SÉTIMO TROVÁRIO
DE NOVO TREPA AO SONHO, À INFINIDADE
Escolha ao acaso um número entre 679 e 769, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
679 - De novo trepa ao sonho, à Infinidade
De novo trepa ao sonho, à Infinidade,
O poema com o metro irregular,
Rimando dele a pobre mendicidade
Com a opacidade
Do que o sonho promete e não quer dar.
Nas palavras em síncope perdidas
O encontro naquele desencontro busco,
Do cotio pelas lidas,
Meu eterno lusco-fusco.
O poema entreabre o véu
Donde vislumbro
O céu.
E, enquanto na palavra a noite alumbro,
Do alvor que em mim desponta me deslumbro.
680 - Encontrares
Que ocorrerá
Se encontrares o que procuras?
Despojado não ficará,
Sem metas seguras,
O dia que ali chegar?
Que farás, após conquistado
O derradeiro lugar?
Uma vez saciado,
De toda a alegria na vida
Não findarás privado,
De todo o motivo de viver,
Em seguida?
Cuida nisto, pequeno ser,
Até compreenderes porque é que o Universo
Se expande e se contrai
Do infinito das eras ao infinito,
Sem jamais repetir o mesmo verso,
Porque é que os espaços ermos arroteando vai,
Aguilhoando e serenando a par teu peito aflito.
681 - Admiro
Admiro para trás
A tapeçaria de minha vida.
É sempre um emaranhado de linha multicolorida,
Rugoso de nós, desde miúdo e rapaz,
De meus alinhavos diários disto e daquilo,
Dum lado.
Doutro emerge um padrão doutro estilo,
O inesperado desenho coerente, coerente dum fado:
- Eu ignoto de mim,
Vário e surpreendente até ao fim.
682 - Livro
O livro é dono de casa
De múltiplas tarefas,
As magníficas do que me abrasa,
As deploráveis de poluentes trasfegas.
Espalha o conhecimento,
Mas igualmente a maldade,
Ilumina num momento,
Engana após o que invade,
Liberta e também manipula,
Exalta e também rebaixa,
Cria além de quanto nos regula,
Cancela vidas onde mal encaixa.
Sem ele era inviável a cultura,
Estiolaria a História
E o futuro, no que augura,
Era uma sinistra nuvem premonitória.
Quem o livro odeia,
Odeia a vida.
É que, por mais horríveis ódios que nele leia,
Quase por inteiro, ao invés, a letra imprimida
A balança inclina
Para a generosidade e a luz.
Nela, frágil, traduz
Nossa marca divina.
683 - Nómada
Nómada desperto de ontem,
Dormito no sedentário
De hoje, onde os sonhos não contem,
Aqui, sumário.
Sou encruzilhada retesa
Entre uma e outra natureza.
Aqui me confino
E macero dia a dia.
Acolá me destino,
Desmedida a fantasia,
E me exalto nos ralos
Intervalos.
Num pendor me desventuro,
Sem mais tender ao cimo,
No outro me aventuro
E redimo.
684 - Esvai
Honrarias, vaidades, riqueza,
Tudo esvai do tempo a voragem.
Um homem apenas vale pela grandeza
De alma atingida na viagem.
O pulsar dum coração
Generoso
Não o apaga a multidão.
Mesmo extinto,
Continua a bater fogoso
Na memória daqueles a quem deu,
Distinto,
Algum calor.
Aí principia do céu
A adivinhar-se o palor.
685 - Memória
Quer ver o que é o inferno?
É a memória rigorosa
De quanto praticou de baixo, de subalterno,
Pela vida fora,
A palavra irreflectida tenebrosa,
Pensamentos e acções
Cruéis e maus,
Armadilhados de abismos e fundões,
Sem pedras de passagem nem vaus.
É saber que podia
Ajudar o irmão
E não lhe deu a mão
Ao transpor a atropelada via.
O inferno é claridade,
Mais nada.
E o céu é a mesma realidade,
Claridade consumada.
686 - Inútil
Acto inútil é escrever
Como quanto o homem pratica.
As palavras estão gastas e qualquer
Já destilou todo o sumo a que se aplica.
Já tudo foi dito:
Resta-nos abrir as portas do Infinito.
687 - Seduziram
É mais uma utopia
A juntar às inúmeras que desde as origens
Nos seduziram e aguilhoaram,
Eras fora, na harmonia
Das vertigens
Que nos aram?
Sem um sonho no vazio
Da noite,
No fio
Do açoite,
Como amanhecer
De nós contentes,
Como sol acender
No sorriso entre dentes?
E é de nós, de nosso teor,
Que descontentes andamos.
Quão mais pobres de ideal e de amor,
Mais nos encanzinamos
A degradar a feição
De nossa humana e triste condição.
O sonho
Abre a porta:
Se nele nunca me ponho,
Pelo menos é de além que ele me exorta.
688 - Vida
A vida humana
É a demorada breve despedida
Que ao nascer principia e dali mana
Até à derradeira partida.
Despedida primeiro do aconchego
Do ventre materno,
Depois do refego
Terno
Da meninice, juventude,
Dos dons naturais, saúde,
Dos bens, alegrias, fartura e carência,
Até ao apagar da consciência.
E ficamos de vez desprendidos
Quando acabamos esquecidos,
Quando ninguém nos lembra o rosto nem a vivência
Nem a ninguém dói a dor de nossa ausência.
Findamos de vez do lado de cá,
- Mas quem garante que a aventura não continuará?
689 - Mistério
O homem é um mistério encarnado
Opaco aos olhos mais penetrantes.
Ninguém conhece deveras ninguém,
Caminhamos lado a lado,
Hesitantes,
Na terra de pedro-sem.
Os poetas mostram como são
Por imposição da poesia,
Do ser a irromper das profundezas de vulcão:
O poema, ao se manifestar,
Traz à tona, ainda a fumegar,
A verdade que anuncia.
Do mistério se aproxima
Apenas das artes esta débil rima.
690 - Ler
Ler, mais que um acto de cultura,
É um acto de inteligência,
Factura
De liberdade
Em minha vivência.
Quando leio, não fico preso
Nos muros da minha herdade,
Saio com os personagens,
Transponho da montanha o teso,
Corro pelo mundo fora,
Vejo as gentes e as paisagens,
Vivo com quem por lá mora,
Oiço cada qual e, a par,
Solidarizo-me ou não com ele,
Chego mesmo a dialogar
Até com este ou com aquele…
Ler abre as portas e janelas
Das casas,
Aponta-me as estrelas
E dá-me asas.
691 - Meta
A meta de verdade
Na terra para vossa estada
É alcançar a fragilidade
Com a Força harmonizada.
A fragilidade que é vossa
Com a Força que vos excede
E até onde pode ir afinal ir possa,
Em vossa escolha mede.
O caminho é aberto
Desta medição pelo acerto.
692 - Minúsculo
Perdido no Universo,
Quão minúsculo, irrelevante,
E, contudo, no inverso,
Conforme o tomem,
Quão valoroso e que gigante
- É o Homem!
