DÉCIMO QUARTO TROVÁRIO
NA FESTA ONDE TUDO É O INFINDO QUE NOS FOGE E VEM
Escolha ao acaso um número entre 1429 e 1535, inclusive.
Leia o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1429 - Na festa onde Tudo é o Infindo que nos foge e vem
Na festa onde Tudo é o Infindo que nos foge e vem
Apuro o bom-humor, a ironia e o sarcasmo
No poema regular, no irregular também,
Conforme a cada pendor mais lhe convém
E na surpresa irreverente pasmo.
Tudo ao fim se consuma em alegria,
Mesmo quando zurzir
Importa a folia,
Quando ao presente nos hipoteca o porvir.
O poema ou chicoteia ou é cocegante,
Em metro irregular ou regular
Rima a palavra com a vida adiante.
E assim nos propende a anunciar
Quanto viver, na última raiz, é festejar.
1430 - Muito
Por muito que muito grácil
Um dia qualquer apontem,
Único dia fácil
Foi o de ontem.
1431 - Noiva
Qualquer noiva leva em média
A planear um casamento
As 150 horas
Da exaltação deste evento.
O noivo tal conta nédia
Reduz às poucas demoras
Do que demora, por bem,
A dizer: "hum, está bem…"
1432 - Limpar
É mesmo a melhor maneira
De limpar a frigideira
Com a comida agarrada
Deixá-la bem demolhada
Ao canto, dias a fio,
E aproveitar o vazio
De ninguém estar a olhar
- Para no lixo a jogar!
1433 - Rapariga
Pode a rapariga ter
Inexcedível beleza,
Bom nascimento acolher,
Educação e sageza,
Sensatez, boas maneiras,
E modéstia, inteligência,
Que em dinheiro é que a joeiras:
Se ela viver na indigência,
Se fortuna não tiver,
Então não será ninguém,
Nada vale ante quenquer,
Tal como se fora sem
Qualquer virtude investida.
Hoje em dia só o dinheiro
Mede a social medida
Da mulher de que me abeiro.
1434 - Beleza
A beleza ajuda às vezes
A roubar mesmo um marido,
A despeito do dinheiro:
Se a criada, as mãos corteses,
É mais bonito partido
Que a patroa em corpo inteiro,
Bom negócio faz frequente.
E andará de carruagem
Antes daquela, demente
A que ilude a camuflagem.
1435 - Tipos
Há dois tipos de pessoas
Com que nunca discutir:
A inteligente de loas,
A estúpida de fugir.
E que pouca sorte a minha:
Ter de haver-me com as duas
Ao mesmo tempo e em linha,
Da vida em todas as ruas!
1436 - Posturas
A beleza, a inteligência,
Os bons modos, sensatez,
Mesmo se em grande evidência
Nas posturas e na tez,
Bom feitio, educação,
A virtude, a devoção,
Todo o bom comportamento
Ou qualquer das outras prendas
Do corpo, a todo o momento,
Ou do espírito a que atendas,
Não têm qualquer função
Como recomendação:
- É o dote apenas que torna
Qualquer mulher atraente.
Os homens a amante à jorna
Pretendem à mão e tente,
Que lhe desejam o afecto
E a cortesã dá-lhes tecto:
Ela, sim, é bem bonita,
Bem feita, tem bom aspecto,
É grácil quando faz fita…
Na esposa nada é correcto
Mas não choca a enormidade,
Nenhuma má qualidade:
Não matam a fantasia
Nem mancham a opinião.
O dinheiro é que anuncia
Dela o valor e a função:
Nunca um dote é um aleijado
Nem um monstro deformado,
Antes, que agrado o de o ter,
Seja o que for a mulher!
1437 - Dote
Ser mulher bem educada,
Mui bonita, inteligente,
Recatada
E atraente,
Mas sem dote, nunca basta,
Que o dote é mais valioso
Do que a virtude mais casta.
Murmuram, em meio ao gozo,
Diante de qualquer
Parceiro:
- Esta mulher
Não tem dinheiro.
E é o que basta, denegrida,
Para acabar esquecida.
1438 - Casa
Valor duma vida inteira
Pouco importa, fico aparte.
Com dinheiro na algibeira
Tenho casa em toda a parte.
1439 - Bêbedo
Dá um homem seja o que for,
Quando bêbedo estiver,
A um outro que é bebedor:
- Basta-lhe bêbedo o ter.
1440 - Espertas
Muito espertas elas são!
