OITAVO TROVÁRIO
DA NORMA TRILHANDO A VIA E O SUOR
Escolha ao acaso um número entre 770 e 886, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
770 - Da norma trilhando a via e o suor
Da norma trilhando a via e o suor,
Lavro o poema
Em métrica incerta e de estupor,
O que as pegadas devem pôr
Ao incarnarem, vida fora, cada lema.
Em metro e rima desencontrados,
A poesia
Captura os inesperados
E a magia.
Os pés caminham, mesmo magoados,
Um pouco mais trôpegos de luz,
De alegremente encegueirados.
O verso tropeçado aqui traduz
Que estrela noite fora nos conduz.
771 - Leva-te
Leva-te por escolha tua
Em teu caminho.
Por isto apenas não somos escravos,
Por podermos escolher cada rua,
Cada vizinho
De nossas alegrias e de nossos agravos.
O resto que te vier à estrada
Não vale nada, nada, nada.
772 - Orgulho-me
Orgulho-me de ti
Que percebeste
Aquilo que quase ninguém vi
Que ateste:
Seguir teu coração,
Não doutrem as esperanças.
Não estou desapontado, não:
Estou feliz porque te alcanças.
E nisto, fecundo,
Também a mim me dás o mundo.
773 - Criatura
À receita da meta
Que nos resta,
Atenção
Cuidada:
Uma criatura só não presta
Se deixou de ser inquieta.
Ora, nós somos inquietação
Incarnada.
774 - Trabalhar
Trabalhar é degradante
Mas dá-me da pesca a cana.
Sem de ocupação constante
Atordoado,
Passajando a vida quotidiana,
Era o ócio entediado,
Angustiado,
A esbracejar
De lodo neste mar
De perguntas por quê a para quê.
Mas com o trabalho, não:
Aquilo já ninguém vê.
Cavamos o chão
E a metafísica enterramo-la nos matagais:
Absurdo é o tempo a mais,
Sem o vinho duma ocupação
Nos bornais.
775 - Enfrentam
A esperança é o grande refrigério
De nós, os fracos, a maioria.
Poucos enfrentam o mistério
Despido de fantasia.
Poucos têm a coragem
De encarar a verdade serena
De que nenhuma existência, na intérmina romagem,
Por ela própria vale a pena.
Por isto,
Argumento a encorajar,
Insisto,
Animo a continuar,
A dar alma até ao fim
Aos outros e a mim.
776 - Livre
Livre em plenitude
Ninguém o logra ser.
Pode, porém, de tal em virtude,
Idêntico a ele próprio percorrer
Toda a conjuntura,
E não o trilho de quenquer
Que apenas este configura.
Pesado é o custo
Da liberdade.
Dobra-o, justo,
O da própria identidade.
Aquela, até um decreto
A outorga e põe de pé,
Esta apenas encontra tecto
No que fundo nos invade,
Apenas faz fé
A total auto-responsabilidade.
777 - Atitudes
Quantas atitudes não tomamos
À espera de que outrem as tome!
E a vida assim desbaratamos,
Itinerário que permanente se consome
E não pode ser adiado
Nem diferido.
Nenhum elo de comunhão aguardado,
Tido no sentido,
Deveremos visar
Que primeiro não sejamos capazes,
Eficazes,
De ousar.
778 - Inéditas
Sempre inéditas são
As horas de humano desespero.
E as palavras, nesta ocasião,
Não prestam nem as tolero.
Repetem o dito e ouvido
Milhões de vezes, milhões,
Em qualquer gesto cortês,
Quando era, varrendo o rasquido,
Preciso ouvir e dizer, não velhos chavões,
Mas pela primeira vez.
779 - Televisor
O televisor não se auto-liga,
Nós é que o ligamos.
Assim, deixamos
Que ele o cérebro nos sugue sem briga.
E, se calhar, até gostamos.
Neste sentido,
O fascismo abolido
Somos nós que o repescamos.
E, desta feita, muito mais bem nutrido
Da fruta de novos ramos.
Quando a vida bem se foca,
Somos nós os autores
Das prendas ou dos horrores
Do que nos toca.
780 - Limita-te
Seja teu dinheiro
O dinheiro que for,
Na vida ao ires,
Limita-te a fazer, primeiro,
O melhor
Que conseguires.
781 - Fabricam
Campeões
Não os fabricam ginásios,
Vêm do fundo dos corações.
Case-os
Com um desejo, um sonho, uma visão
Que funda ter deverão.
Resistem então no derradeiro minuto,
Serão mais rápidos um tudo-nada,
Da capacidade-limite hão-de ter o usufruto,
De força de vontade, uma mina inesgotada.
E esta sempre, a indicar o norte,
Terá de ser a mais forte.
782 - Feixe
A integração
De todas as religiões
Num único feixe de união
Releva para que as orações
Tenham a força da energia
Capaz de resolver os perigos criados
Pelos que temem o dia
Nos vergéis ensolarados.
Enquanto for cada qual para seu lado,
Uma doutra concorrente,
Fica por regar o prado,
Morre da seca a semente.
783 - Geração
Cada geração é diferente
E a missão que tem,
Igualmente,
Também.
Não é refém
Da que veio anteriormente.
Eles combateram a tirania
Com armas e violência?
Doravante nomes como guerra ou inimigo
Eliminaria
Como primeira urgência,
Maior perigo.
É igual o heroísmo
Outrora
Ou agora,
Perante o abismo.
À partida
Não podiam o que puderam,
Mas persistiram.
Algo venceram,
Conseguiram
Da própria geração uma medida.
É o que temos de fazer,
Por nossa vez,
Do mundo no entremez
A decorrer.
O totalitarismo não morreu,
Apenas não busca doravante um império,
Cobre-se do solidéu
Da tecnologia
E seu mistério.
As forças da tirania
Aproveitam a nossa dependência,
Confiança, desejo ou conveniência.
Através do medo
Centralizam o tecnológico conhecimento
Duns poucos nas mãos de segredo,
Para que deles o provento
Fique salvaguardado
E o porvir do mundo, controlado.
Não podemos opor-nos pela força.
Apenas a democracia,
Próximo degrau mundial da liberdade,
Talvez os destorça
Um dia,
À medida que o mundo persuade.
Temos de usar nossa visão,
Expectativas a fluir de nós,
Como constante oração
A desatar os nós.
É um poder mais forte
Que o que adivinhais.
Urge dominá-lo, usar-lhe o transporte,
Antes que seja tarde demais
Do futuro
Para os ideais
Que inauguro.
784 - Fluir
Primeiro à energia do imo vais ligar-te,
Deixá-la fluir através de ti,
Um campo de energia visualizá-la a formar-te
Precedendo-te em redor, em cada agora, cada aqui.
Teu campo de energia trata após de focar
De forma a aumentar teu fluir vital,
Em expectativa te mantendo, em alerta a esperar
Cada sinal.
A seguir,
Para aumentar doutrem os níveis de energia
Prepara teu campo para de ti sair,
Irradia!
Quando teu campo a outrem chega desta forma,
Ele sente o impacto da clareza, da intuição
E vai retribuir-te, por norma,
Com a mais iluminada informação.
Afinal,
É apenas ir, ir, ir
Na infinita espiral
A subir.
785 - Conversão
De conversão interior a experiência,
As vivências iluminadas e devotas deveras
(De judeus, cristãos, budistas,
Muçulmanos, hinduístas…)
São o mesmo, na essência,
Em todos, em todas as eras.
Destaca apenas cada religião
Pendores diferentes
Desta mística interacção
Com Deus em múltiplas vertentes.
As orientais destacam o efeito
Sobre a própria consciência,
De leveza a vivência
Do que a levitar é atreito,
O sentimento de união
Com o Universo, o Infinito,
Dos desejos do ego a libertação,
Um distanciamento, quando de tudo me desquito.
O Islão
Sublinha o sentimento de unidade
Na vivência com os outros da partilha
E o poder da actividade
Quando em grupo se desenvencilha.
O Judaísmo a importância da tradição
Releva baseada naquela ligação,
A vivência de sentir-se escolhido
E de cada homem erguido
Ser responsável por fazer avançar
Dia a dia, semana a semana,
A semente
Eternamente
A germinar
Da espiritualidade humana.
O cristão prefere a ideia
De o espírito se manifestar no ser humano
Não só como a consciência, em maré cheia,
De ser parte de Deus donde eu emano,
Mas também como um Eu Superior,
Versão aumentada do que somos,
Mais completa, capaz, com mais fulgor,
Com orientação e sabedoria interior
A levar-nos a agir, tal se nos pomos
A Deus disponíveis sem escolhos
E Ele esteja a ver por nossos olhos.
