NA CARNE  DA  PALAVRA

 

 

 

 

PRIMEIRO  CANTO

 

 

 

 

NA  CARNE DA  PALAVRA  É  QUE  EU  ME  SONHO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um númeo entre 1 e 113 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 – Programa da palava

 

Na carne da palavra é que eu me sonho

E nela rasgo estradas de sentido,

Enterro o pé no chão onde me ponho

Em ergo-me de palavras revestido.

 

Na quadra popular de amor vivido

Os roteiros encontro que proponho

Pedra a pedra seguir, rumo ao subido

Irregular caminho meu medonho.

 

No soneto, a remota voz antiga

Vai demudando irregular o tom

Até quebrada quase ser cantiga.

 

Está escrito meu fado, mau e bom,

E vai ser de ironia e com furor

Que o irei modelando ao bom-humor.

 

 

                                                2 - Na carne da palavra é que eu me sonho

 

 

                                                Na carne da palavra é que eu me sonho,

                                                Primeiro nas estâncias regulares,

                                                Com os ritmos e as rimas singulares

                                                De quando em minha vida amor disponho.

 

                                                Laços de tom alegre ou tom bisonho

                                                Que deslaçam e enlaçam vida aos pares,

                                                Laços que juntam pés, saltam algares,

                                                Que solidários rumam ao risonho

 

                                                Dia de festa que ninguém espera,

                                                Mas que, na romaria, nos lembramos

                                                Que a Humanidade atrai já, de era em era,,

                               

                                                Lá dos confins, desde os primeiros tramos.

                                                Os laços canto que dum laço são

                                                As amarras que ao Fim nos levarão!

 

3 - Zelo

 

Cozinhar é brincadeira,

Brincadeira de crianças,

E um prazer bem à maneira

De adultos que sonham danças.

 

- E, com zelo, é se supor,

Com zelo é um canto de amor.

 

4 - Vigília

 

O Natal não será o dia

Do nascimento de Deus,

Na Páscoa é que Deus faria

Um dos gestos que são seus:

 

Retornaria da morte.

 

O Natal é só vigília

Que nos inaugura a sorte:

- É onde nasce a família.

 

 

5- Fio

 

Quando alguém estuda o fio

Da História, o que salta aos olhos

É que desgraças e abrolhos

Nos apontam o pavio

 

De todo o progresso humano:

Elevar a condição

Doutrem, civilização

Nos gerou, mágico arcano.

 

Importar-se um pouco mais

Com os demais semelhantes,

Respeitá-los mais do que antes,

São doutro mundo os sinais.

 

Aboli a escravatura

Por respeito à vida humana.

O habeas corpus emana

Quando a criança se apura

 

Que inocente, irresponsável,

Há-de ser perante a lei.

Justiça igual para a grei

Hoje é um ideal fiável.

 

Findo a pena capital,

Não pelos executados

Mas porque penalizados

Somos nós por este mal:

 

O respeito pela vida

No-lo impõe e determina.

O mal o mundo o elimina

Ou, para que então progrida,

O acolhe por sua sina:

 

E então a pena de morte

Virá ditar-nos a sorte.

 

 

6 - Pouco

 

Ninguém pode melhorar

Todo o mundo de repente,

Mas um pouco toda a gente,

Melhor lhe pode o lugar

Para o futuro entalhar,

Todo o dia, se o consente.

 

- Com paciência há-de em lar

Devir tudo lentamente.

 

 

7 - Namorico

 

O namorico é uma teia

De aranha que ali se estende

Do macho à fêmea que enleia,

Onde um raio de sol dança

Que nela jamais se prende

- E aos dois na armadilha entrança.

 

 

8 - Investir

 

Se os pais viverem dispostos

A investir um pouco nelas,

As crianças são estrelas

De amor e carinho a postos,

Por eles a abrir janelas

Do dia em todos os rostos.

 

Nós,  para o resto do mundo

Ignaros trabalhadores,

Para os filhos os maiores

Ídolos somos no fundo.

E, se a vida nos humilha,

É que não é nossa filha.

 

 

9 - Primavera

 

Primavera, ano após ano,

E sempre a mesma surpresa!

Solta ao vento o belo engano

E o mundo chilreia e reza.

 

Como é que nos prende tanto

Se tanto ao fim se repete?

Segredo de tanto encanto

A estação não o promete.

 

É que vem do coração:

Da Primavera as belezas

São do amor um galardão,

Doido, doido por surpresas.

  

 

10 - Compra

 

Não compra um amor ninguém:

Uma mulher que se vende,

Se aluga, afinal, a alguém

É um sonho o que nela prende.

 

O sonho se vende e compra,

Mercadoria impalpável,

Pagamento duma sombra

E por forma inumerável.

 

Pagamento da ilusão

Voluntária: aqui talvez

More a única função

Que não engana de vez.

 

 

11 - Fundidas

 

Os teus próprios sentimentos

Afirmam que já não és

O que eras noutros momentos,

Fundidas as nossas fés.

 

Prometias primaveras,

Éramos um coração.

Hoje, o pesar das esperas,

Onde houvera um só à mão,

 

Em dois tornou e as quimeras

Caíram mortas no chão.

Quantas vezes, pelas eras

Pensei como tudo é vão!

 

Preciso é que te liberte

Pelos rebentos do amor,

Em vez do que põe-te inerte,

Sem mérito nem valor:

 

Porque em lucro a intimidade

Andas medindo, inconforme.

E nem esta falsidade

Contra o valor mais enorme,

 

Ao trair assim a sorte,

Há-de evitar um momento

que. Logo após o desnorte,

Tombes no arrependimento.

 

É o lucro o que não tem cura!

E, por toda a eternidade

Isto dura, dura, dura,

Nada cura a enfermidade.

 

 

12 - Avança

 

Grita a voz do tempo: “Avança!”,

Que só para melhorar

O tempo serve ao que alcança,

Para aqui talhar um lar.

 

É a maior utilidade,

Rumo a uma vida melhor,

Por maior felicidade

Que um homem queira propor.

 

As trevas e a violência

Vieram como se foram,

Sofrer, morrer a inocência

É o caminho que demoram.

 

Quem retroceder o quer

Ou quer impedir-lhe o curso,

Quer a máquina tolher

De tão potente discurso

Que destruirá quenquer.