Alimentam-te a vaidade,
Logo corres como um cão
Que uma festinha persuade.
Não podem eternamente
Fazer-te festas? Se param,
Vais-te embora de repente?
Um dia todos reparam
E tu também darás conta:
Tens uma trela ao pescoço
E tirá-la, a quanto monta:
Não podes sem quebrar osso!
Tu, não, que podes com elas,
Que não tenham pretensões?
Não descuides as cautelas,
Abandona as ilusões,
Guindado em falso às estrelas:
- És só falsas pretensões!
1441 - Operar
Julgas-te tão importante
E vives o eterno insulto
De ter de operar constante
Numa fábrica sepulto!
1442 - Alimentar
Se uma mulher não tem mais
Do que dela a bela fama
Para a alimentar, jamais
Se livra da fome à trama.
É uma côdea bem pequena
E até um burro morreria
De fome, se se lhe acena
Com a gamela vazia.
1443 - Cem
Ante as cem variedades
Da compota que procuro,
Em vez das seis qualidades
Entre que escolher seguro,
- Findo a não comprar nenhuma,
No mar afogado em bruma.
1444 - Vela
Sempre que minha vizinha
(Que vela por minha mãe
E meus filhos acarinha
Em horas que me convêm)
Vem pelo escritório fora
Desarvorada a gritar:
-"Que desgraça! Venha embora!",
Um susto vou apanhar,
Que temo por minha mãe
E por meus filhos pequenos.
Muito aflito, que é que advém
Pergunto, por entre acenos.
Se ela me responde aos gritos:
"Morreu meu pai, santos céus!",
Exclamo, já nada aflitos
Meus gestos:"graças a Deus!"
1445 - Erro
"O meu erro foi comprar"
- Diz a um outro um empregado -
"Acções da empresa, em lugar
De as comprar num outro lado.
Agora só me embaralho:
Ando mesmo preocupado
Do que produz meu trabalho!"
1446 - Levantar
Por mais fofa e mais quentinha
Que te agrade em toda a gama,
Irás ter, de manhãzinha,
De te levantar da cama.
1447 - Derradeiro
Vive cada dia tal se fora
O derradeiro que te calhar,
Até porque um dia, não demora,
Irás acertar.
1448 - Prepotência
A memória colectiva
Lembra a prepotência que a vitimou,
Nunca aquela em que, ostensiva,
A liberdade dos outros ela própria atropelou.
1449 - Vulgar
O mais vulgar homem do povo,
Um ocasional interlocutor,
Príncipe, rei ou imperador,
Mantêm-se como nossos semelhantes
Independentemente da casta, do renovo
Ou das enxertias que tiveram dantes.
O político, porém,
Pelo mero facto de sê-lo,
É sempre o estranho que advém
Do escuro a me puxar pelo cabelo.
Algo predador humano,
Ameaça noite e dia
De dano
Os demais
Animais
Da selva e da pradaria.
1450 - Remate
Um remate final piedoso
A vida permanentemente nos traz
Ao mal impiedoso
Que nos faz.
1451 - Dialogar
Há-de vir um tempo, há-de vir,
Em que dialogar cortesmente
Será o acto natural de toda a gente,
Os civilizados do porvir.
Mesmo poder ao disputar
Então será maneira de plebiscitar
O melhor modo de servir,
E não da megalomania o trampolim
Nem da ambição o impune actual patim.
Dialogar
Hoje?
Se calhar,
Ao tentar,
Até a palavra nos foge!
1452 - Répteis
Ódio, não, que tira a clarividência.
Antes desprezo
De répteis pela insolência
Que têm o vezo
De proliferar, mascarados
De pessoas por todos os lados.
E que haja, na liça,
Justiça, finalmente justiça!
1453 - Redacções
Actos bons,
Felizes eventos,
Normalidade e alegria não revelam tons
Que aos redactores ofertem elementos:
- A desgraça, quanto maior,
Mais a notícia é melhor.
1454 - Máscaras
De máscaras o desfile,
Tão perfeitas
Que se confundem com os mil
Rostos humanos das desfeitas:
A mentira, a hipocrisia,
O egoísmo, a difamação,
O boato que insidia,
Malévolo, a acusação,
A inveja,
A denúncia covarde,
Anónima, que ninguém veja
E há-de ferir, cedo ou tarde…
- São muitas, são tantas
E tão pouco quem dê a cara
Onde implantas
Do porvir a jóia rara!
