuva é a realidade final:

O facto de chover não podes alterar,

Mas podes alterar, afinal,

Tua vivência da chuva, ao mudar,

Em tuas anteparas,

O modo como a encaras.

 

Para mudar a Realidade Final

Não tens poderes,

Mas podes experienciá-la, total,

Da maneira que entenderes.

 

Acerca da Realidade escondida

Este é o maior segredo da vida.

 

 

715 - Esperança

 

A esperança intervém

Na morte e na vida,

Que ambas são também

A mesma realidade, assumida

Do lado de cá e de lá

Do espelho que no fim o mostrará.

 

Nunca desistas, nunca, da esperança!

É uma afirmação de teu desejo

No mais elevado píncaro que alcança,

Anúncio de teu sonho, teu harpejo

 

Mais ambicioso, tombados os véus.

A todo o momento

A esperança é pensamento

Feito Deus.

 

 

716 - Pejados

 

Todos os dias de tua vida

Estão pejados de pequenas mortes.

Qualquer deles te convida

A compreender:

Não há sortes,

Só transportes

Até o âmago do Ser.

 

 

717 - Núcleo

 

Que há de tão espantoso

No núcleo de meu ser?

Qual o gozo,

Que prazer?

 

O verdadeiro Eu,

O Eu pleno,

De fértil gineceu

O aceno.

 

A glória e o espanto

De quem sou, sem quebranto,

 

E do que a Vida é,

Semente árvore feita ali de pé.

 

Em resumo, sem mais véus:

- Deus!

 

 

718 - Fora

 

Em tempos imaginava

Que fora da maçã do Ser estava.

 

Meu sonho, minha esperança maior

Era vir a conhecer dela o sabor.

 

A velha espiritualidade

Tal me ensinou como verdade.

 

Não estou, porém, fora da maçã,

Sou dela parte, embora humilde e chã,

 

Desloco-me através dela nos gestos meus

E a maçã, no seu todo, é Deus.

 

Deus não apenas da maçã mora no centro

Mas é o centro de tudo a que me adentro.

 

Quando no real mais fundo repoisas,

Deus é todas as coisas.

 

 

719 - Desejos

 

Melhor que qualquer outro, nenhum caminho

É para Casa,

Apenas mais fácil ou difícil o adivinho

No que me apraza.

 

Todos os caminhos para lá te levam

Porque o que faz falta

É que ânsias de chegar em nós se atrevam,

Num coração puro, aberto, em alta,

Mais a fé de que Deus não terá razão

Para dizer "não,

Tu não podes estar comigo",

Qualquer que seja a motivação.

Muito menos ao abrigo

De que o réprobo em deus acreditaria

Doutra religião

Numa qualquer outra via.

 

 

720 - Libertares-te

 

Ao libertares-te de verdade

Sem hesitação nem arrependimento

De qualquer sentimento

De individualidade,

Tua alma aproxima-se da luz que a invade.

Aí ficas submerso, suspenso

Em algo de tal maneira imenso

Que já ninguém algum dia deseja

Vir a conhecer o que quer que seja

Que não isto, imerso na glória infinda, inefável,

Duma magnificência interminável,

Duma beleza sem paralelo, final,

E duma plenitude sem igual.

 

Depois de te haveres fundido nesta luz,

Sentes-te a dissolver-te noutra realidade.

Esta fusão que te seduz

Completa tua mudança de identidade.

 

Deixas de identificar o melhor de teu Eu,

De qualquer modo ou a qualquer nível,

Com o vector separado do ser que foi o teu

Em tua vida física anteriormente visível.

 

 

721 - Aqui

 

Aqui, na imersão total do Ser,

Chegas onde experiência e saber,

 

Sem defeito algum,

São apenas um

 

E onde o que sabes e vivencias

É que não és teu corpo, tua mente,

Nem tua interior alma que mal vias

Presente.

 

És algo muito maior,

Múltiplo do total de energias

Que os três produzem, seja lá como for.

 

Na morte reconciliadas,

Todas as tuas identidades individuais

São por fim compartilhadas,

Pondo termo, sem mais,

Ao que em ti vivera a esmo:

- A lonjura entre ti e ti mesmo.

 

 

722 - Portal

 

A esperança é o portal da crença,

A crença, o portal do conhecimento.

O conhecimento é o portal da criação:

A sentença

É fermento

E a criação é o portal da experiência,

Função

Da vivência.

 

A experiência é o portal da expressão,

A expressão, o portal do devir,

O devir é a vida toda em acção

E de Deus o devir é a única função,

Gerando o porvir.

 

Aquilo que esperas

É aquilo em que acabarás por crer.

Aquilo em que crês com todas as veras

É o que acabarás por saber,

O que criarás,

O que a viver

Findarás.

O que viveres é o que acabas por exprimir,

Aquilo em que te tornarás

A seguir.

 

Esta é a fórmula resumida

De toda a vida.