O que sublinhar importa
É a vivência da ligação,
Não as diferenças que comporta
A humana condição.
786 - Falta
O que falta à maioria
Dos crescidos para crescerem
É reaprenderem
A escutar e comover-se, dia a dia:
É que inventem
Uns para os outros se moverem
Através daquilo que sentem.
787 - Desafio
O maior desafio da educação
É crescer para além de nossos pais,
Deles pela mão,
O que, em rigor, é aquilo de que, tenazes,
Mais
Desejarão
Que sejamos capazes.
788 - Talvez
Talvez cada qual ande ligado
Por uma corda forte
Dele ao melhor dado.
Se de quem devera ser demais se afastar,
Se perder o norte,
Da vida a estrela polar,
Pode sempre utilizar a corda
Para voltar atrás,
Retomar a pegada originária da horda.
É fácil perdermo-nos entre tanta distracção
E, quão mais novo, mais fugaz,
Mas também mais perto de mim à mão.
Afinal, não durou muito o tempo maninho
A afastar-me do caminho.
Quanto mais rápido regredir,
Maior a garantia de progredir.
789 - Frágil
A vida é frágil e temporária,
Nuvem que vemos um momento,
Logo varrida pelo vento
Em correria vária.
Usa o tempo que te foi dado
Para deixares indelével impressão,
O bem germina por todo o lado,
À mão e em contra-mão.
Não o desperdices
Mesmo quando te alcança
Com sovinices
De violência e de vingança.
790 - Bens
Desinteressado
Do que a comunidade entende por sucesso,
Acabo desligado
Do processo
E dos sinais
Dos bens materiais.
A medida
Em que enfim repoisas:
- A vida é para ser vivida,
Não vivo para ter coisas.
791 - Empenhamento
Da vida a bagagem
Uma evidência
Te põe à mão:
A viagem
É uma experiência,
Não uma lição.
Para aquela nesta derivar
Muito empenhamento haverá que suar.
792 - Migalhas
É melhor por ti mesmo descobrir,
As palavras apenas podem ensinar
Migalhas de teu saber ou intuir.
Vais aprender bem mais rapidamente
Se empenhares todos os recursos
A te orientar,
Prudente,
Em teus próprios percursos.
Os doutrem, no que ameiam,
No que pontificam,
Apenas de ti te alheiam,
Não te plenificam.
A paz
Contigo
Apenas encontrarás
Quando abrires teu postigo
Ao que és no que serás.
793 - Endurece
O coração endurece, o coração,
Da natureza quando se desgarra:
Desrespeita a terra do pão,
O ser vivo que desamarra,
E, por fim, calca também
O homem, pelo mundo além.
E nada
Vai poder parar esta escalada,
A não ser a conversão
(Que entretanto despreza)
De aconchegar o coração
No colo terno da natureza.
794 - Viverei
A perfeição é um sonho,
É esforço a realidade:
No real onde os braços proponho
Viverei minha vida de verdade.
Não viverei no mundo
Duma fantasia que me degrade,
Infecundo,
Por muito que me agrade
Da feérica falsidade
O encantamento jucundo.
795 - Semeia
Letargia
Semeia insatisfação.
Planear, trabalhar a minha via,
Atingir metas em meu torrão,
Leva-me a bem me sentir
Relativamente a meu porvir.
Serei feliz
Porque os objectivos que determinar
Nunca me permitirão, de raiz,
Obcecado ficar
Com os pendores que houver negativos
De minha vida nos arquivos.
796 - Árduo
O árduo labor,
A vitória e a derrota
Ajudam, de conjunto no teor,
A atingir das metas a altura da cota.
O objectivo é para ser fruído
Enquanto laboro para o atingir
E não apenas quando ser bem sucedido
Acaso eu conseguir.
Eis uma radical matriz
De ser feliz.
797 - Optimismo
Não temo que o porvir
Não devenha realidade,
Que o optimismo é minha estrela a tremeluzir
Da noite na opacidade.
Sempre que navegar
Nas águas agitadas da procela,
Olharei confiante para a estrela
E saberei que irei chegar
A bom porto, com aprumo,
Se mantiver o meu rumo.
798 - Batem
Todos somos confrontados
Com dificuldades.
Porém, os felizes são dotados
De faculdades
Que a todo e qualquer lugar
Os irão adaptar.
Quando uma tartaruga
Atravessa uma mesa,
O passo não estuga
Se uma pancada lhe pesa,
Antes, depressa,
Na concha esconde a cabeça.
É a atitude indevida
Da maioria, em cada jornada:
Não se adaptam à vida,
Batem em retirada.
799 - Forte
Não terei de receber
Tudo o que quero para ser feliz,
Porque bastante forte hei-de ser
Para adaptar-me à vida sem o que dela quis.
Minha felicidade
É de minha inteira responsabilidade.
Não depende do que acontece,
Mas, ao invés,
Do modo como observo os ventos da messe
E me adapto dos problemas ao revés.
Poderei tirar o melhor partido
De cada conjuntura,
Que é inteiramente a mim devido
O que dela se apura.
800 - Confinado
Seria feliz com mais amigos,
Se fora muito popular,
Se contara com estes mil postigos,
Para pelas vidas fora navegar?
Assim, fico muito sozinho
Dum bom lar confinado ao ninho?
Mas ter amigos não tem nada
A ver com ser feliz,
Excepto que ser feliz atrai uma fornada
De amigos a quem viver com tal matiz.
801 - Deixando-me
Ao sol obedecendo,
A lua observando,
As plantas imitando,
Deixando-me levar pelo vento, tremendo,
Descubro de mim próprio a sensação fugaz
Que cria ser apenas interior
E não, afinal, como deveras faz,
Compor
De raiz o mundo falaz.
802 - Escravizar-me
Não devo escravizar-me a nada,
Nem à minha filosofia de vida,
Nem ao meu itinerário espiritual.
Mais vale
Presenciar o que ocorre a cada jornada
Que deixar-me absorver
Pela camisa de forças urdida
Pelas ideias e crenças que tiver.
Meu sim ao caminho
É um não às algemas que nele adivinho.
803 - Ajuda
A natureza contactar
Ajuda a simplificar.
A própria natureza,
Embora complexa, preza
Manter-nos sintonizados
Com ritmos e prazeres fundo enraizados
Que nunca mudam
E que proporcionam, de vez,
Quando se nos grudam,
Solidez.
804 - Prudente
Se lograr alguma sabedoria,
Jamais limitarei meus actos
Ao que prudente se me afiguraria
Em detrimento, afinal,
Do amor, da paixão e dos desacatos
Duma ou outra loucura ocasional.
Qualquer sábio será sempre um pouco
Um sábio louco.
805 - Dúvidas
Quando responderes
A tuas dúvidas sobre a morte,
Terás respondido, sem o veres,
Às perguntas que tiveres
Sobre a vida e dela o norte.
806 - Mudar
Podes mudar tua perspectiva
Em qualquer conjuntura
Mudando tua mente objectiva
Quanto ao modo como a configura.
O que queres ver podes sempre decidir
E, tendo posto isto lá,
Vai ser isto, a seguir,
Que lá se encontrará.
807 - Escolhes
Se paras de tentar
Decidir o que fazer
E escolhes, a principiar,
O que desejas ser,
Então os dilemas
Dissolvem-se de repente
E das respostas os esquemas
Brotam, por magia, à tua frente.
808 - Contínuo
Pelo contínuo do tempo-espaço
Perambulo de passagem
Para meu Eu conhecer, passo a passo,
E para o experienciar durante a viagem.
E para depois recriar este Eu do nada,
De raiz,
Em minha jornada
De aprendiz,
Na próxima imensa versão
Da maior visão
Que alcançar, em meu canhestro voo,
De quem realmente sou.
809 - Actos
Os actos são teu derradeiro patamar,
Muitas vezes o que vem
Após o pensamento.
São tua tentativa de materializar
O que, conceptualizado, te devém
Linguagem do corpo em movimento.
No momento,
Porém,
Em que puseres o sentimento
Em palavras
E as palavras em acção,
Pode o afecto já muito ter perdido pelas lavras
Com a tradução.
Sê mui cuidadoso, portanto,
Com o movimento que tentas,
Se é que, deveras sábio, entretanto,
Chegue a ocorrer que te movimentas.
810 - Cuidam
Muitos cuidam por outrem fazer
O que, afinal, por si fazem.
