NA CARNE DA PALAVRA
PRIMEIRO CANTO
NA CARNE DA
PALAVRA É QUE EU ME SONHO
Escolha aleatoriamente um
númeo entre 1 e 113 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1 – Programa da palava
Na carne da palavra é que eu me sonho
E nela rasgo estradas de sentido,
Enterro o pé no chão onde me ponho
Em ergo-me de palavras revestido.
Na quadra popular de amor vivido
Os roteiros encontro que proponho
Pedra a pedra seguir, rumo ao subido
Irregular caminho meu medonho.
No soneto, a remota voz antiga
Vai demudando irregular o tom
Até quebrada quase ser cantiga.
Está escrito meu fado, mau e bom,
E vai ser de ironia e com furor
Que o irei modelando ao bom-humor.
2 - Na carne da palavra é que eu me sonho
Na carne da palavra é que
eu me sonho,
Primeiro nas estâncias regulares,
Com os ritmos e as rimas singulares
De quando em minha vida amor disponho.
Laços de tom alegre ou tom bisonho
Que deslaçam e enlaçam vida aos pares,
Laços que juntam pés, saltam algares,
Que solidários rumam ao risonho
Dia de festa que ninguém espera,
Mas que, na romaria, nos lembramos
Que a Humanidade atrai já, de era em era,,
Lá dos confins, desde os primeiros tramos.
Os laços canto que dum laço são
As amarras que ao Fim nos levarão!
3 - Zelo
Cozinhar é brincadeira,
Brincadeira de crianças,
E um prazer bem à maneira
De adultos que sonham danças.
- E, com zelo, é se supor,
Com zelo é um canto de amor.
4 - Vigília
O Natal não será o dia
Do nascimento de Deus,
Na Páscoa é que Deus faria
Um dos gestos que são seus:
Retornaria da morte.
O Natal é só vigília
Que nos inaugura a sorte:
- É onde nasce a família.
5- Fio
Quando alguém estuda o fio
Da História, o que salta aos olhos
É que desgraças e abrolhos
Nos apontam o pavio
De todo o progresso humano:
Elevar a condição
Doutrem, civilização
Nos gerou, mágico arcano.
Importar-se um pouco mais
Com os demais semelhantes,
Respeitá-los mais do que antes,
São doutro mundo os sinais.
Aboli a escravatura
Por respeito à vida humana.
O habeas corpus emana
Quando a criança se apura
Que inocente, irresponsável,
Há-de ser perante a lei.
Justiça igual para a grei
Hoje é um ideal fiável.
Findo a pena capital,
Não pelos executados
Mas porque penalizados
Somos nós por este mal:
O respeito pela vida
No-lo impõe e determina.
O mal o mundo o elimina
Ou, para que então progrida,
O acolhe por sua sina:
E então a pena de morte
Virá ditar-nos a sorte.
6 - Pouco
Ninguém pode melhorar
Todo o mundo de repente,
Mas um pouco toda a gente,
Melhor lhe pode o lugar
Para o futuro entalhar,
Todo o dia, se o consente.
- Com paciência há-de em lar
Devir tudo lentamente.
7 - Namorico
O namorico é uma teia
De aranha que ali se estende
Do macho à fêmea que enleia,
Onde um raio de sol dança
Que nela jamais se prende
- E aos dois na armadilha entrança.
8 - Investir
Se os pais viverem dispostos
A investir um pouco nelas,
As crianças são estrelas
De amor e carinho a postos,
Por eles a abrir janelas
Do dia em todos os rostos.
Nós, para o resto do mundo
Ignaros trabalhadores,
Para os filhos os maiores
Ídolos somos no fundo.
E, se a vida nos humilha,
É que não é nossa filha.
9 - Primavera
Primavera, ano após ano,
E sempre a mesma surpresa!
Solta ao vento o belo engano
E o mundo chilreia e reza.
Como é que nos prende tanto
Se tanto ao fim se repete?
Segredo de tanto encanto
A estação não o promete.
É que vem do coração:
Da Primavera as belezas
São do amor um galardão,
Doido, doido por surpresas.
10 - Compra
Não compra um amor ninguém:
Uma mulher que se vende,
Se aluga, afinal, a alguém
É um sonho o que nela prende.
O sonho se vende e compra,
Mercadoria impalpável,
Pagamento duma sombra
E por forma inumerável.
Pagamento da ilusão
Voluntária: aqui talvez
More a única função
Que não engana de vez.
11 - Fundidas
Os teus próprios sentimentos
Afirmam que já não és
O que eras noutros momentos,
Fundidas as nossas fés.
Prometias primaveras,
Éramos um coração.
Hoje, o pesar das esperas,
Onde houvera um só à mão,
Em dois tornou e as quimeras
Caíram mortas no chão.
Quantas vezes, pelas eras
Pensei como tudo é vão!
Preciso é que te liberte
Pelos rebentos do amor,
Em vez do que põe-te inerte,
Sem mérito nem valor:
Porque em lucro a intimidade
Andas medindo, inconforme.
E nem esta falsidade
Contra o valor mais enorme,
Ao trair assim a sorte,
Há-de evitar um momento
que. Logo após o desnorte,
Tombes no arrependimento.
É o lucro o que não tem cura!
E, por toda a eternidade
Isto dura, dura, dura,
Nada cura a enfermidade.
12 - Avança
Grita a voz do tempo: “Avança!”,
Que só para melhorar
O tempo serve ao que alcança,
Para aqui talhar um lar.
É a maior utilidade,
Rumo a uma vida melhor,
Por maior felicidade
Que um homem queira propor.
As trevas e a violência
Vieram como se foram,
Sofrer, morrer a inocência
É o caminho que demoram.
Quem retroceder o quer
Ou quer impedir-lhe o curso,
Quer a máquina tolher
De tão potente discurso
Que destruirá quenquer.
Nem a travará sequer:
Ela retoma o percurso
Implacável e feroz,
Indemne ao que aconteceu,
Afoga a contrária voz.
