TERCEIRO  CANTO

 

 

 

ENTERRO  O  PÉ  NO  CHÃO  ONDE  ME  PONHO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 288 e 364 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                288 - Enterro o pé no chão onde me ponho

 

                                                Enterro o pé no chão onde me ponho

A ver se do plantio nasce agora

O sonho

Que é já sonho desde outrora.

 

No compasso inesperado suponho

                                                A surpresa que demora

                                                De quanto amor se enamora

                                                Do que afinal não disponho.

 

                                                Mas traço os laços e abraços

                                                Escassos

                                                Que pobre detenho

 

                                                E sei que por eles,

                                                Ignoto, amor, me impeles

                                                E é por eles que venho.

 

289 - Alunagem

 

A grande conquista

Não é do homem a alunagem.

É conviver tendo em vista

O vizinho do lado e o dos antípodas que exista

No extremo do mundo,

Sem precisar de viagem,

Nem de saber-lhe a religião,

Se é puro, se é imundo,

Nem a profissão,

Nem de o condicionar a qualquer prévia imagem.

 

No fim, isto é que está a ser

Para quenquer

A verdadeira alunagem.

 

 

290 - Felicidade

 

A felicidade

Não é porventura mais sequer

Do que a capacidade

De experimentar prazer.

 

Quanto mais apreciar

Aquilo que tiver

Maior o lugar

À felicidade que houver.

 

Fácil é negligenciar

O prazer

Que me der amar

E amado ser,

Dos amigos a companhia,

Da vida a liberdade

Onde a queira a fantasia,

Ou simplesmente a verdade

De gozar isto de ser.

 

É tão fácil esquecer

A virtude

De me encontrar de saúde!

 

Felicidade não tem

A ver com o que acontece.

Terá sempre a ver, porém,

Com o modo como o encaro,

Se me lembra ou se me esquece

O que me aquece, me arrefece.

Se tenho ou não o dom raro

De ver algo positivo

Por trás de cada derrota,

Se o que me for negativo

Tem dum desafio a nota.

 

Importa é não cobiçar

Aquilo que não teremos,

Para dar antes lugar

A apreciar o que temos.

 

 

291 - Roubado

 

O tempo que passo com meu filho

Não é tempo roubado ao que importa.

O tempo que passo com meu filho

É que importa.

 

Sarilho, verdadeiro sarilho

É não ter esta porta

Para cultivar o brilho

Que me germinar na horta,

Para o milho

Que pela vida além o Outono corta.

 

Isto é que é ter um cadilho

Atado na artéria aorta:

Quando o coração não é caudilho,

Não tarda, a vida está morta.

 

 

292 - Vagueie

 

Que o espírito que habita um homem

Saia dele e vagueie entre os mais,

Viaje por toda a parte até que o tomem.

 

Se em vida não emanar jamais,

É condenado a vaguear pelo mundo,

Testemunha do que não pode partilhar

- E que poderia, se o partilhara jucundo,

Em felicidade haver mudado devagar,

Até ter, fecundo,

Construído seu lugar.

 

 

293 - Lidais

 

Vós, os homens que lidais

Com os mais,

Começai pelo princípio:

Quem quiser mudar o homem

Equipe-o

Com os arreios que o domem.

 

Melhor casa desde o berço,

Comida de quem trabalha,

Da justiça um braço terso,

Melhor caminho a quem calha…

 

E não coloqueis na frente

As cadeias, a prisão,

Como o único presente

De vossa celebração.

 

É que então quem for destroço,

Ou quem for uma ruína,

Nunca mais volta a ser moço,

Cada vez mais desatina,

teu povo não é meu povo

Nem o teu Deus, o meu Deus:

Não germina aqui renovo

Nem há mais azul nos céus.

 

Do princípio começai:

- Um órfão quer é ter pai!

 

 

294 - Raiz

 

Como e que minha felicidade

Podia ser perfeita

Se a contrariedade

Torna a tua incompleta?

 

A eterna voz

De ser feliz

É sermos Nós

De raiz.

 

Tu mais Eu

Separadamente

Não dá o céu,

Imita-o, quando muito, somente.

 

 

295 - Anátema

 

O anátema de Deus

Na expulsão do Paraíso

Não foi: “com dor parirás os teus,

Com suor trabalharás o pão de teu juízo.”

Mas antes: “quando ele te quiser,

Tu não o vais desejar

E, a par,

Quando ela te pretender,

Não a irás tu suportar.”

 

No eterno desencontro unidos,

Eis-nos, os jamais de vez punidos!

