SEGUNDO  CANTO

 

 

 

 

 

E  NELA  RASGO  ESTRADAS  DE  SENTIDO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 114 e 287 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                114 - E nela rasgo estradas de sentido

 

                                                E nela rasgo estradas de sentido

                                                Rasgo, sim, que a palavra é sentinela

                                                E, quando ao grito dela presto ouvido,

                                                Descubro o que entra e sai pela cancela.

 

                                                E, quando de olvido

                                                Uma ameaça houver,

                                                Fico prevenido,

                                                Não me irá colher.

 

                                                E na palavra assento o ser que sou,

                                                Gradual recriando ritmo e rima

                                                Até no mapa ler por onde vou.

                                                E assim atinjo os cumes lá de cima.

 

                                                E as estradas que rasgo no meu verso

                                                Com o mundo sou eu que ao fim converso.

 

 

115 - Futebol

 

O jogo da vida,

Como o futebol,

A atacar convida,

Dos medos o rol

Manda bloquear,

Na oportunidade

Importa marcar…

- Bom jogo, na vida,

É o que assim nos fade.

 

 

116 - Sabedoria

 

A sabedoria

Nem sempre é da idade:

Às vezes a via

Desta é só vaidade.

 

Então se adivinha

Da sabedoria

Quanto anda sozinha.

 

 

117 - Campeã

 

Campeã, cortando a meta,

Eras mesmo deste mundo?

 

Que pena, que pena o poeta

Não ser corredor de fundo,

Pôr nas pernas as palavras

 

 

A bater qualquer recorde…

 

- E de além, de Além nas lavras

Suspeitar que mundo acorde!

 

 

118 - Afluentes

 

O satélite, o avião,

Rio a correr para o mar,

De afluentes um milhão

Juntou de trabalho a par.

 

E, quando atingiu a foz,

Ergueu voo, deu-nos asas:

- Nos espaços para nós

Temos hoje novas casas.

 

 

119 - Felizes

 

Os felizes cantam viva,

Viva o presente deveras!

O passado em retentiva

É lição, mas doutras eras.

Quanto a pensar no futuro,

Sim, quando é de planear.

 

- É bom destino o que auguro

Aos pés firmes no lugar.

  

 

120 - Culto

 

Aprender tudo de cor

É doravante impossível.

O culto não é credível

que saiba tudo propor.

 

O culto é aquele que sabe

Procurar a informação,

Nem que seja a dum botão

Onde o mundo inteiro cabe.

 

Culto é o que sabe aprender

O testamento dos sábios

E o trilho após percorrer

Para lho colher dos lábios.

 

 

121 - Jornalista

 

Caderno de jornalista

São dados, informações,

Fontes em secreta lista,

Largas verificações.

 

Criar obra literária

É um enigma formular:

Daquilo a via contrária

Para um contrário lugar.

 

 

122 - Engodo

 

Um trabalha o dia todo,

Outro sonha o dia inteiro.

Muito mais raro é o terceiro

Que de ambos foge ao engodo:

Passa uma hora a sonhar

E depois, com ar risonho,

Todo o labor é lavrar

O corpo daquele sonho.

 

 

123 - Bicicleta

 

Roubaram a bicicleta

Ao menino descuidado.

A vingança mais completa:

Em boxista o hão mudado.

 

Feriram-no tão a fundo

Que, após todo o treinamento,

Para fugir ao tormento

Devém campeão do mundo.

Bastou ver nos adversários,

Para ser o campeão,

Nos pendores mais primários,

O rosto mau do ladrão.

 

 

124 - Discussão

 

Em qualquer situação

A discussão é uma perda,

Falhada utilização

Da curva do tempo lerda.

 

Ao evitá-la, quenquer

Evita mais do que a sanha,

Evita as lesões que houver

- E ao fim toda a gente ganha.

 

 

125 - Sensíveis

 

Os nossos pontos sensíveis

Levam a perder a calma

A não ser que, antes, risíveis

Os tornemos e, com alma,

Nos tentemos divertir

Com quanto não tem porvir.

 

 

126 - Artificial

 

Sorriso artificial,

Um toque de maquilhagem

A iluminar o sinal

Dum rosto de nova imagem.

 

Por afectado que fora,

A pouco e pouco sincero

devém logo, de hora a hora:

Vem do falso um riso vero.

 

A ilusão do pó-de-arroz

Salva do horror o tempero

Do rosto que ele me impôs

- E escapo do desespero.

 

 

127 - Votos

 

Certos votos repelidos,

Outros, porém, satisfeitos…

E são desejos cumpridos

Que o mal nos trazem, nos preitos

Que prestam ao que se alcança:

Perpetuam desde início

Aquele eterno suplício

Com que nos dói a esperança.

 

 

128 - Envelheci

 

Envelheci? Não, gastei-me.

Porque aqueles que envelhecem

Não se gastam, se conservam.

E quem no contrário teime

É daqueles que se esquecem

Daquilo que sempre observam:

- Gastarmo-nos, de ordinário,

De envelhecer é o contrário.

 

 

129 - Absurdo

 

Aceitando o absurdo

Podemos viver,

No absurdo quenquer,

Porém, devém surdo.

 

Os que a terra abandonar

Pretendem, só verificam

Que ela aos dedos vem colar

E mais prisioneiros ficam.

 

Não lhe fugiremos, não,

Que não a encontramos nunca

De caso pensado e então

É a morte o que o chão nos junca.

 

 

130 - Ponte

 

É a vida pequena ponte:

À direita, o paraíso,

O inferno à esquerda, horizonte

Com morte atrás do que viso.

 

E a terra firma, adiante,

Eternamente distante…

 

 

131 - Medo

 

Tenho de enfrentar o medo

Porque o medo é o assassino

Do espírito: mudo e quedo

Quando antes foi peregrino.

 

Que ele passe sobre mim

E através de mim se vá:

- Quando então lhe vir o fim

Ele é nada, resto eu cá!

 

 

132 - Inverso

 

Quem tentar ver a verdade

Sem ver os seus inimigos,

Sem rever a falsidade,

Não entendeu os perigos.

 

Era tentar ver a luz

Sem do inverso ter noção:

A nada logo a reduz

Quem não viu a escuridão.

 

 

133 - Máscaras

 

Somos máscaras baratas

Recobrindo pensamentos

Tresloucados que resgatas

Com vozes cujos intentos

São de abafar, tão sem jeito,

O silêncio de teu peito…

 

Silêncio que rasga a pele:

Ao final, sou eu que falto!

Como ele fala tão alto,

Como, calado, repele!

 

 

134 - Rebanho

 

Criança não é rebanho:

Se quarenta ovelhas vão,

O que o grupo tem de ganho

É que tal uma se irão.

 

Se tens quarenta crianças,

Cada qual o que ela tenta

É jogar nas contradanças,

Tal se ela fora as quarenta.

 

 

135 - Aguenta

 

Se o trabalho não sustenta

Como a qualquer ser humano,

Se a vida já não aguenta

A fome de que me irmano,

 

Quando toda a trabalheira

Começou e prosseguiu

E acabou de igual maneira

De desolação num rio,

 

Sem uma oportunidade

Nem qualquer alteração,

Digo a quem me persuade:

“Não me persuades, não!

 

Fica lá na tua festa,

No parque, põe o azevinho…

Já não cruzo nessa fresta,

Ficarei melhor sozinho.

 

Que vos faça bom proveito

E que se divirtam muito!

Não somos do mesmo leito,

Nada em comum há por junto.

 

E doravante cortado,

Um é o vosso, outro o meu lado.”

 

Aqui semeio a tormenta

Que de então, de qualquer modo,

Desde logo um mundo inventa,

Nem que seja a ferro e fogo.

 

 

136 - Ecos

 

Aqui sentado à sonoite,

À escuta do eco da estrada,

Ecos dos passos que acoite

São da vida a caminhada.

 

Ecos de todos os passos

Que passam na minha vida,

Da multidão eis os traços

Que em mim tem por fim guarida.

 

 

137 - Trilhos

 

Se queres prosperidade

Não esperes trilhos de oiro,

Leito em rosas de verdade,

Que serão de mau agoiro.

 

De esperas tão exaltado

Nunca alguém há prosperado.

 

Porém, se aguardas trabalho,

Se o encontras no caminho,

Se o lavras de sol e orvalho,

Se a jeito o pões, adivinho:

 

- Tomaste o vero partido

De prosperar com sentido.

