DÉCIMO  QUARTO  TROVÁRIO

 

 

 

    NA  FESTA  ONDE  TUDO  É  O  INFINDO  QUE NOS  FOGE  E VEM

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha ao acaso um número entre 1429 e 1535, inclusive.

Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                             1429 - Na festa onde Tudo é o Infindo que nos foge e vem

 

                                             Na festa onde Tudo é o Infindo que nos foge e vem

                                             Apuro o bom-humor, a ironia e o sarcasmo

                                             No poema regular, no irregular também,

                                             Conforme a cada pendor mais lhe convém

                                             E na surpresa irreverente pasmo.

 

                                             Tudo ao fim se consuma em alegria,

                                             Mesmo quando zurzir

                                             Importa a folia,

                                             Quando ao presente nos hipoteca o porvir.

 

                                             O poema ou chicoteia ou é cocegante,

                                             Em metro irregular ou regular

                                             Rima a palavra com a vida adiante.

 

                                             E assim nos propende a anunciar

                                             Quanto viver, na última raiz, é festejar.

 

 


1430 - Muito

 

Por muito que muito grácil

Um dia qualquer apontem,

Único dia fácil

Foi o de ontem.

 

 

1431 - Noiva

 

Qualquer noiva leva em média

A planear um casamento

As 150 horas

Da exaltação deste evento.

 

O noivo tal conta nédia

Reduz às poucas demoras

Do que demora, por bem,

A dizer: "hum, está bem…"

 

 

1432 - Limpar

 

É mesmo a melhor maneira

De limpar a frigideira

 

Com a comida agarrada

Deixá-la bem demolhada

 

Ao canto, dias a fio,

E aproveitar o vazio

 

De ninguém estar a olhar

- Para no lixo a jogar!

 

 

1433 - Rapariga

 

Pode a rapariga ter

Inexcedível beleza,

Bom nascimento acolher,

Educação e sageza,

 

Sensatez, boas maneiras,

E modéstia, inteligência,

Que em dinheiro é que a joeiras:

Se ela viver na indigência,

 

Se fortuna não tiver,

Então não será ninguém,

Nada vale ante quenquer,

Tal como se fora sem

 

Qualquer virtude investida.

Hoje em dia só o dinheiro

Mede a social medida

Da mulher de que me abeiro.

 

 

1434 - Beleza

 

A beleza ajuda às vezes

A roubar mesmo um marido,

A despeito do dinheiro:

Se a criada, as mãos corteses,

É mais bonito partido

Que a patroa em corpo inteiro,

 

Bom negócio faz frequente.

E andará de carruagem

Antes daquela, demente

A que ilude a camuflagem.

 

 

1435 - Tipos

 

Há dois tipos de pessoas

Com que nunca discutir:

A inteligente de loas,

A estúpida de fugir.

 

E que pouca sorte a minha:

Ter de haver-me com as duas

Ao mesmo tempo e em linha,

Da vida em todas as ruas!

 

 

1436 - Posturas

 

A beleza, a inteligência,

Os bons modos, sensatez,

Mesmo se em grande evidência

Nas posturas e na tez,

Bom feitio, educação,

A virtude, a devoção,

 

Todo o bom comportamento

Ou qualquer das outras prendas

Do corpo, a todo o momento,

Ou do espírito a que atendas,

Não têm qualquer função

Como recomendação:

 

- É o dote apenas que torna

Qualquer mulher atraente.

Os homens a amante à jorna

Pretendem à mão e tente,

Que lhe desejam o afecto

E a cortesã dá-lhes tecto:

 

Ela, sim, é bem bonita,

Bem feita, tem bom aspecto,

É grácil quando faz fita…

Na esposa nada é correcto

Mas não choca a enormidade,

Nenhuma má qualidade:

 

Não matam a fantasia

Nem mancham a opinião.

O dinheiro é que anuncia

Dela o valor e a função:

Nunca um dote é um aleijado

Nem um monstro deformado,

 

Antes, que agrado o de o ter,

Seja o que for a mulher!