 

 

296 - Coragem

 

Motor da vida, a coragem

Acende o fogo primevo,

Tirou-nos das cavernas, em viagem

até à derradeira semente que hoje cevo.

 

Inventámos os números e as palavras,

Enfrentámos o labor do pensamento

Por coragem investirmos pelas lavras.

 

A História do Homem é um invento

Da coragem:

Nem a razão, sem ela, teria a nossa imagem.

 

Reveste múltiplos rostos:

O da generosidade,

Da curiosidade a postos,

O do gorgulho

Da vaidade,

O da inocência,

O do orgulho,

O da oca fantasia

Da inconsciência,

O do ódio e do medo,

O da raiva e da alegria,

O do terror

Que nos sela a boca com o credo

E o de todos maior,

- O rosto do amor.

 

A coragem surda e cega,

Ilimitada e suicida,

É a do torrão onde pega

A vida.

 

Não tem confins a do amor

Que por amor se realiza:

Ao perigo não dá valor

Nem a razão valoriza.

Pretende mover montanhas

E muitas vezes as move.

Com os dedos destas sanhas

É que os mundos nos promove.

E mesmo quando é esmagada

Foi do amor esta coragem

Que nos rasgou a estrada

E o roteiro da viagem.

 

Por sobre dela as sepulturas

É que erguemos catedrais

Que ao céu nos apontam os sinais

Das eternas alturas.

 

 

297 - Abstracção

 

República, religião,

Democracia, nação,

Pátria, revolução,

- Abstracção, tudo abstracção,

Com grave nomenclatura

De saber do mais rigoroso.

 

Os homens inventaram a figura

Dum mundo imaginoso,

Cujo intérmino fadário

É ser meramente imaginário.

 

Princípios e propósitos

De guerra e de paz

E todos os maus depósitos

De que um homem é capaz:

- Fizeram disto o mundo real

Até, duma assentada,

De nada mais haver sinal,

Até já não haver mesmo mais nada.

 

Podem os homens filosofar,

Discursar,

Deles com a posição

Se preocupar

No mundo, no Universo ou em qualquer constelação,

- Podem, que as mulheres

irão atrás, pelos salões, pelos quinteiros,

Não a espalhar perfumes nem malmequeres,

Mas a limpar-lhes as beatas dos cinzeiros!

 

Na derradeira verdade

É que os homens jamais crêem:

Para que mostram capacidade

É  para a cinza que ao fim não vêem!

 

 

298 - Mundos

 

Há dois mundos: o real e o imaginário.

O imaginário é dos homens, o real, das mulheres.

Aquele é o dos conceitos, ideias e saberes,

Este, o do lidar, lidar diário.

 

O ressentimento contra aquele

Não é por alguém ser dele cativo,

É que os homens conservam-se nele

Como num clube privativo

Onde nem se cuida sequer,

De tão exclusivo,

Que algum dia possa entrar uma mulher.

 

 

299 - Plantada

 

O fim da religião

É dar à vida sentido.

Mais sentido não terão

Os que na ausência de fundamento

Têm insistido,

A todo o momento.

 

Se vivermos em obediência

À lei plantada no coração,

Para criar comunidade há tendência:

Todos prosperarão.

 

 

300 - Naco

 

Um homem sem mulher não se tem todo.

A mulher sozinha, talvez.

Um homem, nunca: é assim a modo

Como se lhe houveram amputado

Da própria carne, de vez,

Um naco do lado.

 

Queira ou não,

Sem ela,

É sempre um Adão

Amputado da costela.

 

 

301 - Momos

 

Chega o dia em que somos

O derradeiro afecto

A recordar gente de águas passadas.

Perplexo, o neto,

Perguntará quem são aqueles momos

Nas fotografias amareladas.

 

Depois, nem isto já:

Ninguém sequer perguntará.

 

 

302 - Recém-nada

 

Desejamos a criança,

Lembramo-la recém-nada,

É a vida só que se alcança,

Mais nada.

 

Ninguém se lembra que um dia

Vai ter a câmara ardente,

Única certeira via

De toda a gente.

 

Apenas vemos a vida…

- Mas ela é tão, tão de fugida!

 

 

303 - Porta

 

Amo porque busco um fim?

Amo para me apreçar?

- Não, amo porque sim,

Amo para amar!

 

Mais nada.

Tudo o mais mantém a porta fechada.

 

 

304 - Miúdo

 

Ficar roubado em ternura

É o que não ocorrerá,

Só a não dão as crianças com fartura

A quem lha não dá.

 

Qualquer miúdo

Só a quem dele se abala

Com usura

Retira tudo:

- À ternura

Não é de desperdiçá-la!