693 - Desiludidamente
A pergunta, a demanda,
A procura interminável
Da outra banda,
Da comunidade inominável,
Da outra idade ao longe e ao fundo,
Desiludidamente para sempre iludida…
Transformar o mundo,
Mudar a vida…
E supor,
Enganado, desenganado
Que é para melhor
Este fado.
694 - Criador
Do criador com a energia
Principia.
Em teu corpo a deixa entrar
Até te plenificar.
Por tua cabeça deixa-a fluir,
Por teus olhos, por ti mesmo inteiro a ir.
Extravasá-la deixa para o mundo
Num campo de oração constante e fecundo,
Até veres apenas beleza e fulgor
E sentires apenas amor.
Num estado de maior alerta,
Espera que o campo, na primeira aberta,
Irradie e eleve dos demais
Os campos espirituais,
Bem acima dos fundões de nosso grito
Até deles à intuição do Infinito.
695 - Anjos
Os anjos invocar podemos
Para nos ajudar,
A quantos no mundo convivemos
Ao calhar.
Não é fácil, porém.
É inviável aos gestos furtivos
De quem
Tenha intuitos negativos.
Nada opera se não estivermos ligados
Inteiramente pelo interior
À energia que anima os traslados
Do Criador.
E se não se envia
Muito conscientemente
Nossa energia
À nossa frente,
Os outros a tocar
E o mundo inteiro.
Se um mínimo de ego protagonizar
Ou da raiva respirar o cheiro,
Toda a energia cede e cai,
Os anjos não podem responder.
Tarde ou cedo, tudo se esvai
Num vazio qualquer.
Somos os agentes de Deus
Neste planeta.
Podemos afirmar e defender a visão dos céus,
Discreta,
E, se nos alinharmos genuinamente
Com tal porvir positivo,
Teremos energia suficiente
Para os anjos então nos darem todo o incentivo.
696 - Descrever
Cada religião tem um nome diferente,
Uma diferente forma
De descrever o Infinito Ente,
- Deus, Alá, Javé… -
E de vida a norma
Dele decorrente
Que o Homem deve pôr de pé.
Mas em todas as religiões
A experiência de Deus,
E energia do amor
É a mesma por trás dos véus
Que lhe impões
Com teu fervor.
Cada religião
Tem uma história própria desta relação
E uma forma exclusiva de falar dela,
Mas existe apenas uma fonte divina
A dessedentar quenquer que se inclina
Para ela.
Cada religião tem a sua verdade
Que tem de ser incorporada
Com a metade
Perdida e achada
Das outras mais,
Em sínteses ideais.
É viável atingir isto
Sem de nossas crenças tradicionais
Perder da verdade básica o registo
Nem as soberanias reais.
Assim, eu próprio sou ateu
De qualquer Deus, que é sempre humano,
E sou cristão visando o céu,
Intimista muçulmano
E bem terreno judeu
Como, no fundo espiritualista,
Sou budista,
Ou, nas mais fundas raízes,
Sou animista
Em múltiplos matizes
E, se em mim escabulho um pouco mais,
Sou hindu politeísta,
- E todos somos tudo, se bem reparais.
Este é o caminho
Que reúne
O porvir de pão e vinho
Que de longe nos chama e ao fim nos une.
697 - Divina
Fluir deveria,
A partir da divina ligação
Que existe em nós, em nosso coração,
A nossa interior energia,
Procurando a sincronicidade
Da expectativa,
Transportando toda e qualquer individualidade
Que tocar, ao mais elevado Eu que nela viva.
De nossas vidas a misteriosa evolução
Desta forma optimiza e despoleta,
O desvelamento e concretização
De nossas missões individuais neste planeta.
Ao longo do caminho há percalços, porém,
Desafios que provocam estados de medo
Que dúvidas cavam estrada além
E então, em minha alegria, cedo.
Este medo, pior ainda,
Pode criar imagens negativas
Que, a ocasião vinda,
Alimentam más expectativas
Que, por sua vez, ajudam a criar os tramos
Daquilo que nós mais receamos.
Temos de aprender a ancorar
A energia superior
Para a manter no lugar
Esquivo
De seu teor
Mais positivo.
O problema do medo
É que ele é tão subtil
Que pode apanhar-nos desprevenidos
Muito depressa: no credo
Mais adulto como no mais infantil
Somos sempre anjos caídos.
Uma imagem receosa é um resultado
Que não queremos,
Tememos falar dum dado,
Embaraçar-nos a nós e a quem amemos,
Perder a liberdade,
Uma pessoa querida,
Uma faculdade,
A própria vida…
Começo no medo,
Transformo-o em raiva,
À agressividade cedo,
Luto como carraça
Contra quem eu saiba
Que me ameaça.
Tudo provém dos pendores de vida
Que quero manter.
Evito as perdas na medida
Em que, por todo o lado
Me distancio de todo e qualquer
Resultado,
Para aderir, calmo e contrito,
À vontade do Infinito.
698 - Futuro
O futuro aceita
Pais desajeitados,
Professores enervados,
Qualquer pessoa imperfeita.
Assim cresçam com a imperfeição
Com que toda a criança dialoga
Dia sim, dia não,
Enquanto na onda voga.
Só quem não aceita a imperfeição,
Começando pela sua,
É que não cresce, tendo à mão
Sempre à frente nova rua.
Só quem não reconhece
A obrigatoriedade de crescer dele no apuro
Não aceita e esquece
O futuro.
699 - Sabedoria
A sabedoria não é da idade,
É a verdade
Que vem
De buscares no coração a resposta que convém
E de noutrem pensares, agora e aqui,
Antes de pensar em ti.
A sabedoria dá vida,
Dá conhecimento,
Vai dar a paz do espírito perdida
E a do coração em tormento.
Mostra que a vida é um lucilar de estrela,
Orvalho de madrugada,
Um nada em que tudo se revela
Berma de estrada
Onde concito
A fímbria do Infinito.
700 - Aceitar
Mal desejes deveras a felicidade,
Logo ela te encontrará.
Levar-te-á
A aceitar com frontalidade
Tua perda, na justa medida
Em que te ponha de bem com a vida.
A felicidade vai-te permitir,
Nas conjunturas mais negras,
Esperança sentir
E paz
Em pleno mundo sem regras,
No caos falaz.
Serás excepção:
Uma estrela no céu
Com a raiz no chão
Donde virente cresceu.
701 - Flor
Como os dias de nossa vida
Voa a flor de cerejeira
Para longe, distraída
E leveira.
É um efémero evento
Maravilhoso,
Um portento natural, portento
Saudoso.
Não pressentes que o assina
A presença divina?
Desabrocha a flor,
Irradia brancura
E, após um instante de fulgor,
Já não é mais, ausência pura.
Pétala a pétala morre,
Expulsa-a o vento
Como a nós o tempo que corre,
Fatal, momento a momento.
A saudade doutra dimensão
Magoa-nos o coração,
Tenhamo-la ou não em vista,
Exista
Ou não,
No horizonte para onde aponta a pista
De nosso chão.
702 - Primeiros
De Deus os profetas pioneiros,
Os primeiros jardineiros,
Morrem.
Os que depois acorrem
Uns com os outros se zangam.