 

 

138 - Faminto

 

Põe leite à frente do gato

Se queres sede de leite,

Mostra ao cão o desacato

Da presa que não enjeite,

Se queres treinar o dia

Em que ele a abocanharia.

 

- Se é impotente o homem faminto,

Mostra-lhe o que alarga o cinto!

 

 

139 - Fraqueza

 

Tua fraqueza é que, às vezes,

Só na vítima há coragem:

Não deixes que teus reveses

Te anulem com a abordagem.

 

Quando a altura chegar, solta

O teu tigre, o teu diabo,

E acorrentados em volta

Os mantém, até ao cabo.

 

E conserva-lhes os rostos,

Não à vista, mas a postos.

 

 

140 - Malho

 

Eu sei como deveio

Difícil para mim

Suportar em meu seio

A desgraça sem fim.

 

Sabes tu por acaso

Como se tornou fácil

À vida não dar aso

Em ti que a tens tão grácil?

 

Os braços nus e magros

Que não têm trabalho

Laboram nestes agros:

- Os de abater-te a malho!

  

 

141 - Sementeira

 

Colheita sem sementeira,

Só dos que semeiam mal,

Que, em leitura trapaceira,

Escondem feroz sinal.

 

Como se ninguém os vira

Sugar sangue da miséria,

Esbanjar, dançando o vira,

Da doença e fome a féria!

 

 

142 - Pragas

 

Não ganhei dedicação

Duma criatura humana,

Nem respeito ou gratidão,

Nem um lugar donde mana

Nada de bom, nada de útil

Que me tornará lembrado.

O meu ano é um ano fútil,

Pesadelo bem pesado.

 

Da vida recolho as bagas:

- Todas são pesadas pragas!

 

 

143 - Campeão

 

É divertido marchar,

Disparar à campeão

Do polígono nas linhas,

Explosivos manejar,

Às montanhas desde o chão,

A suar as estopinhas,

Trepar quando inacessíveis,

Descer abismos do mar,

Dar do céu saltos falíveis,

- Diverte e jamais aterra

Fingir que andamos na guerra.

 

Se não nos acontecer

Nenhuma desgraça a sério,

Se ninguém nos enviar

Para uma guerra que houver

Em qualquer nome de Império,

À criança é retornar:

São meninos a granel

Todos brincando ao quartel.

 

Sem contar com o prazer

de exibir o seu vigor:

Teu corpo de enlanguescer

Que à tropa vens contrapor,

Numa máquina o tornando

De jogo e de sedução.

 

- Quando a brincar assim ando,

Que se fine em danação

O estudo que haja em lugar

Do gozo que aqui colher!

 

…Se ninguém nos enviar

Para uma guerra qualquer.

 

 

144 - Infernos

 

Os problemas são eternos,

Os homens são passageiros:

Do filósofo os infernos

São que, ambos sendo parceiros,

Ambos quer salvar inteiros…

- Mas o tempo, o tempo quer-nos?

 

 

145 - Fantasia

 

Com a fantasia invento

A realidade querida

E o que consigo no intento

É que me afasto da vida.

 

É sina estabelecida,

Se afinal olho com tino,

A com que o porvir já lida

Pelo insondável destino.

 

E no mais a fantasia

É um modo de respirar,

De respirar o meu dia

Enquanto tomo lugar.

 

 

146 - Asneiras

 

Deus ponho por mim se, torto,

Somente fracasso arquivo?

- Eu não quero morrer morto,

Eu quero morrer é vivo!

 

Deixa lá teu deus em paz,

Que um homem vale o que faz!

 

Mandas o problema a Deus?!

- Mas tu não mandas nos céus!

 

E Deus é duro de ouvido:

Quer é ver-te bem mexido!

 

 

147 - Réu

 

Escrever é que é pior:

Fatal descontentamento,

De mim próprio desamor,

Condeno-me sem penhor,

Serei réu sem julgamento.

 

E, do intérmino processo,

À porta da liberdade

Perdi de vez meu acesso:

É a minha fatalidade!

 

Quem pudera adivinhar

Da fuga a via sem par!

 

 

148 - Aparte

 

Criar ciência é uma arte

E um homem que lhe dá tudo

Fica preso bem aparte

Para não ser, sobretudo,

 

Tão honesto e terra a terra

Com os mais com que ele lida

Que é de paz, nunca de guerra,

O convite a que convida!

 

Já que então, nunca entendido,

Dos mais será preterido.

 

 

149 - Incerto

 

Num Universo que é incerto

Aquilo de que preciso

Não são certezas de experto,

É uma lei para o que viso.

 

Ver que o mundo faz sentido

E que faço parte dele,

Que, ao agir nele, o que lido

Nos cobre da mesma pele.

 

É uma crença o que me impele,

Mas irá contar é o acto:

Ele faz que me revele,

Nunca a explicação que acato.

 

 

150 - Formas

 

Aquilo que a gente crê

E aquilo que julga crer

São duas formas de fé

Que usam diferentes ser.

 

Mas quando o comportamento

Duma pessoa é correcto

Suponho a todo o momento

Que de seu crer vem directo.

 

 

151 - Fadas

 

Começamos por dizer

Deus é isto, Deus é aquilo

E ao fim são contos de fadas.

Se a religião se quer

Real e sem mais sigilo,

Desmascarem-lhe as jogadas:

 

Quando falamos de Deus

Nunca sabemos de que é

Que estaremos a falar,

Nem fazemos, como ateus,

A menor ideia até

Do que houver em tal lugar.

 

 

152 - Música

 

O que houver de bom no mundo

Justifica que ele existe:

Mesmo a música mais triste

Fala do gozo profundo

Da vida que lá resiste.

 

É que, bem feitas as contas

E apesar do que é defeito,

Melhor é o mundo que apontas

Que em vez dele o nada a eito.

 

 

153 - Rezar

 

De rezar o efeito,

O fim de rezar,

É reter no peito

E ante meu olhar,

Contra sonhos meus,

- Que não somos Deus!

 

 

154 - Língua

 

Não é um relógio uma língua,

Peça aqui, peça acolá,

Se de nenhuma houver míngua,

Bate horas e o tempo dá.

 

Não é relógio, não é,

Brota da terra, germina,

antes árvore é de pé,

À vida bordando a sina.

 

Como as árvores nascida,

Vamos lá reparar nela,

Como é toda entretecida,

- Então é que a língua é bela.

 

 

155 - Ritmo

 

Tem seu ritmo cada voz

E com as mais se combina:

Não é sinfonia a sós

Nosso Universo o que afina.

 

Nossa pobre poesia

Não pode ser senão eco,

Desta infinda sinfonia

Ramo ressequido e peco.

 

Porém, quando a badalada

De alma me toca no ouvido,

Vibro como uma alvorada

Por um sino percutido.

 

Mas não é uma imitação,

Não tolero o servilismo:

A nossa reprodução

Tem sempre um toque de abismo.

 

O poeta é o instrumento

Que à nota dá, musical,

Seu timbre de sentimento

Que é dele próprio o fanal.

 

 

156 - Trilho

 

Vamos lutar com coragem,

Com o ardor da mocidade,

Contra a inércia da viagem:

Nenhum trilho persuade

Quando é mera aprendizagem

Das pegadas doutra idade.

 

 

157 - Enquanto

 

Quando pensamos na morte,

No que então se passará,

Lá projectamos, à sorte,

O que há do lado de cá:

- Não temos outros motivos

Além dos de enquanto vivos.

 

 

158 - Desdém

 

Após a morte de alguém

Pouco a imagem sobrevive,

Como um deus antigo tem

As ofensas do desdém

De quem, descrente, hoje vive.

 

 

159 - Incapaz

 

A velhice vai tornar

Incapaz de empreender,

Porém não de desejar.

Só no extremo é que quenquer

Há-de a tal renunciar,

Como antes teve de ser

À vontade de actuar.

 

Descidos os três degraus,

No barco sem já ter remos,

Saltámos todos os vaus

E, a nós, só sobrevivemos.

 

 

160 - Antanho

 

Quanto outrem me vim tornando

Não me aflijo nem lamento:

O de antanho morreu quando

Trespassou do tempo o vento.

 

Já nem mora aqui jamais

Para lamentos que tais.