 

 

1437 - Dote

 

Ser mulher bem educada,

Mui bonita, inteligente,

Recatada

E atraente,

 

Mas sem dote, nunca basta,

Que o dote é mais valioso

Do que a virtude mais casta.

Murmuram, em meio ao gozo,

 

Diante de qualquer

Parceiro:

- Esta mulher

Não tem dinheiro.

 

E é o que basta, denegrida,

Para acabar esquecida.

 

 

1438 - Casa

 

Valor duma vida inteira

Pouco importa, fico aparte.

Com dinheiro na algibeira

Tenho casa em toda a parte.

 

 

1439 - Bêbedo

 

Dá um homem seja o que for,

Quando bêbedo estiver,

A um outro que é bebedor:

- Basta-lhe bêbedo o ter.

 

 

1440 - Espertas

 

Muito espertas elas são!

Alimentam-te a vaidade,

Logo corres como um cão

Que uma festinha persuade.

 

Não podem eternamente

Fazer-te festas? Se param,

Vais-te embora de repente?

Um dia todos reparam

 

E tu também darás conta:

Tens uma trela ao pescoço

E tirá-la, a quanto monta:

Não podes sem quebrar osso!

 

Tu, não, que podes com elas,

Que não tenham pretensões?

Não descuides as cautelas,

Abandona as ilusões,

Guindado em falso às estrelas:

- És só falsas pretensões!

 

 

1441 - Operar

 

Julgas-te tão importante

E vives o eterno insulto

De ter de operar constante

Numa fábrica sepulto!

 

 

1442 - Alimentar

 

Se uma mulher não tem mais

Do que dela a bela fama

Para a alimentar, jamais

Se livra da fome à trama.

 

É uma côdea bem pequena

E até um burro morreria

De fome, se se lhe acena

Com a gamela vazia.

 

 

1443 - Cem

 

Ante as cem variedades

Da compota que procuro,

Em vez das seis qualidades

Entre que escolher seguro,

- Findo a não comprar nenhuma,

No mar afogado em bruma.

 

 

1444 - Vela

 

Sempre que minha vizinha

(Que vela por minha mãe

E meus filhos acarinha

Em horas que me convêm)

 

Vem pelo escritório fora

Desarvorada a gritar:

-"Que desgraça! Venha embora!",

Um susto vou apanhar,

 

Que temo por minha mãe

E por meus filhos pequenos.

Muito aflito, que é que advém

Pergunto, por entre acenos.

 

Se ela me responde aos gritos:

"Morreu meu pai, santos céus!",

Exclamo, já nada aflitos

Meus gestos:"graças a Deus!"

 

 

1445 - Erro

 

"O meu erro foi comprar"

- Diz a um outro um empregado -

"Acções da empresa, em lugar

De as comprar num outro lado.

Agora só me embaralho:

Ando mesmo preocupado

Do que produz meu trabalho!"

 

 

1446 - Levantar

 

Por mais fofa e mais quentinha

Que te agrade em toda a gama,

Irás ter, de manhãzinha,

De te levantar da cama.

 

 

1447 - Derradeiro

 

Vive cada dia tal se fora

O derradeiro que te calhar,

Até porque um dia, não demora,

Irás acertar.

 

 

1448 - Prepotência

 

A memória colectiva

Lembra a prepotência que a vitimou,

Nunca aquela em que, ostensiva,

A liberdade dos outros ela própria atropelou.

 

 

1449 - Vulgar

 

O mais vulgar homem do povo,

Um ocasional interlocutor,

Príncipe, rei ou imperador,

Mantêm-se como nossos semelhantes

Independentemente da casta, do renovo

Ou das enxertias que tiveram dantes.

 

O político, porém,

Pelo mero facto de sê-lo,

É sempre o estranho que advém

Do escuro a me puxar pelo cabelo.

 

Algo predador humano,

Ameaça noite e dia

De dano

Os demais

Animais

Da selva e da pradaria.

 

 

1450 - Remate

 

Um remate final piedoso

A vida permanentemente nos traz

Ao mal impiedoso

Que nos faz.

 

 

1451 - Dialogar

 

Há-de vir um tempo, há-de vir,

Em que dialogar cortesmente

Será o acto natural de toda a gente,

Os civilizados do porvir.