É humano, todos mangam
Doutrem com a ideia para o adubo:
Ou é pelo animal sacrificado que a Deus subo,
Ou é pelo vinho e pelo pão,
Ou então é de água apenas a questão,
Mas logo outro quer água mineral,
Enquanto água filtrada é para o vizinho o sinal;
Além querem lume a queimar folhas secas,
Aqui apenas ar, senão tu pecas…
Todos são ecologistas
Mas nunca se entendem nas pistas.
Um deles publica um dia
Dele o modo de tratar
Da venerável árvore da fé.
Logo tudo se enfuria,
Todas as religiões vão começar
A se defender
E a combater,
Até cada qual num território tomar pé.
Na Primavera,
Quando a venerável árvore cresce,
Cada jardineiro fica com o ramo duma espera,
Uma divergente prece
E, em lugar do Deus único nos céus,
Em cada galho, seu deus.
Ora, qualquer árvore tem de ter ramos
E, se não é podada, definha.
Quando um ramo não dá folhas, dentre os amos
Um novo jardineiro o vem cortar em toda a linha.
E logo ele renasce
Para o rebanho que pasce.
Quando o judaísmo começa a secar,
O jardineiro Jesus corta o ramo morto,
O que dois virentes ramos vem a dar,
Em vez dum, para mais torto.
Quando o cristianismo se enche de bolor,
O jardineiro Lutero o ramo poda
E um inesperado esplendor
Dos dois novos galhos traz à boda.
Quando à Primavera o bramanismo despreza,
O jardineiro Buda faz-lhe a limpeza…
E são assim
As contas do rosário sem fim.
Resta entendê-las
Como de árvore as pernadas,
Degraus de escadas
Por onde trepamos às estrelas.
703 - Impossível
É impossível sem Deus morrer
Mas, em contrapartida,
Não é impossível crer
Que tal ocorreu, à despedida.
Ora, o que se crer
É o que do lado de lá
Se irá
Viver,
Ao livre arbítrio ninguém,
Nem Deus, o retém,
Nem do lado de cá da vida,
Nem após a derradeira ida.
704 - Experiência
Experiência temos
Dum mundo tridimensional.
Porém, o mundo em que vivemos
Não é todo o real.
Complexa que baste
É a Realidade Final
Para ir infinitamente além
De quanto, mal ou bem,
Imaginaste.
Nenhum horizonte a abarca,
Tanto nossa vista é parca.
705 - Limite
A vida é eterna, o amor, imortal
E a morte é apenas um horizonte.
Ora, um horizonte, afinal,
Marca somente o limite da ponte
Cujos arcos são
Os da lonjura de minha visão.
706 - Sabor
Sabor a Deus: a eterna vivência
De ti próprio como criador…
Deus é o Criador por excelência
E, quando vivenciares-te a ti te vem propor
Como criador, o teu destino
É vivenciares-te a ti próprio como divino.
707 - Singularidade
Da singularidade do Infinito
Sou a individuação,
A vivenciar simultaneamente da vida o fito
Em sequencial progressão.
Do Infinito gota,
Vivo o Todo na parte,
Em simultâneo de tudo a cota
E do rosário conta por que se reparte.
708 - Morte
É a morte o evento através de que te moves
Para atingir o outro lado,
Passagem entre o mundo físico que removes
E o reino espiritual, teu legado.
E depois, uma vez lá imerso,
É o inverso.
709 - Uno
A morte
É uma reintegração.
Longe de ser o desnorte
Duma fatal desintegração,
Todas as realidades basilares,
Simultaneamente trinas e unas,
Devêm singulares,
Que em unidade tudo coadunas.
Em toda a individualidade,
Nos mil pendores que reúno,
A Santíssima inúmera Trindade
Devém o Uno.
710 - Cume
Magníficas e verdadeiras são
Todas as religiões da Religião.
E todos os ensinamentos deveras espirituais
Caminhos são para Deus, enquanto tais.
E nenhuma religião e nenhum ensinamento
É mais certo que outro, no respectivo elemento.
De trilhos há uma quantidade tamanha
De chegar ao cume da montanha!
711 - Creias
Não creias numa só das palavras de Deus
Nem em nenhum profeta que fale dos Céus.
Ouve o que te disserem e após acredita
No que o coração diz que a verdade concita,
Pois no teu coração mora a sabedoria
E é nele que a verdade encontra a via.
E no teu coração se encontra Deus contigo
Na comunhão mais íntima de amigo.
712 - Viagem
Não andas em viagem para o Divino,
Mas a meio dum itinerário eterno
No qual experiencias, escolhendo teu destino,
Cada vez mais a Divindade, teu ser superno,
Ao avançar por dentro dela
No mar da vida que se te encapela.
Sentes cada vez mais o núcleo de teu ser,
Cada vez mais a essência de quem és
E a vida continua, continua a acontecer,
Cada vez mais a teus dois lados resvés.
Estás eternamente em fusão com a essência
E, como parte da teia da vida,
Emerges de novo dela, florescência
Exprimindo-a mais plena em cada degrau da subida.
713 - Simples
Deus és tu,
Para de modo simples o dizer.
Na verdade, sem tabu,
Deus é tudo em todo o ser.
Não há nada,
Debaixo ou acima dos céus,
Qualquer que seja a fachada,
Que não seja Deus.
Minúscula onda a esmo
Para o oceano que não apanho,
Assim sou para Deus: o mesmo,
Mas em minúsculo tamanho.
714 - Chover
Como chuva é a realidade final:
O facto de chover não podes alterar,
Mas podes alterar, afinal,
Tua vivência da chuva, ao mudar,
Em tuas anteparas,
O modo como a encaras.
Para mudar a Realidade Final
Não tens poderes,
Mas podes experienciá-la, total,
Da maneira que entenderes.
Acerca da Realidade escondida
Este é o maior segredo da vida.
715 - Esperança
A esperança intervém
Na morte e na vida,
Que ambas são também
A mesma realidade, assumida
Do lado de cá e de lá
Do espelho que no fim o mostrará.
Nunca desistas, nunca, da esperança!
É uma afirmação de teu desejo
No mais elevado píncaro que alcança,
Anúncio de teu sonho, teu harpejo
Mais ambicioso, tombados os véus.
A todo o momento
A esperança é pensamento
Feito Deus.
716 - Pejados
Todos os dias de tua vida
Estão pejados de pequenas mortes.
Qualquer deles te convida
A compreender:
Não há sortes,
Só transportes
Até o âmago do Ser.
717 - Núcleo
Que há de tão espantoso
No núcleo de meu ser?
Qual o gozo,
Que prazer?
O verdadeiro Eu,
O Eu pleno,
De fértil gineceu
O aceno.
A glória e o espanto
De quem sou, sem quebranto,
E do que a Vida é,
Semente árvore feita ali de pé.
Em resumo, sem mais véus:
- Deus!
718 - Fora
Em tempos imaginava
Que fora da maçã do Ser estava.
Meu sonho, minha esperança maior
Era vir a conhecer dela o sabor.
A velha espiritualidade
Tal me ensinou como verdade.