Que o tempo jamais descansa,
Comanda, fatal: “Avança!”
13 - Segunda
Doutrem preocupação,
Quando alguém dela se ocupa
É sempre em segunda mão,
Acaba por vê-la à lupa.
Tal como o fato alugado
E o recomprado não distam,
Talvez se dispam e vistam
Com fácil demais cuidado.
Preocupação arrefece
Quando é noutrem que acontece.
14 - Deserda
A Nação é aquela casa
Que deserda os próprios filhos
quando sugerem que atrasa,
Dos costumes com cadilhos,
A melhoria que abrasa
As leis novas de mil brilhos.
Ao invés, à velharia
De decrépitos amáveis,
A denúncia só viria
Torná-los mais respeitáveis.
Mesmo assim sempre a Nação
Tem, para tais maltratados,
O quente sabor do pão
Repartido sem cuidados.
15 - Escravas
Criaturas abnegadas
Como são estas mulheres
Que por amor comandadas
Se transmudam noutros seres,
Escravas vão parecer,
Porém sempre voluntárias:
Da juventude que houver
E que perderam, sumárias,
Da beleza que sonharam,
Também das capacidades
Que sempre se lhes furtaram,
De esperanças e vaidades
Fora de suas idades…
Nada melhor que o serviço
Bem fiel do coração
Prestado com todo o viço,
Sem mercenários do pão.
Aqui é que moram anjos,
Não naquelas mais dotadas
A que some tocar banjos
Só porque ricas de arranjos
Mas não de francas entradas.
A estas, quando as apontas,
Apontas da banca as contas.
Aquelas que sempre esqueces
São teu chão. Que não tropeces!
16 - Mistérios
Se dum mui próximo amor
Surgem os mistérios grandes,
Do afastamento pior
Tais serão que os nem comandes.
Só que neste o misterioso
É que te escasseiam dados.
Naquele o mistério gozo-o
Em seus fios delicados.
17 - Maldição
O problema é que a beleza
Não basta a justificar…
Quando nada a oferta reza
Mais que o fácil murmurar
“Vamos lá fazer amor!”
A pressão sobre os sentidos
Devém enfado maior,
Ameaça de perigos
Que traem a liberdade.
Que amor então persuade?
Este amor vindo à traição
Devém uma maldição.
18 - Validos
A felicidade a dois
Não existe, é solitária.
A que existe vem depois,
É uma paz única e vária,
Depois do amor dos sentidos
Ter perdido seus validos.
19 - Morte
Toda a morte dum amor
É morte dum ente amado:
Igual o rasgão da dor,
O vazio em todo o lado,
Travo de resignação
Com que nos arrasta ao chão.
Mesmo quando fomos nós
Que o esperámos, cansámos,
Para desatar os nós,
Para enfileirar os tramos
De autodefesa e bom senso
Com que livre me pertenço,
Mesmo assim, daquela morte,
Viúvo de invalidez,
Sou mutilado consorte:
Ficamos a olhar de viés,
A ouvir dum só ouvido,
Ao meio o corpo partido.
Não paramos de invocar
A metade então perdida
De nós, esvaída em ar,
Aquele ou aquela vida
Que nos fazia sentir
Inteiros e com porvir.
Então já não recordamos
As culpas nem os tormentos
Que, infligidos, evocámos,
E menos os sofrimentos
Que em convívio nos impôs:
Limpa-os a saudade em nós.
Torna-o a memória amável,
Melhor, extraordinário,
Ao tesoiro ora admirável,
Único num mundo vário:
Perde a lógica a premência,
Como insulto à inteligência.
E, por mais que o masoquismo
Nos esgatanhe as feridas,
Em amor o mal que cismo
Quebra as lógicas sabidas.
- Só o tempo que tudo evita
Da morte nos ressuscita.
20 - Vendavais
Não, não é mesmo verdade
Que o amor e a amizade
Sejam mesmo a mesma coisa.
Mesmo quando em ódio poisa
Ou de ódio quando nasceu,
Um amor sempre fremiu
Sozinho em força que tem
E à amizade não convém.
Um amor tem prémios tais,
Um amor tem tais castigos
Que solta até vendavais
E leva a esquecer amigos.
Onde há promessas iguais,
Onde tamanhos perigos?
21 - Postiços
Mulher com dentes postiços
Para que busca marido?
Da solidão os enguiços
Se esconjuram com chamiços
Do que útil é, se é vivido.
O postiço põe-na à beira,
Vivido convictamente,
De atear uma fogueira
Que deveras já não mente.
22 - Escrava
A mulher é escrava do homem
E este, do instinto animal:
Se à mulher bruxos a tomem,
A estes, forças que os domem
São sapos do pantanal!
Todo o amor vive enraizado
No estrume em campo espalhado.
23 - Sombras
Um homem de meia idade
Tem o mundo povoado
De pessoas que morreram…
As memórias persuade,
Como sombras a seu lado,
A caminhar como eram,
A falar da meninice…
Como os antigos demoram!
Não há filho que servisse
Em troca dos que já foram.
24 - Tropa
Perdem-nos assim um filho!
Mandam-no-lo para a tropa,
Perde-se atrás do negrilho,
Engolido pela copa…
Perdem-no-lo doutro modo,
Como uma chave de fendas,
Ferramenta sem engodo
Perdida no chão das tendas,
Abandonada de todo,
Como quem perde uma luva
Descuidadamente à chuva…
Não sofrem nenhum sarilho
E nem se ralam sequer…
- Vão procurar logo o filho
Duma outra mãe qualquer!
25 - Talude
O que interessa à saúde,
À melhora que se tenta,
É crescer com a virtude,
Não dizer a quem se ilude:
“Já tenho um metro e setenta
De tamanho que te alenta.”
- Nunca saltar o talude,
Largar de mão quem sustenta!
26 - Coroas
É preciso acautelar-se
Das coroas de papel,
A cabeças por disfarce
Impostas em vez da pele.
