TERCEIRO CANTO
ENTERRO O
PÉ NO CHÃO ONDE ME PONHO
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aleatoriamente um número entre 288 e 364 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
288 - Enterro o pé no chão onde me ponho
Enterro o pé no chão onde me ponho
A ver se do plantio nasce agora
O sonho
Que é já sonho desde outrora.
No compasso inesperado suponho
A surpresa que demora
De quanto amor se enamora
Do que afinal não disponho.
Mas traço os laços e abraços
Escassos
Que pobre detenho
E sei que por eles,
Ignoto, amor, me impeles
E é por eles que venho.
289 - Alunagem
A grande conquista
Não é do homem a alunagem.
É conviver tendo em vista
O vizinho do lado e o dos antípodas que
exista
No extremo do mundo,
Sem precisar de viagem,
Nem de saber-lhe a religião,
Se é puro, se é imundo,
Nem a profissão,
Nem de o condicionar a qualquer prévia
imagem.
No fim, isto é que está a ser
Para quenquer
A verdadeira alunagem.
290 - Felicidade
A felicidade
Não é porventura mais sequer
Do que a capacidade
De experimentar prazer.
Quanto mais apreciar
Aquilo que tiver
Maior o lugar
À felicidade que houver.
Fácil é negligenciar
O prazer
Que me der amar
E amado ser,
Dos amigos a companhia,
Da vida a liberdade
Onde a queira a fantasia,
Ou simplesmente a verdade
De gozar isto de ser.
É tão fácil esquecer
A virtude
De me encontrar de saúde!
Felicidade não tem
A ver com o que acontece.
Terá sempre a ver, porém,
Com o modo como o encaro,
Se me lembra ou se me esquece
O que me aquece, me arrefece.
Se tenho ou não o dom raro
De ver algo positivo
Por trás de cada derrota,
Se o que me for negativo
Tem dum desafio a nota.
Importa é não cobiçar
Aquilo que não teremos,
Para dar antes lugar
A apreciar o que temos.
291 - Roubado
O tempo que passo com meu filho
Não é tempo roubado ao que importa.
O tempo que passo com meu filho
É que importa.
Sarilho, verdadeiro sarilho
É não ter esta porta
Para cultivar o brilho
Que me germinar na horta,
Para o milho
Que pela vida além o Outono corta.
Isto é que é ter um cadilho
Atado na artéria aorta:
Quando o coração não é caudilho,
Não tarda, a vida está morta.
292 - Vagueie
Que o espírito que habita um homem
Saia dele e vagueie entre os mais,
Viaje por toda a parte até que o tomem.
Se em vida não emanar jamais,
É condenado a vaguear pelo mundo,
Testemunha do que não pode partilhar
- E que poderia, se o partilhara jucundo,
Em felicidade haver mudado devagar,
Até ter, fecundo,
Construído seu lugar.
293 - Lidais
Vós, os homens que lidais
Com os mais,
Começai pelo princípio:
Quem quiser mudar o homem
Equipe-o
Com os arreios que o domem.
Melhor casa desde o berço,
Comida de quem trabalha,
Da justiça um braço terso,
Melhor caminho a quem calha…
E não coloqueis na frente
As cadeias, a prisão,
Como o único presente
De vossa celebração.
É que então quem for destroço,
Ou quem for uma ruína,
Nunca mais volta a ser moço,
Cada vez mais desatina,
teu povo não é meu povo
Nem o teu Deus, o meu Deus:
Não germina aqui renovo
Nem há mais azul nos céus.
Do princípio começai:
- Um órfão quer é ter pai!
294 - Raiz
Como e que minha felicidade
Podia ser perfeita
Se a contrariedade
Torna a tua incompleta?
A eterna voz
De ser feliz
É sermos Nós
De raiz.
Tu mais Eu
Separadamente
Não dá o céu,
Imita-o, quando muito, somente.