1455 - Poupar
Outrora, poupar dinheiro
Era de avaros fastígio.
Hoje é mais dum pioneiro,
Senão mesmo dum prodígio!
1456 - Come
- Quem não come a papa toda
Que lhe acontece aos apelos?
- Antes não iam à boda,
Hoje tornam-se modelos!
1457 - Assusta
Não é bomba, um cancro qualquer
Que me assustam um ror,
É um homem ou uma mulher
Sem sentido de humor.
1458 - Olhar
De metafísica no exame
Poderei ser reprovado
Por olhar de almas o enxame
Dos colegas do lado?
1459 - Outrem
Tudo muito divertido
Pode ser
Desde que, bom ou mau, a outrem o ocorrido
Esteja a acontecer!
1460 - Contra-sensos
Em contra-sensos inteiros
A vida se esvai:
O quartel dos bombeiros
Também arde e cai!
1461 - Reparas
A maior parte das piadas,
Se reparas bem,
Faz-nos rir às gargalhadas
De alguém.
1462 - Fruir
Para um autor ser feliz
Sucesso fruir não basta,
Precisa que um amigo de raiz
Sofra de fracasso toda a casta.
1463 - Carro
Um homem apaixonado estaria
Quando esquece
Algum dia
Pelo carro o interesse.
1464 - Incompleto
Um homem apaixonado
É incompleto até se casar.
Depois há-de estar
Acabado!
1465 - Ouvir
Não quer ouvir a mulher
O que um homem pensa, que é um entrave.
Ouvir o que ela pensa antes quer,
Apenas em voz mais grave.
1466 - Veloz
Mais veloz para chegar ao coração
Dum homem há um jeito,
Para a mulher e que é dela sem confusão:
É através do peito.
1467 - Derradeiro
Ser o homem derradeiro, da Terra ao fim,
Só para descobrir
Se todas as moças que me disseram: "nem assim!",
Estavam ou não a mentir!
1468 - Compra
Dinheiro não compra amigos,
É casa de passe,
Mas arranjam-se inimigos
Com mais classe.
1469 - Pessimista
Pedir dinheiro emprestado,
Só se um pessimista envolva:
Jamais há-de ter esperado
Que o devolva.
1470 - Careca
Careca, não, não sou falto
De tal selo,
Sou apenas mais alto
Que meu cabelo.
1471 - Fora
O melhor amigo do homem, apuro
Que é o livro, fora o cão:
Dentro do cão é demasiado escuro
Para ler ao serão.
1472 - Peixe
Dê peixe a um homem,
Terá comida para um dia.
Ensine os homens a pescar: todos se somem
E todo o fim-de-semana deles se livraria!
1473 - Medo
Assente
É que não tenho medo de morrer:
Só não quero estar presente
Quando tal ocorrer.
1474 - Gelo
O problema de ir correr
Não reside em seu escopo,
Só que o gelo do que eu beber
Cai do copo.
1475 - Bastante
O mais jucundo
Em cada qual
É que, lá bem no fundo,
É bastante superficial.
1476 - Surpreso
Quando nasci,
Fiquei tão surpreso que, no enleio,
Falar nem consegui
Durante ano e meio!
1477 - Comem
Sabes tu que vives nos agros
A atar palha feixe a feixe
Por que é que os peixes são tão magros?
- Porque comem peixe!
1478 - Médico
Fui ao médico contar
Que parti a perna em dois lugares.
Recomendou-me não voltar
A sítios de tais azares.
1479 - Domésticas
As domésticas tarefas
Não vão decerto matar,
Mas, perdido entre as sanefas,
Para quê arriscar?
1480 - Furadas
Homens de orelhas furadas bem melhor
Para o casamento se preparam:
Experimentaram a dor
E jóias compraram.
1481 - Fácil
É fácil ser sábio:
É pensar numa estupidez qualquer
E depois fechar o lábio
E não a dizer.
1482 - Macacos
Um milhão de macacos em teclados a escrever
"Os Lusíadas" acabariam por reproduzir?
- A Internet faz-nos saber
Que quem o creu andou a se iludir.
1483 - Manhãzinha
De manhãzinha, doutros ingredientes
À míngua,
O primeiro que faço é lavar os dentes
- E afiar a língua!
1484 - Conduz
Quem conduz mais devagar
Que você logo é idiota,
Quem mais brusco acelerar,
De tarado apanha a nota.
1485 - Ponta
O diagnóstico às vezes é
Inesperado:
Hora de ponta por quê,
Se está tudo parado?