 

 

161 - Ligação

 

À vida nosso amor é

Uma velha ligação

Por hábito ali de pé,

Que outra nem quer solução.

 

A força desta vigência

Reside na permanência.

 

A morte é que vem romper

O laço que nos invade

E vai curar em quenquer

O vezo à imortalidade.

 

E mesmo assim, mesmo assim,

Quem jura que será o fim?

 

 

162 - Premissa

 

O erro em que acreditamos,

Teimosos, de boa-fé,

Vem do engano em que enganámos

A premissa posta em pé.

 

Quantas letras que não lê

Na palavra distraída

A vista que tudo vê

Se afinal foi prevenida!

 

 

163 - Título

 

Um título que é cotado

No mercado dividido,

Sobe quando é procurado,

Baixa quando oferecido.

 

Uma situação mundana

Não é criada de vez,

Como um império, dimana

De recriar o que a fez.

 

Não se operou no começo

Deste mundo a criação,

É todo o dia que a meço,

Nunca termina a função.

 

 

164 - Desdenhamos

 

Desdenhamos de bom grado

Dum objectivo que não

Atingimos lado a lado

Ou que nos caiu da mão.

 

Mas viramos logo atrás,

Como a raposa das uvas,

Se sentimos que é capaz

Da haver uns pingos de chuvas.

 

- Tanto a sede não se estanca

Com ruídos de garganta!

 

 

165 - Ruínas

 

No mundo tudo perece,

Mas um tipo de ruínas

Se destrói mais e fenece

Sem vestígios nas ravinas:

 

- Quem quer recordar o evento

Que foi qualquer sofrimento?

 

 

166 - Três

 

Três coisas, se as não revele

Saber com saberes plenos,

Um homem matam de perto:

O que é de mais para ele,

Para ele o que é de menos

E o que para ele é certo.

 

 

167 - Floresta

 

A floresta é comunhão,

São também contradições,

Enlaçamentos no chão,

Raízes pelos mouchões

E ramagens pelo ar…

 

- Somos isto, se calhar!

 

 

168 - Fósforo

 

Ser o fósforo minúsculo

A inflamar qualquer floresta

De enganos! Ah, falta o músculo

De atear o que não presta!…

 

Mais importa é que a centelha

Chispe a fúria que me espelha.

 

 

169 - Alma

 

Que alma habita esta cidade

Amontoada de gente?

Razões de viver qual há-de

A concha vazia, à frente,

 

Em meio à monotonia,

Encher do deslumbramento

Com que a vida principia,

Milagre a cada momento?

 

 

170 - Alumbra

 

Lentamente vou subindo,

Cada garganta me alumbra,

Sempre em frente (mas que lindo!),

Buscando o que me deslumbra…

 

Lentamente na subida

Lá vou eu trepando a vida.

 

 

171 - Malefício

 

Se um país que é vencedor

Não fora contra a pobreza

Na luta tão lutador

Tal da guerra na braveza

 

Contra qualquer tirania,

Então todo o sacrifício

Fora em vão e qualquer dia

Incorre no malefício:

 

- A liberdade é vanglória

E moribunda, a vitória.

 

 

!72 - Democracia

 

A ser a democracia

Continua o menos mau

Dos sistemas, hoje em dia,

De um povo passar a vau

As cachoeiras que havia

A vida de pôr-lhe em frente,

Até ter em terra assente

Os seus pés de romaria.

 

 

173 - Bico

 

Nunca a trabalhar

Ninguém ficou rico,

A trapacear

É que molha o bico.

 

Este original

Pecado depois

O mundo em geral

É que corta em dois.

 

E com um salpico

A sujeira encobre:

À direita, o rico;

Para a esquerda, o pobre.

 

 

174 - Juventude

 

Cada juventude

A sua verdade,

Seu código à mão,

A sua virtude,

Sua identidade…

- E a desilusão!

 

 

175 - Coragem

 

Coragem é a teimosia

De se erguer dia após dia

E de em cada qual fazer

Tudo o que a fazer houver

E de continuar quando

Tudo nos andar negando

E de empurrar para a frente

Mesmo quando tudo tente

Deter-nos a caminhada…

 

- E então ganha-se a jornada!

 

 

176 - Prato

 

Quanto mais pequeno o acato

Maior vai ser o meu ganho:

Limparemos sempre o prato,

Seja qual for o tamanho.

 

Quanto mais o mundo come,

Mais lhe aumenta a vã gordura:

Não morreremos de forme,

Morreremos de fartura!

 

Não apenas cada qual,

Que o destino é traiçoeiro:

- Hoje quem sofre do mal

É de facto o mundo inteiro.

  

 

177 - Triângulo

 

Todo o triângulo é errado,

Pois, mesmo o mais regular,

Será, no fundo, um quadrado

Por sua vez circular.

 

Assim Deus é uno e trino

E o quarto lado, o de cá,

Se em nada fora divino

Nem sequer existirá.

 

E os quatro, por sua vez,

Se interligam de tal modo

Que o quadrado nunca vês,

Só o círculo do todo.

 

E não digas que a razão

Afinal descobriria,

Neste chão que não tem chão,

O teu chão de cada dia.

 

 

178 - Dobrado

 

Aquele que se consola

Com a voz do lisonjeiro

Em dobrado erro se atola:

Do difícil no sendeiro,

 

Trai a fé do que, primeiro,

Do que vai sendo se evola

E depois, por derradeiro,

A sinceridade imola

 

À vaga futilidade

De que envenena a existência.

E tudo é leviandade

Em troca de consciência.

 

 

179 - Espectadores

 

Época de grandes feitos

Pessoalmente não vividos,

Espectadores atreitos

Aos trilhos doutrem corridos,

 

Vivemos sempre vexados

Do anónimo desempenho,

Querendo ser demarcados

Por eventos de algum cenho.

 

Assim nos justificamos

De não ter identidade

Até que, enfim, resistamos

Da suspeita aos negros ramos

De nossa mediocridade.

 

 

180 - Areias

 

Paz onde não mora risco,

Não fomenta entusiasmo,

É de areias um aprisco

Onde com nada me pasmo.

 

Parecerá inofensivo

Mas submerge um povo á beira.

Da cultura fatal crivo,

Civilizações peneira

E afunda no seu arquivo

Mesmo a Humanidade inteira.

 

 

181 - Mesquinhas

 

Em circunstâncias mesquinhas

Que é feito dos homens grandes?

Se as invejas são rainhas,

Burocracias comandes,

Onde tua alma adivinhas?

 

Que talento há prosperado

Com cem anos de enterrado?

 

 

182 - Elástico

 

Não ages, não ages, não,

apenas forças os factos,

Medes de elástico o chão,

Crês que tens metros exactos,

Mas só o metro esticas pleno

Pela extrema do terreno.

 

No fim, toda a exactidão

É exactamente ilusão.

 

 

183 - Pobre

 

O pobre é casa arrumada,

Nunca pobre em construção,

Barraca de vez plantada

Definitiva no chão.

 

Miséria não é sustento

Escasso em vida espremida,

É bem mais o sentimento

Do passageiro da vida:

 

Quem marcha vai vida fora,

Cobre amanhãs sem detença.

O pobre não vai embora:

Eis a grande diferença.

 

 

184 - Mito

 

O mito não pode ser

Nunca uma excentricidade,

Mas difícil raridade:

A insociabilidade

Que na virtude há-de haver

Para o que dele dimana

Ter, num sentido qualquer,

Qualquer qualidade humana.

 

 

185 - Tristeza

 

Toda a tristeza é medonha

Enquanto se não descobre

Quanto à tristeza disponha:

- A alegria que recobre,

Comprimida, quanto sobre

Daquilo que em vão se sonha.

 

 

186 - Empurrão

 

Quem me dá meu empurrão

Para crescer o tal palmo

Que só nós temos à mão

Para que, dum tamanho almo,

Acresça nova medida

À estatura recebida?

 

 

187 - Peso

 

Se alguém, por mais que procure,

Não encontra peso à vida,

Não há mezinha que o cure,

É um potencial suicida.

 

É, tarde ou cedo, o vazio

(Que na angústia o vai lançar

Do monótono cotio)

O que o faz saltar o algar.

 

A imaginação que peca

Foi ao dar sentido à vida,

De recursos não é seca

Ao lhe pôr termo em seguida.