295 - Anátema
O anátema de Deus
Na expulsão do Paraíso
Não foi: “com dor parirás os teus,
Com suor trabalharás o pão de teu juízo.”
Mas antes: “quando ele te quiser,
Tu não o vais desejar
E, a par,
Quando ela te pretender,
Não a irás tu suportar.”
No eterno desencontro unidos,
Eis-nos, os jamais de vez punidos!
296 - Coragem
Motor da vida, a coragem
Acende o fogo primevo,
Tirou-nos das cavernas, em viagem
até à derradeira semente que hoje cevo.
Inventámos os números e as palavras,
Enfrentámos o labor do pensamento
Por coragem investirmos pelas lavras.
A História do Homem é um invento
Da coragem:
Nem a razão, sem ela, teria a nossa
imagem.
Reveste múltiplos rostos:
O da generosidade,
Da curiosidade a postos,
O do gorgulho
Da vaidade,
O da inocência,
O do orgulho,
O da oca fantasia
Da inconsciência,
O do ódio e do medo,
O da raiva e da alegria,
O do terror
Que nos sela a boca com o credo
E o de todos maior,
- O rosto do amor.
A coragem surda e cega,
Ilimitada e suicida,
É a do torrão onde pega
A vida.
Não tem confins a do amor
Que por amor se realiza:
Ao perigo não dá valor
Nem a razão valoriza.
Pretende mover montanhas
E muitas vezes as move.
Com os dedos destas sanhas
É que os mundos nos promove.
E mesmo quando é esmagada
Foi do amor esta coragem
Que nos rasgou a estrada
E o roteiro da viagem.
Por sobre dela as sepulturas
É que erguemos catedrais
Que ao céu nos apontam os sinais
Das eternas alturas.
297 - Abstracção
República, religião,
Democracia, nação,
Pátria, revolução,
- Abstracção, tudo abstracção,
Com grave nomenclatura
De saber do mais rigoroso.
Os homens inventaram a figura
Dum mundo imaginoso,
Cujo intérmino fadário
É ser meramente imaginário.
Princípios e propósitos
De guerra e de paz
E todos os maus depósitos
De que um homem é capaz:
- Fizeram disto o mundo real
Até, duma assentada,
De nada mais haver sinal,
Até já não haver mesmo mais nada.
Podem os homens filosofar,
Discursar,
Deles com a posição
Se preocupar
No mundo, no Universo ou em qualquer
constelação,
- Podem, que as mulheres
irão atrás, pelos salões, pelos
quinteiros,
Não a espalhar perfumes nem malmequeres,
Mas a limpar-lhes as beatas dos cinzeiros!
Na derradeira verdade
É que os homens jamais crêem:
Para que mostram capacidade
É para a cinza que ao fim não vêem!
298 - Mundos
Há dois mundos: o real e o imaginário.
O imaginário é dos homens, o real, das
mulheres.
Aquele é o dos conceitos, ideias e
saberes,
Este, o do lidar, lidar diário.
O ressentimento contra aquele
Não é por alguém ser dele cativo,
É que os homens conservam-se nele
Como num clube privativo
Onde nem se cuida sequer,
De tão exclusivo,
Que algum dia possa entrar uma mulher.
299 - Plantada
O fim da religião
É dar à vida sentido.
Mais sentido não terão
Os que na ausência de fundamento
Têm insistido,
A todo o momento.
Se vivermos em obediência
À lei plantada no coração,
Para criar comunidade há tendência:
Todos prosperarão.
300 - Naco
Um homem sem mulher não se tem todo.
A mulher sozinha, talvez.
Um homem, nunca: é assim a modo
Como se lhe houveram amputado
Da própria carne, de vez,
Um naco do lado.
Queira ou não,
Sem ela,
É sempre um Adão
Amputado da costela.
301 - Momos
Chega o dia em que somos
O derradeiro afecto
A recordar gente de águas passadas.
Perplexo, o neto,
Perguntará quem são aqueles momos
Nas fotografias amareladas.