Não é questão de querer ou não querer,
É o que todas as vidas nos trazem:
Todos fazemos por igual
Tudo para nós próprios, afinal.
Quando entenderes isto, deste, de repente,
Um passo em frente.
E, quando entenderes que se deve aplicar
À própria morte,
Deixarás de a recear.
Viverás a vida pleno e forte,
Pioneiro,
Até ao instante derradeiro.
811 - Germina
Todo o pensamento, palavra e acto
É criativo, germina em facto.
Do núcleo de teu ser qualquer energia
Libertada te recria,
Bem como toda a tua realidade,
De raiz, na factualidade.
E tu estás a ser mudado
Para o porvir correndo do passado.
Teu futuro é produzido
Em pequenos incrementos,
Não em grandes passos induzido,
Nem grandes decisões conforme os ventos.
Ao pequeno incremento
É que tens de andar atento.
Se assim fizeres,
O grande momento, a decisão monumental,
Deles próprios tratarão, sem o nem veres,
Da vida em qualquer estrada real.
812 - Cria
A maneira como olhamos
Cria o modo como vemos,
Não temos
Objectivos reclamos.
Se como vítima te olhares,
Como tal te verás, ante estranhos e pares,
Se te olhas como vilão,
Como vilão te verás, rasteiro ao chão.
Se te encaras como participante
Na teia da criação,
É como te verás daí por diante.
Se tomas de tua vida qualquer evento,
Incluindo a morte,
Como um dom,
Vê-lo-ás como um dom: é um tesoiro, um portento
De sorte,
Varinha de condão
A que poderás sempre recorrer com a magia
De te conduzir à alegria.
Se qualquer evento, ao invés,
A morte incluída,
Como uma tragédia vês
Que te enoitece a vida,
Para sempre acabarás num lamento
E não receberás dali senão sofrimento.
De ti depende, portanto,
Escolher entre a alegria e o pranto.
813 - Conseguir
Se conseguir olhar a morte
Como dádiva e não como tragédia,
Então não há nada na vida,
Nem as mortes pequenas ao acaso da sorte,
Que não possa ver como prendas, em seguida.
Até das maldades a comédia
De que fui eu próprio vítima também
Ou com que vitimei alguém.
Então deixa de haver sofrimento
Para mim e para os mais
Naquele momento,
Restam apenas de dor inermes sinais.
Quando aprender a viver bem
Com as minhas mortes todas,
Permito que os outros vivam também
As deles com novas codas.
Grandes ou pequenas,
Todas mudam de refrão na romaria das verbenas.
814 - Creres
Se não creres em Deus
E sem creres na morte entrares,
Deus estará lá, mas sem o veres,
Como ocorreu durante a vida em teus lugares.
Que Deus está presente terás de saber
Para presente senti-Lo poder.
Se quem olhar uma flor
Souber que ali Deus está,
Deus ali verá.
Se assim não for
Apenas verá uma flor.
Até pode, na terra maninha,
Mais não ver que uma erva daninha.
Quem olhos nos olhos alguém olha
E entende que ali Deus está,
Deus ali verá.
Se assim não for,
Não verá, na outra escolha,
(E não pode haver engano)
Senão mais um ser humano,
Porventura um malfeitor.
Se a ti próprio olhares nos olhos
Ao espelho
E entenderes que, sem escolhos,
Veraz,
Ali Deus está, para teu conselho,
Ali Deus verás.
Se assim não for,
Não verás senão alguém
A se propor
Entender quem
Ali porventura está
E acabas por ver alguém
Que, para já,
Nenhuma resposta
Tem
À pergunta posta.
815 - Duas
A diferença
Entre duas chuvadas,
Em minha vivência,
Vem do modo como forem encaradas:
Cada sentença
Revela-me aos mais em íntima fulgência.
Num caso ia de fato
A uma reunião?
A chuva foi um desacato,
Pôs-me em questão,
Intolerável intromissão
No caminho que apenas eu ato e desato.
Noutro caso,
De roupas informais vestido,
Sem hora marcada
Para nada,
Da chuva o imprevisto atraso
Foi deveras divertido.
Quem cria, assim,
Um ou outro ponto de vista tão diferente?
Eu, naturalmente:
- Tudo vem de mim.
816 - Centro
O que pensas, dizes e fazes envia
Do centro de teu ser
Uma vibração, uma energia,
Uma força qualquer.
Teus pensamentos, mesmo comedidos,
São vibrações,
Podem ser medidos
Em eléctricas tensões.
Tuas palavras vibram, reais,
Tuas cordas vocais.
Teus actos são
Uma vibração
De teu corpo dirigido
Em determinado sentido.
Estas vibrações
Formam particulares padrões
E obtêm frequências particulares
E todas estas flutuações
Singulares
Produzem perturbações,
Em seguida,
De energia nos padrões
Da própria vida.
São movimentos padronizados e variáveis
Das supercordas invisíveis
E são estas vibrações mutáveis,
Do Cosmos nos alicerces imprescindíveis,
Que produzem, verificável,
Uma matéria física variável.
É a alquimia da vida.
Podes modificar-lhe a frequência
Com o que pensas, dizes ou fazes,
Produzindo, nesta medida,
Mudas na energia que és tu, na tua experiência,
Que é a que emites, para o mundo trazes.
E eis como, ao fazer-te,
A todos e a tudo, solerte,
Nos fazes.
817 - Mentalidades
Toma a precaução
De evitar
Que as mentalidades possam ficar
Com a impressão
De que a iluminação
Está fora delas,
Pelo que terão
De trepar às estrelas,
Dirigir-se a algum lugar,
A alguém
Em quem
Farão apostas,
Em busca de respostas.
Cuidado para não criar
Conjunturas em que te possam invejar
Por teres encontrado uma via
Para a sabedoria,
Senão vão querer que lhes mostres o caminho,
O que seria terreno maninho
E, mais que desgostoso,
Perigoso.
No dia em que alguém acreditar
Que acedes às respostas de Deus
A que ele não logra chegar,
Tornar-te-ás para ele, para ti, para os céus,
Perigoso:
Far-te-ás logo por Deus passar,
Tenebroso,
E, dogmático, em lugar da salvação,
Trarás a guerra santa, a cruzada,
O anátema, todo um cortejo de danada
Destruição.
Cabe-te a ti tudo fazer
Para assegurar
Que os outros não irão pensar
Aquilo de ti nem de quenquer.
Farás bem em não permitir, nem aos que restem,
Que muita atenção te prestem.
Desvia de ti a ideia,
Venha donde vier,
De que tens um conhecimento especial
Dos fios da teia
Divinal.
Elimina da mente de quenquer
Da crença os sinais,
O juízo que a ele o repele,
De que és mais especial, de que és mais
Do que ele.
818 - Precisar
Se eu deveras compreender
E não precisar, repetidamente,
De voltar a ter
A conversa acerca do que em mente
Creio que já sei,
E se tal confirmo que é saber de lei,
Então, da noite para o dia,
Tudo mudaria.
Primeiro, jamais haveria
Pensamentos negativos em minha via.
Em segundo lugar,
Se algum se lograra insinuar,
Imediatamente
O retiraria da mente,
Sem medidas meias,
Mudaria de ideias.
Terceiro, começaria,
Para além de entender quem realmente sou,
A honrá-lo e mostrá-lo, afastar-me-ia
Do que sei que me lesionou,
Achego-me do que então
Me experiencia
Como medida de minha evolução.
Quarto, gostarei plenamente
De mim como semente.
Quinto, os outros amarei
Tal como são e os sei.
Sexto, amarei a vida com fé
No que, no fundo, é.
Sétimo, perdoarei, clemente,
A toda a gente.
Oitavo, jamais magoaria deliberadamente
Outrem, emocional ou fisicamente,
E muito menos se a decisão se tome
De Deus em nome.
Nono, não voltaria a lamentar
A morte de ninguém,
Mas apenas a perda, em seu lugar,
Do ente querido que segue para além.
Décimo, não temia
De minha morte o dia,
Nem por um instante
Hesitante.
Décimo primeiro, viveria
Que tudo são vibrações
E prestaria
Cuidados e atenções
A roupas, alimentos,
Ao que vejo, ouço ou leio
E aos instrumentos
De aço
Com que a vida tenteio:
O que penso, digo e faço.
Décimo segundo, ajustaria
À da vida a minha própria energia,
Sempre que em consonância
A não via,
Nalguma instância,
Com o mais elevado conhecimento
De quem, no fundo, sou, a cada momento.
819 - Desapontamento
Quando nada corre como desejava
E tinha planeado,
Posso ler o desapontamento que me trava
Como um despertar, ameado
Pelo ambiente mundo,
Para um desígnio mais profundo.