 

 

188 - Aparência

 

Das coisas a casca

Mais do que o miolo

Eis onde se atasca

Meu sonho e consolo.

 

Pois desta evidência

Vem-me o desencanto:

- Por que é que a aparência

Me preocupa tanto?

 

 

189 - Intensidade

 

A intensidade da fé

É a maior força do mundo.

Tão mais perigosa é

Quando dela me fecundo:

 

São velhas queimadas vivas,

Hereges e pecadores,

Torturas que nunca esquivas,

Mortos de ignotos horrores…

 

Só por se não conformarem

A um credo particular.

Às bruxas, quando as queimarem,

Quem não crê talhar o azar?

 

 

190 - Abuso

 

Sempre a mulher colabora

Num abuso cometido

Contra ela, a toda a hora,

Tal se fora um bem querido.

 

Se te houverem ensinado

A acreditar que és um lixo

Não esperas, degradado,

Senão um trato de bicho.

 

Para não ser mais refém,

Requerer trato decente,

Qualquer pessoa, pois, tem

De reconhecer-se gente.

 

 

191 - Origem

 

Qualquer dos povos do mundo

Alimenta esta certeza:

- A origem divina, ao fundo,

Da raiz de que se preza.

 

Para aumentar o tamanho

Que provém do deus que o fez,

Aos mais recusa tal ganho

Que ele só terá de vez.

 

Nesta reciprocidade

Que nos envenena a terra

Chocamos, idade a idade,

As bombas de toda a guerra.

 

 

192 - Génio

 

O génio ocidental

Implica o conhecimento,

Criação espiritual

Antes da acção material,

Dando-lhe a rota, o momento.

 

Mudar o mundo não é

De homem deveras que exista.

O que um homem põe de pé

Não é coisa que se vê:

- É da mente o que conquista.

 

 

193 - Estrangeira

 

Só, nesta terra estrangeira,

Acocorado na moita,

De ser besta-fera à beira,

Nenhuma fada me acoita.

 

Portanto, aqui, de inimigos

De toda a espécie cercado,

Não sou vida, sou perigos

Que em mim haja engatilhado.

 

 

194 - Patriotismo

 

Patriotismo não é

De frenética emoção

Curta manifestação,

Mas dedicação tranquila

Que, firme, vai pôr de pé

O rumo a que se emparceira

De vez quanto se perfila

Durante uma vida inteira.

 

 

195 - Optimista

 

O pessimista acredita

Que o mau acontecimento

No permanente radica

Dum perversor elemento

E que o bom, pelo contrário,

Provém do que é temporário.

 

Um optimista, o falhanço

A uma causa transitória

Atribui, para descanso,

E, ao invés, uma vitória,

Acredita-a resultante

Sempre dum factor constante.

 

O pessimista permite

Que qualquer desilusão

Num campo se não limite,

Vai-lhe invadir todo o chão.

Por seu lado, um optimista

Não deixa alargar-lhe a lista.

 

Quando as coisas correm mal,

O pessimista se culpa.

Um optimista o sinal

Logo verá que o desculpa:

Atribui tudo ao acaso

E a estratégia troca ao caso.

 

O pensamento que nada

Do que fizer é importante

Veda ao pessimista a entrada

Que permite o passo adiante.

Mas nunca a desilusão

Tolhe a um optimista a mão.

 

E felizmente, por fim,

Os hábitos arraigados

Com vontade forte, enfim,

Podem ser ultrapassados.

E um pessimista convicto

Pode o inverso ter por fito.

 

Encararás teus fracassos

Como mero resultado

Da estratégia de teus passos,

Não dum carácter errado:

Não te sentindo impotente

Tomas rumo diferente.

Pessoas que se imaginam

Vida fora a triunfar

Com resultados atinam

Melhores que as que falhar

Esperam, que o pensamento

Também nos gera o momento.

 

Se teu lado pessimista

Lamenta que ele não ligue,

Pergunta o que um optimista

Faria para que obrigue

O teu convidado a olhar-te:

Fá-lo então por toda a parte!

 

Recorda os ganhos de antanho,

Que as coisas boas volvidas

São nas aras o teu anho,

Penhor de vindoiras vidas:

São fruto de teu esforço,

Não de acasos um escorço.

 

Orgulha-te da vitória

Que em teu empenho se arrima,

Não por culto de vanglória,

Mas por criar auto-estima:

Basta melhorar a imagem,

Que retomas a viagem.

 

A esperança requer força,

A da vontade e a dos meios,

Para atingir a quanto orça

O sonho em todos os veios:

Escolhe avisadamente

E então, sim, arranca em frente!

 

Subdivide uma utopia

Dela nas metas pequenas,

Não vás sucumbir na via

Ao tamanho das arenas:

Da tarefa a enormidade

Teu entrave ser não há-de.

 

Por cada sonho intermédio

Que se cumprir há progresso.

De entusiasmo então nédio,

Vira a energia do avesso

Quanto estiver para vir:

É o optimista a surgir!

 

 

196 - Ecologismo

 

Até tocar na carteira

É precioso o ecologismo.

Até tirar a cadeira

Confortável que se abeira

De sentar meu comodismo.

 

Difícil a coerência

Há-de ser quão mais sentido

Em nós toma a consciência

Do sacrifício pedido.

 

 

197 - Mal

 

Sempre me incomoda a ideia

Que um mal que houve no passado

Seja a causa que permeia

O presente em todo o lado.

 

Atribuir culpa ao passado

Mantém inerte a parada,

De vítima a vestir fado,

Não tendo de fazer nada,

 

Quando a saúde viria

De assumirmos cada dia.

 

 

198 - Dispensa

 

A violência que sofri

De traumas, desilusões,

Me dispensa do que agi,

Perdoa-me meus senões.

 

Desresponsabilizado

Serei do mal que farei

A todos os mais, dum lado,

E a mim, doutro, ao que me dei…

 

- Eis como se transmudou

Em atadura seguida

Asa feita para o voo,

Para voar uma vida.

 

 

199 - Escolha

 

Mesmo com passado triste

Cada qual tem sua escolha.

A lei de tudo o que existe

É que o problema que o colha

Terá de se ultrapassar,

Mas não de mãos a abanar.

 

Como me atrevo a culpar

A quem a infelicidade

Vitima às vezes sem par?

É que em verdade, em verdade,

Há uma grande diferença

De culpar a ter presença:

 

- Que a vítima à conclusão

Chegue afinal de que pode

Recuperar da tensão

E a coragem que lhe acode

Lhe dê fé de prosseguir

Talhando a pulso o porvir!

 

 

200 - Desculpas

 

Ninguém é reconhecido

Por vontade própria ter

Nem responsabilidade.

Somos a sociedade

Das desculpas do vivido

E da vítima esmoler.

 

Quem de vítima se faz

Tira o bilhete gratuito

Para eterna absolvição

De responsável. E é vão

O que o destino lhe traz

Com a prova do fortuito.

 

Detestaria pensar

- Dirá sempre na resposta -

Que cheguei a este ponto

Por portar-me como um tonto,

Por culpa de haver lugar

A alguma coisa ali posta

 

Que dependesse, por fim,

Apenas e só de mim!

 

 

201 - Gestos

 

Manter relações saudáveis,

Cultivar próprio respeito

Começa nos creditáveis

Gestos de tomar-te a peito:

- É decidir escolher

A melhor via que houver!

  

 

202 - Responsáveis

 

Termo-nos por responsáveis

Por destruir nossas vidas

São as difíceis medidas

E, contudo, indispensáveis,

Para nos capacitarmos

De vez o rumo a alterarmos.

 

Não é que de forma alguma

Quanto então nos acontece

Do que fizemos e esquece

Seja o escorrer da espuma,

Mas que o grande desafio

Vem da escolha onde me enfio.

 

Podem fornecer tijolos

E aço de má qualidade

Que o empreiteiro é que os há-de

Empregar, há-de dispô-los:

Tudo vem do que escolher

De alternativas que houver.

 

Quanto mais tempo passamos

Os outros sempre a inculpar

De a vida andar devagar,

Mais tempo há que então percamos:

- É que, durante o intervalo,

Podíamos remediá-lo.

 

 

203 - Estimativa

 

A vida real requer

Decisões com base em dados

Insuficientes que houver:

- A estimativa há-de ser

O melhor de teus recados.