Depois, nem isto já:
Ninguém sequer perguntará.
302 - Recém-nada
Desejamos a criança,
Lembramo-la recém-nada,
É a vida só que se alcança,
Mais nada.
Ninguém se lembra que um dia
Vai ter a câmara ardente,
Única certeira via
De toda a gente.
Apenas vemos a vida…
- Mas ela é tão, tão de fugida!
303 - Porta
Amo porque busco um fim?
Amo para me apreçar?
- Não, amo porque sim,
Amo para amar!
Mais nada.
Tudo o mais mantém a porta fechada.
304 - Miúdo
Ficar roubado em ternura
É o que não ocorrerá,
Só a não dão as crianças com fartura
A quem lha não dá.
Qualquer miúdo
Só a quem dele se abala
Com usura
Retira tudo:
- À ternura
Não é de desperdiçá-la!
305 - Mesa
Ao redor da mesa repartes o comer
Que houver,
Bem como cada fatia
De teu dia.
Por isso é que a mesa de jantar,
Mais que de comer,
É de interligar.
306 - Maneiras
As boas maneiras constituem uma engrenagem
De evitar o dano.
Tentamos corresponder-lhes à imagem:
São a linguagem
Do comportamento que se quer humano.
307 - Matizes
Justamente quando encontro a solução
É que te afastas de mim:
Não vivemos da salvação
Mas de ruínas sem fim.
Depois destes matizes,
Porém,
Acabamos todos tão felizes
Como ninguém…
Não há dúvida: sob o império
Vivemos do mistério!
308 - Contrafacção
Toda a mentira é uma contrafacção
de vida,
É uma vida em que sim deveio não.
Toda a mentira é uma paixão vencida:
A paixão que já vive sem paixão,
A imitar-se, interminável, de seguida.
309 - Refúgio
Busco refúgio fora de mim
E até ao presente,
Criança fugida assim,
Ando a adiar indefinidamente
O inevitável retorno a casa,
O confronto com a fuga
Que me apraza
E que, ao fim,
Único e definitivo me conjuga
Entre mim e mim.
310 - Inserção
Minha responsabilidade
Provém
De minha inserção
Doutrem na liberdade:
Não há terra de ninguém
Entre meu e teu quinhão.
Questiúnculas sempre há
Como por um fio de água,
Ora aqui, ora acolá,
Por entre revolta e mágoa.
E quando a palavra dada
Não vinga,
O que respinga
É a sacholada!
311 - Império
Minha relação com ela cresce
Diariamente,
Pois cada vez menos a conheço e me conhece
E o confessamos de frente,
Alegremente.
É a alegria
Que a sério
Leva a crescer
O dia.
E nem tempo vai haver
De acabarmos nosso império!
312 - Casais
Semelhanças sociais,
Psicológicas diferenças:
Eis os sinais
Dos casais
Com que venças e convenças.
O entendimento
Mais sólido e duradoiro
Requer este elemento
De oiro:
Semelhante e diferente
Em equilíbrio constante.
Um igual, para ser gente;
O diverso, impenitente,
Para seguir adiante.
313 - Desaprendi
Na escola aprendi
A pensar
Mas quase esqueci,
Em lugar,
O que obriga a vida a ir:
- Desaprendi de sentir!
314 - Importante
Importante, aqui,
É o miúdo que treinei,
O poema que escrevi,
O amigo de que sei.
O mais,
Se convém,
É quando me traga a paz
De mais um laço de alguém.
315 - Matéria-prima
Em vez de determinante
A família (que nos forma)
Matéria-prima, perante
A qual vou seguir a norma
Ou rompê-la mais avante,
Pode ser, se, em minha lida,
Construir dela uma vida.
Vai ser tão libertadora
Nesta via
Quanto foi constrangedora
Na de ser meu lema e guia.
316 - Dentro
Mora o pai dentro de mim,
No fundo do mar.