820 - Privado
Privado o espírito parece
Da faculdade do riso.
Severo, sincero e concentrado tanto se entretece
Que de humor o sentido preciso
Surge como algo de estranho,
De quase criminoso com o arreganho.
Ora, de alma o humor irriga e suaviza
A vida espiritual
Que suportável doravante desliza,
Faceira e sensual.
A gentil alma lubrifica
As engrenagens a que o espírito se aplica.
821 - Épocas
Temos músicas nós todos e as ligamos
A épocas especiais
E com elas celebramos
De alma as estações sacrais.
A ignorar poderíamos aprender
Nossos relógios, para encontrar
Modos mais imaginativos de assinalar,
Sagrados, do tempo esta passagem a correr.
822 - Mistério
Os que são capazes de dar
Com generosidade
Valoram o mistério que andam a proclamar
Os monges há uma eternidade:
As grandes riquezas se destinam e aplicam
Aos que delas abdicam.
Para ser compensadora e completa,
A riqueza
Implica a dieta
Dum certo tipo de pobreza.
823 - Afastar-me
Afastar-me da vida quotidiana,
Embrenhar-me na reflexão,
Partir para longe da acção,
Romper a rotina diária que me empana
É meu monástico afastamento, cuja pregnância
Me fica apenas a um mero passeio de distância:
Recobro no campo, no pinhal, a energia
Que me esgota cada dia.
824 - Implicados
Quanto mais implicados no mundo material,
Mais espirituais seremos,
Quanto mais despertos para o pendor espiritual,
Mais generosos nos envolvemos
Na material existência.
Se um deles negligenciar,
O outro, a par,
Sofrerá a consequência.
825 - Fará
Qualquer árvore podemos plantar
E as vezes fará duma floresta,
E cuidar dum jardim que seja
A terra firme que o imo almeja.
Podemos elevar
Como íntima festa
O lazer e as lides do lar,
Tornados nosso labor mais importante,
E o esforço para ganhar a vida,
Esgotante,
Transformar
Num sumário
Mero empenhamento secundário.
A filosofia capitalista
De laborar a troco dum salário
Ou para o bem-estar do accionista
Pode promover a amputação do laicismo,
Cortando-me os laços ao sonho, ao colo dos avós,
Do imo ao insondável abismo,
E pode então não permitir a ninguém
Distinguir o além
Próximo de nós.
826 - Contrário
Do ponto de vista divino,
Das coisas a verdade
É muitas vezes o contrário de nosso tino,
Do que nos persuade.
A sabedoria espiritual
Com frequência
Contradiz, total,
A laica prudência.
Se os ditames invertermos
Da convencional sabedoria
Talvez distingamos uma via
Para qualquer alma respirar em termos.
827 - Saberes
Os saberes antigos
Têm valor inestimável
Mas da revisão requerem os postigos
Para rígidos não devirem
No mundo variável
Onde subsistirem.
A imaginação
Visa manter a frescura
Dos velhos pensamentos
Por meio da reflexão,
Da cura
Por reinterpretação perante os novos ventos
E da final reapresentação.
Eis como finalmente configura
Para um mundo novo uma nova figura.
828 - Inviáveis
Êxito e felicidade
Inviáveis devirão
Ainda antes que nos grade
O chão
A permanente cotovelada
Da morte negregada.
Sobreviver à mortificação
Garante a vitalidade
E de regresso à vida promete
Nosso bilhete.
829 - Veneram
Querem tornar-se alguém
E veneram de forma desproporcionada
O super-homem que advém
Algures, na estrada.
Ora, o segredo é que cada um de nós
É alguém desde o nascimento.
O alguém singular que do imo ata os nós,
Com que nascemos desde o primeiro momento,
Devemo-lo a cada qual
Ter alma, ter um íntimo radical.
À partida, nem tábua rasa,
Nem ardósia em branco.
Somos gente a quem apraza,
A quem agrade
Assentar no banco
Da vivência da própria individualidade,
Oferecida,
Dure o que durar,
Durante uma vida
Para a sofrer e gozar.
Hoje em dia
Esquecemo-nos da frágil alma,
Todavia,
Que da personalidade é a fonte
Discreta e calma,
Dela no inescrutável horizonte.
Vemo-nos, ao nascer,
Como garrafas vazias,
Limpas, sem estrias,
À espera que as venham encher.
Tal me vendo,
Como ser o que em mim surpreendo?
830 - Narrativas
Sempre que as histórias
À reflexão põem termo
E a mais narrativas e memórias,
São defesas dum enfermo.
Da boa história o interesse
É o de ponto de partida
Para outras histórias, em quermesse,
E para reflexões mais profundas,
Em seguida,
Lavrando leiras nos dias mais fecundas,
Lavrando a vida.
831 - Atitude
Para lidar da abismal
Alma com os anseios
Mais eficazes são da poética os meios
Que a atitude racional.
Mais que a informação
Orienta-nos a sabedoria:
A paciência que requereria
Familiarizar-nos de alma com a função,
Em lugar da impaciência que leva
A curas ou ideologias de treva,
Com a pressa
Às autenticidades avessa.
Importa de nosso imo não fugir,
Confinados ao exterior da pele,
Mas de nele levar tudo a confluir,
De nos fundirmos com ele.
832 - Acontecem
Acontecem os eventos
E nem sequer
Há quaisquer intentos
De os levar a acontecer.
Envolvemo-nos em conjunturas
De que podemos tentar apoderar-nos
Mas que à posse resistem, livres e puras:
Tudo ocorre espontaneamente, sem ligar-nos.
Abdicar da satisfação,
Típica do ego,
De ocupar o centro de acção
É uma maneira pura, em sossego,
De meramente ser.
A ideia, porém, de existir na eternidade agora,
De apenas com o que é lidar e se entreter,
Acaba apenas por nos distrair, na demora,
Do que poderia ser.
Ao adiar-nos, porém, não nos adiamos,
Germinam em nós os botões dos verdadeiros ramos.
833 - Abdicar
É porventura melhor
Abdicar totalmente da esperteza:
Pensar correcto não nos vem propor
A parte alguma levar-nos com presteza.
A esperteza na vida, nestes termos,
Apenas nos impede de a vivermos.
O que subjaz à afirmação
De que quero viver só no presente
É muitas vezes, porém, a intenção
De evitar da vida a complexidade premente.
Paradoxalmente,
A ideia do que é escolhendo,
Com êxito evitamos, após,
Estoutro que-é que nos vai sendo
E vislumbramos evidenciando-se ante nós.
A escolha da via certa, na verdade,
Acaba assim pejada de ambiguidade.
834 - Esvaziamento
Precisamos de ser roubados
Para ter alma
E este esvaziamento de campos e gramados
Requer de nosso lado a calma
E o conluio no furto,
Alguma negligência em nossas defesas,
Alguma distracção
No surto
Do que for nossa intenção,
Algum abandono das presas…
De nada serve o artificial alerta
De manter a porta entreaberta.
A atitude tem de provir, macia,
Dum espírito distraído,
De quem não se preocupa em demasia
Em defender-se, tenso e contido,
A ponto de o roubo então ser
Impossível de ocorrer.
Então o roubo ocorrerá
E qualquer alma no vazio
Restará
Presa do outro lado pelo fio.
Acolhe em paz da infinidade
A desconcertante vontade.
835 - Papel
Meu papel é deixar livre o caminho,
Autorizar das profundezas a entrada.
Importa aprender a defender o cadinho,
Para não ser por inteiro desperdiçada
A caminhada
Pela desordem dos sentimentos,
Pelas abundantes potencialidades
Do amor e da vida.
Mas não temos de isolar os fermentos
Na masseira comedida
Das criatividades:
Basta não fechar a porta deserta
Ou deixar uma janela entreaberta.
836 - Implantada
A ordem implantada é precisa
E requer protecção.
Porém, a defesa arreigada é morbosa
E não é o mesmo, não,
Que defender a praça
Quando presente uma ameaça.
É um hábito neurótico a primeira
E, ao invés, persuade
A derradeira
A mantermos a sanidade.
837 - Ingénuos
Ingénuos nascemos
Mas devir podemos inocentes,
Que a inocência é atingível.
No caminho, entrementes,
Talvez passemos
Pela fase redimível
Em que nos sentimos culpados
Ou pelo mal atraídos e encantados.
Dos pusilânimes a grade
Não lavra a inocência com facilidade.