Não estou, porém, fora da maçã,
Sou dela parte, embora humilde e chã,
Desloco-me através dela nos gestos meus
E a maçã, no seu todo, é Deus.
Deus não apenas da maçã mora no centro
Mas é o centro de tudo a que me adentro.
Quando no real mais fundo repoisas,
Deus é todas as coisas.
719 - Desejos
Melhor que qualquer outro, nenhum caminho
É para Casa,
Apenas mais fácil ou difícil o adivinho
No que me apraza.
Todos os caminhos para lá te levam
Porque o que faz falta
É que ânsias de chegar em nós se atrevam,
Num coração puro, aberto, em alta,
Mais a fé de que Deus não terá razão
Para dizer "não,
Tu não podes estar comigo",
Qualquer que seja a motivação.
Muito menos ao abrigo
De que o réprobo em deus acreditaria
Doutra religião
Numa qualquer outra via.
720 - Libertares-te
Ao libertares-te de verdade
Sem hesitação nem arrependimento
De qualquer sentimento
De individualidade,
Tua alma aproxima-se da luz que a invade.
Aí ficas submerso, suspenso
Em algo de tal maneira imenso
Que já ninguém algum dia deseja
Vir a conhecer o que quer que seja
Que não isto, imerso na glória infinda, inefável,
Duma magnificência interminável,
Duma beleza sem paralelo, final,
E duma plenitude sem igual.
Depois de te haveres fundido nesta luz,
Sentes-te a dissolver-te noutra realidade.
Esta fusão que te seduz
Completa tua mudança de identidade.
Deixas de identificar o melhor de teu Eu,
De qualquer modo ou a qualquer nível,
Com o vector separado do ser que foi o teu
Em tua vida física anteriormente visível.
721 - Aqui
Aqui, na imersão total do Ser,
Chegas onde experiência e saber,
Sem defeito algum,
São apenas um
E onde o que sabes e vivencias
É que não és teu corpo, tua mente,
Nem tua interior alma que mal vias
Presente.
És algo muito maior,
Múltiplo do total de energias
Que os três produzem, seja lá como for.
Na morte reconciliadas,
Todas as tuas identidades individuais
São por fim compartilhadas,
Pondo termo, sem mais,
Ao que em ti vivera a esmo:
- A lonjura entre ti e ti mesmo.
722 - Portal
A esperança é o portal da crença,
A crença, o portal do conhecimento.
O conhecimento é o portal da criação:
A sentença
É fermento
E a criação é o portal da experiência,
Função
Da vivência.
A experiência é o portal da expressão,
A expressão, o portal do devir,
O devir é a vida toda em acção
E de Deus o devir é a única função,
Gerando o porvir.
Aquilo que esperas
É aquilo em que acabarás por crer.
Aquilo em que crês com todas as veras
É o que acabarás por saber,
O que criarás,
O que a viver
Findarás.
O que viveres é o que acabas por exprimir,
Aquilo em que te tornarás
A seguir.
Esta é a fórmula resumida
De toda a vida.
723 - Brinca
Brinca com os mais enquanto aqui andas,
Aprende a brincar como deve ser!
No jardim dos deuses moras e comandas,
Foi-te dado o mundo inteiro para te entreter.
Tens riqueza bastante e de muitos modos
Para chegar para todos.
Ninguém devia passar fome
E menos, de fome morrer,
Nem sofrer frio por não ter
Roupa que tome.
Nem devia não ter onde se abrigar
Da tempestade
Que o alcançar
No esconso de qualquer idade.
Não é preciso nada
Para brincar bem.
Para uma experiência gloriosa de quem
És,
De mais nada precisas em tua jornada,
De vez.
Para seres feliz,
Para sobreviveres,
Sempre muito e de raiz
Imaginaste que era preciso requereres.
Ora, tudo é função
De tua imaginação.
Na morte irás entender
Quão pouco isto importa,
Tudo isto, nem pó sequer,
Abandonado à porta.
Da vida física ao partires,
Entenderás que lutaste para nada.
E tua longa vida de erguidos menires
Terminará ignorada.
724 - Recomporemos
A morte é a realidade
Pela qual recomporemos nossa identidade.
É o céu o lugar
Onde tal se irá regular.
Não é, porém, qualquer lugar, qualquer,
Mas um íntimo estado de ser.
O outro lado não tem no Cosmos localização,
É do Universo uma vivência, uma secreta expressão
Que exprime a própria divindade
Através do Eu, em minha interioridade.
725 - Viajo
Por que viajo sem parar
No contínuo do tempo-espaço?
Para quê buscar
Eterno de Deus o abraço?
Tua viagem não é de Deus eterna busca
Mas de Deus a eterna experiência
Que no íntimo te chamusca
De tua vivência.
Deste pendor entendida,
A continuidade da viagem
É evidente medida:
É uma eterna tecelagem
De vida.
É o modo como conheces Deus clandestino,
Como a ti te conheces enquanto divino.
Esta viagem, em toda a via
É tua maior alegria.
726 - Primeira
Se crer que sim,
Deus é a primeira vivência que terei
Depois de minha morte, em mim.
Assim
Acontecerá,
Acontecerei.
Porém, não precisarei
De esperar até lá.
Tenho estado com Deus
Durante minha vida inteira
- É o que andam a dizer-me os céus
Em meu imo, à minha beira.
O erro central das teologias humanas
É crer que um dia conhecer Deus vais
E é no que te enganas.
Um dia, da morte no golpe de asa,
Para Deus, para casa voais,
Escapando ao mundo triste?
Não, nunca regressarás a Casa:
- É que, se bem reparas, tu nunca de lá saíste!
727 - Natureza
É próprio da vida
Exprimir-se:
Não há como o elida
Ou nem seria, ao fugir-se.
Ora, a vida é apelidada
Como Deus, Essência, Energia,
Absoluto, Infinito, carimbada
A gosto, qualquer que seja a Via.
Seja qual for o termo a usar,
É sempre da Vida que andamos a falar.
No roteiro da expressão,
A vida, literalmente,
A ela própria se exprime, torrão a torrão,
Dela própria sai, dá origem
A ela mesma noutra vertente
Dela própria, de modo que, nesta vertigem,
A ela própria se pode conhecer
Através da própria Experiência que tiver.
Tal é a Vida, tal é Deus,
Tal sou eu, no fundo dos gestos meus.
728 - Experienciar
O que tua fiel alma procura
É sempre experienciar o que sabe:
Tua fiel alma sabe da loucura,
Que nunca deixaste Deus,
Pois no real tal não cabe,
E é o que procura viver nos gestos teus.
A vida é um cadinho
Em que a gentil alma transforma
Saber em experiência.
E, desta forma,
Quando, no caminho,
A premência
Do que soubeste e experienciaste
Deveio realidade vivida,
O itinerário foi, quanto baste,
Completado à medida.
Teu Lar,
Em derradeira lição,
É o lugar
Da perfeição.
É a consciência integral
E o que deveras és,
Através
Do conhecimento completo, final,
E da experiência completa, de vez.
É o fim da separação
Entre ti e a Eternidade:
Este corte é uma ilusão
E qualquer alma o sabe de verdade.