1486 - Perceber
Aqueles que a vida virem
Como enorme diversão
A perceber não estão
A coisa: o melhor é rirem.
1487 - Sapatos
Não tendo eu sapatos, não,
E tendo pena de mim,
Reparo no homem no chão,
Vi que nem pés tinha, enfim:
- Herdei os sapatos dele,
Melhor vou na minha pele.
1488 - Energia
Era mesmo inteligente
Por todo o Terceiro Mundo
De energia tão carente
Testar vastamente e a fundo
As fontes alternativas,
Acolher novos convivas.
Tinha-se aperfeiçoado
A técnica em grande escala
Onde antes tinha faltado,
- Era da razão a fala.
Pois, como era inteligente,
Ninguém a quis ter em mente!
1489 - Guerra
Sociedades patriarcais
À guerra estão-se a aprontar,
Em guerra estão com as mais
Ou dela a recuperar.
1490 - Súbito
Morre súbito um atleta
E logo outro ali comenta:
"Isto faz pensar… Que meta!"
Se para pensar se aventa,
Se para pensar precisas
Que alguém morra, então, decerto,
Em rampa fatal deslizas.
Trata de ser mais esperto:
É melhor principiar
Mais um pouco a te esforçar.
1491 - Assassino
Mui digno de admiração
É haver assassinos crentes
A impetrar de Deus perdão
Ao massacrar inocentes!
1492 - Votas
Se numa eleição votas uma vez,
És um cidadão exemplar.
Se votas duas ou três,
Ainda apanhas prisão celular.
1493 - Álcool
O álcool, neste país,
De droga não é tido como tema.
Trocaram-lhe a matriz:
É de trânsito um problema.
1494 - Vive
Tal se fora o derradeiro
Vive tu cada teu dia:
Acaba a ser verdadeiro
E já te prepararia…
1495 - Atómica
Muitos que se preocupam
Com a atómica matança
Afinal nunca se ocupam
Do cinto de segurança.
1496 - Soldados
Dois soldados pegam-se à pancadaria,
Dois outros os separam, de repente,
Que lutar nunca ninguém deveria.
Depois cada qual pega na arma que lhe cabia
E vão os quatro matar gente!
1476 - Medo
Para ter medo ninguém
Requer saber do perigo:
O desconhecido tem
Do medo o maior pascigo.
1498 - Brincar
Deveras extraordinário
Será brincar com a morte…
Desde que morrer, sumário,
Se não morra de tal sorte.
1499 - Fuinha
Voam as águias mais alto,
Mas a fuinha é que não
É aspirada, em sobressalto,
Por turbina da avião.
1500 - Conformar-te
Quão mais te vergar o lombo
Mais conformar-te é dever
Com um dia ser o pombo
E outro a estátua vir a ser.
1501 - Oiro
As três regras de oiro são:
"Quando vim já era assim";
"Não fui eu"; e, ao patrão:
"Boa atitude! Assim, sim!"
1502 - Problema
Um problema partilhado
Sempre é meio resolvido.
Seu é, portanto, o danado
Ou meio doutrem sofrido?
1503 - Obrar
Se quer obrar bem,
Cobre este talento:
Não contrate quem
For sempre azarento.
1504 - Garfo
Quando o patrão te aborrece
Por dentes de garfo então
Olha-o: logo te parece
Que está dentro da prisão!
1505 - Esperar
Pode esperar o par certo.
Entretanto, a busca aos fados
Não impedirá, decerto,
Que maravilhas, desperto,
Goze, enfim, com os errados.
1506 - Pobre
O pobre faz o canhão
Que o há-de por fim matar
Por meio da própria mão,
Mas é o rico, singular,
A quem tudo sempre rende,
Que, depois de feito, o vende.
1507 - Cuidam
Cuidam sempre os criminosos
Que não serão apanhados.
Se apanhados, tenebrosos,
Cuidam não ser condenados.
Condenados, mesmo assim,
Irão crer que apanharão
Sentença mínima ao fim.
Os não-criminosos são
Quem mais tem contribuído
A tal modo de pensar:
Não será também bandido
Quem tal anda a cultivar?
1508 - Bola
Uma bola bole,
Redonda ou em ovo,
E eis o futebol,
Ópera do povo.
1509 - Jogo
O jogo abre a porta
A que alguém se assanhe:
Ganhar pouco importa…
Desde que se ganhe!