 

E depois, a estimativa

Não tem um metro que a meça:

- A cabeça criativa

Pensa por sua cabeça!

 

 

204 - Lógico

 

Quando falo, penso.

E, se penso, é ralo

Que o pensar que adenso

Não seja o que falo.

 

Quando penso, falo,

quando falo, sinto:

O lógico abalo

É que, ao falar, minto.

 

O conceito quer o termo;

O juízo, a proposição:

Donde inferimos, ao termo,

Dentro e fora o que é a noção.

 

Inferimos de imediato

No discurso dedutivo;

Induzir jamais é exacto,

Mas é o mediato que é vivo.

 

Um discurso persuade

Conforme a argumentação:

É do que em mim ela agrade

Que lhe digo sim ou não.

 

Retórica e dialéctica

São caminhos do argumento,

A precisão e a poética

Cruzam-no de invento a invento.

 

Nestes passos hesitantes,

Mal cruzados e tremidos

É que somos viandantes,

Rumos pisando e sentidos.

 

 

205 - Conflito

 

O conflito é criativo

E quem fugir-lhe procura

Não sabe nunca ser vivo:

O conflito não se cura!

 

Viver é viver à espera:

- O conflito se supera!

 

 

206 - Mudança

 

Verifica-se a mudança

Não de acordo com o plano,

Nem a intervenção a alcança,

Nem a intenção lhe traz dano…

 

- Bem no fundo, bem no fundo,

Passa por nós outro mundo.

 

 

207 - Muda

 

Se procuras a mudança

Vigorosa e definida,

Impedes, na contradança,

Toda a muda que se envida.

 

A mudança que aguardamos,

De tão profunda e real,

Acontece, por sinal,

Sem que nos apercebamos.

 

Se me mantiver atento,

Resoluto, imaginoso,

A mudança, lento e lento,

Por trás vem do que lhe coso.

 

 

208 - Inverte

 

Tudo aquilo que, por vezes,

Se afigura perigoso,

Ponto de vista mortal,

Tanto sói trazer reveses

Ao que na vida dá gozo,

Inverte logo o sinal

Se lhe alargo a perspectiva:

Se de mais longe encarado,

Traz-me uma benesse esquiva,

É doutro mundo  um traslado.

 

Perigoso ou promissor,

Tudo afinal dependeu

De ser mais conservador

Ou de assaltar mais o céu.

 

 

Embora haja o risco eterno

De em vez do céu ser o inferno.

 

 

209 - Espontaneidade

 

Minha criança interior

É minha espontaneidade,

Minha criatividade.

Para aceder-lhe ao fulgor

Reivindico, não me esquivo

À vulnerabilidade.

Irei deambular vivo,

Desorientado e perdido,

Deslocado ao abandono…

 

Deste espaço serei dono

Nos acasos do sentido.

 

 

210 - Escorço

 

Quanto maior for o esforço

Para agir descontraído

Mais se revela no escorço

Que inexperto houver agido.

 

Quanto mais adultos ser

Tentamos e mais tentamos,

Mais pueris no que houver

Afinal nos revelamos.

 

Quanto mais dissimular

A minha funda ignorância

Mais evidente o avatar

Dela me prende na infância.

 

 

211 - Ameaça

 

Colocar a informação

Acima da maravilha

Ameaça o adulto que, vão,

Da criança não partilha.

 

Pôr a inteligência acima

Da ignorância que se sabe

É de adulto que sublima

As arcas em que não cabe.

 

Por sobre o divertimento

Acabar por colocar

Vazio entretenimento,

Só dum adulto sem lar!

 

Cuida em ti tua criança,

A natureza inferior,

A emoção que mal te alcança,

Desejo insano, estupor…

E sê terno de verdade

Com esta incapacidade.

 

Sentir-te-ás bem melhor:

Ao ser pequeno, és maior.

 

 

212 - Tudo

 

Tudo aquilo que procuras

Não existe em parte alguma,

Serão sonhos ou loucuras:

Nunca será nada, em suma.

 

Desvia o rosto um instante

Então tudo aquilo que amas

Perdido está doravante

Num labirinto de tramas.

 

Narciso no espelho de água

Dele a imagem vendo em vão,

Despedes-te sempre em mágoa:

É o preço de ter um chão.

 

 

213 - Promessa

 

O narcisismo contém

Nele próprio uma promessa:

Que o sonho que sonho além

E que me trepa à cabeça

Há-de encontrar um processo

De à vida rasgar o acesso.

 

 

214 - Tolerância

 

Se for capaz de encontrar

Dentro em mim a tolerância

Para exigências rivais

De minha alma eu encarar,

De vez reconquisto a infância

Complicada de sinais.

 

Quão mais intrincada a implante

Mais a vida é interessante.

 

 

215 - Separação

 

A separação divide

Duas partes materiais

Que precisavam, na lide,

De divergir de sinais.

 

Demasiado compactados,

É inviável conhecer

De que partes, com que lados,

Os seres são cada ser.

 

A primeva criação,

Tanto a criação do mundo,

Como a do homem em acção,

Separa unindo, no fundo.

 

 

216 - Rédea

 

Um desfecho trágico

Torna uma tragédia,

Por efeito mágico,

Das vidas na rédea.

 

Mesmo de cotio

Pode ser a forma

De encontrar o fio

Para uma outra norma.

 

Será doloroso,

Será destrutivo.

Novo, porém, coso

Ali outro arquivo.

 

Tudo reestruturo

E, na ordem nova,

Fico mais seguro

E a vida se inova.

 

 

217 - Reiterado

 

O que é reprimido acaba

Sempre a ser reiterado

Das formas mais monstruosas:

Da vida o rio desaba

Como a força do relvado

Pelas fendas anfractuosas

 

Do cimento, até da pedra.

E mesmo os mais culturais

Monumentos grandiosos

Se afogam no que ele medra.

Deter tal força, jamais,

Que os veios mais tortuosos

 

Descobrirá para a luz!

- O intento de quem tal tenta

Em derrota se traduz

E só monstros alimenta.

 

 

218 - Repetir

 

Repetir é morte.

Se nos põe a salvo,

No tumulto é um corte,

Deixa o quintal calvo.

 

Atingida a calma

Mortal da cultura,

Surpresa sem alma,

É uma sepultura.

 

Ordem e funcionamento

Tranquilo garantirei.

É o venenoso momento

De inconsciente ser rei:

 

Em nome do bem-estar

Devém insípida a vida

Na aparência tutelar

Da cultura mais subida.

 

 

219 - Fetichista

 

Uma vez que rejeitámos

Nossas forças mais obscuras,

Com isto nós as forçámos

A uma forma fetichista:

Vemos mágicas figuras,

Fascinantes e mortais.

 

E, quando lhes cresce a lista,

És tu que já nem és mais.

 

 

220 - Negligência

 

A sede e a fonte da vida,

Ou acolho o que propõe

Nas fantasias que envida,

Nos desejos que me impõe,

 

Ou sofro da negligência

A que me votei a mim:

Vou num êxtase à eminência

Ou à depressão no fim.

 

Poder de ser criativo

E destrutivo igualmente,

É doce quando convivo,

Agressivo, quando ausente,

 

Em perene incubação

Aqui no íntimo de mim.

Quer eu o queira, quer não,

Ele é meu princípio e fim.

 

 

221 - Aparentam

 

Quem optar pela violência,

Visível controlador,

Óbvia menos a impotência

Demonstra de seu pendor.

 

Quem de vítima o papel

Desempenha habitualmente

Fica incônscio de quanto ele

Controla o algoz que o não sente.

 

É por isto que as questões

De poder são mais difíceis

De abordar do que supões:

- As coisas, tais como as vísseis,

Pese embora o que atormentam,

Nunca são o que aparentam.

 

 

222 - Sintoma

 

Salvar-me não significa

Ir mergulhar no sintoma,

Mas saber o que me explica

E absorver-lhe polpa e goma.

 

O esforço de incorporar

Qualidades depressivas

Da vida no rosto alvar

Texturas lhe dá mais vivas.

 

A frieza, o isolamento,

A escuridão, o vazio,

Passam a ser elemento

Com que teço, fio a fio.

 

Então dor mais alegria

Tudo enchem de fantasia.

 

 

223 - Cólon

 

Se no cólon sinto dores

Devido à minha ansiedade,

Mais que dum órgão as cores

Funcionam no que me invade.