 

 

305 - Mesa

 

Ao redor da mesa repartes o comer

Que houver,

Bem como cada fatia

De teu dia.

 

Por isso é que a mesa de jantar,

Mais que de comer,

É de interligar.

 

 

306 - Maneiras

 

As boas maneiras constituem uma engrenagem

De evitar o dano.

Tentamos corresponder-lhes à imagem:

São a linguagem

Do comportamento que se quer humano.

 

 

307 - Matizes

 

Justamente quando encontro a solução

É que te afastas de mim:

Não vivemos da salvação

Mas de ruínas sem fim.

 

Depois destes matizes,

Porém,

Acabamos todos tão felizes

Como ninguém…

 

Não há dúvida: sob o império

Vivemos do mistério!

 

 

308 - Contrafacção

 

Toda a mentira é uma contrafacção

de vida,

É uma vida em que sim deveio não.

Toda a mentira é uma paixão vencida:

A paixão que já vive sem paixão,

A imitar-se, interminável, de seguida.

 

 

309 - Refúgio

 

Busco refúgio fora de mim

E até ao presente,

Criança fugida assim,

Ando a adiar indefinidamente

O inevitável retorno a casa,

O confronto com a fuga

Que me apraza

E que, ao fim,

Único e definitivo me conjuga

Entre mim e mim.

 

 

310 - Inserção

 

Minha responsabilidade

Provém

De minha inserção

Doutrem na liberdade:

Não há terra de ninguém

Entre meu e teu quinhão.

 

Questiúnculas sempre há

Como por um fio de água,

Ora aqui, ora acolá,

Por entre revolta e mágoa.

 

E quando a palavra dada

Não vinga,

O que respinga

É a sacholada!

 

 

311 - Império

 

Minha relação com ela cresce

Diariamente,

Pois cada vez menos a conheço e me conhece

E o confessamos de frente,

Alegremente.

 

É a alegria

Que a sério

Leva a crescer

O dia.

E nem tempo vai haver

De acabarmos nosso império!

 

 

312 - Casais

 

Semelhanças sociais,

Psicológicas diferenças:

Eis os sinais

Dos casais

Com que venças e convenças.

 

O entendimento

Mais sólido e duradoiro

Requer este elemento

De oiro:

Semelhante e diferente

Em equilíbrio constante.

 

Um igual, para ser gente;

O diverso, impenitente,

Para seguir adiante.

 

 

313 - Desaprendi

 

Na escola aprendi

A pensar

Mas quase esqueci,

Em lugar,

O que obriga a vida a ir:

- Desaprendi de sentir!

 

 

314 - Importante

 

Importante, aqui,

É o miúdo que treinei,

O poema que escrevi,

O amigo de que sei.

 

O mais,

Se convém,

É quando me traga a paz

De mais um laço de alguém.

 

 

315 - Matéria-prima

 

Em vez de determinante

A família (que nos forma)

Matéria-prima, perante

A qual vou seguir a norma

Ou rompê-la mais avante,

Pode ser, se, em minha lida,

Construir dela uma vida.

 

Vai ser tão libertadora

Nesta via

Quanto foi constrangedora

Na de ser meu lema e guia.

 

 

316 - Dentro

 

Mora o pai dentro de mim,

No fundo do mar.

Enquanto me forma assim,

Toma-lhe o lugar

Um mentor de muitas caras:
Este pai que foi meu pai,

Meu avô de histórias raras,

Meu tio que nunca sai…

 

E por todos eles sobe,

Das profundas do oceano,

Este pai, adobe a adobe,

E já voga a todo o pano

Em meu mar de identidade:

- Minha personalidade!

 

Vou tendo sabedoria:

Oriento o dia a dia

Cada vez mais perto

De bater certo.

 

 

317 - Sintomas

 

Os sintomas e problemas

Humanos,

Aprofundados os temas

Em todos os planos,

Encontram definitiva solução,

Deslindada a teia,

Na religiosa intuição,

crente ou ateia.

 

É que, ao religar,

Reintegro minha solidão

Na imensidão

Do mar.

 

Aí, o nada

De meu grito

Projecta-se da estrada

Ao infinito.

 

 

318 - Devastados

 

O progresso que operamos

Após sermos devastados

Pelo amor

Obriga a que o resumamos

Como aquilo que nos vem dispor

Novamente a mergulhados

Vivermos nele.

 

E tudo isto a despeito

De que o sinto bem suspeito

Quando ele, sempre ele,

Me sonda ligeiro a pele:

Leva-me a regiões escuras

Recônditas, misteriosas,

Que do amor são leveduras,

Em poema transmudam prosas…

 

E depois, nesta canseira,

Explode-me a vida inteira

Deixando-me a alternativa

De pôr de pé, desfeita a teia,

A torcida de candeia:

- A vida viver mais viva.