 

 

723 - Brinca

 

Brinca com os mais enquanto aqui andas,

Aprende a brincar como deve ser!

No jardim dos deuses moras e comandas,

Foi-te dado o mundo inteiro para te entreter.

 

Tens riqueza bastante e de muitos modos

Para chegar para todos.

 

Ninguém devia passar fome

E menos, de fome morrer,

Nem sofrer frio por não ter

Roupa que tome.

Nem devia não ter onde se abrigar

Da tempestade

Que o alcançar

No esconso de qualquer idade.

 

Não é preciso nada

Para brincar bem.

Para uma experiência gloriosa de quem

És,

De mais nada precisas em tua jornada,

De vez.

 

Para seres feliz,

Para sobreviveres,

Sempre muito e de raiz

Imaginaste que era preciso requereres.

Ora, tudo é função

De tua imaginação.

 

Na morte irás entender

Quão pouco isto importa,

Tudo isto, nem pó sequer,

Abandonado à porta.

 

Da vida física ao partires,

Entenderás que lutaste para nada.

E tua longa vida de erguidos menires

Terminará ignorada.

 

 

724 - Recomporemos

 

A morte é a realidade

Pela qual recomporemos nossa identidade.

 

É o céu o lugar

Onde tal se irá regular.

 

Não é, porém, qualquer lugar, qualquer,

Mas um íntimo estado de ser.

 

O outro lado não tem no Cosmos localização,

É do Universo uma vivência, uma secreta expressão

 

Que exprime a própria divindade

Através do Eu, em minha interioridade.

 

 

725 - Viajo

 

Por que viajo sem parar

No contínuo do tempo-espaço?

Para quê buscar

Eterno de Deus o abraço?

 

Tua viagem não é de Deus eterna busca

Mas de Deus a eterna experiência

Que no íntimo te chamusca

De tua vivência.

 

Deste pendor entendida,

A continuidade da viagem

É evidente medida:

É uma eterna tecelagem

De vida.

 

 

É o modo como conheces Deus clandestino,

Como a ti te conheces enquanto divino.

 

Esta viagem, em toda a via

É tua maior alegria.

 

 

726 - Primeira

 

Se crer que sim,

Deus é a primeira vivência que terei

Depois de minha morte, em mim.

Assim

Acontecerá,

Acontecerei.

 

Porém, não precisarei

De esperar até lá.

 

Tenho estado com Deus

Durante minha vida inteira

- É o que andam a dizer-me os céus

Em meu imo, à minha beira.

 

O erro central das teologias humanas

É crer que um dia conhecer Deus vais

E é no que te enganas.

Um dia, da morte no golpe de asa,

Para Deus, para casa voais,

Escapando ao mundo triste?

Não, nunca regressarás a Casa:

- É que, se bem reparas, tu nunca de lá saíste!

 

 

727 - Natureza

 

É próprio da vida

Exprimir-se:

Não há como o elida

Ou nem seria, ao fugir-se.

 

Ora, a vida é apelidada

Como Deus, Essência, Energia,

Absoluto, Infinito, carimbada

A gosto, qualquer que seja a Via.

 

Seja qual for o termo a usar,

É sempre da Vida que andamos a falar.

 

No roteiro da expressão,

A vida, literalmente,

A ela própria se exprime, torrão a torrão,

Dela própria sai, dá origem

A ela mesma noutra vertente

Dela própria, de modo que, nesta vertigem,

A ela própria se pode conhecer

Através da própria Experiência que tiver.

 

Tal é a Vida, tal é Deus,

Tal sou eu, no fundo dos gestos meus.

 

 

728 - Experienciar

 

O que tua fiel alma procura

É sempre experienciar o que sabe:

Tua fiel alma sabe da loucura,

Que nunca deixaste Deus,

Pois no real tal não cabe,

E é o que procura viver nos gestos teus.

 

A vida é um cadinho

Em que a gentil alma transforma

Saber em experiência.

E, desta forma,

Quando, no caminho,

A premência

Do que soubeste e experienciaste

Deveio realidade vivida,

O itinerário foi, quanto baste,

Completado à medida.

 

Teu Lar,

Em derradeira lição,

É o lugar

Da perfeição.

 

É a consciência integral

E o que deveras és,

Através

Do conhecimento completo, final,

E da experiência completa, de vez.

 

É o fim da separação

Entre ti e a Eternidade:

Este corte é uma ilusão

E qualquer alma o sabe de verdade.

 

A perfeição

É o momento em que termina a grade

Da separação:

É o momento da tua reunião

Com a Divindade.

 

 

729 - Deslocar-te

 

Tu, enquanto espírito puro,

Podes deslocar-te pela Singularidade

Em ciclos intérminos, seguro,

Sentindo teu eu, tua individualidade.

 

Tu és esta Singularidade,

O Ser de que tudo é feito,

A essência pura, de verdade,

A energia a preceito.

 

És uma individuação

Desta energia, desta essência,

Uma individuação da Singularidade

Enraizada no chão.