 

Mesmo poder ao disputar

Então será maneira de plebiscitar

O melhor modo de servir,

E não da megalomania o trampolim

Nem da ambição o impune actual patim.

 

Dialogar

Hoje?

Se calhar,

Ao tentar,

Até a palavra nos foge!

 

 

1452 - Répteis

 

Ódio, não, que tira a clarividência.

Antes desprezo

De répteis pela insolência

Que têm o vezo

De proliferar, mascarados

De pessoas por todos os lados.

E que haja, na liça,

Justiça, finalmente justiça!

 

 

1453 - Redacções

 

Actos bons,

Felizes eventos,

Normalidade e alegria não revelam tons

Que aos redactores ofertem elementos:

- A desgraça, quanto maior,

Mais a notícia é melhor.

 

 

1454 - Máscaras

 

De máscaras o desfile,

Tão perfeitas

Que se confundem com os mil

Rostos humanos das desfeitas:

 

A mentira, a hipocrisia,

O egoísmo, a difamação,

O boato que insidia,

Malévolo, a acusação,

 

A inveja,

A denúncia covarde,

Anónima, que ninguém veja

E há-de ferir, cedo ou tarde…

 

- São muitas, são tantas

E tão pouco quem dê a cara

Onde implantas

Do porvir a jóia rara!

 

 

1455 - Poupar

 

Outrora, poupar dinheiro

Era de avaros fastígio.

Hoje é mais dum pioneiro,

Senão mesmo dum prodígio!

 

 

1456 - Come

 

- Quem não come a papa toda

Que lhe acontece aos apelos?

- Antes não iam à boda,

Hoje tornam-se modelos!

 

 

1457 - Assusta

 

Não é bomba, um cancro qualquer

Que me assustam um ror,

É um homem ou uma mulher

Sem sentido de humor.

 

 

1458 - Olhar

 

De metafísica no exame

Poderei ser reprovado

Por olhar de almas o enxame

Dos colegas do lado?

 

 

1459 - Outrem

 

Tudo muito divertido

Pode ser

Desde que, bom ou mau, a outrem o ocorrido

Esteja a acontecer!

 

 

1460 - Contra-sensos

 

Em contra-sensos inteiros

A vida se esvai:

O quartel dos bombeiros

Também arde e cai!

 

 

1461 - Reparas

 

A maior parte das piadas,

Se reparas bem,

Faz-nos rir às gargalhadas

De alguém.

 

 

1462 - Fruir

 

Para um autor ser feliz

Sucesso fruir não basta,

Precisa que um amigo de raiz

Sofra de fracasso toda a casta.

 

 

1463 - Carro

 

Um homem apaixonado estaria

Quando esquece

Algum dia

Pelo carro o interesse.

 

 

1464 - Incompleto

 

Um homem apaixonado

É incompleto até se casar.

Depois há-de estar

Acabado!

 

 

1465 - Ouvir

 

Não quer ouvir a mulher

O que um homem pensa, que é um entrave.

Ouvir o que ela pensa antes quer,

Apenas em voz mais grave.

 

 

1466 - Veloz

 

Mais veloz para chegar ao coração

Dum homem há um jeito,

Para a mulher e que é dela sem confusão:

É através do peito.

 

 

1467 - Derradeiro

 

Ser o homem derradeiro, da Terra ao fim,

Só para descobrir

Se todas as moças que me disseram: "nem assim!",

Estavam ou não a mentir!

 

 

1468 - Compra

 

Dinheiro não compra amigos,

É casa de passe,

Mas arranjam-se inimigos

Com mais classe.

 

 

1469 - Pessimista

 

Pedir dinheiro emprestado,

Só se um pessimista envolva:

Jamais há-de ter esperado

Que o devolva.

 

 

1470 - Careca

 

Careca, não, não sou falto

De tal selo,

Sou apenas mais alto

Que meu cabelo.

 

 

1471 - Fora

 

O melhor amigo do homem, apuro

Que é o livro, fora o cão:

Dentro do cão é demasiado escuro

Para ler ao serão.