Como se peneiram oiros
Das escórias com apuros,
Urge de teatro loiros
Distinguir dos loiros puros.
E quando certos jornais,
E quando certas pessoas
Gritam que vos enganais,
É a mentira das coroas.
Coroa que tem razão,
Não a deles mas a tua,
É a que toca o coração
E por dentro continua.
27 - Regra
Por alguém saber a regra
Não é por tal que não erra:
Sabê-la , em si não a integra
Nem por ela é fazer guerra.
E por não sabê-la é raro
Que alguém erre, por seu lado.
- Tanto o coração é claro
Ao presidir-nos ao fado!
Não é nunca na cabeça
Que o bem acaba ou começa.
28 - Verdadeiro
Toda e qualquer mulher muda
Quando um homem é presente.
Mas que o homem não se iluda:
Também ele é diferente.
Qual será mais verdadeiro
Ninguém logra descobrir,
Se o segundo, se o primeiro…
- De ambos se tece o porvir.
29 - Importuno
Quero ser compreendido
Porque quero ser amado.
Ser amado é pretendido
Porque amo, pelo meu lado.
Doutro modo é indiferente
Doutrem a compreensão
E um amor, a quem não sente,
É importuno até mais não!
30 - Solidez
Somos nós que conferimos
Os traços de solidez
A quem de amor preferimos.
Se ela ignora-nos de vez,
Pois mesmo quando nós somos
Apenas um entre mil,
Amá-la é ver nela assomos
De quem de deusa é um perfil.
31 - Lesões
A partir de certa idade,
Nossos amores amantes
São os filhos de verdade
De angústias que houvemos antes.
De nosso outrora as lesões
Com que ele nos escreveu
Determinam os guiões
Do porvir que vou ser eu.
32 - Ciúme
A vantagem do ciúme
É mostrar a realidade
A que um facto se resume
De fora e da intimidade:
É que é tão desconhecido
Que se presta a mil versões.
O que cremos bem sabido
Mal precisa de razões:
Tirámo-lo do sentido,
Não dá preocupações.
- Por mais que seja entendido
Sem os ossos nem tendões.
33 - Poético
Julgar o mau casamento,
A ligação a evitar,
É o poético momento
Castrar.
Julgar o acto patético
Do lado da putrescência
É não ver o que é poético
Na existência.
Normalmente nesta via
Aquele que se afundou
O que afinal perseguia
É o que sou.
E, na asneira prosseguida,
Aquilo que afinal fez
Foi o poema da vida
E foi de vez!
34 - Desesperado
Sem um motivo aparente
Fico só, desesperado.
Um sono e a conversa urgente
Com quem fique de meu lado
A insistir-me, convincente,
A não desistir do fado,
- E deveras pronto fico
Da serra a saltar o pico.
35 - Igualitarismo
Igualitarismo, não!
Na escola da vida, a escolha
Ou de amar é uma lição
Em que a divergência acolha,
Ou nos transformamos antes
Em monstros horripilantes.
36 - Galho
A mulher de carne lisa
Não lembra o rijo trabalho
De que o pobre bem precisa
Da vida ao podar o galho.
É pela possante e gorda
que vislumbra a formosura:
Lança a linha, estica a corda,
Talvez a vida então morda
E que haja de vez fartura.
37 - Mensagem
Se a mensagem que tu passas,
Quando te encontras frustrado,
É culpar a fonte graças
À qual ficaste de lado,
Em vez de escolher por lema
Ultrapassar o problema
Com o jeito adequado,
Se em vez de punir o filho
Por ter a regra infringido
Vais lutar, feito caudilho,
Contra a regra e o sentido,
Formado ele nesta escola,
De que é que te vens queixar
Se qualquer dia te imola
Ao que mui bem desejar?
É que ser bem educado
Não é só “se faz favor”,
Nem “muito, muito obrigado!”,
Mas aos demais dar valor,
Respeitar, ser respeitado,
Por trás não cortar de alguém
Que à frente nos não convém.
Se teu filho melhor queres,
Olha bem no teu espelho
E o que nele não quiseres
Nunca o faças, te aconselho,
Pois, para um pai melhorar
De qualquer filho as maneiras
O que importa é haver lugar
Nele às melhoras primeiras.
Doutro modo acabarás
Perpetuamente frustrado
De teu sonho sempre atrás
Sem nada lhe haver tomado.
38 - Lembranças
As boas lembranças são
Para reter e guardar.
Depressa correr e em vão
Pela vida a carregar
Bagagem demasiada
De impaciência, apreensão,
É perder na poeirada
O que é boa ocasião,
É largar pelo caminho
Quenquer que for bom vizinho.
E depois, na solidão,
A quem estender a mão?
Limpos os fumos da glória,
Que me resta na memória
Senão o gelado fio
Do vazio, do vazio?…
39 - Espanto
A cidade em que vivemos,
Aquela que mais se ignora,
Tanto em nossa casa mora
Tão dentro, que nem a vemos!
Por isso o espanto demora
- Mas não do amor os extremos!
40 - Bebedor
Nunca um homem se contenta
Com a honesta solidão:
Dum alheio coração
Vagabundo devir tenta.
…Até que a vítima, langue,
Torna-o bebedor de sangue.
41 - Realidade
Amar inclui piedade,
Tolerância, gentileza,
Mas mais inclui realidade:
Descobrir a quem se preza
Debaixo até dos escombros
Com que os minutos degrade
Daquilo a que meteu ombros
Por sua própria vontade.
42 - Acompanham
Terras, gentes e vizinhos
Acompanham de verdade
Da vida quaisquer caminhos
Com segredos adivinhos
Que descobrir alguém há-de.
Mas só memória de amor
É que lhes pode propor
A fecunda realidade
Do que foram, do que são
Para sempre em nosso chão.
43 - Arado
Com a enxada, com o arado,
Se abre a terra das raízes
E o solo desentranhado
Profundo irriga as matrizes
Da nova germinação.