À Singularidade chamam Deus, por excelência,

À individuação chamam tu, tua egoidade.

 

Podes subdividir teu eu

E deslocar-te pela Singularidade

Em infindas direcções diferentes do mesmo céu

De eternidade.

 

Chamam vidas

A estes aleatórios movimentos

Pelo contínuo do espaço-tempo em que te convidas

A tomar alentos.

 

São os ciclos do Eu

Que o eu ao Eu revelam

Através da circulação do Eu pelo eu,

Nas paisagens do céu

Onde todos os mistérios se desvelam.

 

 

730 - Fim

 

A morte não existe

Enquanto fim da vida.

Como vivência humana tudo persiste,

O que se elida

É tua física presença.

Esta termina com a sentença

De tua morte,

Mas não a própria vida

Cuja vivência, em tal transporte,

Explode desmedida.

 

Se crês em Deus, crês na vida eterna,

Uma vez que os deuses de todas as religiões

A prometem, superna,

Sem quaisquer limitações.

 

Se em Deus alguém não crê,

Pode mudar o que experiencia,

Não o que a realidade é

Nem o que anuncia.

 

Vai experienciar

Daquilo em que acredita a lista

E aquilo em que acredita irá derivar

De seu ponto de vista.

 

Este, porém,

Mesmo no termo

Poderá sempre mudar:

Basta que ele o queira também,

Sozinho demais ao descobrir-se em seu ermo.

 

 

731 - Nascendo

 

Nascendo, afastas-te da clareira,

Penetras na floresta.

Faze-lo pela vez primeira,

O que te atesta

Que poderás vir a ter dificuldade

Em reencontrar

Da clareira o lugar,

Ao fim de teu passeio em liberdade.

 

Então decides ir marcando

As árvores, com golpes de tuas vergastas,

Quando

Te afastas.

 

Ao retornar da floresta recordas,

Vendo as marcas,

Que as puseste ali como estendidas cordas

Para vires a encontrar, com guias tão parcas,

Mais facilmente a saída

Eternamente escondida.

 

 

As marcas são-te exteriores,

Acabarão por conduzir-te a Casa

Mas a Casa não são tais marcadores,

Por mais que do lar prenunciem a brasa.

 

As marcas mostram-te o caminho,

A vereda, a estrada a calcorrear

E, roteiro em meio ao desalinho,

Tal caminho parece-te familiar.

 

Reconhece-lo, conhece-lo de novo.

O caminho, porém, não é o destino,

Leva-te até ele, como ao ninho o ovo,

E do fim te canta previamente o hino.

 

Outros recursos há

Para te pôr no bom caminho:

Outros podem mostrar-te, aqui ou acolá,

O que eles próprios seguiram no rumo adivinho.

 

Mas apenas tu podes encontrar

O destino que for teu.

Do mundo exterior os eventos estão no lugar

Com tal objectivo nada sandeu.

 

Foi por isso que, do fundo ignoto de ti,

Os puseste ali.

 

 

732 - Degraus

 

Um degrau é saber algo,

Outro, experienciá-lo,

Outro ainda, senti-lo.

Os degraus galgo,

Com mais ou menos abalo,

Talhando o perfil que me perfilo.

 

Apenas o sentimento germina a Consciência,

O saber apenas gera consciência parcial

E a experiência também.

Podes saber que és divino, por essência,

Mas, quando experiencias, afinal,

Teu eu a ser divino, o que advém

É a tua consciência devir perfeita no evento

Pela vivência deste sentimento.

 

Podes saber que és qualquer vector da divindade,

Mas só quando experiencias teu eu a sê-lo

Tua consciência abrange a totalidade,

Do sentimento pelo anelo.

Dos degraus o topo

É meu perene e derradeiro escopo.

 

 

733 - Dormito

 

Mesmo quando sou negligente

E dormito no travesseiro

De minhas falhas, impenitente,

Ele sacode-me inteiro,

Perturba-me e me atinge,

Faz o que pode para me despertar,

Mesmo quando de ausente finge,

Em tudo o que me manda atribular.

 

A atribulação

Dorida

É dEle sempre aquela mão

Escondida.

 

 

734 - Desígnio

 

Exprimem provações e dificuldades

Um desígnio bem mais fundo que o do ego,

Dele com a confiança na mente e nas verdades,

Às fúteis intenções com o apego.

 

Desígnio do mais fundo cariz:

- O de abrir portas e dar corpo à derradeira raiz.

 

 

735 - Meio

 

Meio no tempo, meio na eternidade,

Tudo o que é feito nunca pertence

A este mundo na integralidade,

Contudo está sempre neste mundo.

Ora, deste mundo que nos vence

E convence,

Que nos inunda e de que me inundo,

Todos podíamos viver

Parcialmente fora.

Iríamos aí descobrir, medir e ver,

A qualquer hora,

Em nossos desempenhados papéis,

Nos estugados patamares,

Os limites das leis

E convénios singulares.