 

 

1472 - Peixe

 

Dê peixe a um homem,

Terá comida para um dia.

Ensine os homens a pescar: todos se somem

E todo o fim-de-semana deles se livraria!

 

 

1473 - Medo

 

Assente

É que não tenho medo de morrer:

Só não quero estar presente

Quando tal ocorrer.

 

 

1474 - Gelo

 

O problema de ir correr

Não reside em seu escopo,

Só que o gelo do que eu beber

Cai do copo.

 

 

1475 - Bastante

 

O mais jucundo

Em cada qual

É que, lá bem no fundo,

É bastante superficial.

 

 

1476 - Surpreso

 

Quando nasci,

Fiquei tão surpreso que, no enleio,

Falar nem consegui

Durante ano e meio!

 

 

1477 - Comem

 

Sabes tu que vives nos agros

A atar palha feixe a feixe

Por que é que os peixes são tão magros?

- Porque comem peixe!

 

 

1478 - Médico

 

Fui ao médico contar

Que parti a perna em dois lugares.

Recomendou-me não voltar

A sítios de tais azares.

 

 

1479 - Domésticas

 

As domésticas tarefas

Não vão decerto matar,

Mas, perdido entre as sanefas,

Para quê arriscar?

 

 

1480 - Furadas

 

Homens de orelhas furadas bem melhor

Para o casamento se preparam:

Experimentaram a dor

E jóias compraram.

 

 

1481 - Fácil

 

É fácil ser sábio:

É pensar numa estupidez qualquer

E depois fechar o lábio

E não a dizer.

 

 

1482 - Macacos

 

Um milhão de macacos em teclados a escrever

"Os Lusíadas" acabariam por reproduzir?

- A Internet faz-nos saber

Que quem o creu andou a se iludir.

 

 

1483 - Manhãzinha

 

De manhãzinha, doutros ingredientes

À míngua,

O primeiro que faço é lavar os dentes

- E afiar a língua!

 

 

1484 - Conduz

 

Quem conduz mais devagar

Que você logo é idiota,

Quem mais brusco acelerar,

De tarado apanha a nota.

 

 

1485 - Ponta

 

O diagnóstico às vezes é

Inesperado:

Hora de ponta por quê,

Se está tudo parado?

 

 

1486 - Perceber

 

Aqueles que a vida virem

Como enorme diversão

A perceber não estão

A coisa: o melhor é rirem.

 

 

1487 - Sapatos

 

Não tendo eu sapatos, não,

E tendo pena de mim,

Reparo no homem no chão,

Vi que nem pés tinha, enfim:

- Herdei os sapatos dele,

Melhor vou na minha pele.

 

 

1488 - Energia

 

Era mesmo inteligente

Por todo o Terceiro Mundo

De energia tão carente

Testar vastamente e a fundo

As fontes alternativas,

Acolher novos convivas.

 

Tinha-se aperfeiçoado

A técnica em grande escala

Onde antes tinha faltado,

- Era da razão a fala.

Pois, como era inteligente,

Ninguém a quis ter em mente!

 

 

1489 - Guerra

 

Sociedades patriarcais

À guerra estão-se a aprontar,

Em guerra estão com as mais

Ou dela a recuperar.

 

 

1490 - Súbito

 

Morre súbito um atleta

E logo outro ali comenta:

"Isto faz pensar… Que meta!"

Se para pensar se aventa,

 

Se para pensar precisas

Que alguém morra, então, decerto,

Em rampa fatal deslizas.

Trata de ser mais esperto:

 

É melhor principiar

Mais um pouco a te esforçar.

 

 

1491 - Assassino

 

Mui digno de admiração

É haver assassinos crentes

A impetrar de Deus perdão

Ao massacrar inocentes!

 

 

1492 - Votas

 

Se numa eleição votas uma vez,

És um cidadão exemplar.

Se votas duas ou três,

Ainda apanhas prisão celular.

 

 

1493 - Álcool

 

O álcool, neste país,

De droga não é tido como tema.

Trocaram-lhe a matriz:

É de trânsito um problema.