Nem a travará sequer:

Ela retoma o percurso

Implacável e feroz,

Indemne ao que aconteceu,

Afoga a contrária voz.

 

Que o tempo jamais descansa,

Comanda, fatal: “Avança!”

 

 

13 - Segunda

 

Doutrem preocupação,

Quando alguém dela se ocupa

É sempre em segunda mão,

Acaba por vê-la à lupa.

 

Tal como o fato alugado

E o recomprado não distam,

Talvez se dispam e vistam

Com fácil demais cuidado.

 

Preocupação arrefece

Quando é noutrem que acontece.

 

 

14 - Deserda

 

A Nação é aquela casa

Que deserda os próprios filhos

quando sugerem que atrasa,

Dos costumes com cadilhos,

A melhoria que abrasa

As leis novas de mil brilhos.

 

Ao invés, à velharia

De decrépitos amáveis,

A denúncia só viria

Torná-los mais respeitáveis.

 

Mesmo assim sempre a Nação

Tem, para tais maltratados,

O quente sabor do pão

Repartido sem cuidados.

 

 

15 - Escravas

 

Criaturas abnegadas

Como são estas mulheres

Que por amor comandadas

Se transmudam noutros seres,

Escravas vão parecer,

Porém sempre voluntárias:

 

Da juventude que houver

E que perderam, sumárias,

Da beleza que sonharam,

Também das capacidades

Que sempre se lhes furtaram,

De esperanças e vaidades

Fora de suas idades…

 

Nada melhor que o serviço

Bem fiel do coração

Prestado com todo o viço,

Sem mercenários do pão.

 

Aqui é que moram anjos,

Não naquelas mais dotadas

A que some tocar banjos

Só porque ricas de arranjos

Mas não de francas entradas.

 

A estas, quando as apontas,

Apontas da banca as contas.

 

Aquelas que sempre esqueces

São teu chão. Que não tropeces!

 

 

16 - Mistérios

 

Se dum mui próximo amor

Surgem os mistérios grandes,

Do afastamento pior

Tais serão que os nem comandes.

 

Só que neste o misterioso

É que te escasseiam dados.

Naquele o mistério gozo-o

Em seus fios delicados.

 

 

17 - Maldição

 

O problema é que a beleza

Não basta a justificar…

 

Quando nada a oferta reza

Mais que o fácil  murmurar

“Vamos lá fazer amor!”

A pressão sobre os sentidos

Devém enfado maior,

Ameaça de perigos

Que traem a liberdade.

Que amor então persuade?

 

Este amor vindo à traição

Devém uma maldição.

 

 

18 - Validos

 

A felicidade a dois

Não existe, é solitária.

A que existe vem depois,

É uma paz única e vária,

Depois do amor dos sentidos

Ter perdido seus validos.

 

 

19 - Morte

 

Toda a morte dum amor

É morte dum ente amado:

Igual o rasgão da dor,

O vazio em todo o lado,

Travo de resignação

Com que nos arrasta ao chão.

 

Mesmo quando fomos nós

Que o esperámos, cansámos,

Para desatar os nós,

Para enfileirar os tramos

De autodefesa e bom senso

Com que livre me pertenço,

 

Mesmo assim, daquela morte,

Viúvo de invalidez,

Sou mutilado consorte:

Ficamos a olhar de viés,

A ouvir dum só ouvido,

Ao meio o corpo partido.

 

Não paramos de invocar

A metade então perdida

De nós, esvaída em ar,

Aquele ou aquela vida

Que nos fazia sentir

Inteiros e com porvir.

 

Então já não recordamos

As culpas nem os tormentos

Que, infligidos, evocámos,

E menos os sofrimentos

Que em convívio nos impôs:

Limpa-os a saudade em nós.

 

Torna-o a memória amável,

Melhor, extraordinário,

Ao tesoiro ora admirável,

Único num mundo vário:

Perde a lógica a premência,

Como insulto à inteligência.

 

E, por mais que o masoquismo

Nos esgatanhe as feridas,

Em amor o mal que cismo

Quebra as lógicas sabidas.

 

- Só o tempo que tudo evita

Da morte nos ressuscita.

 

 

20 - Vendavais

 

Não, não é mesmo verdade

Que o amor e a amizade

Sejam mesmo a mesma coisa.

Mesmo quando em ódio poisa

Ou de ódio quando nasceu,

Um amor sempre fremiu

Sozinho em força que tem

E à amizade não convém.

 

Um amor tem prémios tais,

Um amor tem tais castigos

Que solta até vendavais

E leva a esquecer amigos.

 

Onde há promessas iguais,

Onde tamanhos perigos?

 

 

21 - Postiços

 

Mulher com dentes postiços

Para que busca marido?

Da solidão os enguiços

Se esconjuram com chamiços

Do que útil é, se é vivido.

 

O postiço põe-na à beira,

Vivido convictamente,

De atear uma fogueira

Que deveras já não mente.

 

 

22 - Escrava

 

A mulher é escrava do homem

E este, do instinto animal:

Se à mulher bruxos a tomem,

A estes, forças que os domem

São sapos do pantanal!

Todo o amor vive enraizado

No estrume em campo espalhado.

 

 

23 - Sombras

 

Um homem de meia idade

Tem o mundo povoado

De pessoas que morreram…

As memórias persuade,

Como sombras a seu lado,

A caminhar como eram,

 

A falar da meninice…

Como os antigos demoram!

 

Não há filho que servisse

Em troca dos que já foram.

 

 

24 - Tropa

 

Perdem-nos assim um filho!

Mandam-no-lo para a tropa,

Perde-se atrás do negrilho,

Engolido pela copa…

 

Perdem-no-lo doutro modo,

Como uma chave de fendas,

Ferramenta sem engodo

Perdida no chão das tendas,

Abandonada de todo,

Como quem perde uma luva

Descuidadamente à chuva…

 

Não sofrem nenhum sarilho

E nem se ralam sequer…

- Vão procurar logo o filho

Duma outra mãe qualquer!

 

 

25 - Talude

 

O que interessa à saúde,

À melhora que se tenta,

É crescer com a virtude,

Não dizer a quem se ilude:

“Já tenho um metro e setenta

De tamanho que te alenta.”

- Nunca saltar o talude,

Largar de mão quem sustenta!

 

 

26 - Coroas

 

É preciso acautelar-se

Das coroas de papel,

A cabeças por disfarce

Impostas em vez da pele.