 

E manteríamos a abertura

Para um mundo novo permanentemente

Que aqui se inaugura

Em semente.

 

 

736 - Bosque

 

O espírito puro,

A pureza espiritual,

No bosque incarnou.

O músico pega, seguro,

No violino e, fatal,

Eleva-nos num voo

Do espírito aos píncaros alvinitentes.

O arquitecto junta madeiras

Incongruentes

E constrói um templo, uma catedral

De maravilha

E neles lemos, inteiras,

As esteiras

Do fanal

A piscar do Além-mar de qualquer ilha.

 

Encontrar Deus podemos

Abrindo as gelosias

Da casa que erguemos

Todos os dias.

 

 

737 - Narrativa

 

A fé tem a raiz

Na sabedoria do poeta,

Não nas ilusões servis

Dos factos que o mundo acometa:

Em norma têm estes impedido e tornado vão

O apuramento e a eficácia da religião.

 

É de abandonar

A narrativa

Decadente,

Maçudamente objectiva,

E descobrir o significado urgente

Do mito que, dela em lugar,

Se vem tornando emergente.

 

Do sonho a magia

Abre a janela para o outro lado do dia.

 

 

738 - Mói

 

Só um poeta sabe astronomia,

Por isso me guia.

 

O queijo

Da Lua,

Não a Lua que vejo,

É que por mim dentro se insinua.

 

A mó de jaspe

Que no céu mói a farinha

É que faz que raspe

O mistério de cada adivinha.

 

Talvez só nos místicos momentos

Saibamos o que ocorre em nossa vida.

Até formularmos os míticos questionamentos,

Os teológicos e sobre os mistérios

Podem estar,

Na frenética lida,

A analisar

Cemitérios

De ilusões sem guarida,

A tecer teias por cima do rosto

Sem pescoço,

Descomposto,

Que pretende ser o nosso.

 

 

739 - Assoma

 

O deus em mim próprio escondido profundamente

Assoma fugidiamente.

 

Descubro então,

Como os místicos de qualquer tradição,

 

Que o si-próprio e o divino andam separados

Pela mais fina das membranas, de ambos os lados,

 

Na verdade, em derradeira aproximação,

Por uma membrana de ilusão.

 

Eu e o Outro, quando deveras me ensimesmo,

Somos o mesmo.

 

 

740 - Apaziguemos

 

Apaziguemos o coração ardente

Ansioso de plenitude,

Não pela descoberta improcedente

Do perfeito par que sempre ilude,

 

Nem da casa de sonho

De que jamais disponho,

 

Nem do êxito no local de trabalho

Onde o acaso é muita lei do que valho,

 

Mas ao captar,

Porventura pela primeira vez,

A eternidade a pulsar,

Momentânea, ao dispor neste entremez

E os contornos do todo no vulgar elemento

Fruído neste momento.

 

 

741 - Paixão

 

A força demoníaca

Transmudar-se pode pela paz

Numa paixão elegíaca

E de felicidade num impulso capaz,

Não tendo de ser agressiva

Nem por força negativa.

 

Todo o demoníaco é divino

Por final destino.

 

Requer que a ele nos adaptemos,

A nós e à nossa vida,

Que perenemente nos reimaginemos

À medida

Do radical, esquivo,

Seu trabalho criativo.

 

Barro teremos de ser, de antemão,

Da raiz dele para os dedos de artesão,

E o demónio trepa aos céus,

Por nós feito deus em Deus.

 

 

742 - Fonte

 

Um íntimo demónio

Não é um problema,

É a fonte e o lema

De minha criatividade,

Da musa o harmónio

Que me inspira a identidade.

 

Não é fácil distinguir

Nele o bem e o mal.

 

Se, de medo e confusão, não o enfrentar, a seguir

É difícil controlá-lo e, fatal,

As qualidades negativas

Vingarão, decisivas.

 

Defrontada corajosamente a matriz demoníaca,

Com intrepidez,

Descobrimos quão criativa,

Genesíaca,

Construtiva,

Ela devém de vez.

 

Pode, num segundo,

Abrir a porta para um outro mundo.

 

 

743 - Véu

 

Se o véu ilusório perfurar do literalismo

E vislumbrar as camadas sobrepostas dos eventos,

O entrevisto abismo

É fértil em portentos.

 

Talvez não retorne jamais

Ao invento de factos fantasmais.

Atingi a meta

Sem engano:

Tornei-me poeta

Do quotidiano.

 

O artista

Entrevê um significado no real,

Em arte o regista,

Fanal

Discernível,

E oferta esta visão a todos disponível.

 

 

744 - Poesia

 

A poesia em toda a latitude

(Poemas, lendas, mitos,

Pinturas, danças, sonhos…)

Tem a virtude

De ser o veículo de todos os fitos

Para viajar apaixonado

Pelos mundos mais medonhos

Com a alegria dum predestinado.