A perfeição
É o momento em que termina a grade
Da separação:
É o momento da tua reunião
Com a Divindade.
729 - Deslocar-te
Tu, enquanto espírito puro,
Podes deslocar-te pela Singularidade
Em ciclos intérminos, seguro,
Sentindo teu eu, tua individualidade.
Tu és esta Singularidade,
O Ser de que tudo é feito,
A essência pura, de verdade,
A energia a preceito.
És uma individuação
Desta energia, desta essência,
Uma individuação da Singularidade
Enraizada no chão.
À Singularidade chamam Deus, por excelência,
À individuação chamam tu, tua egoidade.
Podes subdividir teu eu
E deslocar-te pela Singularidade
Em infindas direcções diferentes do mesmo céu
De eternidade.
Chamam vidas
A estes aleatórios movimentos
Pelo contínuo do espaço-tempo em que te convidas
A tomar alentos.
São os ciclos do Eu
Que o eu ao Eu revelam
Através da circulação do Eu pelo eu,
Nas paisagens do céu
Onde todos os mistérios se desvelam.
730 - Fim
A morte não existe
Enquanto fim da vida.
Como vivência humana tudo persiste,
O que se elida
É tua física presença.
Esta termina com a sentença
De tua morte,
Mas não a própria vida
Cuja vivência, em tal transporte,
Explode desmedida.
Se crês em Deus, crês na vida eterna,
Uma vez que os deuses de todas as religiões
A prometem, superna,
Sem quaisquer limitações.
Se em Deus alguém não crê,
Pode mudar o que experiencia,
Não o que a realidade é
Nem o que anuncia.
Vai experienciar
Daquilo em que acredita a lista
E aquilo em que acredita irá derivar
De seu ponto de vista.
Este, porém,
Mesmo no termo
Poderá sempre mudar:
Basta que ele o queira também,
Sozinho demais ao descobrir-se em seu ermo.
731 - Nascendo
Nascendo, afastas-te da clareira,
Penetras na floresta.
Faze-lo pela vez primeira,
O que te atesta
Que poderás vir a ter dificuldade
Em reencontrar
Da clareira o lugar,
Ao fim de teu passeio em liberdade.
Então decides ir marcando
As árvores, com golpes de tuas vergastas,
Quando
Te afastas.
Ao retornar da floresta recordas,
Vendo as marcas,
Que as puseste ali como estendidas cordas
Para vires a encontrar, com guias tão parcas,
Mais facilmente a saída
Eternamente escondida.
As marcas são-te exteriores,
Acabarão por conduzir-te a Casa
Mas a Casa não são tais marcadores,
Por mais que do lar prenunciem a brasa.
As marcas mostram-te o caminho,
A vereda, a estrada a calcorrear
E, roteiro em meio ao desalinho,
Tal caminho parece-te familiar.
Reconhece-lo, conhece-lo de novo.
O caminho, porém, não é o destino,
Leva-te até ele, como ao ninho o ovo,
E do fim te canta previamente o hino.
Outros recursos há
Para te pôr no bom caminho:
Outros podem mostrar-te, aqui ou acolá,
O que eles próprios seguiram no rumo adivinho.
Mas apenas tu podes encontrar
O destino que for teu.
Do mundo exterior os eventos estão no lugar
Com tal objectivo nada sandeu.
Foi por isso que, do fundo ignoto de ti,
Os puseste ali.
732 - Degraus
Um degrau é saber algo,
Outro, experienciá-lo,
Outro ainda, senti-lo.
Os degraus galgo,
Com mais ou menos abalo,
Talhando o perfil que me perfilo.
Apenas o sentimento germina a Consciência,
O saber apenas gera consciência parcial
E a experiência também.
Podes saber que és divino, por essência,
Mas, quando experiencias, afinal,
Teu eu a ser divino, o que advém
É a tua consciência devir perfeita no evento
Pela vivência deste sentimento.
Podes saber que és qualquer vector da divindade,
Mas só quando experiencias teu eu a sê-lo
Tua consciência abrange a totalidade,
Do sentimento pelo anelo.
Dos degraus o topo
É meu perene e derradeiro escopo.
733 - Dormito
Mesmo quando sou negligente
E dormito no travesseiro
De minhas falhas, impenitente,
Ele sacode-me inteiro,
Perturba-me e me atinge,
Faz o que pode para me despertar,
Mesmo quando de ausente finge,
Em tudo o que me manda atribular.
A atribulação
Dorida
É dEle sempre aquela mão
Escondida.
734 - Desígnio
Exprimem provações e dificuldades
Um desígnio bem mais fundo que o do ego,
Dele com a confiança na mente e nas verdades,
Às fúteis intenções com o apego.
Desígnio do mais fundo cariz:
- O de abrir portas e dar corpo à derradeira raiz.
735 - Meio
Meio no tempo, meio na eternidade,
Tudo o que é feito nunca pertence
A este mundo na integralidade,
Contudo está sempre neste mundo.
Ora, deste mundo que nos vence
E convence,
Que nos inunda e de que me inundo,
Todos podíamos viver
Parcialmente fora.
Iríamos aí descobrir, medir e ver,
A qualquer hora,
Em nossos desempenhados papéis,
Nos estugados patamares,
Os limites das leis
E convénios singulares.
E manteríamos a abertura
Para um mundo novo permanentemente
Que aqui se inaugura
Em semente.
736 - Bosque
O espírito puro,
A pureza espiritual,
No bosque incarnou.
O músico pega, seguro,
No violino e, fatal,
Eleva-nos num voo
Do espírito aos píncaros alvinitentes.
O arquitecto junta madeiras
Incongruentes
E constrói um templo, uma catedral
De maravilha
E neles lemos, inteiras,
As esteiras
Do fanal
A piscar do Além-mar de qualquer ilha.
Encontrar Deus podemos
Abrindo as gelosias
Da casa que erguemos
Todos os dias.
737 - Narrativa
A fé tem a raiz
Na sabedoria do poeta,
Não nas ilusões servis
Dos factos que o mundo acometa:
Em norma têm estes impedido e tornado vão
O apuramento e a eficácia da religião.
É de abandonar
A narrativa
Decadente,
Maçudamente objectiva,
E descobrir o significado urgente
Do mito que, dela em lugar,
Se vem tornando emergente.
Do sonho a magia
Abre a janela para o outro lado do dia.
738 - Mói
Só um poeta sabe astronomia,
Por isso me guia.
O queijo
Da Lua,
Não a Lua que vejo,
É que por mim dentro se insinua.
A mó de jaspe
Que no céu mói a farinha
É que faz que raspe
O mistério de cada adivinha.
Talvez só nos místicos momentos
Saibamos o que ocorre em nossa vida.
Até formularmos os míticos questionamentos,
Os teológicos e sobre os mistérios
Podem estar,
Na frenética lida,
A analisar
Cemitérios
De ilusões sem guarida,
A tecer teias por cima do rosto
Sem pescoço,
Descomposto,
Que pretende ser o nosso.
739 - Assoma
O deus em mim próprio escondido profundamente
Assoma fugidiamente.