 

Como se peneiram oiros

Das escórias com apuros,

Urge de teatro loiros

Distinguir dos loiros puros.

 

E quando certos jornais,

E quando certas pessoas

Gritam que vos enganais,

É a mentira das coroas.

 

Coroa que tem razão,

Não a deles mas a tua,

É a que toca o coração

E por dentro continua.

 

 

27 - Regra

 

Por alguém saber a regra

Não é por tal que não erra:

Sabê-la , em si não a integra

Nem por ela é fazer guerra.

 

E por não sabê-la é raro

Que alguém erre, por seu lado.

- Tanto o coração é claro

Ao presidir-nos ao fado!

 

Não é nunca na cabeça

Que o bem acaba ou começa.

 

 

28 - Verdadeiro

 

Toda e qualquer mulher muda

Quando um homem é presente.

Mas que o homem não se iluda:

Também ele é diferente.

 

Qual será mais verdadeiro

Ninguém logra descobrir,

Se o segundo, se o primeiro…

 

- De ambos se tece o porvir.

 

 

29 - Importuno

 

Quero ser compreendido

Porque quero ser amado.

Ser amado é pretendido

Porque amo, pelo meu lado.

 

Doutro modo é indiferente

Doutrem a compreensão

E um amor, a quem não sente,

É importuno até mais não!

 

 

30 - Solidez

 

Somos nós que conferimos

Os traços de solidez

A quem de amor preferimos.

Se ela ignora-nos de vez,

 

Pois mesmo quando nós somos

Apenas um entre mil,

Amá-la é ver nela assomos

De quem de deusa é um perfil.

 

 

31 - Lesões

 

A partir de certa idade,

Nossos amores amantes

São os filhos de verdade

De angústias que houvemos antes.

 

De nosso outrora as lesões

Com que ele nos escreveu

Determinam os guiões

Do porvir que vou ser eu.

 

 

32 - Ciúme

 

A vantagem do ciúme

É mostrar a realidade

A que um facto se resume

De fora e da intimidade:

É que é tão desconhecido

Que se presta a mil versões.

 

O que cremos bem sabido

Mal precisa de razões:

Tirámo-lo do sentido,

Não dá preocupações.

- Por mais que seja entendido

Sem os ossos nem tendões.

 

 

33 - Poético

 

Julgar o mau casamento,

A ligação a evitar,

É o poético momento

Castrar.

 

Julgar o acto patético

Do lado da putrescência

É não ver o que é poético

Na existência.

 

Normalmente nesta via

Aquele que se afundou

O que afinal perseguia

É o que sou.

 

E, na asneira prosseguida,

Aquilo que afinal fez

Foi o poema da vida

E foi de vez!

 

 

34 - Desesperado

 

Sem um motivo aparente

Fico só, desesperado.

Um sono e a conversa urgente

Com quem fique de meu lado

A insistir-me, convincente,

A não desistir do fado,

- E deveras pronto fico

Da serra a saltar o pico.

 

 

35 - Igualitarismo

 

Igualitarismo, não!

Na escola da vida, a escolha

Ou de amar é uma lição

Em que a divergência acolha,

Ou nos transformamos antes

Em monstros horripilantes.

 

 

36 - Galho

 

A mulher de carne lisa

Não lembra o rijo trabalho

De que o pobre bem precisa

Da vida ao podar o galho.

 

É pela possante e gorda

que vislumbra a formosura:

Lança a linha, estica a corda,

Talvez a vida então morda

E que haja de vez fartura.

 

 

37 - Mensagem

 

Se a mensagem que tu passas,

Quando te encontras frustrado,

É culpar a fonte graças

À qual ficaste de lado,

Em vez de escolher por lema

Ultrapassar o problema

Com o jeito adequado,

 

Se em vez de punir o filho

Por ter a regra infringido

Vais lutar, feito caudilho,

Contra a regra e o sentido,

 

Formado ele nesta escola,

De que é que te vens queixar

Se qualquer dia te imola

Ao que mui bem desejar?

 

É que ser bem educado

Não é só “se faz favor”,

Nem “muito, muito obrigado!”,

Mas aos demais dar valor,

Respeitar, ser respeitado,

Por trás não cortar de alguém

Que à frente nos não convém.

 

Se teu filho melhor queres,

Olha bem no teu espelho

E o que nele não quiseres

Nunca o faças, te aconselho,

 

Pois, para um pai melhorar

De qualquer filho as maneiras

O que importa é haver lugar

Nele às melhoras primeiras.

 

Doutro modo acabarás

Perpetuamente frustrado

De teu sonho sempre atrás

Sem nada lhe haver tomado.

 

 

38 - Lembranças

 

As boas lembranças são

Para reter e guardar.

Depressa correr e em vão

Pela vida a carregar

 

Bagagem demasiada

De impaciência, apreensão,

É perder na poeirada

O que é boa ocasião,

 

É largar pelo caminho

Quenquer que for bom vizinho.

 

E depois, na solidão,

A quem estender a mão?

 

Limpos os fumos da glória,

Que me resta na memória

Senão o gelado fio

Do vazio, do vazio?…

 

 

39 - Espanto

 

A cidade em que vivemos,

Aquela que mais se ignora,

Tanto em nossa casa mora

Tão dentro, que nem a vemos!

 

Por isso o espanto demora

- Mas não do amor os extremos!

 

 

40 - Bebedor

 

Nunca um homem se contenta

Com a honesta solidão:

Dum alheio coração

Vagabundo devir tenta.

 

…Até que a vítima, langue,

Torna-o bebedor de sangue.

 

 

41 - Realidade

 

Amar inclui piedade,

Tolerância, gentileza,

Mas mais inclui realidade:

Descobrir a quem se preza

 

Debaixo até dos escombros

Com que os minutos degrade

Daquilo a que meteu ombros

Por sua própria vontade.

 

 

42 - Acompanham

 

Terras, gentes e vizinhos

Acompanham de verdade

Da vida quaisquer caminhos

Com segredos adivinhos

Que descobrir alguém há-de.

Mas só memória de amor

É que lhes pode propor

A fecunda realidade

Do que foram, do que são

Para sempre em nosso chão.

 

 

43 - Arado

 

Com a enxada, com o arado,

Se abre a terra das raízes

E o solo desentranhado

Profundo irriga as matrizes

Da nova germinação.