1510 - Desliga
"Nunca quererei viver
No estado vegetativo,
Da máquina a depender.
Se tal vier a acontecer,
Desliga o que me tem vivo."
Logo a mulher se levanta,
Um passo além, denodada,
E, ante o homem que se espanta,
Da TV corta a tomada.
1511 - Telefona
Ao marido, em auto-estrada,
Telefona o horror que avista:
- Vai um carro à desfilada
Em contramão nessa pista!
- É verdade, mas não é
Um carro só, são centenas!
Mas que gente, que ralé,
Que cabeças mais pequenas!
1512 - Porco
Nunca tentes ensinar
Porco nenhum a cantar.
O teu tempo irás perder
Como o porco aborrecer.
Ao invés, a natureza
De cada respeita e preza.
Depois dá-lhe os alimentos
Que abram aos cometimentos.
1513 - Armados
Armados de informação,
Os peritos um enorme
Benefício desconforme
Do poder próprio terão,
O de explorarem o medo.
Medo de que um filho morra
Se ao médico eu não acorra,
Na boca a rezar o credo.
O de que um caixão barato
À avó morta já sem tino
Traga um terrível destino,
Apesar do fim pacato.
O de um carro mais em conta
Num desastre se amassar
Quando o que o dobro custar
Tem a blindagem de ponta.
Medo que os peritos criam
É o mesmo dos terroristas,
Só que estes dão mais nas vistas,
Naqueles todos confiam.
1514 - Birra
Os homens podem fazer
Uma birra, um escarcéu,
Sentirem-se a fenecer,
Frustrados no fado seu,
Preocupados no labor
Ou com a vida madrasta,
Mas, no fim, quem sábio for
Do que os faz correr, lhe basta
Muito pouco a os entender:
Têm a necessidade,
Um desespero qualquer,
De apreciados de verdade
Se sentirem e admirados.
Se os fazes sentir assim
Nem sonhas de que cuidados
Te irão rodear por fim!
1515 - Damos
Por que é que nós, quão mais velhos,
Longe de sagrados templos,
Damos tanto mais conselhos
Quanto damos maus exemplos?
1516 - Ausente
Eu dou-te todo o meu colo
Para, quando longe o fado,
Não deixares, pólo a pólo,
De sentir-te abandonado.
1517 - Vaidosos
Os vaidosos sonham que seu eu
Venha a transformar-se num mentor.
O mal não é o eu que têm de seu,
É que lhes engula, sorvedor,
Os pronomes outros pessoais.
Se a nada reduzem os demais,
Em vez de devirem confiáveis,
Tornam-se, afinal, insuportáveis.
1518 - Insurgem
Muitos pais mui rabugentos
Se insurgem contra seus filhos,
Que tudo terão demais
A ser felizes portentos.
Que é que lhes faz falta aos brilhos?
- Pois, pois é: faltam-lhes pais!
1519 - Lei
A lei é uma serpente
De golpes falsos:
Morde permanentemente
Os pés descalços.
1520 - Atitude
Todos temos de entender,
De qualquer maneira,
Que é nossa atitude que devemos enriquecer,
Não a carteira.
1521 - Sério
De mim próprio me rirei
Como das coisas que faço,
A sério não levarei
Tanto quanto é de meu traço
Porque sou mais divertido
Quando me rio à vontade.
Embora especial sentido
Eu tenha que o mundo invade,
Píncaro do que é criado,
Sei que quanto concretizo
Pouco fundo resultado
Terá no mundo que viso.
Nunca sou muito importante,
O que me ocorre hoje aqui
Vai ser insignificante
Visto a séculos dali.
Por que razão vou levar
Uma vida tão a sério?
Melhor é a vida gozar
Que gastar-me em tal mistério.
Rir da vida e do que quis
É o que me fará feliz.
1522 - Compreender
Quando algo quiser vender,
Compreender os idiomas
Muito lhe irá requerer.
Porém, se comprar quiser,
Todos em todas as tomas
O entendem sem aprender.
1523 - Hierarca
As religiões, de início,
São deveras admiráveis.
O hierarca é o precipício
Onde afundam insondáveis:
Mal se organizam, o clero
Na intolerância é um esmero!
1524 - Chores
Não chores, Terra, que irás
Os homens alimentar
Mas também os comerás
A todos, sem um falhar!
1525 - Criamos
Criamos nossos filhos
Para uma boa vida,
Não para os brilhos
Nem os sarilhos
De pensarem à medida.