 

De algum modo à consciência

Terá meio de falar

E de revelar a ausência

Que em mim hoje tem lugar.

 

Um órgão, um aparelho

Funciona e tira prazer

Do que faz, sem meu conselho,

Como opera sem eu ver.

 

Então a questão correcta,

Quando ele esteja doente,

É se o prazer, dele meta,

É aquilo que ele então sente,

 

Ou se o que lhe estou fazendo,

A acreditar-me sublime,

É afinal algo tremendo

E que apenas o deprime.

 

Assim é que do que sou

Muito além me acercaria,

Transgredindo no meu voo

As margens da minha via.

 

 

224 - Raízes

 

A doença encontra a causa

Dela em raízes eternas:

É na essência e não na pausa

Que nos vem tolhendo as pernas.

 

Só por ser filho de Adão

Transporto dentro de mim

A ferida e a contusão

Que me levarão ao fim.

 

Pensar, pois, que nosso estado

De ser livre da doença

É natural, adequado,

É sempre ilusória crença.

 

A medicina que tente

Eliminar a ferida

Mais depressa é competente

Em eliminar a vida.

 

 

225 - Feridas

 

Ao acolher as feridas

Que existem dentro de nós

Entro nas mil e uma vidas

De filhos a pais e avós,

Diversas, presas ao cós,

Do que seriam vividas

Se apenas eu me ocupara

Da ferida que não sara.

 

Quando sinto bem por dentro

A doença que me fere,

Não me perco em desatino:

Num templo sagrado eu entro

Que esta missão me confere

- A de atender ao destino.

 

 

226 - Estereofónica

 

A doença é estereofónica:

Toca a tecla dos tecidos

Do corpo em primeira tónica,

Mas os sons que são ouvidos

Operam mais pelo sonho.

Têm um significado

De que nunca ao fim disponho

Porque é mais que ser tratado.

 

Têm uma aura de sagrado:

É tal como se a doença

Me queira a mim ver curado

Em vez de ser eu que a vença.

 

Ela quer-me em união,

Sempre por trás de seu véu,

Com as funduras do chão

Que até penetram no céu.

 

 

227 - Deuses

 

Dos deuses só me aproximo

Através da poesia.

Se a doença for um mimo,

Então só de fantasia

 

Se a medicina munir-se,

Do que são imagens de arte,

É que pode prevenir-se

Para de nós tomar parte.

 

Se apenas quiser curar,

De nós pouco fica a par.

 

 

228 - Magia

 

Quem conhece é só o poeta

Os factos da astronomia

Porque é quem os interpreta

Como sinais de magia.

 

O corpo podem ser factos,

Mas, se alma lhe conferimos,

Temos dos sinais os pactos

Para irmos, irmos, irmos…

 

 

229 - Banho

 

Na casa de banho limpo

Tanto o corpo como o sonho:

É o lugar onde garimpo

De alma uns oiros que suponho.

 

E, se a mantenho asseada,

É que ali anda uma estrada.

 

Se é um recanto duma casa,

Tem também de alma breve asa.

 

Se me lavo e me penteio,

Se me visto, se me pinto,

No perfume em que me enleio,

Sou mais eu que assim me sinto:

- Eu sou mais quando me minto!

 

 

230 - Trabalho

 

A fora como ocupamos

Nossas horas de trabalho,

Lugar para onde olhamos,

Onde é que nós nos sentamos,

Com que meios trabalhamos,

Se é lápis, sovela ou malho,

Introduz a diferença.

 

Não só quanto à eficiência,

Mas à ideia de pertença

Como à imagem de excelência.

 

Que perfil moldo de mim

E que rumo tomarão

Meus projectos que, por fim,

Irão guiar minha mão?

 

 

231 - Rituais

 

Os rituais duma igreja

São tal como quem trabalha:

Tecer alma que se almeja,

Criada ali, malha a malha.

 

Do ponto de vista do imo

O labor é liturgia:

Se de fora é meu arrimo,

Dentro em mim molda outra via.

 

Se ignora que ele é sagrado

Numa secreta faceta,

Estou pondo a mim de lado,

De bem menos me aproveita.

 

 

232 - Calma

 

O comer é comunhão

Que alimenta corpo e alma,

Comida rápida, não,

Que nela não como calma.

 

Quero uma comida rica

Numa refeição completa

E não esta que me fica

Esgotada antes da meta.

 

É com dentadas vorazes

Que recolho informação,

Em vez de apurar as bases

Que da vida o sabor dão.

 

Em lugar de assimilá-la,

Torná-la parte de mim,

Minha vida ando a esbanjá-la,

Morro à fome dela enfim.

 

 

233 - Avessas

 

Informar e conhecer

Andam no mundo às avessas.

Quando a informar-te começas

Logo inundado irás ser

 

De informações relativas

A uma vida saudável,

Mas perdes as noções vivas

De como teu corpo é amável.

 

Ficamos sintonizados

Com todo o canto do globo,

Não de sensatez dotados

Para lidar com o lobo.

 

Os programas académicos

Enchem de psicologia

Os eventos mais polémicos,

Ninguém salva o dia a dia,

 

A era da informação

Não nos traz sabedoria,

Traz antes a negação

Ao matar a fantasia.

 

 

234 - Afastamento

 

Do mundo um afastamento

Deverá ser mais, talvez,

Que de consulta um momento,

Do que um aconselhamento,

Minha vida é olhar de vez:

Não campismo ocasional

Mas em mim montar a tenda

Até que seja normal

Ter em mim minha vivenda.

 

 

235 - Confinado

 

Arranca-me o imo ao espaço

De mim mesmo, confinado,

E minha alma dá-lhe o abraço,

Mais se alimenta um bocado:

- Meu sustento se adivinha

Da fronteira além da linha.

 

 

236 - Letra

 

A história tomada à letra

Perde o senso dos sentidos

Que é o que afinal nos impetra

Que vão fundo em nós medidos.

 

Apenas é nossa telha

Que protege da invernia

A história que nos espelha

Mil rostos de fantasia.

 

Que mais do que mil nós somos

E mais mil iremos ser

Se a ver-nos deveras pomos

Os olhos sobre quenquer.

 

Sobre nós a ideia única

Que a atingir tanto te esforças,

Por mais que simule túnica

É só camisa de forças.

 

 

237 - Fincar

 

Se não criar à incerteza

Lugar no campo da fé,

É um excesso que despreza

Que nela vai fincar pé.

 

Vou sentir-me superior

Com jus a vilipendiar

quem traidor se me antolhar,

Ou cínico irei propor

Olhar de desconfiança:

Ignoro a infidelidade.

Alheia, nunca me alcança,

É doutrem a identidade.

 

Se me vir só positivo,

Doutrem, da vida suspeito;

De minha crença cativo,

Não presto à vida mais preito.

 

De mim tão romantizado,

Escravo da fantasia,

Já da vida desligado,

Só de engano é minha via.

 

 

238 - Marca

 

A fé não provém apenas

Da vida espiritual,

De revelações terrenas

Com marca celestial.

 

Vem também das profundezas,

Deste húmus impessoal

Do que pessoal mais prezas,

que és tu de ti desigual.

 

Vem daquilo que irá ser

O que em ti a ti mais quer.

 

 

239 - Esgarce

 

Tende o sonho a dispersar-se

Na ambição e fanatismo.

Leva a que a mente se esgarce

Da razão sob o disfarce,

Quer no fundamentalismo,

Quer nalgum perfeccionismo.

 

Qualquer alma prisioneira

Ficará daquele humor,

Não encontrará maneira

De as relações que joeira,

Impossíveis, se propor,

De às obsessões ter amor.

 

Para a união ocorrer,

Cada qual mesmo consigo,

Tem o estranho de valer,

Pesar dentro de quenquer:

A ambição fica ao abrigo,

Mais ao sonho então me obrigo.

 

 

240 - Percursos

 

Para as almas, o caminho

Tergiversa, diferente:

Labirinto evanescente

De percursos que adivinho

 

Com um monstro no final;

Odisseia com destino

Para o qual, lento, me inclino,

Às voltas no vendaval…

 

- E ninguém logra prever

E bem menos prevenir

Por onde corre o porvir

Das almas que alguém quiser.