 

Assim lavra o contador,

A pesar o coração

Com as memórias do amor.

 

E tudo é revelação:

Renascem seres e coisas

Onde quer que a voz tu poisas,

Se à mesa os tens de teu pão.

 

 

44 - Simpáticas

 

Por que razão as pessoas

Simpáticas e decentes

Tão estúpidas quão boas

Serão para aqueles entes

 

De que mais gostam deveras?

Fazem as coisas erradas,

Dizem o que nunca esperas,

Barricam mútuas entradas…

 

E sempre, sempre, o pior

É que nestes aleijões

Tudo opera por amor

Na melhor das intenções!

 

 

45 - Criança

 

Leio a história a uma criança,

Em criança me transmudo,

Da palavra escuto a dança,

Dela à magia me grudo.

 

Quem, de facto, faz leitura?

Minha mãe atrás de mim,

O pai dela ou de tal cura

Esta cadeia sem fim

 

De gerações pelas eras

Que cruzam os continentes,

Os mares, e de que esperas

Que nos sustentem, ingentes,

 

Os esteios da cultura,

Toda a civilização?

A história que conto apura

Nova pegada no chão…

 

- Estas palavras tecidas

De maravilhas que contes

Vidas vão cosendo a vidas,

Não são palavras, são pontes.

 

 

46 - Contradição

 

Abre lá teu coração

Para acolher em teu seio

Quanto for contradição,

- Senão ficas sempre a meio!

 

E aprende a coexistir:

Aqui começa o porvir.

 

 

47 - Família

 

É a família aquela casa

De vivências e memórias

Que reconforta se é brasa,

Que devasta se as escórias

De fogo a vertente são

Que dominar seu pendão.

 

Para o bem ou para o mal

É o lar nisto o principal.

 

 

48 - Verdadeiro

 

Um lar é mais verdadeiro

Com toda a complexidade,

Ora em vitórias leveiro,

Com fraquezas, leviandade,

Ora em fracassos inteiro.

 

Da mentira e da verdade

Mistura sabor e cheiro,

Nos amassa idade a idade:

Somos fruto do atoleiro,

Lodo e flor que nos invade…

 

- E eis como do Homem me abeiro.

 

 

49 - Esforço

 

O esforço para escapar

Da influência parental

Leva-me seguro, a par,

A devir cópia fiel,

Como eles a ser tal qual.

É como o pote de mel

O reprimido, a atrair

A abelha que quer fugir:

Nunca escapa à atracção dele.

 

 

50 - Imaginário

 

A família pessoal

Que parece tão concreta

É uma entidade ideal,

Do imaginário faceta.

 

Tudo não é mais que a saga

Duma bênção, duma praga,

 

De tal modo entretecidas

Que, afinal, são nossas vidas.

 

 

51 - Desnorteamento

 

Falta ao colectivo o pai:

Nacional desnorteamento.

Logo a ideologia vai

De dogmas encher o vento.

 

Falta à civilização,

E fica tudo à deriva:

Os truques de ocasião

Passam por ser rota viva.

 

Se tudo se refugia

No seguro atrás da porta,

Já não resta qualquer via

Na cultura então já morta.

 

 

52 - Atitude

 

Politeísta atitude

É um nível de aceitação

De mim que tem a virtude

De inteiro me ter à mão.

 

O pendor monoteísta

É o de unir pontas de laços

Depois de ter toda a lista,

E de então trocar abraços.

 

Um narcisismo doente

Não deixa espaço a parar,

Toda a emoção ver de frente,

Fantasias evocar…

 

A pessoa narcisista

Tem uma única ideia

Daquilo que é, do que exista,

E as outras rejeita, alheia.

 

Narcisismo não é doença,

É duma alma a tentativa

De ter alguma pertença

A um outro eu de que viva:

 

Menos atenção a mim

E mais à ponta do véu

Que me irá juntar, no fim,

Tanto o eu como o não-eu.

 

 

53 - Lago

 

Teremos de descobrir

Que há dentro de nós um lago,

Um fundo ego a reflectir

Que pede o afecto que trago.

 

O indivíduo narcisista

Ignora, tão simplesmente

Quão profunda é aquela pista

Que foi quem fez de nós gente.

 

Empenha-se em ser amado,

Jamais é bem sucedido

Por antes não ter notado

Que a si tem de ser querido.

 

Não naquilo que ele é já,

Mas como se um outro fora:

Este outro que nele está

Mas, cativo em seu agora,

Não vê nele o que anda lá

E definitivo o ignora.

 

O narcisista é um doente

Apenas por não querer,

Ao querer tanto o presente,

O virtual que ele tiver.

 

 

54 - Unguento

 

 

Para o narcisismo o unguento

É concretizar o mito

Até que surja o rebento

Que aponte o florescimento

Doutro de mim que em mim fito.

 

Até que o dia anuncie

De mim que sou tão completo

Quanto a noite me desfie

Enquanto perdi meu tecto.

 

Até que de vez confie

Na sombra a que impus meu veto.

 

 

55 - Ensimesma

 

Narcisismo é aquele estado

Em que a cara se ensimesma,

Do amor imita um traslado,

Por não gostar de si mesma.

 

Um amor que é narcisista

É amor superficial:

Em si próprio quem insista

É que de si pensa mal.

 

Quem na ponta de seu dedo

Se levanta, se sublima,

Dele próprio mostra o medo,

Tem por si pouca auto-estima.

 

 

56 - Invertido

 

Autodesvalorizar-se

É um narcisismo invertido,

Impede as almas de dar-se:

Do mundo o afecto excluído

Definha preso ao disfarce.

 

É uma impossibilidade

Para ficar disponível

A recriar a amizade

Onde há carência visível.

 

Em tal narcisismo imersos,

Somos feitos de marfim:

Belos como etéreos versos,

Frios e duros por fim.

 

 

57 - Indício

 

O narcisismo é um indício

De que alma alguma carente

Não recebe nem resquício

Dum amor suficiente.

 

Quanto maior o grau for,

É menor a intensidade

Que lhe dispensam do amor

De que tem necessidade.

 

Apaixonado da imagem,

Não descobre que é da dele

Senão após a viagem

Em que larga a própria pele.

 

Só digno de ser amado

Vai descobrir-se em concreto

Depois de haver-se encarado

De tal sonho como objecto.