 

 

1494 - Vive

 

Tal se fora o derradeiro

Vive tu cada teu dia:

Acaba a ser verdadeiro

E já te prepararia…

 

 

1495 - Atómica

 

Muitos que se preocupam

Com a atómica matança

Afinal nunca se ocupam

Do cinto de segurança.

 

 

1496 - Soldados

 

Dois soldados pegam-se à pancadaria,

Dois outros os separam, de repente,

Que lutar nunca ninguém deveria.

Depois cada qual pega na arma que lhe cabia

E vão os quatro matar gente!

 

 

1476 - Medo

 

Para ter medo ninguém

Requer saber do perigo:

O desconhecido tem

Do medo o maior pascigo.

 

 

1498 - Brincar

 

Deveras extraordinário

Será brincar com a morte…

Desde que morrer, sumário,

Se não morra de tal sorte.

 

 

1499 - Fuinha

 

Voam as águias mais alto,

Mas a fuinha é que não

É aspirada, em sobressalto,

Por turbina da avião.

 

 

1500 - Conformar-te

 

Quão mais te vergar o lombo

Mais conformar-te é dever

Com um dia ser o pombo

E outro a estátua vir a ser.

 

 

1501 - Oiro

 

As três regras de oiro são:

"Quando vim já era assim";

"Não fui eu"; e, ao patrão:

"Boa atitude! Assim, sim!"

 

 

1502 - Problema

 

Um problema partilhado

Sempre é meio resolvido.

Seu é, portanto, o danado

Ou meio doutrem sofrido?

 

 

1503 - Obrar

 

Se quer obrar bem,

Cobre este talento:

Não contrate quem

For sempre azarento.

 

 

1504 - Garfo

 

Quando o patrão te aborrece

Por dentes de garfo então

Olha-o: logo te parece

Que está dentro da prisão!

 

 

1505 - Esperar

 

Pode esperar o par certo.

Entretanto, a busca aos fados

Não impedirá, decerto,

Que maravilhas, desperto,

Goze, enfim, com os errados.

 

 

1506 - Pobre

 

O pobre faz o canhão

Que o há-de por fim matar

Por meio da própria mão,

Mas é o rico, singular,

A quem tudo sempre rende,

Que, depois de feito, o vende.

 

 

1507 - Cuidam

 

Cuidam sempre os criminosos

Que não serão apanhados.

Se apanhados, tenebrosos,

Cuidam não ser condenados.

 

Condenados, mesmo assim,

Irão crer que apanharão

Sentença mínima ao fim.

Os não-criminosos são

 

Quem mais tem contribuído

A tal modo de pensar:

Não será também bandido

Quem tal anda a cultivar?

 

 

1508 - Bola

 

Uma bola bole,

Redonda ou em ovo,

E eis o futebol,

Ópera do povo.

 

 

1509 - Jogo

 

O jogo abre a porta

A que alguém se assanhe:

Ganhar pouco importa…

Desde que se ganhe!

 

 

1510 - Desliga

 

"Nunca quererei viver

No estado vegetativo,

Da máquina a depender.

Se tal vier a acontecer,

Desliga o que me tem vivo."

 

Logo a mulher se levanta,

Um passo além, denodada,

E, ante o homem que se espanta,

Da TV corta a tomada.

 

 

1511 - Telefona

 

Ao marido, em auto-estrada,

Telefona o horror que avista:

- Vai um carro à desfilada

Em contramão nessa pista!

 

- É verdade, mas não é

Um carro só, são centenas!

Mas que gente, que ralé,

Que cabeças mais pequenas!

 

 

1512 - Porco

 

Nunca tentes ensinar

Porco nenhum a cantar.

 

O teu tempo irás perder

Como o porco aborrecer.

 

Ao invés, a natureza

De cada respeita e preza.

 

Depois dá-lhe os alimentos

Que abram aos cometimentos.

 

 

1513 - Armados

 

Armados de informação,

Os peritos um enorme

Benefício desconforme

Do poder próprio terão,

 

O de explorarem o medo.

Medo de que um filho morra

Se ao médico eu não acorra,

Na boca a rezar o credo.

 

O de que um caixão barato

À avó morta já sem tino

Traga um terrível destino,

Apesar do fim pacato.