Assim lavra o contador,
A pesar o coração
Com as memórias do amor.
E tudo é revelação:
Renascem seres e coisas
Onde quer que a voz tu poisas,
Se à mesa os tens de teu pão.
44 - Simpáticas
Por que razão as pessoas
Simpáticas e decentes
Tão estúpidas quão boas
Serão para aqueles entes
De que mais gostam deveras?
Fazem as coisas erradas,
Dizem o que nunca esperas,
Barricam mútuas entradas…
E sempre, sempre, o pior
É que nestes aleijões
Tudo opera por amor
Na melhor das intenções!
45 - Criança
Leio a história a uma criança,
Em criança me transmudo,
Da palavra escuto a dança,
Dela à magia me grudo.
Quem, de facto, faz leitura?
Minha mãe atrás de mim,
O pai dela ou de tal cura
Esta cadeia sem fim
De gerações pelas eras
Que cruzam os continentes,
Os mares, e de que esperas
Que nos sustentem, ingentes,
Os esteios da cultura,
Toda a civilização?
A história que conto apura
Nova pegada no chão…
- Estas palavras tecidas
De maravilhas que contes
Vidas vão cosendo a vidas,
Não são palavras, são pontes.
46 - Contradição
Abre lá teu coração
Para acolher em teu seio
Quanto for contradição,
- Senão ficas sempre a meio!
E aprende a coexistir:
Aqui começa o porvir.
47 - Família
É a família aquela casa
De vivências e memórias
Que reconforta se é brasa,
Que devasta se as escórias
De fogo a vertente são
Que dominar seu pendão.
Para o bem ou para o mal
É o lar nisto o principal.
48 - Verdadeiro
Um lar é mais verdadeiro
Com toda a complexidade,
Ora em vitórias leveiro,
Com fraquezas, leviandade,
Ora em fracassos inteiro.
Da mentira e da verdade
Mistura sabor e cheiro,
Nos amassa idade a idade:
Somos fruto do atoleiro,
Lodo e flor que nos invade…
- E eis como do Homem me abeiro.
49 - Esforço
O esforço para escapar
Da influência parental
Leva-me seguro, a par,
A devir cópia fiel,
Como eles a ser tal qual.
É como o pote de mel
O reprimido, a atrair
A abelha que quer fugir:
Nunca escapa à atracção dele.
50 - Imaginário
A família pessoal
Que parece tão concreta
É uma entidade ideal,
Do imaginário faceta.
Tudo não é mais que a saga
Duma bênção, duma praga,
De tal modo entretecidas
Que, afinal, são nossas vidas.
51 - Desnorteamento
Falta ao colectivo o pai:
Nacional desnorteamento.
Logo a ideologia vai
De dogmas encher o vento.
Falta à civilização,
E fica tudo à deriva:
Os truques de ocasião
Passam por ser rota viva.
Se tudo se refugia
No seguro atrás da porta,
Já não resta qualquer via
Na cultura então já morta.
52 - Atitude
Politeísta atitude
É um nível de aceitação
De mim que tem a virtude
De inteiro me ter à mão.
O pendor monoteísta
É o de unir pontas de laços
Depois de ter toda a lista,
E de então trocar abraços.
Um narcisismo doente
Não deixa espaço a parar,
Toda a emoção ver de frente,
Fantasias evocar…
A pessoa narcisista
Tem uma única ideia
Daquilo que é, do que exista,
E as outras rejeita, alheia.
Narcisismo não é doença,
É duma alma a tentativa
De ter alguma pertença
A um outro eu de que viva:
Menos atenção a mim
E mais à ponta do véu
Que me irá juntar, no fim,
Tanto o eu como o não-eu.
53 - Lago
Teremos de descobrir
Que há dentro de nós um lago,
Um fundo ego a reflectir
Que pede o afecto que trago.
O indivíduo narcisista
Ignora, tão simplesmente
Quão profunda é aquela pista
Que foi quem fez de nós gente.
Empenha-se em ser amado,
Jamais é bem sucedido
Por antes não ter notado
Que a si tem de ser querido.
Não naquilo que ele é já,
Mas como se um outro fora:
Este outro que nele está
Mas, cativo em seu agora,
Não vê nele o que anda lá
E definitivo o ignora.
O narcisista é um doente
Apenas por não querer,
Ao querer tanto o presente,
O virtual que ele tiver.
54 - Unguento
Para o narcisismo o unguento
É concretizar o mito
Até que surja o rebento
Que aponte o florescimento
Doutro de mim que em mim fito.
Até que o dia anuncie
De mim que sou tão completo
Quanto a noite me desfie
Enquanto perdi meu tecto.
Até que de vez confie
Na sombra a que impus meu veto.
55 - Ensimesma
Narcisismo é aquele estado
Em que a cara se ensimesma,
Do amor imita um traslado,
Por não gostar de si mesma.
Um amor que é narcisista
É amor superficial:
Em si próprio quem insista
É que de si pensa mal.
Quem na ponta de seu dedo
Se levanta, se sublima,
Dele próprio mostra o medo,
Tem por si pouca auto-estima.
56 - Invertido
Autodesvalorizar-se
É um narcisismo invertido,
Impede as almas de dar-se:
Do mundo o afecto excluído
Definha preso ao disfarce.
É uma impossibilidade
Para ficar disponível
A recriar a amizade
Onde há carência visível.
Em tal narcisismo imersos,
Somos feitos de marfim:
Belos como etéreos versos,
Frios e duros por fim.
57 - Indício
O narcisismo é um indício
De que alma alguma carente
Não recebe nem resquício
Dum amor suficiente.
Quanto maior o grau for,
É menor a intensidade
Que lhe dispensam do amor
De que tem necessidade.
Apaixonado da imagem,
Não descobre que é da dele
Senão após a viagem
Em que larga a própria pele.
Só digno de ser amado
Vai descobrir-se em concreto
Depois de haver-se encarado
De tal sonho como objecto.