Com coragem
Familiarizamo-nos o bastante com a vida
Para fazer escolhas
Que encorajam para a inocência a viagem,
Evitando, em igual medida,
A ingenuidade ou o cinismo nas recolhas.
E, em nossa secreta, íntima ermida,
Vai a promessa ficando cumprida.
838 - Neuroses
Nossas neuroses são, de entrada,
Matéria-prima desviante
Com que pode ser talhada
Uma personalidade interessante.
Apesar de ocasionalmente perigosa
E debilitante,
Não deixa de ser valiosa.
É da débil alma material basilar
A requerer, congruente,
A par,
Refinamento permanente.
Trabalhar
Estes incómodos e enfadonhos materiais
A vida inteira
É tarefa realista se a comparais
Com a busca parceira,
A da psicológica higiene:
Ver-se livre do fracasso e confusão
Em que, em vão,
Interminável se pene.
Esta do pescoço
A corda desaperta;
Aquela do fosso
Nos liberta!
839 - Horizonte
Fazer o que é prudente
Pode impedir
De seguir
Nossas paixões até ao mundo em frente.
Pode dominar
A intuição
E dar
A ilusão
De estarmos sendo virtuosos
Quando a vida me pede que mude,
Que explore territórios tenebrosos
Para além do horizonte da pretensa virtude.
840 - Segura
Na vida, alguma firme orientação
Pode ser oriunda de fontes hostis
À intelecção:
Desejos, interesses, medos servis,
Fantasias, intuições,
Inclinações
E até, porque não,
Adivinhação…
Talvez logremos melhor escolha
Ignorando o que andamos a fazer,
Em vez de nos iludirmos registando na folha
Que estamos a ser
Conscientes
E muito, muito inteligentes.
841 - Agentes
Qualquer alma é uma comunidade
De agentes interiores,
Qualquer deles com a faculdade
De liderar caminhos e humores.
O ego é um deles, mas, a bem do porvir,
Talvez não deva ser sempre ele a conduzir.
Um bom bailarino
Deixa-se pela música dominar,
Absorve-se na harmonia da valsa ou do hino,
Obedece aos materiais que pode usar.
O segredo duma vida em alma baseada
É permitir que um íntimo agente,
Do usual diferente,
Assuma a liderança, deste fora da alçada.
842 - Ceder
Ceder a um devaneio
Ou recordação
Pode ser um meio
Divergente
De implicação
No presente.
Divagar pode conduzir
Directamente
Ao imediato do momento que surgir,
Porventura centrado, a outros níveis,
Em dados invisíveis.
Virado para dentro,
Posso estar por inteiro presente,
No centro,
E, ao invés, estar completamente
Acordado para a vida
Pode ser a distracção descomedida
E, para a flébil alma, o abono
Duma espécie de sono.
843 - Música
Da música afastados de nossa vida,
Suportamos o dia-a-dia
Com ansiedade existencial,
A elidida
Melodia
Germina nosso mal.
Com o passado nos preocupamos,
Embora ausente,
E o futuro antecipamos,
Negligenciando, entretanto, o presente.
Se olhar o passado sem criticismo
E rumar calmo ao futuro,
Em vez de saltar de abismo em abismo,
Auguro
Que talvez sinta de meu imo a vitalidade parca
Que, afinal, tudo abarca.
844 - Perenemente
Quando qualquer alma perenemente criativa
É autorizada a erguer-se da profundeza esquisita
Do reservatório de vida onde habita,
Tornamo-nos imprevisíveis,
À estreita expectativa
Irredutíveis
Acerca do que quenquer
Deve ser.
De alma por vitalidade impelidos,
Excêntricos nos tornamos.
Nossa loucura construtiva
Molda-nos os gestos revolvidos
E dela nos moldamos
Duma maneira que nem sequer
Teríamos podido planear nem conceber.
845 - Suprimida
Suprimida a vitalidade intensa do imo,
Perdido o contacto com o si-próprio original,
Cairemos numa depressão sem arrimo
Que não é meramente individual
Mas reflecte a incapacidade
Da comunidade
Mundial,
Embora empreste aos indivíduos todo o elogio,
De vencer o desafio
De apoiar e acalentar
A inesgotável potencialidade
Duma vida humana a germinar.
De mil maneiras subtis,
Na educação, na política,
Na economia, no trabalho,
Sem crítica,
Servis
Aos preconceitos do que valho e não valho,
Exigimos de homens e mulheres
Que troquem desejos e alegria
Por êxito económico de teres e haveres,
Por aprovação social de fantasia.
Semeamos a depressão,
A doença emocional
Que caracteriza hoje em dia o chão
De nosso tempo real.
846 - Definida
Da divindade a perspectiva
Definida pode ser
Como aquilo que se esquiva,
Contrário se há-de manter
Às intenções humanas,
À mui séria, ponderada perspectiva
E decorosa em que vivemos, sem praganas.
No espírito penetramos
Mais profundamente
Quando consciência tomamos
Da loucura remanescente
Que dentro de nós habita.
E quem afirmar hesita
Que isto não seja, afinal,
Uma renovação baptismal?
847 - Simplificar
Simplificar o externo pendor
Permite-nos cultivar
Uma vida interior
Mais rica e singular.
Uma carreira sobrecarregada
Pode manter-nos ocupados
Mas a azáfama não quer
Dizer nada,
Nem sequer
Que estejamos plenamente empenhados
No que andamos a fazer.
É o contrário, no geral:
Sentimo-nos ocupados, afinal,
Por nos afadigarmos neuroticamente
Com o que, a longo prazo,
Pouco importa, olhado de frente
Acaso.
De pouco serve ser bem sucedido
No que requer labor esgotante
Cada dia perdido
Se, adiante,
Da vida doméstica o simples prazer
Negligenciado se houver.
Uma personalidade rica
Pode simplificar a vida e descobrir,
Na simplicidade com que fica,
Uma pertinente
Articulação de valores a progredir.
As vidas complicadas é frequente
Desembocarem num oposto infecundo:
Mostram a que ponto tanta vida
Anda perdida
Na azáfama do mundo.
848 - Existencial
Em nossa existencial ansiedade,
De não nos conhecermos
Preocupamo-nos com a possibilidade,
De não compreendermos
Por inteiro a natureza,
De o filho que se preza
Crescer sem a competência requerida
Ao êxito na vida.
Vemo-nos obrigados a dominar
A obra de momento
Popular,
A descobrir um mestre extraordinário,
Uma escola de pensamenro
Valetudinário…
Apostamos em novas teorias
E de aprendizagem tecnologias,
Tanto melhores
Quanto com mais electrónicos detectores.
Contudo,
Nestas idades
De tudo
A correr,
Somos incapazes de satisfazer
As básicas necessidades:
Manter o casamento,
Crias filhos tranquilos,
Viver em bairros seguros a qualquer momento,
Num labor feliz trautear trilos.
849 - Primitivos
Os primitivos actuais
Veneram ciclos da natureza,
Das comunidades ou individuais
Com o fervor com que o resto do mundo preza
O pessoal desenvolvimento
E o económico crescimento.
Às teorias da expansão, como alternativa,
É provável que qualquer alma encontre a via,
Não indo, esquiva,
A parte nenhuma que a chamaria.
O movimento circular da natureza,
Interior e exterior,
É porventura a maneira melhor
De descobrir nosso ser em cada empresa.
Melhor nos poderemos conhecer
E de nossa natureza ficar mais perto
Ao venerar estes ciclos, ao redor e em quenquer,
Em vez de irmos perder-nos no deserto
Pulverulento
De filosofias românticas de crescimento.
Eu não cresço, sou,
Eu não mudo, limito-me a manifestar
Em cada diferente voo,
A matéria-prima com que nasci neste lugar.
No fundo de mim, em meu templo,
Eu não actuo, contemplo.
850 - Absoluto
O desejo de ser normal
Não é problema,
Mas antes tomá-lo por lema
Absoluto e final.
Ao mundo que nos rodeia
Dever-nos-emos adaptar
Como viver na colmeia
De cada si-próprio singular.
Aspirar à normalidade
Oculta um desejo mais fundo:
Evitar o peso da individualidade,
Consumar o ideal
Da plenitude individual
No mundo
A que pertencemos
E de que participemos.
O que de normalidade
Não tem nada, de verdade.
851 - Importe
Talvez importe mais estar desperto
Que ser bem sucedido, equilibrado ou saudável,
Ter um imaginário vivo e aberto,
Prestável,
Reagir honesta e corajosamente
Às oportunidades em frente,
Evitar a tentação de seguir, definitivos,
Meros hábitos ou valores colectivos.