Enquanto me forma assim,
Toma-lhe o lugar
Um mentor de muitas caras:
Este pai que foi meu pai,
Meu avô de histórias raras,
Meu tio que nunca sai…
E por todos eles sobe,
Das profundas do oceano,
Este pai, adobe a adobe,
E já voga a todo o pano
Em meu mar de identidade:
- Minha personalidade!
Vou tendo sabedoria:
Oriento o dia a dia
Cada vez mais perto
De bater certo.
317 - Sintomas
Os sintomas e problemas
Humanos,
Aprofundados os temas
Em todos os planos,
Encontram definitiva solução,
Deslindada a teia,
Na religiosa intuição,
crente ou ateia.
É que, ao religar,
Reintegro minha solidão
Na imensidão
Do mar.
Aí, o nada
De meu grito
Projecta-se da estrada
Ao infinito.
318 - Devastados
O progresso que operamos
Após sermos devastados
Pelo amor
Obriga a que o resumamos
Como aquilo que nos vem dispor
Novamente a mergulhados
Vivermos nele.
E tudo isto a despeito
De que o sinto bem suspeito
Quando ele, sempre ele,
Me sonda ligeiro a pele:
Leva-me a regiões escuras
Recônditas, misteriosas,
Que do amor são leveduras,
Em poema transmudam prosas…
E depois, nesta canseira,
Explode-me a vida inteira
Deixando-me a alternativa
De pôr de pé, desfeita a teia,
A torcida de candeia:
- A vida viver mais viva.
O que, afinal, não é mais, sequer,
Do que viver, viver, viver…
319 - Romântico
Romântico e positivo
Se um amor
Apenas for,
Da sombra morre cativo.
Sombra da separação,
Da perda da fé,
E da esperança na relação,
De valores que secretos perdem pé…
Porém, tal
Visão tão parcial
Também
Ideais expectativas contém.
Quando o amor não é capaz
De se lhes manter ao lado
É destruído, tenaz,
Pelo outro ferrão desajustado.
320 - Disparatados
Os laços de amizade
tecem-se, descuidados,
Pelos comportamentos disparatados
Entre as pessoas da comunidade.
O sentimento de comunhão
Não pode ser mantido
A um nível de elevação
Demasiado subido.
Propaga-se pelos vales
Muito mais que pelos cumes:
Do batuque dos atabales
Das almas tem ciúmes.
Então é na desrazão
De quem ri uma boa gargalhada
Quer damos a mão
Para a jornada.
321 - Abismo
O amor não deixa que as almas
Se desviem do destino.
Do martírio quer as palmas,
Quer o hino.
A consciência à beira do abismo
Mantém do infinito,
No limiar do cataclismo,
Medida final de nosso grito,
Ali, no que tanto quero e temo:
- De nossas almas no extremo.
322 - Angular
Acalma,
Repara quais são as fontes vivas:
As peças menos dignas em assuntos de alma
São as que se revelam as mais criativas.
Nas relações humanas, nos amores,
Repara bem no que constrói o lar:
A pedra rejeitada pelos construtores
Em breve se transforma na pedra angular.
Desconfia
Do cimo:
O abismo é que te guia,
Repara bem no limo.
A libertadora inspiração
Vem-te da fantasia,
Nunca da razão:
- É o coração que intui o dia.
323 - Privado
O erotismo cria um mundo,
O ciúme então preserva
Do lar o vector fecundo
No privado que o conserva.
O ciúme nos salva
Impondo limites
À alma,
Até que ela e a vida fiquem quites.
324 - Karma
Não empunhavam qualquer arma
Mas eram uma ameaça
Pelo karma
Que as almas trespassa.
Sócrates ou Jesus
Hão-de sempre terminar na cicuta
Ou na cruz:
- É só haver alguém que os escuta!
Jesus entre dois ladrões:
- Claro, se era um criminoso!