 

Dele ao não ser mais sujeito,

Vendo-se fora, liberto,

É que lhe abre o próprio peito,

Encontra do amor o acerto.

 

 

58 - Marca

 

Um edifício imponente,

Uma obra de arte gritante,

São sempre a marca evidente

Dum narcisismo chocante:

 

São modo de dar nas vistas

Como de Átila as conquistas.

 

Aquilo que denuncia

Ausência de amor por si

É a narcisista mania

De em si pôr um alibi:

 

São sempre da morte os panos

Que medem quais são os danos.

 

 

59 - Brado

 

O narcisismo vencido

Da imagem dum outro lado,

Da solidão regredido,

Na criação vai dar brado.

 

Pois, enquanto prisioneiros,

Ferimos a natureza

E desbastámos canteiros

Que ninguém a sério preza.

 

Libertos e transformados,

Resulta no amor de mim

Que nos gera unificados

Eu e o mundo até ao fim.

 

Será um outro narcisismo,

O da consaguinidade

Das criaturas que crismo

De universal irmandade.

 

 

60 - Promessa

 

O amor encerra a promessa

De que as feridas da vida

Fecharão, de vez saradas.

 

Pouco importa se começa,

No passado, com a ida

Pelo caminho às topadas,

A fonte de sofrimento,

Dos penhascos do tormento…

 

Pois igualmente contém,

Auto-regeneradora,

A componente de além

Bem presente a toda a hora.

Recupera a identidade

Ao transpor cada momento

E renova a virgindade

Num banho de esquecimento.

 

 

61 - Encontro

 

Aquilo que só parece

Terreno encontro entre dois

É o caminho que entontece

Das profundezas depois.

 

É que o amor não foi feito,

Estéril, triste ou fecundo,

Não foi feito a nosso jeito,

- O amor não é deste mundo.

 

 

62 - Presenças

 

Os irmãos, o pai, a mãe,

Sempre implicados no amor,

Como presenças também

Dão, influentes, calor.

 

Por dentro sempre invisíveis,

O que um amor anuncia,

Mais que uno, são as credíveis

Comunhões de que vivia.

 

O amor é comunidade,

Não só por criá-la aqui,

Mas por ser a identidade

De cada amante por si.

 

 

63 - Cegueira

 

O apaixonado contém

Um desejo de cegueira

Que o liberte para além

Do complexo que o joeira.

 

Ser absorvido de vez

No vórtice que te atrai,

Que repouso para o que és!

- E que ilusão tudo trai!

 

 

64 - Reino

 

Um amor liberta o reino

Da imaginação divina,

Onde a mente expande o treino

Do que de anseios domina.

 

O amante enaltece o amado,

Incapaz de conhecer

A falha ferida ao lado:

O amor é cego em quenquer.

 

Pode, porém, ao contrário,

Ver a vera natureza

Angelical que no vário

Cotio perde e despreza.

 

Na vida quotidiana

Será loucura, ilusão,

A auréola que dimana

De quem vê com coração.

 

 

65 - Platónico

 

Platónico amor não é

Um amor que não tem sexo,

No corpo é quem põe de pé

Com a eternidade um nexo.

 

Em parte na eternidade,

Em parte no tempo, o amor

Corre os dois lados da herdade,

Viver ambos quer-se impor.

 

A incursão da eternidade

Na esfera da vida vai

Gerar a intranquilidade

Do que, ao ir, primeiro cai.

 

E aquilo que conquistámos

Com a razão natural

Desce as nuvens, começamos

A enraizar no tremedal.

 

 

66 - Transgressão

 

Todo o amor envolve

Uma transgressão,

Ao tabu revolve,

Estende-o no chão.

 

O que me fascina

Nas biografias,

Nos filmes viris:

A ilícita sina

Para o amor das vias

E dele os ardis.

 

Por mais que seja trágico

Tem o condão de ser mágico.

 

 

67 - Visão

 

Olhar o amor a partir

Duma visão moralista

Ou da saúde que exista

Em quem o venha a sentir

 

É ignorar-lhe o coração,

Tal como nas adivinhas

Em que ausculto a solução

Apenas nas entrelinhas.

 

Quando apurar a tragédia

De amores meus pessoais

E lento encontrar a rédea

De meu caminho entre os mais,

 

Por entre as adversidades,

Iniciado estou sendo

Nos meandros de opacidades

Em que o mistério vou lendo.

 

É o amor a nossa porta

De entrada e, tal nosso guia,

Cerce os desvios nos corta

Nos labirintos da via.

 

Se capaz de o respeitar

For tal como se apresenta,

Há-de levar-me ao lugar

Inferior que em mim inventa

 

Onde o sentido e o valor

Se mostram paradoxais,

Lentos, a se contrapor:

- Minhas fundações reais.

 

 

68 - Integrante

 

Fracasso, complexidade,

Parte integrante do amor,

São cartão de identidade,

Não algo a mim exterior.

 

A separação e a perda

Assomam à mente amante

Como ideia que alguém herda

Antes de ser actuante.

 

A separação em acto

Tem este significado:

A destruição do pacto

De ambos no actual estado.

 

Fica em aberto o futuro

Para além da dor, decerto.

- E sei que quando o inauguro

Atravessei já o deserto.

 

 

69 - Fantasias

 

Se dois entes se apaixonam,

Se juntam, fundam um lar,

As fantasias funcionam

Mais profundas par a par.

 

Interligam-se por vezes

E cada qual vive então

O seu mito nos reveses

Do que o outro oferta em vão.

 

Na fusão e confusão,

É difícil de sentir

Por vezes de quem serão

Os traços que irão surgir.

 

Com a individualidade

Indistinta em cada qual,

De separar-se os invade

A urgência como ideal.

 

E muitas vezes alcançam,

Com esta separação,

Que os traços se lhes relançam

E remoçam a união.

 

 

70 - Oposição

 

Pensar em separação

Com o amor e o casamento

Parece uma oposição,

Mas pode ser elemento

Deles, as suas entranhas

Que bem podem ser aceites

Com toda a imaginação:

Com operações estranhas,

das azeitonas azeites

Dos mais puros correrão.

 

Contra destruir o amor,

Pode até um divórcio ser

Forma de um altar lhe pôr

À plenitude que quer.