Dele ao não ser mais sujeito,
Vendo-se fora, liberto,
É que lhe abre o próprio peito,
Encontra do amor o acerto.
58 - Marca
Um edifício imponente,
Uma obra de arte gritante,
São sempre a marca evidente
Dum narcisismo chocante:
São modo de dar nas vistas
Como de Átila as conquistas.
Aquilo que denuncia
Ausência de amor por si
É a narcisista mania
De em si pôr um alibi:
São sempre da morte os panos
Que medem quais são os danos.
59 - Brado
O narcisismo vencido
Da imagem dum outro lado,
Da solidão regredido,
Na criação vai dar brado.
Pois, enquanto prisioneiros,
Ferimos a natureza
E desbastámos canteiros
Que ninguém a sério preza.
Libertos e transformados,
Resulta no amor de mim
Que nos gera unificados
Eu e o mundo até ao fim.
Será um outro narcisismo,
O da consaguinidade
Das criaturas que crismo
De universal irmandade.
60 - Promessa
O amor encerra a promessa
De que as feridas da vida
Fecharão, de vez saradas.
Pouco importa se começa,
No passado, com a ida
Pelo caminho às topadas,
A fonte de sofrimento,
Dos penhascos do tormento…
Pois igualmente contém,
Auto-regeneradora,
A componente de além
Bem presente a toda a hora.
Recupera a identidade
Ao transpor cada momento
E renova a virgindade
Num banho de esquecimento.
61 - Encontro
Aquilo que só parece
Terreno encontro entre dois
É o caminho que entontece
Das profundezas depois.
É que o amor não foi feito,
Estéril, triste ou fecundo,
Não foi feito a nosso jeito,
- O amor não é deste mundo.
62 - Presenças
Os irmãos, o pai, a mãe,
Sempre implicados no amor,
Como presenças também
Dão, influentes, calor.
Por dentro sempre invisíveis,
O que um amor anuncia,
Mais que uno, são as credíveis
Comunhões de que vivia.
O amor é comunidade,
Não só por criá-la aqui,
Mas por ser a identidade
De cada amante por si.
63 - Cegueira
O apaixonado contém
Um desejo de cegueira
Que o liberte para além
Do complexo que o joeira.
Ser absorvido de vez
No vórtice que te atrai,
Que repouso para o que és!
- E que ilusão tudo trai!
64 - Reino
Um amor liberta o reino
Da imaginação divina,
Onde a mente expande o treino
Do que de anseios domina.
O amante enaltece o amado,
Incapaz de conhecer
A falha ferida ao lado:
O amor é cego em quenquer.
Pode, porém, ao contrário,
Ver a vera natureza
Angelical que no vário
Cotio perde e despreza.
Na vida quotidiana
Será loucura, ilusão,
A auréola que dimana
De quem vê com coração.
65 - Platónico
Platónico amor não é
Um amor que não tem sexo,
No corpo é quem põe de pé
Com a eternidade um nexo.
Em parte na eternidade,
Em parte no tempo, o amor
Corre os dois lados da herdade,
Viver ambos quer-se impor.
A incursão da eternidade
Na esfera da vida vai
Gerar a intranquilidade
Do que, ao ir, primeiro cai.
E aquilo que conquistámos
Com a razão natural
Desce as nuvens, começamos
A enraizar no tremedal.
66 - Transgressão
Todo o amor envolve
Uma transgressão,
Ao tabu revolve,
Estende-o no chão.
O que me fascina
Nas biografias,
Nos filmes viris:
A ilícita sina
Para o amor das vias
E dele os ardis.
Por mais que seja trágico
Tem o condão de ser mágico.
67 - Visão
Olhar o amor a partir
Duma visão moralista
Ou da saúde que exista
Em quem o venha a sentir
É ignorar-lhe o coração,
Tal como nas adivinhas
Em que ausculto a solução
Apenas nas entrelinhas.
Quando apurar a tragédia
De amores meus pessoais
E lento encontrar a rédea
De meu caminho entre os mais,
Por entre as adversidades,
Iniciado estou sendo
Nos meandros de opacidades
Em que o mistério vou lendo.
É o amor a nossa porta
De entrada e, tal nosso guia,
Cerce os desvios nos corta
Nos labirintos da via.
Se capaz de o respeitar
For tal como se apresenta,
Há-de levar-me ao lugar
Inferior que em mim inventa
Onde o sentido e o valor
Se mostram paradoxais,
Lentos, a se contrapor:
- Minhas fundações reais.
68 - Integrante
Fracasso, complexidade,
Parte integrante do amor,
São cartão de identidade,
Não algo a mim exterior.
A separação e a perda
Assomam à mente amante
Como ideia que alguém herda
Antes de ser actuante.
A separação em acto
Tem este significado:
A destruição do pacto
De ambos no actual estado.
Fica em aberto o futuro
Para além da dor, decerto.
- E sei que quando o inauguro
Atravessei já o deserto.
69 - Fantasias
Se dois entes se apaixonam,
Se juntam, fundam um lar,
As fantasias funcionam
Mais profundas par a par.
Interligam-se por vezes
E cada qual vive então
O seu mito nos reveses
Do que o outro oferta em vão.
Na fusão e confusão,
É difícil de sentir
Por vezes de quem serão
Os traços que irão surgir.
Com a individualidade
Indistinta em cada qual,
De separar-se os invade
A urgência como ideal.
E muitas vezes alcançam,
Com esta separação,
Que os traços se lhes relançam
E remoçam a união.
70 - Oposição
Pensar em separação
Com o amor e o casamento
Parece uma oposição,
Mas pode ser elemento
Deles, as suas entranhas
Que bem podem ser aceites
Com toda a imaginação:
Com operações estranhas,
das azeitonas azeites
Dos mais puros correrão.
Contra destruir o amor,
Pode até um divórcio ser
Forma de um altar lhe pôr
À plenitude que quer.
O amor impõe-nos quesitos
Que lhe parecem contrários
Mas só nos põe olhos fitos
Para ele em rumos vários.