Que mais supões
Que perturbe tanto a calma
Como o fulgor poderoso
Da revelação duma alma?
325 - Bomba
O coração é uma bomba,
- É um facto.
O coração é uma pomba,
- É um acto,
O acto dum poema.
O nosso problema
É não ultrapassarmos o pensamento
Até à poética de cada elemento.
Aqui começa
A corrupção:
- Pensamos com a cabeça
E já não com o coração.
326 - Indigência
Ao cérebro, o poder e a inteligência;
Mero músculo, ao coração.
Indigência
Sem perdão!
O coração sabe fazer
E faz um saber
que a mente jamais controla
Quando uma paixão a imola.
A cabeça pensa a frio
Uma realidade fria.
A verdade e a fantasia,
Onde as encontro ou contrario,
Aqui será onde, ausente,
Em mim confio,
Ou onde o coração presente
Pensa a quente?
- Não é de ambos sob o império
Que posso, afinal, ser a sério?
327 - Instrumento
Hoje o corpo é um instrumento,
Apenas recupera a poesia
Da doença no momento.
Onde encontrar fantasia?
No imaginário da moda,
Na cosmética, perfumaria…?
- Esgotei a escala toda
Que outro mundo apetecia.
Hoje em dia nem o amor,
A palpar pornografia,
Chega a atear o calor
Que deveria!
328 - Lisura
A vitória industrial e comercial
Duma cultura
Pode ser o sinal
De que atende com lisura
Ao coração.
Atenção
Ao alicerce, à raiz:
O sentimento em que atente
É dela a matriz,
Não a mente.
Então vence, mas a vitória
Não é questão de economia:
É de alma cheia uma história
Num mundo de alma vazia.
329 - Sustento
As almas tiram sustento
Da escassez e da abundância.
O alimento
É a riqueza e a pobreza
Entrançadas na elegância
De quem por igual ambas preza.
O mundo é-nos arrendado,
Não somos os donos dele,
Enquanto nos dura o estado
De andarmos dentro da pele.
O dinheiro é como o sexo:
Crêem uns que quanto mais
E com quantos mais parceiros,
Maior o fruto conexo.
E jamais,
Afinal, saem inteiros
De rumos que tais.
A questão do muito ou pouco
Não é questão.
Entre o são e o louco
A divisão
Atravessa-nos o seio:
Tornámos fim o que era meio.
Tornados fins, o sexo ou o dinheiro,
Cada qual
Por igual
Devirá nosso coveiro.
330 - Metáfora
A fome é a metáfora da religião:
A comunhão,
A união com a divindade,
Através do alimento.
O corpo a absorver o mundo:
Deus que me invade
A cada momento…
E me torna fecundo.
331 - Desejo
Cada um de nós é um desejo
De laços e comunidade,
De ter o ensejo
De infiltrar a cósmica opacidade
Com tal poesia
Que dentro de nós cresça
E floresça
O nascer de cada dia,
Muito mais pelo coração que o enobrece
Do que o que no mundo acontece.
Privilegio o exacto instrumento
E literal,
Da sensibilidade em detrimento
E do sentimento
Volúvel, fatal,
Trivial…
Abandonei,
Pelo caminho deixo
Aquilo que nem sei
E que é aquilo que nem sei de que me
queixo.
Tudo saber dos povos
Dos recantos mais remotos…
Mas dos tentáculos deste polvo, em meus
covos,
Não admito ligar-me nem aos cotos:
A nossa paixão
Pela cultural antropologia
Esconde na ilusão
Uma visceral xenofobia:
Os estudos das culturas mundo fora
São frios e desumanos.
Os laços e o saber que revigora
Foram trocados pelos danos
Da mole da informação
Que jamais encontra um eco fundo
Nem retoca no imo o nosso mundo.
A educação
É um leque de saberes e destrezas,
Não uma forma de sentir,
De imaginar belezas
Que são a fundura do caminho por onde ir.