 

 

241 - Gomos

 

Quando somos como somos

E não como gostaríamos,

Luz o mistério nos gomos

Do que na vida espremíamos.

 

Ressuma a vulgaridade

Da vida humana atingida:

Mesmo a espiritualidade

É a vida quando atendida.

 

E outra não temos constante

Senão esta ao ir avante.

 

 

242 - Reprovo

 

Se o esforço duma vida

A erigir um mundo novo

Se ordenar, logo em seguida

É o passado que reprovo,

a recordação da morte.

Mino o apreço do que alcança

Para além da boa sorte,

Nas fronteiras da mudança:

Do eterno perco o recorte,

O destas zonas de mim

Que além moram de meu fim.

 

Minha alma se desenvolve

Com as histórias da História,

Nos vestígios em que envolve

Toda a raiz da memória.

Anda aqui meu trampolim,

Onde me apoio no salto,

E o pico além viso assim

A partir deste planalto.

 

 

243 - Sombras

 

Amam as almas o antigo,

Sombras do que já não é,

E aprendem pondo-o de pé,

Da História vêem o umbigo.

 

Dele retomam a vida

Na estima pelos costumes,

No monumento erigido,

De antanho até nos ciúmes.

 

Então é que no presente

Viverei no eterno assente.

 

 

244 - Função

 

Se uma coisa definir

Apenas pela função,

A emoção vai-se esvair

Ao ver que é mera ilusão.

 

Irei desfazer-me dela

Sem funeral nem capela.

 

É depois destas asneiras

Que me vejo rodeado,

Não de altares, de lixeiras

Onde nada há de sagrado.

 

 

245 - Deterioração

 

A deterioração

É o ciclo do nascimento,

Da morte e da redenção.

 

O que aqui nos vem dizer

O fim de qualquer evento

É que temos de morrer.

 

Ninguém de tal indo isento,

Importa bem o aprender,

Em termos tais de a contento

Sabermos com tal viver.

 

 

246 - Vertente

 

Quando qualquer coisa morre

Na vertente da função,

A ressuscitá-la ocorre

Da história a recordação.

 

Decoramos nossas casas

Com belas antiguidades

Como forma de dar asas

Às almas que vêm do hades.

 

Mundo que denegue a morte

Poderá ter de assistir

Da vitalidade à sorte

De murchar sem ter porvir.

 

O lixo que produzimos

Tanto oprime e é demoníaco

Que já nem o conseguimos

Enterrar, de genesíaco:

 

Envenena tanto o mundo,

Mais e mais eficiente,

Por fabricarmos, no fundo,

Coisas para eternamente

 

Perdurarem, imortais,

A morrer não destinadas.

Finda a utilidade, mais

São no lixo entronizadas.

 

Quanto mais negar a morte

Mais o mundo há-de vivê-la:

Quando à porta a não suporte

Mais lhe entra pela janela.

 

 

247 - Dispensáveis

 

Na reforma educativa

As artes são dispensáveis,

Só técnicas não se arquiva.

Mas sem técnica há quem viva…

E sem belo há inumeráveis

Vivendo uma vida esquiva

A desviar-se, furtiva,

Só de monstros execráveis!

 

É reforma educativa

Cultivar mais inviáveis

Como ideal, definitiva,

Tal se foram desejáveis?

 

 

248 - Dilecto

 

É um desejo e é um afecto

A Beleza no prazer

Que nos oferta dilecto.

 

Se calhar exteriormente

Nada vai acontecer,

Como é deserto evidente:

 

Não irei comprar o anel

Que atraiu minha atenção,

Fotografar o dossel

 

Da paisagem deslumbrante…

- Mas dei-me a alimentação

E minha alma segue avante!

 

 

249 - Recados

 

Tenho de expor-me à beleza

Mesmo que isto signifique

Que a razão que ela despreza

Pelo caminho me fique.

 

Podemos ser obrigados

A desprezar os projectos

Que apoiam com mais recados

Modernos sonhos secretos.

 

Cada qual e todos juntos

Vamos ter de, se calhar,

Pôr de lado tais defuntos

Para as almas preservar.

 

 

250 - Perspectiva

 

Em perspectiva global

É o grande acontecimento

O que me importa, afinal.

 

Em alma, porém, o evento

É o ínfimo pormenor,

O mais banal que acalento,

Que influência tem maior,

Se com esmero e talento

A desempenhá-lo for.

 

Influirá mais, muito mais,

Mais do que a insignificância

Deixava supor jamais

Por não ter qualquer substância.

 

 

251 - Sagrado

 

Quanto mais fundas ideias

Uma coisa nos suscita

E mais complexas as teias

De reflexões que credita,

 

Mais completa, mais total,

Há-de ser, por outro lado,

A revelação final

De seu carácter sagrado.

 

Alma da religião

É descobrir, natural,

Que dela as coisas terão

A presença principal,

 

Pois quanto mais importante

Uma coisa se antolhar

Mais a preservo, distante,

De quem a venha estragar.

 

E não para a retirar

Da sã participação,

Antes a dar-lhe lugar:

- Isto é que é religião.

 

 

252 - Significados

 

A imaginação esconde

Tanto quanto nos revela

Os significados onde

O dedo aponta uma estrela.

 

Para um sonho me afectar

Não se requer compreendê-lo

Nem porventura explorar

Do significado o apelo.

 

Basta-me ficar-lhe atento,

Que autonomia e mistério

Me tomarão, lento e lento,

Da saúde sob o império.

 

 

253 - Segurança

 

A segurança, hoje em dia,

Do emprego não é constante

Desde que se principia

À reforma, lá adiante.

 

É a mera capacidade

De encontrarmos, lida a lida,

Trabalho, mas de verdade,

Ao longo de toda a vida.

 

Aquilo com que sossego

É o caminho mais fiável:

Solução não é um emprego,

Mas antes ser empregável.

 

 

254 - Escapes

 

O romance policial,

Como as palavras cruzadas,

Um chocolate banal,

São tal qual nas auto-estradas

Escapes de segurança

Onde respiramos fundo,

Algum conforto se alcança

 

- E olhamos de frente o mundo.

 

 

255 - Promessa

 

A promessa por cumprir

A nós próprios feita pode

Tão pequena a quem a vir

Parecer que o nem sacode.

 

O mesmo, porém, diria

Do incómodo a vista alheia:

- É que ela não sentiria

Nos olhos meu grão de areia.

 

 

256 - Vistas

 

Corro com a Terra, o Sol,

A Galáxia, o Universo,

Mas quando um membro em mim bole

Só tal movimento verso!

 

Milhões de milhas por hora…

E uns centímetros apenas

É o que a atenção me devora:

Que vistas temos pequenas!

 

 

257 - Neandertal

 

Homens de Neandertal

Abolem ciência, factos,

Filosofia: o real…

- Mas deles não há sinal

Quando celebrar meus pactos

E a razão for meu fanal.

 

 

258 - Imprensa

 

A imprensa caminha

Num espaço estreito

A cortar a eito

Sarmentos da vinha,

Entre a afirmação

Que o facto releva

E a difamação

Que o mergulha em treva.

 

 

259 - Rosto

 

A guerra mudou de rosto,

Mas rosto a guerra não tem.

Quem a tem mudou de posto,

Que o inimigo é que, aposto,

De rosto mudou e bem!

 

 

260 - Apego

 

Um adepto não é um cego,

Só quer ou só sabe ver

A metade dum apego,

Sem inteiro o amor colher.

 

O adepto é sempre um zarolho

E tem aquele ar altivo

De quem vê só com um olho

A provocar quanto é vivo.

 

 

261 - Racismo

 

Para amar ou desprezar

Como tratamos o cão,

O racismo tem lugar,

Ao espelho sem se olhar:

De si nunca tem visão

Nem donde anda a se atolar.

 

Pisará firme no chão

Sem ver quem irá pisar.

  

 

262 - Assassina

 

A estupidez assassina

Dos homens precisa desta

Doce cura que se obstina

Em repor, em toda a fresta,

 

Tudo no rumo essencial

De saber inteira a vida:

Da mulher é o principal

Mentor de quanto decida.

 

Presença quente e tranquila,

Ela é que as eras destila.

 

 

263 - Queixume

 

Deste século o perfume

Não é o dos novos planetas

Mas dos povos o queixume

Desprezados no azedume

das rotas as mais secretas.