 

Mais eficaz

Que um vaivém espacial,

Mais perspicaz

Que uma nave sideral,

Com mais arte

Que um veículo de Marte,

A poesia leva à lonjura

Do infinito

Num real

Que é muito nosso e nos segura

E, ao mesmo tempo, é esquisito,

Com uma vida, uma sanha

Absolutamente estranha.

 

Exulta a poesia e me acalma,

- É uma jornada de alma.

 

 

745 - Si-próprio

 

Olhamos o si-próprio como um ego

Contido na pele da personalidade,

Mas um si-próprio num mais fundo pego,

Mais originário, me invade,

Fora do tempo e do espaço

Da vida individual que abraço.

 

Qual o ser

Deste meu rosto de antes de nascer?

 

 

746 - Sementes

 

Há muito descobrindo

De mim próprio as sementes,

Uma imagem tenho de quem deveria ser.

Mas a tela de quem somos iludindo

E o rumo a tomar, entrementes,

Conjunturas e destino contrariam quenquer.

 

Podemos, todavia, descobrir que somos mais

Quão mais de nós próprios distantes,

Daquilo que cuidamos, formais,

Que ser devíamos, orgulhosos e confiantes.

 

E depois uma síntese superior

Acabaremos, mais plenos, a nos propor.

 

 

747 - Vimos

 

Vimos de muito fundo,

Muito para lá da consciência,

Somos mais originais no mundo

Do que imagina nossa vã ciência.

Provimos dum lugar para lá do horizonte

E o que nos move em profundidade

- Anjo, demónio, alma, duende… -

Empurra-nos pela ponte

Que tende

Para a nossa identidade,

Para nosso lugar terrivelmente escasso

De intimidade

No tempo e no espaço.

 

É um nada

E é do infinito nossa estrada.

 

 

748 - Xenofilia

 

Qualquer alma desperta

Requer bem mais de nós, assertiva:

Cortar cerce a xenofobia que se enxerta,

Desenvolver uma xenofilia positiva.

 

Afecto pelo estrangeiro

E pelo invulgar,

Apreço pioneiro

Por culturas diferentes da nossa,

Desejo de desvendar

Tudo o que roça

Por maneiras divergentes de compreender

E de viver.

 

Então, aí,

Montar o lar do eu em si.

 

E para a nova, inesperada síntese cimeira

Trepar a íngreme ladeira.

 

749 - Dócil

 

À dócil alma respondendo,

Ausento-me várias vezes por dia

Da vida real de que pendo

E revisito pessoas e lugares de antanho,

Imagino o futuro que queria

Na perda e no ganho.

 

A visita

Difere radicalmente

Da tentativa ansiosa do ego que incita

A resolver o passado no presente

Ou a controlar o futuro

Que hoje inauguro.

 

É mais de férias como a semana

Na praia,

É distanciar-me sem ânsia nem gana,

Jeito onde descobrir se ensaia

Para quanto viva

Uma nova perspectiva.

 

 

750 - Tendemos

 

Tendemos a olhar tudo na vida,

Das pessoas aos objectos,

Como realidade fixa, unidimensional, dividida

Em cubículos de aspectos.

 

De nos aperceber seremos capazes

Também,

Das histórias em que vivem deles as fases,

Do espírito que os contextua ao lado e além,

Da melodia dos respectivos movimentos,

Dos aromas que lhes emanam da presença,

Do vazio quando se ausentam por momentos,

Do segredo abscôndito por trás da revelação tensa?

 

De que tipo de sentidos teremos precisão

Para tal percepção?

 

 

751 - Peregrino

 

Um peregrino, ao longo da estrada,

Cruza um vulto sentado

A meio dum campo cultivado

Que se prolonga até uma colina afastada.

Olha, ao lado,

Um grupo a trabalhar numa abadia de empreitada.

 

- Sois monge? - questiona o viandante.

- É o que sou - responde o vulto.

- Quem são os que trabalham ali adiante?

- Os meus monges, entre as horas de culto.

- É bom ver crescer um mosteiro.

- Estão a demoli-lo.

- Mas por quê?! - espanta-se o viageiro.

- Para, quando o sol nasce, podermos senti-lo:

É que não há melhor mosteiro

Que o mundo inteiro.

 

 

752 - Espaço

 

Haverá espaço qualquer dia

Para um valioso estudo da religião

E não-religião,

Filosofia e poesia,

Música e ficção,

Crença e descrença,

 

- De qualquer mágica presença

Que nos pode tocar o coração.

 

Esta nova teologia

Caminhará lado a lado

Com as artes e as ciências,

Na via

Do itinerário esforçado

Das humanas persistências.