Cada um de nós é um desejo…
- Onde pára a utopia,
O mito,
Que é feito do infinito
Que almejo?
Onde se esconde a magia?
Onde irei depor meu beijo?
332 - Ritual
Num ritual um jantar
Vale a pena transmudar,
Ao poder de sugestão
Prestar atenção,
Ao simbolismo da comida
E ao modo como é ingerida.
Sem ter esta dimensão
Que alguma impõe reflexão,
Pode parecer que a vida
Sem sobressalto é corrida.
Mas no íntimo o que decorre
É que pouco a pouco a alma morre
E que apenas em sintomas acontece
Que me aparece,
No sintoma doentio a que, no fim,
Eu me reduzi a mim.
333 - Melhorar
Poderia melhorar
Meu amor, minha emoção,
Se ao ritual eu der maior lugar,
Em lugar de à adaptação.
Confundo sempre o temporal,
Imediato, pessoal,
Com a preocupação funda e resistente
Em que a alma mora assente,
Para deixar de ser verme
Terei de, firme,
Dar tempo de sentir-me
E ser-me.
334 - Adeptos
Perde-se a razão da vida
Combatendo os que estão em desacordo,
Ganhando adeptos para nossa desmedida,
Morrendo narcisista de tão gordo.
Em vez de dar expressão
A minha emoção profunda,
Em vez de viver ao alcance da mão
Qualquer sentido que me fecunda.
Do século a história
É a de que a neurótica espiritualidade
Derivou para a vanglória
Da psicose e da violência.
Não é decerto a nossa idade
A idade da inocência.
A nossa
É bem mais a idade da falência,
A idade dos cadáveres na fossa.
De tanto rejeitarmos a indecência,
Fanáticos,
Já nem reparamos que, em termos práticos,
A vida se resume
A uma planta que cresceu
Com a raiz a sorver do estrume
O que a leva a desabrochar no céu.
335 - Intemperança
Quanta exaltação,
Quanta intemperança
No interior de cada religião!
Não é o inferno, é o fanatismo
Que a todas as lança,
Por fim, no abismo!
Quando todas afinal darão
A fruir um pendor
Que nos alcança:
- O hino vivido do amor.
Para encher a Humanidade vazia
Era só, era tudo!
E, sobretudo,
Superabundaria.
Quando o mais nos afasta
(E ainda bem),
Tudo ali se contém.
E basta!
336 - Postura
Quando ao mundo concedo qualquer alma,
Altero minha postura.
Observo e escuto com calma,
Sigo-lhe a lisura.
Respeito-o, que o não crio
Nem controlo.
Tem tanta personalidade aquele rio,
Tanta independência atingiu
Como eu.
Da terra inteira o solo
É o cobertor em que me enrolo.
337 - Marcas
Pode a natureza deixar em nós
Marcas profundas:
A colina, o pinhal, da vereda o retrós,
Dos melros as cantorias jucundas,
Que emoções
Numa pessoa, numa família, numa
comunidade!
Ora, é pelos corações
Que nos enlaçamos de verdade.
338 - Fabricadas
Também coisas fabricadas
São de alma sempre dotadas.
Ligo-me a elas
E encontro significado,
De valores intensos acompanhado
E de memórias quentes como estrelas.
Um singular afecto
Pelas coisas nutrimos,
Mas tendemos a não lhe ter respeito
E do mundo nos excluímos.
Têm as coisas a capacidade
De se aproximar,
De pôr-nos da beleza a par,
De exprimirem subjectividade.
Nossa responsabilidade
Por elas
Assenta no apreço e na fraternidade,
Não de princípios em sequelas.
Com as coisas relações sentidas
Não permitiriam a deslealdade
De as abandonar poluídas,
De perpetuar a fealdade.
Eis o sinal
De que vigiamos:
- Apenas tratamos mal
Aquilo cuja alma negligenciamos.
339 - Inertes
Se deveras me convencera
Das almas das coisas,
Reinar sobre elas não era
Riscar consciente sobre inertes loisas.