71 - Faiscar
Será tão reconfortante
Ouvir outrem e zelar
Pelo que é seu bem-estar
Que pode o amor, num instante,
Faiscar sem que ninguém
Se aperceba ali, porém:
- Ninguém viu o inaugurar
Doutro tempo e outro lugar.
Contudo, foi o futuro
Que ali já rompeu seguro.
72 - Caminhos
O amor afasta da vida
E dos planos que traçámos.
Os caminhos com que lida
São dos abismos profundos
Que ciganos caminhamos
À espera de os ver fecundos.
Tomam a forma da morte
E do mundo inferior.
Ao casamento, ao amor,
Quem entrega dele a sorte
Vai dizer sim a uma perda
Relativamente à vida.
Porém, dentro os sonhos herda
Que lhe dão nova medida.
Benéfico o amor se mostra
Para a vida, para o ego:
As almas querem a amostra
Da morte que traz sossego.
Perder vontade e controlo,
Se ao amoroso cativa
É de alma o maior consolo,
Refeição mais nutritiva.
Mas é difícil lidar
desta morte com a glória:
Teremos de erguer o lar
Com presente e com memória,
Se inteiro for de vingar,
Se roubo à morte a vitória.
73 - Sombra
Quando nós ressuscitamos
De modo bem vigoroso
O que perdido tenhamos
Do amor disperso no gozo,
O que nos é reservado
É a sombra da realidade
Anterior, cujo fado
A mascara de alvaiade?
Talvez nós jamais capazes
Sejamos de insuflar vida
Às almas dela vorazes.
Talvez ela, protegida,
Eternamente velada,
Permaneça dos rigores,
Bem no fundo da quebrada
Dos abismos interiores.
74 - Teoria
Julgamos saber do amor
Em teoria ou integrado
No episódio retirado
Da existência em que ele for.
Mas o amor privilegia
Apenas cantos obscuros
Do mundo incônscio que havia
Nos fundos de alma inseguros.
Concretizá-lo é, pois, morte,
Desatar de dada vida,
Do que até ali fora norte,
Não início: despedida!
O amor conduz-me ao limite
Do que pode uma existência
Quando desarmado o fite,
Dele me entregue à violência.
75 - Prémio
A solidão pode ser
O fruto duma atitude
Que à comunidade quer
Como prémio de virtude.
Muitos esperam até
O convite de integrar
A comunidade que é
Afinal como o seu lar.
Até que tal aconteça
Permanecem solitários,
À espera que alguém lhes peça
Que entrem nos grupos precários.
São a criança que apela,
Aguardando que a família
Tome afinal conta dela
Após a longa vigília.
Comunidade, porém,
A família não será,
É o grupo em que todos têm
Pertença como alvará.
Pertencer é um verbo activo
E consta do que fazemos,
Mas dum modo positivo,
Enlaçando quem queremos.
Pois se o guardião da vida
Único será o amor,
Ser amado ao que convida
É a amar antes com ardor.
76 - Parentesco
Ter bom relacionamento
Alma indicia à procura
De parentesco em aumento
E já de si nem mais cura,
Pois, fluindo assim na vida,
Já não tem necessidade
De buscar outra guarida,
Plena e feliz do que a invade.
77 - Perfis
Comunidade prospera
Ali de nós no exterior
Quando a interior opera
Com quantas pessoas for.
As pessoas de meus sonhos,
Das ideias de vigília,
Se as liberto, que medonhos
Perfis tem minha família!
Ao vencer a solidão
Poderei considerar
Libertá-las da prisão,
dar-lhes na vida lugar:
À que quer cantar em mim
Ou de raiva protestar,
À que é sensual, enfim,
À crítica de arrasar…
Admitir quem é que eu sou
É admitir que elas ascendam
À vida que principiou
Quando as vendas as não vendam.
A comunidade dentro
É meu ponto de partida,
Quando em paz por mim me adentro,
Para a de fora, em seguida.
Ao sentir que enfim pertenço
À vida em toda a pujança,
De dentro a fora é que venço
A lonjura que me alcança.
Recordo-me enfim de alguém
Porque de mim me recordo,
Porque toda a gente tem
O rosto de meu acordo.
Então sou capaz de amar
Quem cruzar em meu caminho
E de receber, a par,
De todo o mundo o carinho.
78 - Sendeiro
Uma família, um amigo,
Um amante, um companheiro,
Da força da vida abrigo,
São do infinito o sendeiro.
A entrada no amor divino
É através da comunhão
Bem humana a que me inclino:
Deus põe pegadas no chão.
E vice-versa também:
Se daqui mais tudo aumenta,
Mais cresce o lado de além,
- Um do outro se alimenta.
79 - Serviço
As traições bem como as perdas,
Desilusões amorosas,
Um serviço prestam: herdas
Quando a elas mais te cosas.
Vistam embora tragédias,
Alma é tempo e eternidade.
Dos dois lados então mede-as,
Que salta, funda, a verdade:
Quando o desespero aponta
Na parte que toca à vida,
Só o lado eterno é que conta,
- Nele me salvo à medida.
80 - Relação
É a pessoa definida
Em relação com alguém.
Ao invés anda entendida,
Hoje em dia, por quem tem
O valor da independência,
Como o da separação.
São cumes duma excelência
Onde ninguém tem razão.
Não parece adequado
Encontrar a identidade
No encontro com o ente amado,
- Mas é a via da verdade.
É na mútua dependência,
De dignidade investida,
Que atingimos ser e essência
Do que em nós é nossa vida.
81 - Qualidade
Do ciúme a qualidade
É, primeiro, a dependência,
Doutrem ter a identidade,
Salvar unida a vivência.
Se devier compulsivo
E mesmo avassalador,
Tem demais um alvo altivo,
Deplora a sério o factor
De a relação não conter
O vigor de sentimentos
que ela apenas tem poder
De dar a quaisquer momentos.