 

O de um carro mais em conta

Num desastre se amassar

Quando o que o dobro custar

Tem a blindagem de ponta.

 

Medo que os peritos criam

É o mesmo dos terroristas,

Só que estes dão mais nas vistas,

Naqueles todos confiam.

 

 

1514 - Birra

 

Os homens podem fazer

Uma birra, um escarcéu,

Sentirem-se a fenecer,

Frustrados no fado seu,

 

Preocupados no labor

Ou com a vida madrasta,

Mas, no fim, quem sábio for

Do que os faz correr, lhe basta

 

Muito pouco a os entender:

Têm a necessidade,

Um desespero qualquer,

De apreciados de verdade

 

Se sentirem e admirados.

Se os fazes sentir assim

Nem sonhas de que cuidados

Te irão rodear por fim!

 

 

1515 - Damos

 

Por que é que nós, quão mais velhos,

Longe de sagrados templos,

Damos tanto mais conselhos

Quanto damos maus exemplos?

 

 

1516 - Ausente

 

Eu dou-te todo o meu colo

Para, quando longe o fado,

Não deixares, pólo a pólo,

De sentir-te abandonado.

 

 

1517 - Vaidosos

 

Os vaidosos sonham que seu eu

Venha a transformar-se num mentor.

O mal não é o eu que têm de seu,

É que lhes engula, sorvedor,

 

Os pronomes outros pessoais.

Se a nada reduzem os demais,

 

Em vez de devirem confiáveis,

Tornam-se, afinal, insuportáveis.

 

 

1518 - Insurgem

 

Muitos pais mui rabugentos

Se insurgem contra seus filhos,

Que tudo terão demais

A ser felizes portentos.

 

Que é que lhes faz falta aos brilhos?

- Pois, pois é: faltam-lhes pais!

 

 

1519 - Lei

 

A lei é uma serpente

De golpes falsos:

Morde permanentemente

Os pés descalços.

 

 

1520 - Atitude

 

Todos temos de entender,

De qualquer maneira,

Que é nossa atitude que devemos enriquecer,

Não a carteira.

 

 

1521 - Sério

 

De mim próprio me rirei

Como das coisas que faço,

A sério não levarei

Tanto quanto é de meu traço

 

Porque sou mais divertido

Quando me rio à vontade.

Embora especial sentido

Eu tenha que o mundo invade,

 

Píncaro do que é criado,

Sei que quanto concretizo

Pouco fundo resultado

Terá no mundo que viso.

 

Nunca sou muito importante,

O que me ocorre hoje aqui

Vai ser insignificante

Visto a séculos dali.

 

Por que razão vou levar

Uma vida tão a sério?

Melhor é a vida gozar

Que gastar-me em tal mistério.

 

Rir da vida e do que quis

É o que me fará feliz.

 

 

1522 - Compreender

 

Quando algo quiser vender,

Compreender os idiomas

Muito lhe irá requerer.

Porém, se comprar quiser,

Todos em todas as tomas

O entendem sem aprender.

 

 

1523 - Hierarca

 

As religiões, de início,

São deveras admiráveis.

O hierarca é o precipício

Onde afundam insondáveis:

Mal se organizam, o clero

Na intolerância é um esmero!

 

 

1524 - Chores

 

Não chores, Terra, que irás

Os homens alimentar

Mas também os comerás

A todos, sem um falhar!

 

 

1525 - Criamos

 

Criamos nossos filhos

Para uma boa vida,

Não para os brilhos

Nem os sarilhos

De pensarem à medida.

 

Veneramos como celebridade

Que nenhum contributo genuíno

Deu à comunidade

E cujo destino

O mundo apenas atura

Porque espelha nossa própria loucura.

 

Quando nos aperceberemos

Do porvir esburacado que tecemos?

 

 

1526 - Ergue

 

Um rabi ergue as mãos em oração

E proclama com fervor:

"Não sou ninguém, senhor!"

Um aluno vê o rabi raso no chão,

Ajoelha e clama também:

"Não sou ninguém!"