Descubro então,
Como os místicos de qualquer tradição,
Que o si-próprio e o divino andam separados
Pela mais fina das membranas, de ambos os lados,
Na verdade, em derradeira aproximação,
Por uma membrana de ilusão.
Eu e o Outro, quando deveras me ensimesmo,
Somos o mesmo.
740 - Apaziguemos
Apaziguemos o coração ardente
Ansioso de plenitude,
Não pela descoberta improcedente
Do perfeito par que sempre ilude,
Nem da casa de sonho
De que jamais disponho,
Nem do êxito no local de trabalho
Onde o acaso é muita lei do que valho,
Mas ao captar,
Porventura pela primeira vez,
A eternidade a pulsar,
Momentânea, ao dispor neste entremez
E os contornos do todo no vulgar elemento
Fruído neste momento.
741 - Paixão
A força demoníaca
Transmudar-se pode pela paz
Numa paixão elegíaca
E de felicidade num impulso capaz,
Não tendo de ser agressiva
Nem por força negativa.
Todo o demoníaco é divino
Por final destino.
Requer que a ele nos adaptemos,
A nós e à nossa vida,
Que perenemente nos reimaginemos
À medida
Do radical, esquivo,
Seu trabalho criativo.
Barro teremos de ser, de antemão,
Da raiz dele para os dedos de artesão,
E o demónio trepa aos céus,
Por nós feito deus em Deus.
742 - Fonte
Um íntimo demónio
Não é um problema,
É a fonte e o lema
De minha criatividade,
Da musa o harmónio
Que me inspira a identidade.
Não é fácil distinguir
Nele o bem e o mal.
Se, de medo e confusão, não o enfrentar, a seguir
É difícil controlá-lo e, fatal,
As qualidades negativas
Vingarão, decisivas.
Defrontada corajosamente a matriz demoníaca,
Com intrepidez,
Descobrimos quão criativa,
Genesíaca,
Construtiva,
Ela devém de vez.
Pode, num segundo,
Abrir a porta para um outro mundo.
743 - Véu
Se o véu ilusório perfurar do literalismo
E vislumbrar as camadas sobrepostas dos eventos,
O entrevisto abismo
É fértil em portentos.
Talvez não retorne jamais
Ao invento de factos fantasmais.
Atingi a meta
Sem engano:
Tornei-me poeta
Do quotidiano.
O artista
Entrevê um significado no real,
Em arte o regista,
Fanal
Discernível,
E oferta esta visão a todos disponível.
744 - Poesia
A poesia em toda a latitude
(Poemas, lendas, mitos,
Pinturas, danças, sonhos…)
Tem a virtude
De ser o veículo de todos os fitos
Para viajar apaixonado
Pelos mundos mais medonhos
Com a alegria dum predestinado.
Mais eficaz
Que um vaivém espacial,
Mais perspicaz
Que uma nave sideral,
Com mais arte
Que um veículo de Marte,
A poesia leva à lonjura
Do infinito
Num real
Que é muito nosso e nos segura
E, ao mesmo tempo, é esquisito,
Com uma vida, uma sanha
Absolutamente estranha.
Exulta a poesia e me acalma,
- É uma jornada de alma.
745 - Si-próprio
Olhamos o si-próprio como um ego
Contido na pele da personalidade,
Mas um si-próprio num mais fundo pego,
Mais originário, me invade,
Fora do tempo e do espaço
Da vida individual que abraço.
Qual o ser
Deste meu rosto de antes de nascer?
746 - Sementes
Há muito descobrindo
De mim próprio as sementes,
Uma imagem tenho de quem deveria ser.
Mas a tela de quem somos iludindo
E o rumo a tomar, entrementes,
Conjunturas e destino contrariam quenquer.
Podemos, todavia, descobrir que somos mais
Quão mais de nós próprios distantes,
Daquilo que cuidamos, formais,
Que ser devíamos, orgulhosos e confiantes.
E depois uma síntese superior
Acabaremos, mais plenos, a nos propor.
747 - Vimos
Vimos de muito fundo,
Muito para lá da consciência,
Somos mais originais no mundo
Do que imagina nossa vã ciência.
Provimos dum lugar para lá do horizonte
E o que nos move em profundidade
- Anjo, demónio, alma, duende… -
Empurra-nos pela ponte
Que tende
Para a nossa identidade,
Para nosso lugar terrivelmente escasso
De intimidade
No tempo e no espaço.
É um nada
E é do infinito nossa estrada.
748 - Xenofilia
Qualquer alma desperta
Requer bem mais de nós, assertiva:
Cortar cerce a xenofobia que se enxerta,
Desenvolver uma xenofilia positiva.
Afecto pelo estrangeiro
E pelo invulgar,
Apreço pioneiro
Por culturas diferentes da nossa,
Desejo de desvendar
Tudo o que roça
Por maneiras divergentes de compreender
E de viver.
Então, aí,
Montar o lar do eu em si.
E para a nova, inesperada síntese cimeira
Trepar a íngreme ladeira.
749 - Dócil
À dócil alma respondendo,
Ausento-me várias vezes por dia
Da vida real de que pendo
E revisito pessoas e lugares de antanho,
Imagino o futuro que queria
Na perda e no ganho.
A visita
Difere radicalmente
Da tentativa ansiosa do ego que incita
A resolver o passado no presente
Ou a controlar o futuro
Que hoje inauguro.
É mais de férias como a semana
Na praia,
É distanciar-me sem ânsia nem gana,
Jeito onde descobrir se ensaia
Para quanto viva
Uma nova perspectiva.
750 - Tendemos
Tendemos a olhar tudo na vida,
Das pessoas aos objectos,
Como realidade fixa, unidimensional, dividida
Em cubículos de aspectos.
De nos aperceber seremos capazes
Também,
Das histórias em que vivem deles as fases,
Do espírito que os contextua ao lado e além,
Da melodia dos respectivos movimentos,
Dos aromas que lhes emanam da presença,
Do vazio quando se ausentam por momentos,
Do segredo abscôndito por trás da revelação tensa?
De que tipo de sentidos teremos precisão
Para tal percepção?
751 - Peregrino
Um peregrino, ao longo da estrada,
Cruza um vulto sentado
A meio dum campo cultivado
Que se prolonga até uma colina afastada.
Olha, ao lado,
Um grupo a trabalhar numa abadia de empreitada.
- Sois monge? - questiona o viandante.
- É o que sou - responde o vulto.
- Quem são os que trabalham ali adiante?
- Os meus monges, entre as horas de culto.
- É bom ver crescer um mosteiro.
- Estão a demoli-lo.
- Mas por quê?! - espanta-se o viageiro.
- Para, quando o sol nasce, podermos senti-lo:
É que não há melhor mosteiro
Que o mundo inteiro.
752 - Espaço
Haverá espaço qualquer dia
Para um valioso estudo da religião
E não-religião,
Filosofia e poesia,
Música e ficção,
Crença e descrença,
- De qualquer mágica presença
Que nos pode tocar o coração.
Esta nova teologia
Caminhará lado a lado
Com as artes e as ciências,
Na via
Do itinerário esforçado
Das humanas persistências.