Estranhamente o ciúme
É que contém as sementes
De o sexo elevar ao cume
E a intimidade entrementes.
82 - Carta
Mandas carta enfurecida
Contra tua namorada.
Arrependes-te em seguida,
Pedes que, em lugar de lida,
A carta seja rasgada.
Se ela, embora curiosa,
Satisfaz o teu pedido,
A carta, de perigosa,
Torna-se um meio em que entrosa
O vosso pacto vivido.
A boceta de Pandora
Onde moram desatinos
Só fechada nos escora
Os passos onde nos mora
A fraqueza de meninos.
Conservamos o poder
Quando assim nós protegemos
O segredo de quenquer:
- Só em privado quem quiser
Escapa dos próprios demos.
83 - Força
Caso não reivindiquemos
De alma a força em benefício,
Sofreremos o suplício
De ir dela atados aos remos.
O mais comum é sofrermos
Em função das emoções,
Sem quanto estão percebermos
A regar nossos talhões.
Guardamos nossas paixões
Cá dentro, fora da vida.
Sofremos agitações
Que elas moem, de seguida,
Profundamente inquietos
Ou à beira da doença.
Serão da fúria projectos
A acumular, sem detença,
A raiva, o ressentimento…
Mesmo o amor não confessado
Quer ser livre como o vento
E há-de lograr seu traslado.
84 - Brinquedos
As bonecas e brinquedos,
Quando o fabricante os lança,
Ficam ali mudos, quedos.
Mas, ao brincar a criança,
Então de vez ganham vida:
No sonho um homem alcança
O poder a que convida
O deus que a vida lhe entrança.
85 - Natureza
A natureza de cada
Nunca irá desenvolver-se
Se não encontrar na estrada
Este pedaço de ser-se,
O gémeo de ser amado
Que no mundo vive o mundo:
- Seu labor, executado
De si encarnando o fundo.
86 - Adaptação
Uma adaptação à vida
Saudável na aparência,
Prejudica, de seguida,
O íntimo na pura essência.
Acatar, pouco exigente,
Alguns valores modernos,
De prejuízos é semente
Mais que de ganhos externos.
Fé cega em tecnologia,
Apego desmesurado
De aparelhos à magia,
Da comodidade ao fado,
Acolher irreflectido
Qualquer marcha do progresso,
À electrónica o sentido
Perder dos meios no excesso,
A vida subordinada
À ditadura fluída
Da publicidade armada
- Tudo é vida sugerida,
Não uma vida agarrada
Nas mãos prenhes de matéria.
A racional caminhada
Não me livra da miséria
Se mecanicista for
A leitura que me der
Do sentimento, do amor,
Tornado um chavão qualquer.
87 - Casa
Este mundo é nossa casa
E a responsabilidade
Que por ela nos abrasa
Obrigatoriedade
Não é, nem fruto da lógica,
Nem o pendor do destino,
Repetição analógica,
- É um afecto genuíno.
Faltar abrigos nas ruas
É de abrigos o senão
Para o relento das luas
Que não há no coração.
Espelham os sem abrigo
De nossa alma a privação,
Por vivermos ao postigo
Do mundo inteiro em prisão,
Roubados da percepção
Da sementeira de trigo
Que me dava a ligação
A mim e às coisas que sigo.
Partimos do princípio que estar só
Fica ligado apenas às pessoas,
Embora o afastamento meta dó
Do mundo a que ninguém já canta loas.
Jamais é uma questão de economia,
É engano da cultura que se cria.
88 - Lestas
Ao preservar nossas casas,
Sejam embora modestas,
Às almas talhamos asas
Que as irão tornar mais lestas.
Embora pobre e pequeno,
O que me importa é a beleza
Da morada e do terreno
Do lar-aldeia que a preza.
O meu lar e a minha aldeia
Ambos são as extensões
De cujos elos na teia
Viverão os corações.
89 - Contingentes
Há carros eficientes.
Os casamentos, porém,
Cada vez mais contingentes
A par se mostram também.
De filmes a infinidade,
Séries de televisão,
E de saber ninguém há-de
Viver no mundo a união!
O prazer e a diversão,
Para o que alguém necessita,
Só se prestar atenção
À alma que o requisita.
90 - Clareza
Por que motivo um olhar
Vê com mais clareza em sonho
Do que vê quando acordar?
Depende do que lá ponho:
Os olhos de alma percebem
As eternas dimensões
Da pulsação que recebem
Os humanos corações.
91 - Sabor
Para as almas, a memória
Mais importa do que os planos.
Arte mais poder e glória
Tem que da razão enganos.
E o amor, ao fim e ao cabo,
É bem mais compensador
Do que saber onde acabo:
Entender não tem sabor!
92 - Partilham
Os homens partilham casos
De futebol turbulentos,
Carros, política, inventos
E da guerra os mil acasos.
As mulheres trocam medos,
Revelam tristezas, sonhos
E os pesadelos medonhos
Por trás de mil e um segredos!
Duas partes mal unidas
Que nunca andam separadas:
As vozes correm cruzadas,
Umas doutras nunca ouvidas.
93 - Terceira
Se à primeira ele não ouve,
Se à segunda também não
E se à terceira um sim houve
- É que o espalmei no chão!
A razão ou sem razão
É só a questão que importa,
Não os métodos que vão
Precisos abrir a porta.
94 - Seguro
Ao tomar pelo seguro
O acordo de quem amamos,
Contrariamos o apuro
Dos inimigos que armamos.
Senão, em qualquer lugar,
Como se iria aguentar?
95 - Armadilha
Da lealdade a armadilha,
A paz do dever cumprido:
Fonte onde enchemos a bilha
De águas vivas de sentido.
Despontam falsos, depois,
Os rumos a que te atreles:
É o perigo dos heróis.
- Mas como viver sem eles?
96 - Confiança
Dos homens para o medo
Apenas um remédio:
O amor, um amor cego.
Certa, a coragem mede-o,
Porém jamais o alcança:
O essencial é a confiança.