O que, afinal, não é mais, sequer,

Do que viver, viver, viver…

 

 

319 - Romântico

 

Romântico e positivo

Se um amor

Apenas for,

Da sombra morre cativo.

 

Sombra da separação,

Da perda da fé,

E da esperança na relação,

De valores que secretos perdem pé…

 

Porém, tal

Visão tão parcial

Também

Ideais expectativas contém.

 

Quando o amor não é capaz

De se lhes manter ao lado

É destruído, tenaz,

Pelo outro ferrão desajustado.

 

 

320 - Disparatados

 

Os laços de amizade

tecem-se, descuidados,

Pelos comportamentos disparatados

Entre as pessoas da comunidade.

 

O sentimento de comunhão

Não pode ser mantido

A um nível de elevação

Demasiado subido.

 

Propaga-se pelos vales

Muito mais que pelos cumes:

Do batuque dos atabales

Das almas tem ciúmes.

 

Então é na desrazão

De quem ri uma boa gargalhada

Quer damos a mão

Para a jornada.

 

 

321 - Abismo

 

O amor não deixa que as almas

Se desviem do destino.

Do martírio quer as palmas,

Quer o hino.

 

A consciência à beira do abismo

Mantém do infinito,

No limiar do cataclismo,

Medida final de nosso grito,

 

Ali, no que tanto quero e temo:

- De nossas almas no extremo.

 

 

322 - Angular

 

Acalma,

Repara quais são as fontes vivas:

As peças menos dignas em assuntos de alma

São as que se revelam as mais criativas.

 

Nas relações humanas, nos amores,

Repara bem no que constrói o lar:

A pedra rejeitada pelos construtores

Em breve se transforma na pedra angular.

 

Desconfia

Do cimo:

O abismo é que te guia,

Repara bem no limo.

 

A libertadora inspiração

Vem-te da fantasia,

Nunca da razão:

- É o coração que intui o dia.

 

 

323 - Privado

 

O erotismo cria um mundo,

O ciúme então preserva

Do lar o vector fecundo

No privado que o conserva.

 

O ciúme nos salva

Impondo limites

À alma,

Até que ela e a vida fiquem quites.

 

 

324 - Karma

 

Não empunhavam qualquer arma

Mas eram uma ameaça

Pelo karma

Que as almas trespassa.

 

Sócrates ou Jesus

Hão-de sempre terminar na cicuta

Ou na cruz:

- É só haver alguém que os escuta!

 

Jesus entre dois ladrões:

- Claro, se era um criminoso!

 

Que mais supões

Que perturbe tanto a calma

Como o fulgor poderoso

Da revelação duma alma?

 

 

325 - Bomba

 

O coração é uma bomba,

- É um facto.

O coração é uma pomba,

- É um acto,

O acto dum poema.

 

O nosso problema

É não ultrapassarmos o pensamento

Até à poética de cada elemento.

 

Aqui começa

A corrupção:

- Pensamos com a cabeça

E já não com o coração.

 

 

326 - Indigência

 

Ao cérebro, o poder e a inteligência;

Mero músculo, ao coração.

Indigência

Sem perdão!

 

O coração sabe fazer

E faz um saber

que a mente jamais controla

Quando uma paixão a imola.

 

A cabeça pensa a frio

Uma realidade fria.

A verdade e a fantasia,

Onde as encontro ou contrario,

Aqui será onde, ausente,

Em mim confio,

Ou onde o coração presente

Pensa a quente?

 

- Não é de ambos sob o império

Que posso, afinal, ser a sério?

 

 

327 - Instrumento

 

Hoje o corpo é um instrumento,

Apenas recupera a poesia

Da doença no momento.

Onde encontrar fantasia?

 

No imaginário da moda,

Na cosmética, perfumaria…?

- Esgotei a escala toda

Que outro mundo apetecia.

 

Hoje em dia nem o amor,

A palpar pornografia,

Chega a atear o calor

Que deveria!

 

 

328 - Lisura

 

A vitória industrial e comercial

Duma cultura

Pode ser o sinal

De que atende com lisura

Ao coração.

 

Atenção

Ao alicerce, à raiz:

O sentimento em que atente

É dela a matriz,

Não a mente.

 

 

Então vence, mas a vitória

Não é questão de economia:

É de alma cheia uma história

Num mundo de alma vazia.

 

 

329 - Sustento

 

As almas tiram sustento

Da escassez e da abundância.