Indivíduos é sermos com frontalidade,
A todo o momento manifestando
A originalidade
De quem somos, ao fogo ou em lume brando.
Forma suprema de criatividade,
É viver do que me fecunda:
Minha fértil alma profunda.
852 - Ideal
Nosso ideal de indivíduo perfeito
É do bem adaptado, criativo,
Que a paixão não destruiu de nenhum jeito,
Que a dependência não deixou de manter, vivo,
E que é bem sucedido, em pleno,
Por qualquer padrão terreno.
Há, porém, outro ideal,
O de quem não se agarra, persistente,
A valores colectivos, seu fanal,
Inconsciente.
Quem assim for compreende
Que do ego a satisfação
Que o êxito, a auto-estima subentende
Não traz
A paz
Nem a libertação
Do desejo que nos atormente
Mais profundamente.
O desperto sabe que a sintonia
Com ele próprio e suas leis,
(Que não é independente dos anéis
Com a comunidade e mundo natural)
É a melhor via
Para a felicidade real.
853 - Rezem
Rezem, pode não resultar!
A oração é alternativa
Ao árduo labor que, a par,
Se impuser, de forma altiva,
Para obter
Aquilo que se quiser.
Eventualmente, acabamos
Por descobrir que o que queremos
Corresponde, tanto quanto veremos,
Àquilo de que não precisamos.
Rezem, pois, e nada mais,
Não esperem algo nunca,
Não esperem mesmo nada.
De expectativas reais
A oração nos livra e junca
De cada dia nossa estrada
Com nova potencialidade:
Permite o aparecimento
Da sagrada vontade,
Da providência com seu intento,
De toda a resma
Da vida nela mesma.
Haverá melhor maneira
De compensar à medida
A canseira dispendida
Ou a não-canseira?
854 - Abdica
Quando o educador abdica da compaixão
Em prol de princípios, ambição, competição,
A frágil alma fica-lhe pulverizada
Por ânsia de vitória desajustada.
Quando de alguém a individualidade
É subjugada à generalidade
Dos princípios do todo,
O imo começa a diluir-se deste modo.
Os princípios, o futuro, então,
E o totalitarismo se instalam
No húmus do chão,
Cavando os abismos para onde resvalam.
De cuidar de alma quando se trata,
O mais difícil é aprender
Que nossa melhor e mais cara ambição desata,
Quando a persigo,
A ser
De mim próprio o pior inimigo.
855 - Acreditam
Crentes, seguidores, convertidos,
Os que acreditam no valor espiritual,
Correm o risco de tentar, descomedidos,
Que quantos os rodeiam, no final,
Sejam tão perfeitos
Como aquilo a que eles próprios são atreitos:
Urge este livro ler,
Ouvir aquele orador,
Ir a um lugar qualquer,
Devir isto ou aquilo com fervor…
O espírito, quando se apodera
Dum indivíduo a quem vença,
Impele-o, no que o altera,
A converter todos à própria crença.
Ao invés, a grácil alma refreia
A tendência de clonagem
De nossa própria veia,
Das línguas de fogo de nossa viagem.
O imo respeita a tentativa falhada
Doutrem na busca da perfeição,
A resistência alargada
Dele ao saber mais chão,
A ignorância total, na conduta,
Da verdade absoluta,
Os insensatos afectos vulneráveis,
Os labirintos inextricáveis…
Qualquer alma um prosélito converte
Num amigo tão brando
Que até por respeito hesita quando
Apenas me adverte.
856 - Confissão
Pouco importa pertencer a uma religião,
Ter uma confissão particular,
Mas antes ter na vida orientação
E uma participação nos mistérios dela singular.
Quenquer pode ser pagão
Ao afirmar a vida como totalidade,
Cristão,
Ao afirmar o amor em comunidade,
Judeu na afirmação
Do teor sagrado da família humana,
Budista na constatação
Do vazio que do imo emana,
Tauista afirmando
O paradoxo em qualquer área de meu comando…
- Todas as margens então concilio
No remanso de meu rio.
857 - Deter-nos
Ao vivermos uma vida melodiosa,
Imitando o canto,
Podemos deter-nos numa vivência gostosa,
Num recanto,
Num indivíduo ou recordação
E criar uma rapsódia na imaginação.
Uns gostam de meditar ou contemplar,
Preferem outros desenhar, construir,
Pintar ou dançar
E o motivo é que ousam
Ir
Por onde os olhos lhes pousam.
Viver por episódios, em caminhada sucessiva,
É uma vivência
Por excelência
Produtiva.
Ao determo-nos, porém,
Para usufruir
Da melodia que ao imo convém,
Daremos à fiel alma a razão de existir.
858 - Erguer-me
Ao erguer-me às primeiras horas do alvor
Tomo parte na glorificação
Da madrugada
E no estupor
Que dela retiro, em função
Do esplendor
De minha quotidiana jornada.
De fronteira neste lugar,
Entre os sonhos e a vida
No limiar,
Entre o sono e o despertar,
Entre as trevas e a luz do sol erguida,
Encontramos uma entrada especial
Para a ladeira do eterno, do espiritual.
É só um instante procurar
De espiritual maturação
E aos eflúvios dele abrir o coração.
859 - Leitura
Pratica o monge a leitura espiritual:
O livro não é fonte de informação,
Antes uma forma de oração.
E se lêramos nós, por igual,
Tal se uma prece rezáramos,
Se cada livro fora uma sacra escritura,
Quer se um romance manuseáramos,
Quer um científico tratado, quer a pura
Teológica reflexão
Ou qualquer ficção?
A mente libertar-se poderia
De alguma autoridade
E então menos influía
Na vida que invade,
O que permitiria
Ao coração
Um novo desenlace,
Que doutra reflexão
Se alimentasse:
A do pão
Da poesia.
É um livro o mundo:
Como desvendá-lo
Sem como informação apenas processá-lo,
Apenas meio fecundo,
Quando tem a virtude
De me abrir à plenitude?
860 - Peso
A religião deve caminhar
O peso do dogma e autoridade,
O do colectivo e da crença a atenuar,
Para dar prioridade
Ao recrudescer de rituais quotidianos,
Da poética teologia,
Do comprometimento social em mil e um planos,
Da contemplação que extasia,
Da procura da verdadeira palma:
- O sentido de alma.
O monasticismo,
Mais espírito doravante que instituição,
Contribuirá para a afirmação
De vida centrada em alma, cujo abismo
Convida a beleza e a cultura
A partilhar, com audácia,
Dum mundo que hoje configura
Apenas pragmatismo e eficácia.
861 - Descrever
Descrever podemos nosso desespero,
Pintá-lo, esboçá-lo num poema.
O sentimento de vazio considero
Que directamente atrema
Com a vacuidade da vida,
A individual que levamos,
Como a da cultura poluída
Em que vivamos.
Na depressão, parte do sofrimento
É da incapacidade
De a descrever em palavras de lógico pensamento,
Em imagens de objectividade.
Sendo algo de vago, sem significado,
Não sabemos dela o que fazer
Dado
Que o que é não sabemos sequer.
Se formos capazes de exprimir
As imagens do desespero e da tristeza,
Talvez o significado se vislumbre a seguir
Suportáveis devirão com certeza.
Precisamos então
De cumprir o desafio
Duma estética da depressão,
Duma qualquer arte do vazio.
862 - Pede-nos
Pede-nos a sabedoria,
Não só que não façamos,
Mas que deixemos que nos seja feito:
Permitir que a graça da magia
Penetre por entre nossos ramos,
Que a vontade de Deus seja o rio de meu leito.
Ser influenciado,
Permitir a mudança,
Deixar a vida acontecer
Com todo o inesperado
Que alcança,
Venha donde vier.
Querer mudar muitos afirmam,
Fazer as mudas que preferem,
E querer fazê-las confirmam
Da maneira que entenderem.
Do coração a muda vera, todavia,
Pode ir no rumo contrário
À nossa vontade e ao que a mente veria
Dela no afluente tributário.
Nem sempre logramos imaginar
O melhor modo
De mudar,
Nem, qualquer que seja o cuidado,
Conseguiremos prever de todo
O melhor resultado.
863 - Caminham
Beleza e prática espiritual
Caminham de mãos dadas.
Música, arquitectura, vitral,
Decoração, língua de palavras apuradas,
Jardins e bibliotecas florescem
Onde os espíritos se tecem.
A vida em comunidade é primordial
E saber, estudo, leitura,
Conservar livros com cordura,
Integram a prática espiritual.