 

O amor impõe-nos quesitos

Que lhe parecem contrários

Mas só nos põe olhos fitos

Para ele em rumos vários.

 

 

71 - Faiscar

 

Será tão reconfortante

Ouvir outrem e zelar

Pelo que é seu bem-estar

Que pode o amor, num instante,

Faiscar sem que ninguém

Se aperceba ali, porém:

- Ninguém viu o inaugurar

Doutro tempo e outro lugar.

 

Contudo, foi o futuro

Que ali já rompeu seguro.

 

 

72 - Caminhos

 

O amor afasta da vida

E dos planos que traçámos.

Os caminhos com que lida

São dos abismos profundos

Que ciganos caminhamos

À espera de os ver fecundos.

 

Tomam a forma da morte

E do mundo inferior.

Ao casamento, ao amor,

Quem entrega dele a sorte

Vai dizer sim a uma perda

Relativamente à vida.

Porém, dentro os sonhos herda

Que lhe dão nova medida.

 

Benéfico o amor se mostra

Para a vida, para o ego:

As almas querem a amostra

Da morte que traz sossego.

Perder vontade e controlo,

Se ao amoroso cativa

É de alma o maior consolo,

Refeição mais nutritiva.

 

Mas é difícil lidar

desta morte com a glória:

Teremos de erguer o lar

Com presente e com memória,

Se inteiro for de vingar,

Se roubo à morte a vitória.

 

 

73 - Sombra

 

Quando nós ressuscitamos

De modo bem vigoroso

O que perdido tenhamos

Do amor disperso no gozo,

 

O que nos é reservado

É a sombra da realidade

Anterior, cujo fado

A mascara de alvaiade?

 

Talvez nós jamais capazes

Sejamos de insuflar vida

Às almas dela vorazes.

Talvez ela, protegida,

 

Eternamente velada,

Permaneça dos rigores,

Bem no fundo da quebrada

Dos abismos interiores.

 

 

74 - Teoria

 

Julgamos saber do amor

Em teoria ou integrado

No episódio retirado

Da existência em que ele for.

 

Mas o amor privilegia

Apenas cantos obscuros

Do mundo incônscio que havia

Nos fundos de alma inseguros.

 

Concretizá-lo é, pois, morte,

Desatar de dada vida,

Do que até ali fora norte,

Não início: despedida!

 

O amor conduz-me ao limite

Do que pode uma existência

Quando desarmado o fite,

Dele me entregue à violência.

 

 

75 - Prémio

 

A solidão pode ser

O fruto duma atitude

Que à comunidade quer

Como prémio de virtude.

 

Muitos esperam até

O convite de integrar

A comunidade que é

Afinal como o seu lar.

 

Até que tal aconteça

Permanecem solitários,

À espera que alguém lhes peça

Que entrem nos grupos precários.

 

São a criança que apela,

Aguardando que a família

Tome afinal conta dela

Após a longa vigília.

 

Comunidade, porém,

A família não será,

É o grupo em que todos têm

Pertença como alvará.

 

Pertencer é um verbo activo

E consta do que fazemos,

Mas dum modo positivo,

Enlaçando quem queremos.

 

Pois se o guardião da vida

Único será o amor,

Ser amado ao que convida

É a amar antes com ardor.

 

 

76 - Parentesco

 

Ter bom relacionamento

Alma indicia à procura

De parentesco em aumento

E já de si nem mais cura,

 

Pois,  fluindo assim na vida,

Já não tem necessidade

De buscar outra guarida,

Plena e feliz do que a invade.

 

 

77 - Perfis

 

Comunidade prospera

Ali de nós no exterior

Quando a interior opera

Com quantas pessoas for.

 

As pessoas de meus sonhos,

Das ideias de vigília,

Se as liberto, que medonhos

Perfis tem minha família!

 

Ao vencer a solidão

Poderei considerar

Libertá-las da prisão,

dar-lhes na vida lugar:

 

À que quer cantar em mim

Ou de raiva protestar,

À que é sensual, enfim,

À crítica de arrasar…

 

Admitir quem é que eu sou

É admitir que elas ascendam

À vida que principiou

Quando as vendas as não vendam.

 

A comunidade dentro

É meu ponto de partida,

Quando em paz por mim me adentro,

Para a de fora, em seguida.

 

Ao sentir que enfim pertenço

À vida em toda a pujança,

De dentro a fora é que venço

A lonjura que me alcança.

 

Recordo-me enfim de alguém

Porque de mim me recordo,

Porque toda a gente tem

O rosto de meu acordo.

 

Então sou capaz de amar

Quem cruzar em meu caminho

E de receber, a par,

De todo o mundo o carinho.

 

 

78 - Sendeiro

 

Uma família, um amigo,

Um amante, um companheiro,

Da força da vida abrigo,

São do infinito o sendeiro.

 

A entrada no amor divino

É através da comunhão

Bem humana a que me inclino:

Deus põe pegadas no chão.

 

E vice-versa também:

Se daqui mais tudo aumenta,

Mais cresce o lado de além,

- Um do outro se alimenta.

 

 

79 - Serviço

 

As traições bem como as perdas,

Desilusões amorosas,

Um serviço prestam: herdas

Quando a elas mais te cosas.

 

Vistam embora tragédias,

Alma é tempo e eternidade.

Dos dois lados então mede-as,

Que salta, funda, a verdade:

 

Quando o desespero aponta

Na parte que toca à vida,

Só o lado eterno é que conta,

- Nele me salvo à medida.

 

 

80 - Relação

 

É a pessoa definida

Em relação com alguém.

Ao invés anda entendida,

Hoje em dia, por quem tem

 

O valor da independência,

Como o da separação.

São cumes duma excelência

Onde ninguém tem razão.

 

Não parece adequado

Encontrar a identidade

No encontro com o ente amado,

- Mas é a via da verdade.

 

É na mútua dependência,

De dignidade investida,

Que atingimos ser e essência

Do que em nós é nossa vida.

 

 

81 - Qualidade

 

Do ciúme a qualidade

É, primeiro, a dependência,

Doutrem ter a identidade,

Salvar unida a vivência.

 

Se devier compulsivo

E mesmo avassalador,

Tem demais um alvo altivo,

Deplora a sério o factor

 

De a relação não conter

O vigor de sentimentos

que ela apenas tem poder

De dar a quaisquer momentos.