 

Os objectos de estudo dela

Incluem a dieta cultural diária,

O ritual,

A oração nas freimas ou na capela,

A arquitectura, mesmo atrabiliária,

O cerimonial,

Do tempo a avaliação sacral,

A doença, a morte, o nascimento,

O desejo, a melancolia, o casamento,

Os significados

E a falta deles,

A história, os antepassados,

Os gestos nobres e reles,

Os valores, a expiação,

A moral, a iniciação…

 

Em lugar dum terapeuta, um dia,

Os que sofrem perturbação

Ou que algo procurem, farão

Uma visita à luz que anuncia

O teólogo particular,

A fim de reflectirem

De modo singular

Sobre quantos mistérios sobre eles investirem.

 

 

753 - Artista

 

Parece cada artista aceder

A uma fissura particular

Do Cosmos na opacidade,

A uma fresta pela qual logra entrever

A totalidade

E elaborar,

A partir dela assumida,

Uma filosofia e uma vida.

 

Não poderemos nós também descobrir, jucundos,

Uma maneira

Própria de olhar

Para nossos pequenos mundos

E neles captar

O Universo, a Infinidade

Inteira,

A Totalidade

Manifestada no terreno

Pelo quotidianamente pequeno?

 

Nossa vida então assumiria de verdade

As reais dimensões dela, em virtude

De ser medida pelo tempo e a eternidade,

O espaço e a infinitude.

 

Precisamos dum olhar calibrado

Para a vastidão do mundo,

Capaz de observar eventos e objectos, cada dado,

Mesmo os mais comuns, a partir do fundo,

E de entrever, por trás da opacidade,

As incursões da eternidade.

 

Confere significado ao quotidiano

Esta faculdade,

Liberta-nos da tarefa de engano

De descobrir um sentido na estrada

Fora de nossa vida limitada.

 

Precisamos apenas de imaginário,

Duma perspectiva de poeta,

Dum olhar que atinja o âmago originário,

Emocional e intelectual da percepção completa

Sem por ela ninguém se deixar

Com a epiderme enganar.

 

Descobrimos o sentido da vida

Ao viver plena, intensamente,

No limite de nosso próprio ente

Singular, genuíno,

E que, por medida

Principal,

Tem por destino

Nada ter de excepcional.

 

 

754 - Tiro

 

De tiro ao arco o mestre famoso

Trepa ao cume da montanha

Ao encontro do melhor do mundo archeiro.

A descoberta de que o reputado guerreiro

Nem arco nem flecha usa nem apanha

Estupefacto o deixa e duvidoso.

 

Todavia, quando o sumo mestre levanta

Os braços vazios para o céu,

Posicionando-os como prontos a disparar,

E logo solta com força tanta

A frecha invisível que ninguém percebeu,

Uma grande ave cai por terra a bascolejar.

 

Assim, nos píncaros, o monasticismo

Reconstruir-se-á sem mosteiros,

A linguagem sagrada toca o abismo

Sem igreja, mesquita, sinagoga, medianeiros,

A educação das almas se desenrola

Fora de qualquer escola,

 

Um mundo imbuído de arte

É de indivíduos povoado

De cujas regras a lista

Não requer aparte

Que quenquer seja conotado

Como artista,

Haverá uma psicologia em todos imbuída

Quando já tal disciplina houver sido esquecida,

 

Uma vida de intensa comunhão,

Sem ninguém ter de pertencer

A qualquer

Organização,

 

E um cotio pleno de alma vai ficar ao alcance

Sem ser preciso que em tal direcção

Alguém se lance.

 

Não é utopia,

É onde cada um amanhece

Quando ele próprio acontece:

- Quando ele é o novo dia.

 

 

755 - Digna

 

O que digna de ser vivida

Torna a vida,

 

Pode ser apenas momentânea intuição,

Uma fugaz sensação,

 

O toque da pele dum filho bebé,

O súbito apreço pelo lar,

Tido tão ao pé

Que dele nem dou fé,

Se calhar,

A excitação fugidia

Ao recordar o amor dum dia

De repente a adejar, leveiro,

Duma vida pelo companheiro…

 

O sentido pode ser uma revelação,

Não uma compreensão.

 

Pensar é importante

E fruiremos dum mundo melhor

Se todos aprendermos, pela vida adiante,

A pensar como mais correcto for.

 

Mas pensar é apenas, de lado,

O prelúdio do significado.

 

Cursamos, lemos,

Conversamos,

Estudamos,

Até porventura escrevemos…

 

Embora sejam actividades inestimáveis,

O valor maior é que almejam

Preparar-nos para um instante de reconhecimento

Da semente vital, a centelha

Que dá vida a tudo o que tento,

A tudo o que vislumbro do mundo na celha.

 

Quando vislumbro esta faísca,

Compreendo que deveras um além exista

 

Que pode ser encontrado, a sós,

No que está mais perto de nós.

 

Podemos orientar

Toda a nossa educação

Para o instante que permita vislumbrar

À nossa frente, a germinar

Do chão

De cada individual ilha,

O mais ténue sopro de maravilha.

 

 

756 - Frustrante

 

É frustrante descobrir

Que nunca se esgota o mais fundo desejo

Que sentir,

Seja o que for que na vida almejo.