Quando duma qualquer
Das componentes abdicamos,
A nós próprios nos colocamos,
Pelo pendor que o espírito tiver,
Numa conjuntura traída
Da fundura da vida.
Quando a beleza devém
Sentimentalidade ou propaganda,
Quando a literatura e outras artes
Inconscientes se mantêm
Ou, tidas por secundárias, cada qual anda
A comunicar por apartes,
Quando ignoramos o peso
Da aprendizagem permanente,
Como suporte ileso
Onde a vida espiritual assente,
Quando à espiritualidade o apego
O deturpo na criação
Duma qualquer feição
Do ego,
- Então a autêntica interioridade em mim
Chegou ao fim.
864 - Talvez
Talvez não realizemos na vida
Nada heróico e grandioso.
Fama e glória podem não ser
O destino que nos convida
A cada amanhecer
De dor e gozo.
Talvez nos baste estar presentes,
Abrir o coração,
Aceitar o que de cotio é ofertado,
Darmos o contributo, eficientes,
Que nos esteja à mão,
Ao nível
Graduado
Que nos for possível,
E partir, no fim da instância,
Com humilde elegância.
Cada vida vem equipada,
Desde o berçário,
Com ritmo, passada
E seu próprio calendário.
Viver uma vida plena
Pode implicar um quotidiano
De mortalidade serena,
Uma permanente morte na vida,
Em todo e qualquer plano
Inserida.
Sinto a presença comum da morte
Em mortificações que chegam
À sorte,
Inesperadas, e me pegam
Com regularidade premente,
Mais que suficiente:
Um projecto falha,
Deixo ficar mal um amigo quando calha,
Esqueço um dado importante,
Digo o que não devo a cada instante,
Meu labor não fica à altura do esperado,
Não presto atenção nem trato meu lar
Com o envolvimento desejado,
Numa nuvem findo a mergulhar,
Fatigado o coração,
De neurótica tensão…
- E é com estas pequenas mortes ao morrer
Que aprendo deveras a viver.
Ora, de seguida,
Descubro acaso, na sequela, que a morte derradeira
É, consumada então, a vida
Verdadeira.
865 - Libertar
Para libertar alma
Podemos ter de ser trabalhados
Pela dor, problemas, das chagas a palma,
De espinhos coroados.
Em lugar de reforçar o controle,
Rendamo-nos à vitalidade
Que tenta exprimir-se e nos bole
De algum modo com aquilo que nos invade.
Em vez de entender nossos sonhos,
Sejamos por eles entendidos,
Reimaginemos a vida, nos cantos mais medonhos,
Pelas imagens deles estimulantes de sentidos.
Em vez de a vida organizar,
Podemos autorizá-la a seguir seu caminho
E a organizar-nos de modo singular,
Numa surpresa que nem adivinho.
A vera força pessoal
Não é duma vontade de ferro,
Duma mente superiormente intelectual.
É a da disponibilidade a que me aferro,
De deixar a vida invadir-me,
Abrindo caminho por dentro de mim,
Firme
E sem fim.
Coragem é abrirmo-nos a uma alquimia natural
De transformação pessoal
(E não fecharmo-nos, a sós)
Procedendo a mudanças de rigor,
Após,
Pelo que julgamos que é o melhor.
O pensamento
É de traição
O vento
Contra o momento
Que me agita o coração
À espera, sempre à espera doutro alimento.
866 - Monges
Os monges rumaram ao deserto
Em busca do vazio.
Hoje a vida é tão cheia que, decerto,
Teremos de enfrentar o desafio
De formas encontrar
De para o deserto partir
E abandonar,
Sem qualquer pena sentir,
A abundância
De que nos vive a ganância.
Nossas cabeças estão
Saturadas de informação,
Nossas vidas fervilham
De actividade em que se envencilham,
Nossas cidades debicam apinhadas
De automóveis às ninhadas,
O imaginário perde a viagem
Saturado de fotografias e de imagem,
As relações com novos e velhos
Andam vergadas aos molhos de conselhos,
Nossos empregos são plurivalências
Duma lista intérmina de novas competências,
Nossas casas prendem os artelhos
A tantas máquinas e aparelhos…
À produtividade o culto é tal
Que alguém ou um dia improdutivos
São fracassos vivos,
A incarnação do Mal!
Ora, o monge é o perito em nada fazer
E zela pela cultura deste vazio,
Como um fermento:
Sem querer,
Poderá salvar-nos do universal fastio,
Do esgotamento.
867 - Monásticas
As monásticas construções
Mostram como a intensa vida interior
Pode gerar de arte, de labor e de atenções
Uma rica forma exterior:
Uma vida simples e desprendida
Produz uma notável herança
Constituída
Por uma milenar entretecida
Trança
De livros, iluminuras,
Arquitectura, música, esculturas,
Teologia,
Místicos testamentos,
Filosofia,
Mil e um de alma frumentos.
O culto da vida interior
Transborda em manifestações externas
De beleza e riqueza supernas
Com fértil vigor.
A vida monástica,
Longe do afastamento da vida activa,
É uma alternativa
À hiperactividade perifrástica
Que rasteira a perna
À vida moderna.
O monge actua numa frente
Polivalente:
A vida interior fomenta,
Compromete-se na vida em comunidade,
Produz uma tormenta
De palavras, imagens e sons
Que invade
Em variegados tons,
De significado e beleza extraordinários,
Os cotios mais precários.
E muito mais inventa
No campo, na mesa
E na mezinha,
Com que atento mais atenta
No que a comunidade humana preza,
Ao perder-se das freimas pela vinha.
É o que hoje em dia a civilização
Mais requer:
O inadiável pão
Para sobreviver.
868 - Praticar
Podemos do mundo o afastamento
Praticar todos os dias.
Completaremos então um movimento
De que a plena entrada na vida
É apenas uma parte, nas periferias
Envolvida.
Como para levedar
Precisa de ar o pão,
Tudo o que fizermos tem de abrigar
No âmago um vazio,
Um chão
De pousio.
Que paz revigorante a de cada momento
Comum de afastamento
Que me esquiva
Da vida activa!
É fazer a barba, tomar um duche,
Ler um livro, não fazer nada,
Caminhar para onde me puxe,
Ouvir rádio, conduzir na estrada…
Tudo pode dirigir a atenção
Para dentro, a contemplação.
O afastamento do bulício
Pode criar uma espiritualidade sem barreiras,
Dele no resquício,
A partir-lhe das fronteiras,
Que explícita não tenha ligação
A nenhuma igreja ou tradição.
Ioga farei nadando piscinas,
Tomando um sumo da varanda às esquinas,
Para o afastamento
Tudo são verdes campinas:
Limpar um armário, livros ofertar,
Dar um passeio pela mata ao vento,
A secretária arrumar,
Desligar a televisão,
Fazer um convivial serão,
Um convite recusar
A quenquer
Para o que calhar em alternativa empreender…
Ante o nada que nos preenche,
De júbilo qualquer alma se enche.
869 - Métodos
Os métodos antigos de manter contacto
Com a vida interior
Passaram de moda, perdido o tacto
E o sabor.
Diários, cartas e conversas profundas
Ajudam a centrar a atenção
Nos desenvolvimentos e matérias fecundas
Que sob a epiderme jazerão.
Ainda há cem anos,
Sem máquina de escrever nem computador,
Muitos mantinham agendas de planos
E diários cuidados
Com íntimo calor,
Longos e pormenorizados.
Trocámos tais métodos de reflexão
Por tecnologias orientadas para a acção.
Poesia e literatura sérias
Poder-nos-ão aconselhar,
As férias
São de alma um lugar.
De bons livros qualquer mancheia
Frequentemente ensinaria
Melhor
Sobre a vida interior
Que qualquer tratado de psicologia.
As literaturas antigas
De muitas tradições
Permitem compreender as brigas
Da interioridade e suas convulsões.
Podem ensinar-nos a esboçar
As paciências
Duma autobiografia interior
Com seus pactos,
Em lugar
Dum currículo de competências,
De suor
E de factos.
Mostram que nos encontramos num odisseia
E que quem participa em nossa vida
E os eventos com que esta nos ameia
Um significado fundo têm com que se lida,
Em norma tributário
Do simbólico e do imaginário.
Alma nenhuma evolui nem cresce,
Cíclicos movimentos efectua e torções,
Repete e retome, sobe e desce,
Ecoando temas antigos comuns aos serões
De todo o ser humano,
Da História ao tecer o pano.
Não pára de voltas descrever
Em torno da casa que tiver.
As lendas falam da saudade
Da flébil alma,
De aspirar na intimidade
A um território próprio de calma
Cujo impacto
Não é o dos mundos do facto.