 

Quem melhor o representa

Não é nenhum marciano,

Mas a cor amarelenta

De povos sem voz que tenta

Nosso olhar dizer de engano.

 

Mas um homem descarnado

E com olhar cintilante

É a minha chaga do lado,

Do mundo é ferida hiante.

 

O nosso melhor poema

Tem nele seu triste emblema.

 

 

264 - Falcões

 

Eu creio que nós saltamos

Dos corpos já inúteis nossos,

De vez voo levantamos,

Falcões libertos dos fossos.

 

Tem a morte uma razão:

- Soltar-nos de vez do chão.

 

 

265 - Corrente

 

A verdade é uma corrente

Que parte do que nos dizem

(E que ao fim sempre nos mente),

Não das coisas que condizem.

 

Por mais que seja invisível

E que estas se vejam bem,

Sempre aquilo é que é credível,

Nas coisas não crê ninguém.

 

O mundo não é enganado,

Tem é falta de critério,

Joga no critério errado,

Depois diz: “mas que mistério!”

 

 

266 - Poço

 

Podemos ter desfiado

Quaisquer ideias do mundo

E a verdade ter ficado

No negro poço mais fundo.

 

Quando menos esperamos

É de fora que interfere,

O espinho pica nos ramos,

Para sempre lhes adere.

 

A verdade que se preza

Vem sempre assim de surpresa.

 

 

267 - Arruína

 

Neste mundo onde tudo se desgasta,

Onde tudo perece, algo se arruína,

Se destrói mais completo e mais se afasta

Que tudo o mais que à negação se inclina.

 

O tempo é o alquimista cuja frágua

A nada, a nada isto reduz: a mágoa.

 

 

268 - Nomes

 

Para que pareçam novas

As coisas que são antigas

E mesmo as novas que inovas,

Ou nomes novos abrigas

Ou tudo quanto renovas

Cai no abismo das intrigas:

 

Segue o novo como velho,

A manquejar do artelho,

E a mensagem por que brigas

Perde-se entre as velhas ligas,

Ninguém mais te ouve o conselho.

O novo quer novo fato

Ou nem sequer entra em acto.

 

 

269 - Boxe

 

Na guerra, os da rectaguarda

Julgam que ela é um desafio

De boxe, mas gigantesco.

Assistem na salvaguarda

Da bancada, em desfastio,

Pelos jornais, como um fresco.

 

Mas a guerra é uma doença,

Curada aqui, brota além.

Hoje um libertado pensa

Que amanhã tudo está bem

E uma bala sem pertença

Fura-lhe a razão que tem.

 

Não será uma obra-prima

Cuja perda lamentamos

Mas a da aldeia que encima,

Planta sem raiz nem ramos.

 

A guerra é uma epidemia

E a cura é que desafia.

 

Jamais é um combate, não:

É saber se temos chão.

 

 

270 - Retorno

 

É o retorno às profundezas

Onde o real que existiu

Jaz de nós desconhecido

Que as artes que mais tu prezas

Te vão, de fio a pavio,

Seguir, salvando-o do olvido.

 

No real que recuperas

Voas além das esferas.

 

 

271 - Ondulação

 

Pela cultura e moda, a mesma ondulação

Propaga a todo o espaço igual dizer, pensar…

Também do tempo ao longo, o enorme vagalhão

Levanta das profundas deste imenso mar

 

Tristezas e bravuras e as mesmas manias

Nas gerações que vivem sobrepostas juntas.

Num corte praticado, em comum lá terias

Os avós mais os netos unindo o que assuntas.

 

Os confrontos terão, como pano de fundo,

Estas identidades que igual dão um mundo.

 

 

272 - Negativos

 

Sentimentos negativos

Não deveremos deixar

que, em nossa vida cativos,

A venham a dominar.

Outras vai haver opções

Que, em lugar de negações,

As virão a ultrapassar.

 

Levar as coisas a bem

Muda a sorte que se tem.

 

 

273 - Equilibrista

 

Um equilibrista faz

O que não fazem milhões.

Que é que aos perigos o traz?

Encorajar o incapaz,

Trocar-lhe em fibra os senões.

 

Quando ele no espaço avança,

Acorda no peito um grito

Que nos desperta a esperança

De a porta abrir do infinito.

 

 

274 - Tarde

 

Será sempre um pouco tarde

Quando vemos que não somos

Nem imortais, sem alarde,

Nem novos para dar pomos.

Será sempre um pouco tarde…

 

E quem acordar mais cedo

Ou anda a rezar o credo

Ou perdeu de vez o medo.

Destes, de qualquer maneira,

É que a verdade anda à beira.

 

 

275 - Rumos

 

Para os jovens, ideais,

Mesmo falsos, bom é tê-los,

Mais que desprovidos vê-los

de quaisquer rumos que tais.

 

Desde que haja um rumo, a vida

Pode acabar por vingar

Contornando com vagar

Qualquer trilha mal medida.

 

 

276 - Regras

 

Como é difícil viver

Seguindo regras que os mais

Não compreendem sequer

Nem seguirão, pois, jamais!

 

E, todavia, na prática

Jamais há total acordo

Entre da vida a gramática

E este pó do chão que mordo.

 

 

277 - Mercado

 

O mercado mata mais

O fogo à paixão artística

Do que outras coisas que tais,

Não da moeda na mística,

Do seguro nos varais.

 

No mundo da segurança

A maioria descansa:

Aqui é que compra e vende,

Jogando a porta na cara

Ao desafio que ofende

Prometendo a jóia rara.

 

 

278 - Organizado

 

Demasiado organizado,

O mundo em que viveremos

Pode ser tão controlado

Que já nem emoções temos.

 

Não seremos, como dantes,

Nunca mais os viajantes.

 

 

279 - Pradarias

 

Corro a vida atravessando

Pradarias de Verão,

A rumar em direcção

Ao fim de quanto demando.

 

Corro a vida pelo chão

De todo o quê todo o quando.

 

 

280 - Demasia

 

Racional em demasia,

O mundo em breve deixou

De confiar na magia

Tal qual como deveria

Se não quer morrer no voo.

 

A razão reparte o todo.

Depois, em cada fatia,

Ninguém mais encontra o modo

De seguir atrás do engodo

Que além-mar o levaria.

 

Ninguém mais se encontra inteiro.

- Como há-de ser caminheiro?

 

 

281 - Minoria

 

Sempre nas ideias novas

Fora a parca minoria

E nunca a democracia

Que iluminara de provas

Os passos da maioria.

 

Este é o ponto vulnerável.

Da minoria o poder,

Contudo, como conter,

Sem o controlo fiável

que a maioria lhe der?

 

Viver na contradição,

Entre os extremos num ponto,

É o sendeiro aonde aponto

Um rumo de solução,

Num ou noutro a apor desconto.

 

 

282 - Atracção

 

Dos desertos e planaltos

Compreendi a atracção

quando de meus sonhos faltos

Vislumbrei a pequenez

Comparando com o chão

Em que começo outra vez.

Desatei de novo a ser,

Dali vou mesmo nascer.

  

 

283 - Certezas

 

Precisamos de certezas,

Mesmo a da morte é uma ajuda.

As doenças por que rezas

São do ignoto as incertezas,

Teu grito por quem acuda.

 

Um espírito sadio

Marca o terreno bravio

 

Como a fera da floresta

Quando toma posse desta.

 

 

284 - Bala

 

Eis na câmara uma bala.

Puxas o gatilho e sai

Pelo cano e, quando abala,

Mata um homem que se esvai.

 

Quem é, pois, o assassino:

- A espingarda, ou antes quem

Puxa o gatilho sem tino,

Ou quem armas vende a alguém?

 

 

285 - Vime

 

Quem me dera ser o vime

Que pressente o temporal

Na aragem que se lhe arrime,

Antes de qualquer sinal!

 

Quem me dera ser o vime!

A fraqueza que lhe assiste

Entre tudo é o mais sublime

De quanto ao tufão resiste.

 

 

286 - Espigas

 

Vivo no tempo dorido

De quem vai lançar sementes

Contra as marés e as intrigas

E acaba sendo ofendido

Por morrer sempre entrementes

Sem jamais ver as espigas.

 

 

287 - Imaginamos

 

Imaginamos que vemos

O mundo tal como ele é.

Mas ao fim o que nós temos

É o mundo que imaginemos,

Não o outro, aqui de pé.