Veneramos como celebridade
Que nenhum contributo genuíno
Deu à comunidade
E cujo destino
O mundo apenas atura
Porque espelha nossa própria loucura.
Quando nos aperceberemos
Do porvir esburacado que tecemos?
1526 - Ergue
Um rabi ergue as mãos em oração
E proclama com fervor:
"Não sou ninguém, senhor!"
Um aluno vê o rabi raso no chão,
Ajoelha e clama também:
"Não sou ninguém!"
Um guarda do templo vê os dois,
Ajoelha, agita os braços de pelém,
E grita depois:
"Não sou ninguém!"
O rabi, quando isto vê,
Pergunta ao aluno
Que com ele mantém uno:
"Quem julga aquele que é,
Hein?!..."
1527 - Dinheiro
Quanto dinheiro temos
Pouco importa saber,
Mas quanto de nós próprios entreguemos
Ao dinheiro que houver.
Um endinheirado pode não ser então rico
E um de recursos modestos
Pode deixar-se arrastar pelo bico
Agudo dos aprestos.
Um monge pobre teria
Algo muito valioso
A que todo se dedicaria:
Uma mosca que corria
As páginas do deleitoso
Breviário que ele lia.
Um dia a mosca morreu
E ele a perda lamentou
Ante o espiritual guia seu
Que lhe retrucou
Com a insuspeita
Verdade:
- A desgraça sempre espreita
Onde houver prosperidade.
1528 - Ajoelhados
Ajoelhados na capela,
Três monges, na hora escura
Antes que se apague a estrela
Que a madrugada inaugura.
A figura de Jesus
Julga o primeiro ter visto
A descer leve da cruz
Sem tocar o chão de xisto.
"Até que enfim", disse então,
"Sei o que é contemplação!"
O segundo sobe aos ares
Sobre o cadeiral do coro,
Paira instantes singulares,
Desce lento e com decoro.
"Que milagre! Humilde, enfim,
Guardá-lo-ei só para mim."
O terceiro só doridos
Joelhos sente cansados.
Nos devaneios perdidos
Só fixa bifes panados…
"Não logro", o diabo diz,
"Tentá-lo em nenhum matiz."
1529 - Cabo
É como se a família o houvera considerado
Como uma ferramenta
Que os mais esperam que tenha conservado
Mas com que ele nem sequer tenta
Levar a cabo o labor
Que requerido for.
Quem um artista tal
Mantém na lista do que vale?
1530 - Problemas
A basilar solução
Para os grandes problemas da vida
É que poderei pensar, pensar
E não resolver nenhuma questão,
Mas não poderei passar
Sem comida!
1531 - Comunicação
Entre o desejo e a palavra a discordância,
Da comunicação ocasiona o problema.
A duplicidade em indivíduos, nações, torna-se lema,
Dizem uma coisa e fazem outra, por ganância.
E o vulgo que pela palavra se deixa guiar
Fica confuso por inteiro
Quando um acto atraiçoar
O prometido primeiro.
É um descontrolo
Descobrir a falsidade.
Mas o vulgo, sempre tolo,
Prefere, em profundidade,
Ser ludibriado
A sentir-se defraudado,
Prefere a mentira
A aceitar a afirmação
Da verdadeira intenção
De quem falsidão respira.
Com medo de perder o repouso
Que mais lhe agrade,
Apoda de mentiroso
Quem lhe contar a verdade.
1532 - Mau
Não há como um mau actor
Para acusar, afinal,
Todos os mais, sem pudor,
De representarem mal.
1533 - Humilhar-nos
De nós próprios sermos donos
Não podemos proclamar
Quando há tantos com abonos
De humilhar-nos sem parar.
1534 - Emprego
Quantos que procuram emprego estão por tudo!
Hábito forte é a submissão, forte demais:
Chamem-lhes idiotas, o que queiram, que, mudo,
O rosto lhes sorri, sorri sempre, que humilhais;
Virem-lhes a fé do avesso, que sorriem,
Desprezem-nos e poderão corar
Mas novos sorrisos ei-los que aviem,
Não se atrevem nunca a discordar.
E os prepotentes tanto a isto se habituam
Que cavalgaduras rincham quando actuam.
1535 - Velho
Se quer evitar devir um velho jarreta,
O tempo dele sempre a evocar,
Que tudo como antes quer por meta,
Reveja o que anda a pensar.
E veja se se tranquiliza:
O planeta não precisa
De si para girar.