A odisseia dela
É andar
À deriva no oceano,
Caravela
A flutuar
Rumo ao lar
A todo o pano,
E não
Evoluir para a perfeição.
Perfeito
É outro lado, o da razão e do ego,
Quando, com apego,
De vez lhe ganha a ela o pleito,
Quando, ao ganhar, assim me perde
Para tudo o que meu íntimo em mim herde.
870 - Monge
A vida do monge é dedicada
Ao desapego.
Não implica que não vá na peugada,
Não aprecie nem cultive
Muito apego.
Tal espírito (celibato em que vive,
Não casamento)
Mesmo a meio da superabundância
De momento,
É mesmo um espírito, uma liminar ânsia
Que não precisa de dominar
Para das profundezas influenciar.
Talvez devamos
Celibatários ser nos gestos protagonizados
Relativamente a tudo aquilo com que estamos
Na vida casados.
871 - Avaliação
Pouco importa a avaliação moralista
Do tempo desperdiçado.
Tempo desperdiçado é tempo que eu invista
Bem empregue, em norma, em alma ao lado.
Uma vida regulada, todavia,
Frutífera pode ser particularmente,
Uma temporal fantasia
Em que a regularidade
Uma prisão não invente,
Antes um terreno de liberdade.
Do tempo a qualidade ritualista
Distribuído por actividades com rosto
Liberta-nos do fardo à vista
Pelo livre arbítrio imposto.
872 - Estudamos
Estudamos
Para obter diplomas,
Graus académicos,
Certificados,
E nem vislumbramos
Uma vida dedicada aos tomos
Com objectivos sistémicos
De nos educarmos em inesperados.
Ter educação é uma exigência
Diversa de andar informado
Ou de adquirir experiência
Da vida num dado.
É o génio extrair
Da natureza e do coração
Que dentro em nós deve existir
No mais abscôndito desvão.
Manifestação de nosso imo,
Exposição de nossas capacidades,
Revelação das possibilidades,
Da base ao cimo,
Até ao momento escondidas
Nas dobras das vidas,
- Eis do estuda as finalidades
Do ponto de vista
Do indivíduo que nele invista.
Por outro lado, o estudo amplifica
Do mundo a música e o discurso
Até que presente fica
De modo mais palpável da vida no percurso.
Baseada em alma, a educação
Conduz ao encantamento
Do mundo feito caução
E à individual harmonia
Traz a magia
De cada momento.
873 - Arco
O arco romano preserva a eternidade.
Sem ele, nós, pobres e humildes criaturas,
Transpomos diariamente a opacidade
De portais aplanados em cima e em baixo,
Quais sepulturas
Onde confortável não me encaixo.
Quem sob o arco romano a entrada percorreu,
Não deixa de passar
Através da terra e do céu,
Este no lugar
Da abóbada perenemente
Presente
Sob a qual
Todos vivemos no horizonte mundial.
Mesmo sem o dedo dos coruchéus,
O arco é uma abóbada bidimensional
E a abóbada, um sinal
Dos céus.
A vida moderna perdeu
Da abóbada o significado
E em vez dela o céu expandiu
No traço
Das profundezas infindas do espaço.
A contrariar
O vácuo deste vazio
Que por efeito correspondente vem a tornar
Ocas as coisas da terra em que confio,
Teremos de reconstruir a abóbada então
Em nossa imaginação.
Doutro modo, ainda quebro o fio
De meu equilíbrio precário
E estatelo-me raso no chão
De meu fadário.
874 - Grilhões
Não é pelo facto de se encontrar
Da noite para o dia liberto
Dos grilhões profissionais
Que vai saber nadar
No vasto mar aberto
Do tempo livre, sem mais:
Contraíram-se-lhe as raízes
E o primeiro passo a dar
É desatá-las nas matrizes.
E reaprender leva
Tempo demais até a luz fender a treva.
875 - Levas
Atende ao que levas às costas
Ao atravessar a ponte.
Encontrar-te-ás na outra margem
Com as apostas
E o horizonte
Que levares na bagagem.
A carga que levas contigo
É que irá dar o tom
De abrigo ou desabrigo
Às primeiras pegadas da nova nação.
E, se o desejo de partir friamente
Ou com estrondo te atinge
Ou atinge tua gente,
Ignora-o, doutra cor teu fato tinge:
De preferência
Pensa na imagem individual com afã
De que, para construir tua nova existência,
Precisarás amanhã.
876 - Terramoto
Aceitar
Ver-se tal qual se é
E tal qual se é visto
É a melhor maneira de mudar,
Mantendo-se de pé
No terramoto previsto.
877 - Respostas
"Do velho sábio não temos precisão.
As respostas é no futuro sonhado
Que estão,
Não no passado."
- Eis como, arrancadas as raízes,
De qualquer presente perdemos as matrizes.
878 - Efeito
O efeito da maturidade
É aceitar que em constante mudança
Esteja a realidade
E aceitar, consequentemente,
O que isto alcança:
- Nada dura eternamente!
879 - Acaba
Acaba sempre o combate
Por falta de combatentes
E para bater-se quem se bate
Tem de haver ao menos dois, frente a frente.
Pára com teus caprichos e manias,
É um jogador a menos em tais vias.
880 - Cultivar
É indispensável começar
A cultivar o espírito positivo,
Cada qual a se habituar
A ver em cada dia, cativo,
O segredo da luz que trouxe bela,
O raio de sol que veio pousar
À sua janela.
881 - Moral
Quando a moral está diminuída,
É forçoso acreditar
Que a vida vale a pena ser vivida
Intensamente, a compensar.
Que da vida o sabor
Pode ser alcançado,
Que seja qual for
A conjuntura presente deste lado,
À mão terei sempre medidas
Para uma vida com minhas cores preferidas.
882 - Resignação
Da resignação é próprio perder
Motivação para edificar.
Da maturidade o efeito é compreender
Que terreno e planos que escolhera, se calhar,
Não são, ponderados
Os pendores
Inesperados,
Certamente os melhores.
Não lamentes nem murmures:
- Constrói outro sonho algures.
883 - Equilíbrio
Se souber a que agarrar-se,
Acabará sempre, apesar da turbulência,
Por reencontrar o equilíbrio sem que se esgarce
E a interior coerência.
No auge da tempestade,
Do afogamento iminente,
É bom ter o apoio que lhe agrade:
Agarre-se-lhe solidamente,
Em corpo, em afectividade
E em mente,
Que jamais o perigo então o invade.
884 - Contrariando
Nada ocorre como estava à espera:
É o ensinamento
Do evento,
Contrariando minha quimera.
Há uma discrepância
Entre a imagem ideal
E o real,
Com pesada relevância.
Devo aceitar a diferença,
Recuar para encontrar as razões
Que me obrigam à sentença
De na vida caminhar aos baldões,
Usando sapatos
De tamanho errado
Em todos os actos.
Se fico desorientado
Com a mudança,
É que me preparei demasiado
Ou não me preparei de todo para o que ela entrança.
Não terei, porém, esquiva
De aceitar ao fado,
Se pretender que eu sobreviva.
Ao acolhimento
Não descubro alternativa,
Ou trair-me-ei a cada momento.
885 - Mudança
Para bem iniciar
Uma mudança de vida
Repare no que se passar,
No que lhe ocorre e o convida,
Sem sobre a quanto monta tal cota
Fazer nunca batota.
É, para o que for vital,
A regra fundamental.
Está numa terra
Inteiramente desconhecida.
Precisamente aqui, no que se lhe aferra,
A oportunidade está requerida
A que se agarrar.
Dar-se-á conta de que o quotidiano
Que banal se acabara por tornar,
Pode tornar-se de fundo o pano
Pejado de recursos
Para uma nova peça.
Mas, para além dos discursos,
Este acordar apenas começa
Se em profundidade se aplicar.
Se na nova vida
Se instalar
Com todos os tiques da antiga,
Arrisca-se, com tal traslado,
A passar-lhe ao lado.
886 - Avanço
Quão mais avanço na idade,
Mais requeiro a confiança irmã da fé.
Tenho necessidade
De que minha vida, para ter-se de pé,
Tenha sentido
E minha busca toca muitas vezes
O domínio preterido
Do espiritual,
Qualquer que ele seja, na aposta e nos reveses
De meu fanal.
É indispensável confiar na vida,
Senão, porquê construir,
Ter um projecto na terra revolvida,
Empreender, criar, gerir?...
Utiliza o dia que vem
A reforçar tua convicção
Na coexistência com este além
Que eternamente semeia o teu chão.