 

Estranhamente o ciúme

É que contém as sementes

De o sexo elevar ao cume

E a intimidade entrementes.

 

 

82 - Carta

 

Mandas carta enfurecida

Contra tua namorada.

Arrependes-te em seguida,

Pedes que, em lugar de lida,

A carta seja rasgada.

 

Se ela, embora curiosa,

Satisfaz o teu pedido,

A carta, de perigosa,

Torna-se um meio em que entrosa

O vosso pacto vivido.

 

A boceta de Pandora

Onde moram desatinos

Só fechada nos escora

Os passos onde nos mora

A fraqueza de meninos.

 

Conservamos o poder

Quando assim nós protegemos

O segredo de quenquer:

- Só em privado quem quiser

Escapa dos próprios demos.

 

 

83 - Força

 

Caso não reivindiquemos

De alma a força em benefício,

Sofreremos o suplício

De ir dela atados aos remos.

 

O mais comum é sofrermos

Em função das emoções,

Sem quanto estão percebermos

A regar nossos talhões.

 

Guardamos nossas paixões

Cá dentro, fora da vida.

Sofremos agitações

Que elas moem, de seguida,

 

Profundamente inquietos

Ou à beira da doença.

Serão da fúria projectos

A acumular, sem detença,

 

A raiva, o ressentimento…

Mesmo o amor não confessado

Quer ser livre como o vento

E há-de lograr seu traslado.

 

 

84 - Brinquedos

 

As bonecas e brinquedos,

Quando o fabricante os lança,

Ficam ali mudos, quedos.

Mas, ao brincar a criança,

Então de vez ganham vida:

No sonho um homem alcança

O poder a que convida

O deus que a vida lhe entrança.

 

 

85 - Natureza

 

A natureza de cada

Nunca irá desenvolver-se

Se não encontrar na estrada

Este pedaço de ser-se,

 

O gémeo de ser amado

Que no mundo vive o mundo:

- Seu labor, executado

De si encarnando o fundo.

  

 

86 - Adaptação

 

Uma adaptação à vida

Saudável na aparência,

Prejudica, de seguida,

O íntimo na pura essência.

 

Acatar, pouco exigente,

Alguns valores modernos,

De prejuízos é semente

Mais que de ganhos externos.

 

Fé cega em tecnologia,

Apego desmesurado

De aparelhos à magia,

Da comodidade ao fado,

 

Acolher irreflectido

Qualquer marcha do progresso,

À electrónica o sentido

Perder dos meios no excesso,

 

A vida subordinada

À ditadura fluída

Da publicidade armada

- Tudo é vida sugerida,

 

Não uma vida agarrada

Nas mãos prenhes de matéria.

A racional caminhada

Não me livra da miséria

 

Se mecanicista for

A leitura que me der

Do sentimento, do amor,

Tornado um chavão qualquer.

 

 

87 - Casa

 

Este mundo é nossa casa

E a responsabilidade

Que por ela nos abrasa

Obrigatoriedade

Não é, nem fruto da lógica,

Nem o pendor do destino,

Repetição analógica,

- É um afecto genuíno.

 

Faltar abrigos nas ruas

É de abrigos o senão

Para o relento das luas

Que não há no coração.

 

Espelham os sem abrigo

De nossa alma a privação,

Por vivermos ao postigo

Do mundo inteiro em prisão,

 

Roubados da percepção

Da sementeira de trigo

Que me dava a ligação

A mim e às coisas que sigo.

 

Partimos do princípio que estar só

Fica ligado apenas às pessoas,

Embora o afastamento meta dó

 

Do mundo a que ninguém já canta loas.

Jamais é uma questão de economia,

É engano da cultura que se cria.

 

 

88 - Lestas

 

Ao preservar nossas casas,

Sejam embora modestas,

Às almas talhamos asas

Que as irão tornar mais lestas.

 

Embora pobre e pequeno,

O que me importa é a beleza

Da morada e do terreno

Do lar-aldeia que a preza.

 

O meu lar e a minha aldeia

Ambos são as extensões

De cujos elos na teia

Viverão os corações.

 

 

89 - Contingentes

 

Há carros eficientes.

Os casamentos, porém,

Cada vez mais contingentes

A par se mostram também.

 

De filmes a infinidade,

Séries de televisão,

E de saber ninguém há-de

Viver no mundo a união!

 

O prazer e a diversão,

Para o que alguém necessita,

Só se prestar atenção

À alma que o requisita.

 

 

90 - Clareza

 

Por que motivo um olhar

Vê com mais clareza em sonho

Do que vê quando acordar?

Depende do que lá ponho:

 

Os olhos de alma percebem

As eternas dimensões

Da pulsação que recebem

Os humanos corações.

 

 

91 - Sabor

 

Para as almas, a memória

Mais importa do que os planos.

Arte mais poder e glória

Tem que da razão enganos.

 

E o amor, ao fim e ao cabo,

É bem mais compensador

Do que saber onde acabo:

Entender não tem sabor!

 

 

92 - Partilham

 

Os homens partilham casos

De futebol turbulentos,

Carros, política, inventos

E da guerra os mil acasos.

 

As mulheres trocam medos,

Revelam tristezas, sonhos

E os pesadelos medonhos

Por trás de mil e um segredos!

 

Duas partes mal unidas

Que nunca andam separadas:

As vozes correm cruzadas,

Umas doutras nunca ouvidas.

 

 

93 - Terceira

 

Se à primeira ele não ouve,

Se à segunda também não

E se à terceira um sim houve

- É que o espalmei no chão!

 

A razão ou sem razão

É só a questão que importa,

Não os métodos que vão

Precisos abrir a porta.

 

 

94 - Seguro

 

Ao tomar pelo seguro

O acordo de quem amamos,

Contrariamos o apuro

Dos inimigos que armamos.

 

Senão, em qualquer lugar,

Como se iria aguentar?

 

 

95 - Armadilha

 

Da lealdade a armadilha,

A paz do dever cumprido:

Fonte onde enchemos a bilha

De águas vivas de sentido.

 

Despontam falsos, depois,

Os rumos a que te atreles:

É o perigo dos heróis.

- Mas como viver sem eles?

 

 

96 - Confiança

 

Dos homens para o medo

Apenas um remédio:

O amor, um amor cego.

 

Certa, a coragem mede-o,

Porém jamais o alcança:

O essencial é a confiança.