Os objectos de estudo dela
Incluem a dieta cultural diária,
O ritual,
A oração nas freimas ou na capela,
A arquitectura, mesmo atrabiliária,
O cerimonial,
Do tempo a avaliação sacral,
A doença, a morte, o nascimento,
O desejo, a melancolia, o casamento,
Os significados
E a falta deles,
A história, os antepassados,
Os gestos nobres e reles,
Os valores, a expiação,
A moral, a iniciação…
Em lugar dum terapeuta, um dia,
Os que sofrem perturbação
Ou que algo procurem, farão
Uma visita à luz que anuncia
O teólogo particular,
A fim de reflectirem
De modo singular
Sobre quantos mistérios sobre eles investirem.
753 - Artista
Parece cada artista aceder
A uma fissura particular
Do Cosmos na opacidade,
A uma fresta pela qual logra entrever
A totalidade
E elaborar,
A partir dela assumida,
Uma filosofia e uma vida.
Não poderemos nós também descobrir, jucundos,
Uma maneira
Própria de olhar
Para nossos pequenos mundos
E neles captar
O Universo, a Infinidade
Inteira,
A Totalidade
Manifestada no terreno
Pelo quotidianamente pequeno?
Nossa vida então assumiria de verdade
As reais dimensões dela, em virtude
De ser medida pelo tempo e a eternidade,
O espaço e a infinitude.
Precisamos dum olhar calibrado
Para a vastidão do mundo,
Capaz de observar eventos e objectos, cada dado,
Mesmo os mais comuns, a partir do fundo,
E de entrever, por trás da opacidade,
As incursões da eternidade.
Confere significado ao quotidiano
Esta faculdade,
Liberta-nos da tarefa de engano
De descobrir um sentido na estrada
Fora de nossa vida limitada.
Precisamos apenas de imaginário,
Duma perspectiva de poeta,
Dum olhar que atinja o âmago originário,
Emocional e intelectual da percepção completa
Sem por ela ninguém se deixar
Com a epiderme enganar.
Descobrimos o sentido da vida
Ao viver plena, intensamente,
No limite de nosso próprio ente
Singular, genuíno,
E que, por medida
Principal,
Tem por destino
Nada ter de excepcional.
754 - Tiro
De tiro ao arco o mestre famoso
Trepa ao cume da montanha
Ao encontro do melhor do mundo archeiro.
A descoberta de que o reputado guerreiro
Nem arco nem flecha usa nem apanha
Estupefacto o deixa e duvidoso.
Todavia, quando o sumo mestre levanta
Os braços vazios para o céu,
Posicionando-os como prontos a disparar,
E logo solta com força tanta
A frecha invisível que ninguém percebeu,
Uma grande ave cai por terra a bascolejar.
Assim, nos píncaros, o monasticismo
Reconstruir-se-á sem mosteiros,
A linguagem sagrada toca o abismo
Sem igreja, mesquita, sinagoga, medianeiros,
A educação das almas se desenrola
Fora de qualquer escola,
Um mundo imbuído de arte
É de indivíduos povoado
De cujas regras a lista
Não requer aparte
Que quenquer seja conotado
Como artista,
Haverá uma psicologia em todos imbuída
Quando já tal disciplina houver sido esquecida,
Uma vida de intensa comunhão,
Sem ninguém ter de pertencer
A qualquer
Organização,
E um cotio pleno de alma vai ficar ao alcance
Sem ser preciso que em tal direcção
Alguém se lance.
Não é utopia,
É onde cada um amanhece
Quando ele próprio acontece:
- Quando ele é o novo dia.
755 - Digna
O que digna de ser vivida
Torna a vida,
Pode ser apenas momentânea intuição,
Uma fugaz sensação,
O toque da pele dum filho bebé,
O súbito apreço pelo lar,
Tido tão ao pé
Que dele nem dou fé,
Se calhar,
A excitação fugidia
Ao recordar o amor dum dia
De repente a adejar, leveiro,
Duma vida pelo companheiro…
O sentido pode ser uma revelação,
Não uma compreensão.
Pensar é importante
E fruiremos dum mundo melhor
Se todos aprendermos, pela vida adiante,
A pensar como mais correcto for.
Mas pensar é apenas, de lado,
O prelúdio do significado.
Cursamos, lemos,
Conversamos,
Estudamos,
Até porventura escrevemos…
Embora sejam actividades inestimáveis,
O valor maior é que almejam
Preparar-nos para um instante de reconhecimento
Da semente vital, a centelha
Que dá vida a tudo o que tento,
A tudo o que vislumbro do mundo na celha.
Quando vislumbro esta faísca,
Compreendo que deveras um além exista
Que pode ser encontrado, a sós,
No que está mais perto de nós.
Podemos orientar
Toda a nossa educação
Para o instante que permita vislumbrar
À nossa frente, a germinar
Do chão
De cada individual ilha,
O mais ténue sopro de maravilha.
756 - Frustrante
É frustrante descobrir
Que nunca se esgota o mais fundo desejo
Que sentir,
Seja o que for que na vida almejo.
Casas-te e, traiçoeiro,
Acabas por tecer fantasias
Sobre outro companheiro
Doutros dias.
Mudas para um lugar lindo
E não tardas a desejar,
A rotina advindo,
Noutro poder abancar.
Amas os filhos
Mas gostarias que foram mais
Como os filhos ideais
Que de teus sonhos prenderas aos atilhos.
Tens dinheiro, carreira e casa
Mas não pára o motor do desejo
Que ronrona interminável e te abrasa
Algures por baixo do coração,
Em encantatório harpejo
De cantochão.
O desejo é a atmosfera
Do reino da sexualidade,
Mantém-nos vivos na espera
E ao movimento persuade,
Mantém-nos em contacto com recordações
Calorosas e tristes,
Adentra-nos no reino das imaginações
Quando, em redor, nos despistes,
A nos pressionar
Apenas para momentos práticos há lugar.
Do ponto de vista de qualquer alma,
O desejo limita-se a existir,
Não tem de ser satisfeito
Nem se acalma
Pelo mero facto de o seguir.
Aliás,
Os desejos uns nos outros estão contidos,
Da frente para trás,
Folículos de cebola mutuamente inseridos.
Os desejos menores
Estão contidos e apelam
A desejos mais fundos e maiores.
Os chocolates revelam,
O desejo menor no maior contido:
Que uma vida doce é que faria sentido.
Qualquer desejo é digno de atenção,
Embora saibamos dele pela aba,
Que, se recuarmos fundo no chão,
A cruel ânsia jamais acaba.
Ora, esta é a fronteira da divindade
Entrevista pela sexualidade:
Esta sensação funda,
Doce-amarga e vazia,
É o incenso duma igreja que se inunda
E, neste vácuo dos céus,
Anuncia
A presença ausente de Deus.
757 - Além
Deus está para além,
No meio de nossa vida.
Ente para-além-no-meio contém
E convida
A uma graciosidade particular
E beleza singular.
A beleza emerge apenas quando a vida
Se encontra para além radicalmente
Permanecendo, todavia, fundida
No meio inteiramente,
Ou quando se encontra também
Intensamente
No meio através do para-Além.