Menos só me sentiria
Num mundo dinâmico
Do que no mecânico
Que por dever mantenho em dia.
Eu sou aquele oprimido
Pelo sentido do dever
Sempre de madrugada erguido
- Para ajudar o sol a nascer!
340 - Fonte
Uma fonte de alma perdemos importante
Quando as coisas simples tornamos
proibidas
E, delas cada qual ignorante,
Tocamos as vidas.
Uma árvore pode ser muito expressiva.
Porém, quando fala dela,
É minha alma que secreta torna viva
E me revela.
É que nós somos o mundo
E, logo após,
No fundo mais profundo,
O mundo somos nós.
341 - Contemplação
Artes são contemplação,
Raridade de hoje em dia:
É o mundo a descer no coração,
Vívido, profundo de magia.
O vazio que domina
A vida de muita gente
De não acolher é mera sina
A presença do mundo,
De o não apreender nem atrair
Plenamente.
Sinto-me vazio se no fundo
De mim não conseguir
Reter nada do que faço.
As artes prendem a atenção,
Metem-me o passo
A compasso.
Ora, o tempo é condição
Do abraço
A todas as coisas que teremos,
Para que nos penetrem e as assimilemos.
Viver com arte
Requer uma pausa.
Quem permanente parte,
Sempre em movimento,
É efeito sem causa,
Nada o prende, sopro de vento.
Assim, como convém,
É cada vez mais ninguém.
342 - Pressa
Ter alma é não ter pressa,
Para que ela penetre e ocupe o espaço.
Com o tempo dado às coisas, passo
A conhecê-las e começa
A união com elas.
O desumano da vida
É alhear-me das estrelas
E do que noutrem me convida.
A forma de o superar
É lidar tranquilamente
Com a fresta de luar
Que em mim luz intermitente.
343 - Bule
Arte de viver é reservar
Tempo às coisas para o lar,
expressivas, eloquentes:
Um linho, um tapete, um bule de chá
Enriquecem, quentes,
A minha vida, a dos filhos,
A dos netos que haverá…
São atilhos
De deleite para as almas.
Impossível descobrir almas recolhidas,
Colher as palmas,
Sem observar as coisas previamente,
Sem as horas despendidas
Por quem sente.
É um acto de intimidade,
Não a consulta do guia
De inverdade
Dum consumidor qualquer sem fantasia.
Superfície, textura, toque,
É tudo tão importante
Como a eficácia que me traz a reboque
E joga a vida para diante.
344 - Guardiões
Guardiões da casa e do jardim,
No seio da vida diária,
Movem-se os espíritos e falam-me a mim
Em conversa vária.
Esgueiram-se pelas fendas,
Dos utensílios pelas pequenas avarias,
Pelo divertimento das prendas,
Pelos rebentos dos canteiros,
Pela beleza do raio de sol nas pratarias,
Pelo vento a agitar, leveiros,
Os fios de roupa lavada
Em bizarras coreografias…
A veia artística de meu átrio de entrada
Que promove a contemplação,
Requer o talento
De compor um ramo de flores,
Executar uma pequena reparação,
Cozinhar um fermento
De sabores…
- É que tudo são humores
Onde cresce coração.
345 - Fome
A fome dos homens pela terra…
Como esta parece tão insuficiente!
E, então, quanta guerra!
Sempre a miopia do presente…
E como, por fim, todos regressamos,
Após a procela,
E, misturando-nos com ela,
Em pó da terra nos tornamos!
346 - Magoa
O que magoa os pais
Não é que um filho
Escolha um partido diferente, como os
mais.
É a ideia de ter aberto o trilho
A um impostor.
Felizmente para quanto dói,
O mistério
De transformar um impostor
Num herói
Ou num senhor,
- É só tomá-lo ou não a sério!
347 - Atrabiliários
Homens de boa vontade
E não fanáticos!