 

 

97 - Fuga

 

Crêem uns que os casamentos

Acabam pela traição,

Quando o comum são momentos

De queixumes, frustração,

 

De atitudes defensivas,

Críticas e retiradas…

- Já das horas agressivas

Não há fuga nem estradas.

 

 

98 - Laços

 

As carreiras, mesmo os filhos,

Tempos livres, o trabalho,

Tanto pesam tais cadilhos

Mais que os laços por que valho!

 

Quando à agenda do casal,

Com a data do jantar,

Pôr-do-sol na marginal,

Devo o primeiro lugar!

 

 

99 - Aurora

 

Na aurora do casamento

Pensa do outro cada qual

O melhor, cada momento

Onde o imprevisto o encurrrale.

 

Provavelmente ficou

Preso no engarrafamento,

Cuida a mulher, ou tentou

Um qualquer acabamento…

 

Quando ele chega, por fim,

Sejam as horas que forem,

Calorosa o acolhe, assim,

Faz que os sonhos se não gorem.

 

Mais tarde, contudo, quando

O jantar já lhe arrefece,

Os filhos vão protestando,

Fica zangada e se esquece.

 

“Só pensa nele”, cogita.

“Ao menos telefonava”

Ou então é uma catita

Que lá pelo bar o entrava…”

 

É mau sinal os parceiros

Não darem-se o benefício

Da dúvida, pois inteiros

Se perdem pelos carreiros

E é o ritual sacrifício.

 

 

100 - Toque

 

Quando a relação é nova

Tocam-se ambos muito, muito:

Cruzarem-se é dar a prova

Comum do toque fortuito.

 

Porém, em muitos casais

Esta intimidade acaba

Por já não deixar sinais

Quando o tempo lhes desaba.

 

Não se beliscam, não riem

Em comum com as piadas…

- Nada faz que desafiem

Metas de estrelas privadas.

 

 

101 - Potencial

 

É um problema potencial

Se um cônjuge já não sabe

O que é que faz bem ou mal

Ao outro do que lhe cabe:

 

Do que ele gosta ou não gosta,

O que lhe vale ou não vale…

- Se o ignora perde a aposta

Do sonho de ser casal.

 

 

102 - Demasiada

 

Demasiada paz dará

Relações frias, distantes.

Cônjuges, ou falam já,

Resolvendo equidistantes

 

As diferenças que houver,

Lutam pelo casamento,

Ou explosões há-de haver,

O abandono, o passamento.

 

O que a tal sobreviver

É já morto que convive:

Seja homem ou mulher

É um cadáver com que prive.

 

 

103 - Sarcasmo

 

Quando o riso já morreu

Trocado pelo sarcasmo

(“assim é que isto ocorreu:

Ela armadilhou-me o pasmo…”,

 

“Ele andou atrás de mim

E eu cansei-me de fugir…”),

- Está bem próximo o fim,

É um casal já sem porvir.

  

 

104 - Eixos

 

Não aguarde quando vir

As coisas fora dos eixos.

Fale até se repetir,,

Jogue fora logo os seixos.

 

O casal que se dá bem

Solta, após, o dia a dia

E a solução que convém

Pouco a pouco afloraria.

 

Da discussão sentimentos

De culpa elimine logo.

“Isto” - diga - “traz tormentos…”,

Não: “palerma, apaga o fogo!”

 

Os casais que são mais sábios

Buscam libertar tensões.

Um pouco cedem e os lábios

Beijos dão, não mordiscões.

 

 

105 - Amizade

 

Entre eles, grande amizade.

Lembro, porém, os enganos,

A mesquinha má-vontade…

- Como é pouca, na verdade,

A amizade entre mundanos!

 

 

106 - Derrota

 

Quer amar e não consegue,

Procura a própria derrota,

Não encontra o que persegue,

Fica a ser livre obrigado.

 

Assim é que manda o fado

A cada qual sua rota.

E quem for um mal-amado

Aquilo que em si anota

É o que ao comum for traçado.

 

Com amor ou sem amor,

Nunca estás livre da dor

Que é tua sombra do lado.

 

 

107 - Quadro

 

As pessoas, dentro em nós,

Não nos têm na memória

Dum quadro a fidelidade:

São a fita de retrós

Que enlaça laços na história

De nossa íntima verdade.

 

Da amizade mais do amor

Têm sempre o movimento:

Evoluem ao sabor

Do que é o nosso esquecimento.

 

 

108 - Viagem

 

Geram dor certos haveres

Que nos pesam na viagem

Que vida além encetámos:

O tempo que muda os seres

Não nos modifica a imagem

Que dele nós conservámos!

 

 

109 - Ratoeira

 

Os casais na ratoeira

De enfrentar igual problema

Sempre da mesma maneira,

tentem adubar a leira,

Troquem por outro o seu lema,

Que, mudando de sistema,

A colheita os dois abeira.

 

 

110 - Repente

 

Ao tocar a melodia

Que já tocámos mil vezes,

De repente principia

A canção que não sabia

Que em mim germinava há meses.

 

São as obras de arte assim.

Porém, a vida em geral

Também assim corre em mim

E, se bem reparo, enfim,

Isto é do amor um sinal.

 

Quando amo profundo alguém,

Serão hábitos, rotinas,

Mas por vezes há também

Mensagens vindas do Além,

Um germe de asas divinas.

  

 

111 - Procurar

 

É possível procurar

O amor e vir a encontrá-lo.

Mas é muito mais vulgar

Vir o amor nos encontrar

Quando no canto me calo,

Quando eu já nem abalo

Buscando-o em nenhum lugar.

 

 

112 - Caminho

 

O caminho para as almas

É através do coração,

Não simplesmente da mente.

 

Por muito que batam palmas

Cheios de argumentação,

Se o coração fica ausente,

Falhou a persuasão.

 

O caminho mais seguro

Para um homem ter inteiro,

É o do amor que lhe inauguro,

É o do coração, primeiro.

 

 

113 - Seguirão

 

Já que aquilo em que acreditam

É sempre aquilo que seguem,

Corações de homem palpitam

De vontades que congreguem.

 

Querem mesmo acreditar,

Mas bem poucos vão seguir

O sonho que os empolgar,

Por mais belo que luzir.

 

Ecoará sempre em vão

O apelo que lhes proponho,

- Porém sempre seguirão

Um homem que tenha um sonho.