O alimento

É a riqueza e a pobreza

Entrançadas na elegância

De quem por igual ambas preza.

 

O mundo é-nos arrendado,

Não somos os donos dele,

Enquanto nos dura o estado

De andarmos dentro da pele.

 

O dinheiro é como o sexo:

Crêem uns que quanto mais

E com quantos mais parceiros,

Maior o fruto conexo.

E jamais,

Afinal, saem inteiros

De rumos que tais.

 

A questão do muito ou pouco

Não é questão.

Entre o são e o louco

A divisão

Atravessa-nos o seio:

Tornámos fim o que era meio.

 

Tornados fins, o sexo ou o dinheiro,

Cada qual

Por igual

Devirá nosso coveiro.

 

 

330 - Metáfora

 

A fome é a metáfora da religião:

A comunhão,

A união com a divindade,

Através do alimento.

 

O corpo a absorver o mundo:

Deus que me invade

A cada momento…

 

E me torna fecundo.

 

 

331 - Desejo

 

Cada um de nós é um desejo

De laços e comunidade,

De ter o ensejo

De infiltrar a cósmica opacidade

Com tal poesia

Que dentro de nós cresça

E floresça

O nascer de cada dia,

Muito mais pelo coração que o enobrece

Do que o que no mundo acontece.

 

Privilegio o exacto instrumento

E literal,

Da sensibilidade em detrimento

E do sentimento

Volúvel, fatal,

Trivial…

Abandonei,

Pelo caminho deixo

Aquilo que nem sei

E que é aquilo que nem sei de que me queixo.

 

Tudo saber dos povos

Dos recantos mais remotos…

Mas dos tentáculos deste polvo, em meus covos,

Não admito ligar-me nem aos cotos:

A nossa paixão

Pela cultural antropologia

Esconde na ilusão

Uma visceral xenofobia:

 

Os estudos das culturas mundo fora

São frios e desumanos.

Os laços e o saber que revigora

Foram trocados pelos danos

Da mole da informação

Que jamais encontra um eco fundo

Nem retoca no imo o nosso mundo.

A educação

É um leque de saberes e destrezas,

Não uma forma de sentir,

De imaginar belezas

Que são a fundura do caminho por onde ir.

 

Cada um de nós é um desejo…

- Onde pára a utopia,

O mito,

Que é feito do infinito

Que almejo?

Onde se esconde a magia?

Onde irei depor meu beijo?

 

 

332 - Ritual

 

Num ritual um jantar

Vale a pena transmudar,

 

Ao poder de sugestão

Prestar atenção,

 

Ao simbolismo da comida

E ao modo como é ingerida.

 

Sem ter esta dimensão

Que alguma impõe reflexão,

 

Pode parecer que a vida

Sem sobressalto é corrida.

 

Mas no íntimo o que decorre

É que pouco a pouco a alma morre

 

E que apenas em sintomas acontece

Que me aparece,

 

No sintoma doentio a que, no fim,

Eu me reduzi a mim.

 

 

333 - Melhorar

 

Poderia melhorar

Meu amor, minha emoção,

Se ao ritual eu der maior lugar,

Em lugar de à adaptação.

 

Confundo sempre o temporal,

Imediato, pessoal,

Com a preocupação funda e resistente

Em que a alma mora assente,

 

Para deixar de ser verme

Terei de, firme,

Dar tempo de sentir-me

E ser-me.

 

 

334 - Adeptos

 

Perde-se a razão da vida

Combatendo os que estão em desacordo,

Ganhando adeptos para nossa desmedida,

Morrendo narcisista de tão gordo.

 

Em vez de dar expressão

A minha emoção profunda,

Em vez de viver ao alcance da mão

Qualquer sentido que me fecunda.

 

Do século a história

É a de que a neurótica espiritualidade

Derivou para a vanglória

Da psicose e da violência.

 

Não é decerto a nossa idade

A idade da inocência.

A nossa

É bem mais a idade da falência,

A idade dos cadáveres na fossa.

 

De tanto rejeitarmos a indecência,

Fanáticos,

Já nem reparamos que, em termos práticos,

A vida se resume

A uma planta que cresceu

Com a raiz a sorver do estrume

O que a leva a desabrochar no céu.

 

 

335 - Intemperança

 

Quanta exaltação,

Quanta intemperança

No interior de cada religião!

 

Não é o inferno, é o fanatismo

Que a todas as lança,

Por fim, no abismo!

 

Quando todas afinal darão

A fruir um pendor

Que nos alcança:

- O hino vivido do amor.

 

Para encher a Humanidade vazia

Era só, era tudo!

E, sobretudo,

Superabundaria.