 

Um guarda do templo vê os dois,

Ajoelha, agita os braços de pelém,

E grita depois:

"Não sou ninguém!"

 

O rabi, quando isto vê,

Pergunta ao aluno

Que com ele mantém uno:

"Quem julga aquele que é,

Hein?!..."

 

 

1527 - Dinheiro

 

Quanto dinheiro temos

Pouco importa saber,

Mas quanto de nós próprios entreguemos

Ao dinheiro que houver.

 

Um endinheirado pode não ser então rico

E um de recursos modestos

Pode deixar-se arrastar pelo bico

Agudo dos aprestos.

 

Um monge pobre teria

Algo muito valioso

A que todo se dedicaria:

Uma mosca que corria

As páginas do deleitoso

Breviário que ele lia.

 

Um dia a mosca morreu

E ele a perda lamentou

Ante o espiritual guia seu

Que lhe retrucou

Com a insuspeita

Verdade:

- A desgraça sempre espreita

Onde houver prosperidade.

 

 

1528 - Ajoelhados

 

Ajoelhados na capela,

Três monges, na hora escura

Antes que se apague a estrela

Que a madrugada inaugura.

 

A figura de Jesus

Julga o primeiro ter visto

A descer leve da cruz

Sem tocar o chão de xisto.

"Até que enfim", disse então,

"Sei o que é contemplação!"

 

O segundo sobe aos ares

Sobre o cadeiral do coro,

Paira instantes singulares,

Desce lento e com decoro.

"Que milagre! Humilde, enfim,

Guardá-lo-ei só para mim."

 

O terceiro só doridos

Joelhos sente cansados.

Nos devaneios perdidos

Só fixa bifes panados…

"Não logro", o diabo diz,

"Tentá-lo em nenhum matiz."

 

 

1529 - Cabo

 

É como se a família o houvera considerado

Como uma ferramenta

Que os mais esperam que tenha conservado

Mas com que ele nem sequer tenta

Levar a cabo o labor

Que requerido for.

 

Quem um artista tal

Mantém na lista do que vale?

 

 

1530 - Problemas

 

A basilar solução

Para os grandes problemas da vida

É que poderei pensar, pensar

E não resolver nenhuma questão,

Mas não poderei passar

Sem comida!

 

 

1531 - Comunicação

 

Entre o desejo e a palavra a discordância,

Da comunicação ocasiona o problema.

A duplicidade em indivíduos, nações, torna-se lema,

Dizem uma coisa e fazem outra, por ganância.

 

E o vulgo que pela palavra se deixa guiar

Fica confuso por inteiro

Quando um acto atraiçoar

O prometido primeiro.

 

É um descontrolo

Descobrir a falsidade.

Mas o vulgo, sempre tolo,

Prefere, em profundidade,

Ser ludibriado

A sentir-se defraudado,

Prefere a mentira

A aceitar a afirmação

Da verdadeira intenção

De quem falsidão respira.

 

Com medo de perder o repouso

Que mais lhe agrade,

Apoda de mentiroso

Quem lhe contar a verdade.

 

 

1532 - Mau

 

Não há como um mau actor

Para acusar, afinal,

Todos os mais, sem pudor,

De representarem mal.

 

 

1533 - Humilhar-nos

 

De nós próprios sermos donos

Não podemos proclamar

Quando há tantos com abonos

De humilhar-nos sem parar.

 

 

1534 - Emprego

 

Quantos que procuram emprego estão por tudo!

Hábito forte é a submissão, forte demais:

Chamem-lhes idiotas, o que queiram, que, mudo,

O rosto lhes sorri, sorri sempre, que humilhais;

 

Virem-lhes a fé do avesso, que sorriem,

Desprezem-nos e poderão corar

Mas novos sorrisos ei-los que aviem,

Não se atrevem nunca a discordar.

 

E os prepotentes tanto a isto se habituam

Que cavalgaduras rincham quando actuam.

 

 

1535 - Velho

 

Se quer evitar devir um velho jarreta,

O tempo dele sempre a evocar,

Que tudo como antes quer por meta,

Reveja o que anda a pensar.

 

E veja se se tranquiliza:

O planeta não precisa

De si para girar.