 

Casas-te e, traiçoeiro,

Acabas por tecer fantasias

Sobre outro companheiro

Doutros dias.

 

Mudas para um lugar lindo

E não tardas a desejar,

A rotina advindo,

Noutro poder abancar.

 

Amas os filhos

Mas gostarias que foram mais

Como os filhos ideais

Que de teus sonhos prenderas aos atilhos.

 

Tens dinheiro, carreira e casa

Mas não pára o motor do desejo

Que ronrona interminável e te abrasa

Algures por baixo do coração,

Em encantatório harpejo

De cantochão.

 

O desejo é a atmosfera

Do reino da sexualidade,

Mantém-nos vivos na espera

E ao movimento persuade,

 

Mantém-nos em contacto com recordações

Calorosas e tristes,

Adentra-nos no reino das imaginações

Quando, em redor, nos despistes,

A nos pressionar

Apenas para momentos práticos há lugar.

 

Do ponto de vista de qualquer alma,

O desejo limita-se a existir,

Não tem de ser satisfeito

Nem se acalma

Pelo mero facto de o seguir.

 

Aliás,

Os desejos uns nos outros estão contidos,

Da frente para trás,

Folículos de cebola mutuamente inseridos.

 

Os desejos menores

Estão contidos e apelam

A desejos mais fundos e maiores.

Os chocolates revelam,

O desejo menor no maior contido:

Que uma vida doce é que faria sentido.

 

Qualquer desejo é digno de atenção,

Embora saibamos dele pela aba,

Que, se recuarmos fundo no chão,

A cruel ânsia jamais acaba.

 

Ora, esta é a fronteira da divindade

Entrevista pela sexualidade:

Esta sensação funda,

Doce-amarga e vazia,

É o incenso duma igreja que se inunda

E, neste vácuo dos céus,

Anuncia

A presença ausente de Deus.

 

 

757 - Além

 

Deus está para além,

No meio de nossa vida.

Ente para-além-no-meio contém

E convida

A uma graciosidade particular

E beleza singular.

 

A beleza emerge apenas quando a vida

Se encontra para além radicalmente

Permanecendo, todavia, fundida

No meio inteiramente,

Ou quando se encontra também

Intensamente

No meio através do para-Além.

 

 

758 - Fresta

 

Orar é perscrutar os céus

Em busca da fresta pela qual

Se esgueiram os anjos que pousam nos coruchéus

E por onde espreita o divino tal e qual.

 

É na abóbada a inescrutável abertura

Ou na postura do fiel orante,

Céu que a limpidez depura

Entrevisto através das copas

Da floresta murmurante,

Fontanela que protegemos com as opas

Da fé

No sono dum bebé…

 

Ou é a discreta entrada nas escuridões do inferno,

Túmulo aberto de Jesus,

Local

Da descida musical

Ao Averno,

O mantra que traduz

O cinzento esplendor

Do mundo inferior…

 

Por vezes é o subterrâneo abrigo

Na guerra deveras

Ou nas mais triviais batalhas que prossigo

Pelas eras,

Travadas

Da vida ao longo das estradas…

 

Pode a oração de impotência andar eivada

Ou pelo medo marcada

 

Ou ser regulada pela ignorância

E pelo acaso de cada instância.

 

Um cancro abre, súbito, da oração a porta estreita,

Buraco negro através do qual, aflito,

O divino espreita

E o homem descobre o infinito.

 

 

759 - Duplica

 

Duplica a literatura

A experiência de viver

Duma forma tão pura

Que nenhuma outra via o poderá fazer,

Mergulhando-nos numa outra vida

Tão profundamente

Que obliteramos temporariamente

Que temos a nossa própria medida,

Para viver.

 

Por isso lemos,

Acaso até o amanhecer,

Desarranjando a manhã que teremos,

Apenas para descobrir, no fim do serão,

O que ocorre com alguém

Que, sabemo-lo bem,

É uma mera invenção.

 

Tal é a fome doutro mundo,

A fome de Além

Que até nisto, jucundo,

Vislumbro, fecundo,

A pequena amostra do que mais nos convém.

 

 

760 - Passado

 

Olhando para trás

Podemos descobrir um mundo novo

No que o passado nos traz.

Na altura, tomámos frequentemente,

Cada renovo,

Cada evento de tal presente,

Irrelevante

Ou importante,

Como dado adquirido

E varremo-lo da memória

Como rasquido,

Desprezível escória.

 

De repente, depois,

Dias, semanas, meses,

Anos, decénios às vezes,

Intensos nos voltam, evocados

Como inéditos arrebóis

E revemo-los com novo olhar, inesperados.

 

À luz da aparição clarividente

Estranhas relações são desvendadas

Entre o passado e o presente.

Vertentes inusitadas

Descobrimos

Em nossa vida

E na do próximo que tão mal vimos

Nos entrelaçamentos de nossa lida.