 

Quando o mais nos afasta

(E ainda bem),

Tudo ali se contém.

E basta!

 

 

336 - Postura

 

Quando ao mundo concedo qualquer alma,

Altero minha postura.

Observo e escuto com calma,

Sigo-lhe a lisura.

 

Respeito-o, que o não crio

Nem controlo.

Tem tanta personalidade aquele rio,

Tanta independência atingiu

Como eu.

 

Da terra inteira o solo

É o cobertor em que me enrolo.

 

 

337 - Marcas

 

Pode a natureza deixar em nós

Marcas profundas:

A colina, o pinhal, da vereda o retrós,

Dos melros as cantorias jucundas,

Que emoções

Numa pessoa, numa família, numa comunidade!

 

Ora, é pelos corações

Que nos enlaçamos de verdade.

 

 

338 - Fabricadas

 

Também coisas fabricadas

São de alma sempre dotadas.

 

Ligo-me a elas

E encontro significado,

De valores intensos acompanhado

E de memórias quentes como estrelas.

 

Um singular afecto

Pelas coisas nutrimos,

Mas tendemos a não lhe ter respeito

E do mundo nos excluímos.

Têm as coisas a capacidade

De se aproximar,

De pôr-nos da beleza a par,

De exprimirem subjectividade.

 

Nossa responsabilidade

Por elas

Assenta no apreço e na fraternidade,

Não de princípios em sequelas.

 

Com as coisas relações sentidas

Não permitiriam a deslealdade

De as abandonar poluídas,

De perpetuar a fealdade.

 

Eis o sinal

De que vigiamos:

- Apenas tratamos mal

Aquilo cuja alma negligenciamos.

 

 

339 - Inertes

 

Se deveras me convencera

Das almas das coisas,

Reinar sobre elas não era

Riscar consciente sobre inertes loisas.

 

Menos só me sentiria

Num mundo dinâmico

Do que no mecânico

Que por dever mantenho em dia.

 

Eu sou aquele oprimido

Pelo sentido do dever

Sempre de madrugada erguido

- Para ajudar o sol a nascer!

 

 

340 - Fonte

 

Uma fonte de alma perdemos importante

Quando as coisas simples tornamos proibidas

E, delas cada qual ignorante,

Tocamos as vidas.

 

Uma árvore pode ser muito expressiva.

Porém, quando fala dela,

É minha alma que secreta torna viva

E me revela.

 

É que nós somos o mundo

E, logo após,

No fundo mais profundo,

O mundo somos nós.

 

 

341 - Contemplação

 

Artes são contemplação,

Raridade de hoje em dia:

É o mundo a descer no coração,

Vívido, profundo de magia.

 

O vazio que domina

A vida de muita gente

De não acolher é mera sina

A presença do mundo,

De o não apreender nem atrair

Plenamente.

Sinto-me vazio se no fundo

De mim não conseguir

Reter nada do que faço.

 

As artes prendem a atenção,

Metem-me o passo

A compasso.

Ora, o tempo é condição

Do abraço

A todas as coisas que teremos,

Para que nos penetrem e as assimilemos.

 

Viver com arte

Requer uma pausa.

Quem permanente parte,

Sempre em movimento,

É efeito sem causa,

Nada o prende, sopro de vento.

 

Assim, como convém,

É cada vez mais ninguém.

 

 

342 - Pressa

 

Ter alma é não ter pressa,

Para que ela penetre e ocupe o espaço.

Com o tempo dado às coisas, passo

A conhecê-las e começa

A união com elas.

O desumano da vida

É alhear-me das estrelas

E do que noutrem me convida.

 

A forma de o superar

É lidar tranquilamente

Com a fresta de luar

Que em mim luz intermitente.

 

 

343 - Bule

 

Arte de viver é reservar

Tempo às coisas para o lar,

expressivas, eloquentes:

Um linho, um tapete, um bule de chá

Enriquecem, quentes,

A minha vida, a dos filhos,

A dos netos que haverá…

São atilhos

De deleite para as almas.

Impossível descobrir almas recolhidas,

Colher as palmas,

Sem observar as coisas previamente,

Sem as horas despendidas

Por quem sente.

 

É um acto de intimidade,

Não a consulta do guia

De inverdade

Dum consumidor qualquer sem fantasia.

 

Superfície, textura, toque,

É tudo tão importante

Como a eficácia que me traz a reboque

E joga a vida para diante.

 

 

344 - Guardiões

 

Guardiões da casa e do jardim,

No seio da vida diária,

Movem-se os espíritos e falam-me a mim

Em conversa vária.