97 - Fuga
Crêem uns que os casamentos
Acabam pela traição,
Quando o comum são momentos
De queixumes, frustração,
De atitudes defensivas,
Críticas e retiradas…
- Já das horas agressivas
Não há fuga nem estradas.
98 - Laços
As carreiras, mesmo os filhos,
Tempos livres, o trabalho,
Tanto pesam tais cadilhos
Mais que os laços por que valho!
Quando à agenda do casal,
Com a data do jantar,
Pôr-do-sol na marginal,
Devo o primeiro lugar!
99 - Aurora
Na aurora do casamento
Pensa do outro cada qual
O melhor, cada momento
Onde o imprevisto o encurrrale.
Provavelmente ficou
Preso no engarrafamento,
Cuida a mulher, ou tentou
Um qualquer acabamento…
Quando ele chega, por fim,
Sejam as horas que forem,
Calorosa o acolhe, assim,
Faz que os sonhos se não gorem.
Mais tarde, contudo, quando
O jantar já lhe arrefece,
Os filhos vão protestando,
Fica zangada e se esquece.
“Só pensa nele”, cogita.
“Ao menos telefonava”
Ou então é uma catita
Que lá pelo bar o entrava…”
É mau sinal os parceiros
Não darem-se o benefício
Da dúvida, pois inteiros
Se perdem pelos carreiros
E é o ritual sacrifício.
100 - Toque
Quando a relação é nova
Tocam-se ambos muito, muito:
Cruzarem-se é dar a prova
Comum do toque fortuito.
Porém, em muitos casais
Esta intimidade acaba
Por já não deixar sinais
Quando o tempo lhes desaba.
Não se beliscam, não riem
Em comum com as piadas…
- Nada faz que desafiem
Metas de estrelas privadas.
101 - Potencial
É um problema potencial
Se um cônjuge já não sabe
O que é que faz bem ou mal
Ao outro do que lhe cabe:
Do que ele gosta ou não gosta,
O que lhe vale ou não vale…
- Se o ignora perde a aposta
Do sonho de ser casal.
102 - Demasiada
Demasiada paz dará
Relações frias, distantes.
Cônjuges, ou falam já,
Resolvendo equidistantes
As diferenças que houver,
Lutam pelo casamento,
Ou explosões há-de haver,
O abandono, o passamento.
O que a tal sobreviver
É já morto que convive:
Seja homem ou mulher
É um cadáver com que prive.
103 - Sarcasmo
Quando o riso já morreu
Trocado pelo sarcasmo
(“assim é que isto ocorreu:
Ela armadilhou-me o pasmo…”,
“Ele andou atrás de mim
E eu cansei-me de fugir…”),
- Está bem próximo o fim,
É um casal já sem porvir.
104 - Eixos
Não aguarde quando vir
As coisas fora dos eixos.
Fale até se repetir,,
Jogue fora logo os seixos.
O casal que se dá bem
Solta, após, o dia a dia
E a solução que convém
Pouco a pouco afloraria.
Da discussão sentimentos
De culpa elimine logo.
“Isto” - diga - “traz tormentos…”,
Não: “palerma, apaga o fogo!”
Os casais que são mais sábios
Buscam libertar tensões.
Um pouco cedem e os lábios
Beijos dão, não mordiscões.
105 - Amizade
Entre eles, grande amizade.
Lembro, porém, os enganos,
A mesquinha má-vontade…
- Como é pouca, na verdade,
A amizade entre mundanos!
106 - Derrota
Quer amar e não consegue,
Procura a própria derrota,
Não encontra o que persegue,
Fica a ser livre obrigado.
Assim é que manda o fado
A cada qual sua rota.
E quem for um mal-amado
Aquilo que em si anota
É o que ao comum for traçado.
Com amor ou sem amor,
Nunca estás livre da dor
Que é tua sombra do lado.
107 - Quadro
As pessoas, dentro em nós,
Não nos têm na memória
Dum quadro a fidelidade:
São a fita de retrós
Que enlaça laços na história
De nossa íntima verdade.
Da amizade mais do amor
Têm sempre o movimento:
Evoluem ao sabor
Do que é o nosso esquecimento.
108 - Viagem
Geram dor certos haveres
Que nos pesam na viagem
Que vida além encetámos:
O tempo que muda os seres
Não nos modifica a imagem
Que dele nós conservámos!
109 - Ratoeira
Os casais na ratoeira
De enfrentar igual problema
Sempre da mesma maneira,
tentem adubar a leira,
Troquem por outro o seu lema,
Que, mudando de sistema,
A colheita os dois abeira.
110 - Repente
Ao tocar a melodia
Que já tocámos mil vezes,
De repente principia
A canção que não sabia
Que em mim germinava há meses.
São as obras de arte assim.
Porém, a vida em geral
Também assim corre em mim
E, se bem reparo, enfim,
Isto é do amor um sinal.
Quando amo profundo alguém,
Serão hábitos, rotinas,
Mas por vezes há também
Mensagens vindas do Além,
Um germe de asas divinas.
111 - Procurar
É possível procurar
O amor e vir a encontrá-lo.
Mas é muito mais vulgar
Vir o amor nos encontrar
Quando no canto me calo,
Quando eu já nem abalo
Buscando-o em nenhum lugar.
112 - Caminho
O caminho para as almas
É através do coração,
Não simplesmente da mente.
Por muito que batam palmas
Cheios de argumentação,
Se o coração fica ausente,
Falhou a persuasão.
O caminho mais seguro
Para um homem ter inteiro,
É o do amor que lhe inauguro,
É o do coração, primeiro.
113 - Seguirão
Já que aquilo em que acreditam
É sempre aquilo que seguem,
Corações de homem palpitam
De vontades que congreguem.
Querem mesmo acreditar,
Mas bem poucos vão seguir
O sonho que os empolgar,
Por mais belo que luzir.
Ecoará sempre em vão
O apelo que lhes proponho,
- Porém sempre seguirão
Um homem que tenha um sonho.