758 - Fresta
Orar é perscrutar os céus
Em busca da fresta pela qual
Se esgueiram os anjos que pousam nos coruchéus
E por onde espreita o divino tal e qual.
É na abóbada a inescrutável abertura
Ou na postura do fiel orante,
Céu que a limpidez depura
Entrevisto através das copas
Da floresta murmurante,
Fontanela que protegemos com as opas
Da fé
No sono dum bebé…
Ou é a discreta entrada nas escuridões do inferno,
Túmulo aberto de Jesus,
Local
Da descida musical
Ao Averno,
O mantra que traduz
O cinzento esplendor
Do mundo inferior…
Por vezes é o subterrâneo abrigo
Na guerra deveras
Ou nas mais triviais batalhas que prossigo
Pelas eras,
Travadas
Da vida ao longo das estradas…
Pode a oração de impotência andar eivada
Ou pelo medo marcada
Ou ser regulada pela ignorância
E pelo acaso de cada instância.
Um cancro abre, súbito, da oração a porta estreita,
Buraco negro através do qual, aflito,
O divino espreita
E o homem descobre o infinito.
759 - Duplica
Duplica a literatura
A experiência de viver
Duma forma tão pura
Que nenhuma outra via o poderá fazer,
Mergulhando-nos numa outra vida
Tão profundamente
Que obliteramos temporariamente
Que temos a nossa própria medida,
Para viver.
Por isso lemos,
Acaso até o amanhecer,
Desarranjando a manhã que teremos,
Apenas para descobrir, no fim do serão,
O que ocorre com alguém
Que, sabemo-lo bem,
É uma mera invenção.
Tal é a fome doutro mundo,
A fome de Além
Que até nisto, jucundo,
Vislumbro, fecundo,
A pequena amostra do que mais nos convém.
760 - Passado
Olhando para trás
Podemos descobrir um mundo novo
No que o passado nos traz.
Na altura, tomámos frequentemente,
Cada renovo,
Cada evento de tal presente,
Irrelevante
Ou importante,
Como dado adquirido
E varremo-lo da memória
Como rasquido,
Desprezível escória.
De repente, depois,
Dias, semanas, meses,
Anos, decénios às vezes,
Intensos nos voltam, evocados
Como inéditos arrebóis
E revemo-los com novo olhar, inesperados.
À luz da aparição clarividente
Estranhas relações são desvendadas
Entre o passado e o presente.
Vertentes inusitadas
Descobrimos
Em nossa vida
E na do próximo que tão mal vimos
Nos entrelaçamentos de nossa lida.
De alma mistério,
O novo
Germina a sério
Do velho ovo.
761 - Momentos
Há momentos em que o maravilhoso
Fundo me toca.
Pequenos nadas de que gozo
Sabem bem na boca
De meu imo
E deixam-me erguido
Lá no cimo,
Estranhamente comovido.
Às vezes é um pequenito
A procurar a mão do pai,
Confiante e aflito,
Quando repentina a chuva cai
A meio
Do familiar passeio.
Às vezes é um céu de nuvens impelidas
Pelo vento
Que curtas torna as compridas
Horas de encantamento.
E, quando vem um trovão,
É um chamamento:
Corro à janela
Pelo clarão
Que ilumina o firmamento
E a sequela
É a da nostalgia
Que me envolve das profundezas.
Mas nada me explica em nenhum dia
De que rezas
Falta sinto
Na vida que me entranço e pinto.
762 - Enfrentar
Para enfrentar a morte
Nunca estamos preparados.
O mistério é de tal sorte
Da vida e morte nos fados
Que é poderoso demais
Para nossos cabedais.
Não há mente
Que o logre nunca abarcar.
Apenas mal vislumbrar
O logra, tremente,
Alguém,
Que mal pressente
Quenquer
O que deveras vier a ocorrer
No Além.
Verificamos apenas
Que os mortos já cá não estão,
Que partiram, uns instantes de vida após,
Abandonaram, silentes, as cenas
E, desde então,
Nos deixaram sós.
Continuamos, contudo, acompanhados
Do Universo pelos murmúrios sussurrados.
763 - Pedaços
Vão pedaços de memória
Em cada partícula de pó,
Noites de amor e glória,
Heroísmos do homem só.
Não é, pois, solidão acumulada
Este pó arbitrário,
Antes presença misteriosa disfarçada,
É o contrário.
No pó habitam
Milhares de milhões de presenças
De seres que nele se agitam,
Que povoaram a Terra em multidões densas.
No pó navegam os restos
Do passado, por mais transfinito,
E dele os inúmeros aprestos:
- É o Todo que nele fito.
764 - Manter
Viver a transição
É, firmemente,
Aprender a manter a ligação
Ao presente.
Quão mais se deixar
Pelo desfasamento, antecipação
Tentar,
Mais o espírito lhe constrói a ilusão
Duma realidade virtual
E menos capaz vai ser, desde agora,
De chegar ao horizonte final
À hora.
765 - Desmentida
Nem por inteiro diferente,
Nem por inteiro igual
Ao projectado anteriormente
É a realidade final
Que, desmentida a quimera,
Fica à tua espera.
766 - Comandar
Ninguém pode comandar a existência,
Nem impedir a alternância natural
De altos e baixos em qualquer valência.
As surpresas de cada aurora inicial,
Os mistérios da vida,
As fontes ignotas de nosso próprio funcionamento,
Tudo nos ultrapassa e lida
Largamente com o além de cada momento.
Não temos mão
No que habita o escuro de nosso saguão.
767 - Calmamente
Respira calmamente e dá-te conta
De que dum grande todo fazes parte.
Vê-o como quiseres, mas aponta
A verdade, reconhecido, que te acarte.
Sente até que ponto perfazes
Um da terra com os cheiros,
Os oceanos, os rios, o ar,
O teu mar,
As bases
E os píncaros inteiros,
Um com os que amas
E assim encadeadamente em todas as tramas.
Deixa-te habitar
Por este sentimento de unidade,
Sacode o desprazer que aflorar:
- Tu és a Infinidade.
768 - Sentido
Sentido é aquilo com que ilumino
O caminho cá em baixo,
Algo que me alimenta o destino,
Alimentando os que, em cacho,
Me rodeiam,
Escapando ao medo a que ameiam.
Se o que faço
Alimenta os outros e não a mim,
Torno-me vítima do baraço,
É o meu fim.
Mas se o que me alimenta
Não alimenta os demais,
Então o que se me apresenta
É um egoísmo dos fatais
Sobre o qual construir, de nenhum jeito
Nada poderei que tome a peito.
De qualquer modo,
Sentido
Sou eu aos outros, ao Todo
Finalmente unido.
769 - Peça
A vida é uma peça que representamos
Sem argumento, de improviso.
Não há nenhum escrito escondido nos ramos
Com réplicas ideais que viso
Mas que nem sequer
Consiga dizer.
Aqui, de pé,
Doa o que dói,
Aceitar quem se é
É aceitar quem se foi.
Não há nenhum álibi:
Nada será realizado
Que já não tenha estado
A germinar em si.
A vida, mesmo quando me ilude,
É o itinerário
Que me grude,
Sumário,
À plenitude.