 

Esgueiram-se pelas fendas,

Dos utensílios pelas pequenas avarias,

Pelo divertimento das prendas,

Pelos rebentos dos canteiros,

Pela beleza do raio de sol nas pratarias,

Pelo vento a agitar, leveiros,

Os fios de roupa lavada

Em bizarras coreografias…

 

A veia artística de meu átrio de entrada

Que promove a contemplação,

Requer o talento

De compor um ramo de flores,

Executar uma pequena reparação,

Cozinhar um fermento

De sabores…

 

- É que tudo são humores

Onde cresce coração.

 

 

345 - Fome

 

A fome dos homens pela terra…

Como esta parece tão insuficiente!

E, então, quanta guerra!

Sempre a miopia do presente…

 

E como, por fim, todos regressamos,

Após a procela,

E, misturando-nos com ela,

Em pó da terra nos tornamos!

 

 

346 - Magoa

 

O que magoa os pais

Não é que um filho

Escolha um partido diferente, como os mais.

É a ideia de ter aberto o trilho

A um impostor.

 

Felizmente para quanto dói,

O mistério

De transformar um impostor

Num herói

Ou num senhor,

- É só tomá-lo ou não a sério!

 

 

347 - Atrabiliários

 

Homens de boa vontade

E não fanáticos!

Em termos práticos:

Homens de verdade!

 

Por que tanto falharão,

Atrabiliários,

Homens de coração

E não os sanguinários?

 

A quem

Calha

Bem

Esta falha?

 

Insisto, resisto, persisto…

- Mas como nos atrapalha tudo isto!

  

 

348 - Simultaneamente

 

Nenhum povo, nenhum partido, nenhum homem,

Ninguém

Pode encarar os aliados que lhe convêm

Como adversários que o domem

Simultaneamente.

Amigos não há de reserva:
Somos gente vivente,

Não de conserva.

 

Os pomos

Da vida,

Só aceitando-nos como somos,

Com a vénia devida.

 

A contradição

Não superada

Atira-nos ao chão,

Arrastados na enxurrada.

 

 

349 - Maneta

 

Mais vale ser maneta em liberdade

Que ileso em servidão.

Salvar alguém contra sua vontade,

Não!

 

Os comunistas esmagam gerações

Para preparar o caminho das vindoiras.

Os fascistas dão os mesmos tropeções

Para eternizar heranças passadoiras.

 

Não é uma questão de servir fósseis

Ou meros aperitivos:

- Todos eles preferem fantasmas dóceis

A homens vivos!

 

 

350 - Noite

 

O terror da noite põe-me inquieto,

Tantas vezes desperto,

Quando a noite é um imenso olho preto

Permanentemente aberto.

 

Ser visto

E não poder ver,

Como no meio disto

Sobreviver?

Contudo, no que existo,

Esta é a primeira camada de meu ser.

Sejam os céus,

Seja Deus,

Por trás do que sou

Existe o Caminho por onde vou.

 

Quer olhe, quer me não ligue,

Ou é o Amor

Ou, porque inelutavelmente me obrigue,

Então é o terror!

 

 

351 - Resgatam

 

É difícil de esquecer

Que uns pelos outros paguem

Mesmo sem o saber.

 

E os fogos que na vida se desatam

Mais estranho é que se apaguem

Com o velo de anhos imbeles:

- É que uns aos outros resgatam

Mesmo contra a vontade deles.

 

Mais do que gavinhas,

Nós

Somos de todas as linhas

Os nós:

O aperto

que segura

aperta onde bater certo

E de mais não cura.

 

 

352 - Estilo

 

Há muito que não rezo

Por isto ou por aquilo.

Desprezo

Da superstição o estilo.

 

Rezo a quanto há de agreste

Naquilo que nos impele

Por este

Ou por aquele.

 

E é só,

Que tudo o mais é pó.

 

 

353 - Espera

 

Quem espera

Sofre tanto de ausência

Que noutrem às vezes nem tolera

Dum bom-dia a insolência.

 

Ali a palavra exaspera:

É a voz da falência.

 

 

354 - Classes

 

Há classes de nascimento,

Há classes de dinheiro.

Ambas se reproduzem pelo mesmo elemento:

O herdeiro.

 

Se não tens herança, para que as ultrapasses,

Não te perturbe o tormento:

De espírito as classes

Não respeitam o nascimento.

 

O que acontece

Na jornada

É que o génio é sempre uma benesse

Não programada.

 

 

355 - Adversário

 

Ver o que o adversário prepara

É que o privara

Da vantagem do ataque:
- Da surpresa o baque.

 

O melhor exército vai ser

O que tiver

Os olhos melhores.