 

De alma mistério,

O novo

Germina a sério

Do velho ovo.

 

 

761 - Momentos

 

Há momentos em que o maravilhoso

Fundo me toca.

Pequenos nadas de que gozo

Sabem bem na boca

De meu imo

E deixam-me erguido

Lá no cimo,

Estranhamente comovido.

 

Às vezes é um pequenito

A procurar a mão do pai,

Confiante e aflito,

Quando repentina a chuva cai

A meio

Do familiar passeio.

 

Às vezes é um céu de nuvens impelidas

Pelo vento

Que curtas torna as compridas

Horas de encantamento.

E, quando vem um trovão,

É um chamamento:

Corro à janela

Pelo clarão

Que ilumina o firmamento

E a sequela

É a da nostalgia

Que me envolve das profundezas.

 

Mas nada me explica em nenhum dia

De que rezas

Falta sinto

Na vida que me entranço e pinto.

 

 

762 - Enfrentar

 

Para enfrentar a morte

Nunca estamos preparados.

O mistério é de tal sorte

Da vida e morte nos fados

Que é poderoso demais

Para nossos cabedais.

 

Não há mente

Que o logre nunca abarcar.

Apenas mal vislumbrar

O logra, tremente,

Alguém,

Que mal pressente

Quenquer

O que deveras vier a ocorrer

No Além.

 

Verificamos apenas

Que os mortos já cá não estão,

Que partiram, uns instantes de vida após,

Abandonaram, silentes, as cenas

E, desde então,

Nos deixaram sós.

 

Continuamos, contudo, acompanhados

Do Universo pelos murmúrios sussurrados.

 

 

763 - Pedaços

 

Vão pedaços de memória

Em cada partícula de pó,

Noites de amor e glória,

Heroísmos do homem só.

 

Não é, pois, solidão acumulada

Este pó arbitrário,

Antes presença misteriosa disfarçada,

É o contrário.

 

No pó habitam

Milhares de milhões de presenças

De seres que nele se agitam,

Que povoaram a Terra em multidões densas.

 

No pó navegam os restos

Do passado, por mais transfinito,

E dele os inúmeros aprestos:

- É o Todo que nele fito.

 

 

764 - Manter

 

Viver a transição

É, firmemente,

Aprender a manter a ligação

Ao presente.

 

Quão mais se deixar

Pelo desfasamento, antecipação

Tentar,

Mais o espírito lhe constrói a ilusão

Duma realidade virtual

E menos capaz vai ser, desde agora,

De chegar ao horizonte final

À hora.

 

 

765 - Desmentida

 

Nem por inteiro diferente,

Nem por inteiro igual

Ao projectado anteriormente

É a realidade final

Que, desmentida a quimera,

Fica à tua espera.

 

 

766 - Comandar

 

Ninguém pode comandar a existência,

Nem impedir a alternância natural

De altos e baixos em qualquer valência.

As surpresas de cada aurora inicial,

 

Os mistérios da vida,

As fontes ignotas de nosso próprio funcionamento,

Tudo nos ultrapassa e lida

Largamente com o além de cada momento.

 

Não temos mão

No que habita o escuro de nosso saguão.

 

 

767 - Calmamente

 

Respira calmamente e dá-te conta

De que dum grande todo fazes parte.

Vê-o como quiseres, mas aponta

A verdade, reconhecido, que te acarte.

 

Sente até que ponto perfazes

Um da terra com os cheiros,

Os oceanos, os rios, o ar,

O teu mar,

As bases

E os píncaros inteiros,

Um com os que amas

E assim encadeadamente em todas as tramas.

 

Deixa-te habitar

Por este sentimento de unidade,

Sacode o desprazer que aflorar:

- Tu és a Infinidade.

 

 

768 - Sentido

 

Sentido é aquilo com que ilumino

O caminho cá em baixo,

Algo que me alimenta o destino,

Alimentando os que, em cacho,

Me rodeiam,

Escapando ao medo a que ameiam.

 

Se o que faço

Alimenta os outros e não a mim,

Torno-me vítima do baraço,

É o meu fim.

 

Mas se o que me alimenta

Não alimenta os demais,

Então o que se me apresenta

É um egoísmo dos fatais

Sobre o qual construir, de nenhum jeito

Nada poderei que tome a peito.

De qualquer modo,

Sentido

Sou eu aos outros, ao Todo

Finalmente unido.

 

 

769 - Peça

 

A vida é uma peça que representamos

Sem argumento, de improviso.

Não há nenhum escrito escondido nos ramos

Com réplicas ideais que viso

Mas que nem sequer

Consiga dizer.

 

Aqui, de pé,

Doa o que dói,

Aceitar quem se é

É aceitar quem se foi.

 

Não há nenhum álibi:

Nada será realizado

Que já não tenha estado

A germinar em si.

 

A vida, mesmo quando me ilude,

É o itinerário

Que me grude,

Sumário,

À plenitude.