 

Resta-te na vida

O mesmo te propores.

- E levá-la de vencida.

 

 

356 - Jornais

 

Lemos os jornais como amamos:

De vendas nos olhos.

Compreender jamais procuramos

Os factos: são abrolhos.

 

Escutamos os murmúrios da redacção

Como os doces termos duma amante.

Somos derrotados pela paixão,

Mas a derrota é gratificante

Porque não

Nos cremos derrotados:

- Somos amados!

Como nos amores

Mentirosamente

(Todo o amante é um crente),

Somos sempre os vencedores.

 

 

357 - Querelas

 

Dos indivíduos nas querelas,

Para nos convencermos da razão de qualquer delas,

 

O mais constante é sermos dessa parte,

Que o mero espectador nunca tem arte,

 

Tanto quanto não sente,

De a aprovar completamente.

 

O indivíduo, nas nações,

Se duma é parte sem reservas nem senões,

 

Não é mais que a célula viva

Do indivíduo-nação de que é cativa:

 

- Quanto mais um conviva ele ali seja

Menos tem a objectividade que se almeja.

 

 

358 - Entrega

 

Feliz da mulher que sem dar nada

Muito mais recebe que quando se entrega.

 

A mente apaixonada

Crê, do amor no meio da refrega,

De seu ídolo na virtude.

 

E com isto se ilude:

A auréola de que a virtude envolve

É o produto esquivo

Apenas criado e a que revolve

Aquele amor excessivo.

 

 

359 - Lápides

 

Vida fora, por todo o lugar,

Colhi um gesto, uma palavra

Que logro recordar.

Contudo, meu registo nada lavra

De quem foi de cada qual o autor singular.

 

Um livro é um enorme cemitério

Onde, na maior parte das sepulturas,

O mistério

É que nas lápides se apagaram as assinaturas.

 

 

360 - Grosseira

 

Só uma percepção grosseira

Coloca tudo no objecto,

Quando a mente é a primeira

Instância de qualquer projecto.

 

Na realidade perdi

Qualquer meu ente querido

Meses após tê-lo visto ali

No caixão estendido.

 

Vi pessoas variarem de aspecto

Conforme a ideia

Que eu e outros tínhamos, em concreto,

Das linhas de sua teia.

 

Uma só serão várias, segundo

As pessoas que a lerem,

até para uma apenas, pois muda o mundo

Conforme os anos que entretanto decorreram.

 

Vi sempre o amor colocar

Num ente

O que apenas em quem o amar,

Afinal, está presente.

 

A percepção

Do objecto

Apenas me oferece o chão

Sobre que implanto meu tecto.

 

 

361 - Retrato

 

Sabendo embora que os anos passam,

Que a juventude dá lugar à velhice,

Que as fortunas e os tronos se deslaçam,

Que a celebridade é passageira sovinice,

 

- Nossa maneira de tomar conhecimento,

De tirar um retrato qualquer

A este universo em movimento

Imobiliza-o num momento de ser.

 

Pelos tempos arrastados

que nos movem,

Vemos sempre como jovem

Quem jovem de si nos deu traslados.

 

Com as virtudes da velhice

Vemos os que conhecemos velhos,

Mesmo quando o tempo já nos disse

Que com eles nos morreram os conselhos.

 

Confiamos no crédito dum milionário,

No apoio dum soberano,

Quando a razão nos murmura quanto é vário

O destino em cada ano.

 

Não acreditamos, efectivamente,

Que amanhã é deveras outro dia

Que, neste, outro continente

Principia.

 

O sentido da história

Não mo dá, de facto,

Esta memória,

Apenas o acto consumado, o acto.

 

 

362 - Ideais

 

Viver e trabalhar

Para os tarecos conseguir

Foram ideais

De nossos pais.

 

Mudámos, porém, de lugar

E de porvir,

Devagar.

 

Doravante aquilo

É a mínima comodidade:

Não é um ideal de verdade

Consegui-lo.

 

O mais é o vazio

Onde continuamos a procurar

O fio

A que venhamos o Mundo a atar,

No fim do desvio.

 

 

363 - Cauda

 

Ela é sempre, ela,

Uma criatura vinda duma estrela,

 

agarrada à cauda dum cometa,

e que se deixou tombar, discreta,

 

No extremo do carreiro

A mim fronteiro.

 

- Depois

Conto sempre um onde houve dois.

 

 

364 - Cavador

 

O agricultor,

De enxada às costas,

Mistura, ao sol-pôr,

As sombras das encostas.

 

Fecundo cavador,

Cinzentamente

Mergulha na terra do suor

Onde se perde, semente.