Em termos práticos:
Homens de verdade!
Por que tanto falharão,
Atrabiliários,
Homens de coração
E não os sanguinários?
A quem
Calha
Bem
Esta falha?
Insisto, resisto, persisto…
- Mas como nos atrapalha tudo isto!
348 - Simultaneamente
Nenhum povo, nenhum partido, nenhum homem,
Ninguém
Pode encarar os aliados que lhe convêm
Como adversários que o domem
Simultaneamente.
Amigos não há de reserva:
Somos gente vivente,
Não de conserva.
Os pomos
Da vida,
Só aceitando-nos como somos,
Com a vénia devida.
A contradição
Não superada
Atira-nos ao chão,
Arrastados na enxurrada.
349 - Maneta
Mais vale ser maneta em liberdade
Que ileso em servidão.
Salvar alguém contra sua vontade,
Não!
Os comunistas esmagam gerações
Para preparar o caminho das vindoiras.
Os fascistas dão os mesmos tropeções
Para eternizar heranças passadoiras.
Não é uma questão de servir fósseis
Ou meros aperitivos:
- Todos eles preferem fantasmas dóceis
A homens vivos!
350 - Noite
O terror da noite põe-me inquieto,
Tantas vezes desperto,
Quando a noite é um imenso olho preto
Permanentemente aberto.
Ser visto
E não poder ver,
Como no meio disto
Sobreviver?
Contudo, no que existo,
Esta é a primeira camada de meu ser.
Sejam os céus,
Seja Deus,
Por trás do que sou
Existe o Caminho por onde vou.
Quer olhe, quer me não ligue,
Ou é o Amor
Ou, porque inelutavelmente me obrigue,
Então é o terror!
351 - Resgatam
É difícil de esquecer
Que uns pelos outros paguem
Mesmo sem o saber.
E os fogos que na vida se desatam
Mais estranho é que se apaguem
Com o velo de anhos imbeles:
- É que uns aos outros resgatam
Mesmo contra a vontade deles.
Mais do que gavinhas,
Nós
Somos de todas as linhas
Os nós:
O aperto
que segura
aperta onde bater certo
E de mais não cura.
352 - Estilo
Há muito que não rezo
Por isto ou por aquilo.
Desprezo
Da superstição o estilo.
Rezo a quanto há de agreste
Naquilo que nos impele
Por este
Ou por aquele.
E é só,
Que tudo o mais é pó.
353 - Espera
Quem espera
Sofre tanto de ausência
Que noutrem às vezes nem tolera
Dum bom-dia a insolência.
Ali a palavra exaspera:
É a voz da falência.
354 - Classes
Há classes de nascimento,
Há classes de dinheiro.
Ambas se reproduzem pelo mesmo elemento:
O herdeiro.
Se não tens herança, para que as
ultrapasses,
Não te perturbe o tormento:
De espírito as classes
Não respeitam o nascimento.
O que acontece
Na jornada
É que o génio é sempre uma benesse
Não programada.
355 - Adversário
Ver o que o adversário prepara
É que o privara
Da vantagem do ataque:
- Da surpresa o baque.
O melhor exército vai ser
O que tiver
Os olhos melhores.
Resta-te na vida
O mesmo te propores.
- E levá-la de vencida.
356 - Jornais
Lemos os jornais como amamos:
De vendas nos olhos.
Compreender jamais procuramos
Os factos: são abrolhos.
Escutamos os murmúrios da redacção
Como os doces termos duma amante.
Somos derrotados pela paixão,
Mas a derrota é gratificante
Porque não
Nos cremos derrotados:
- Somos amados!
Como nos amores
Mentirosamente
(Todo o amante é um crente),
Somos sempre os vencedores.
357 - Querelas
Dos indivíduos nas querelas,
Para nos convencermos da razão de qualquer
delas,
O mais constante é sermos dessa parte,
Que o mero espectador nunca tem arte,
Tanto quanto não sente,
De a aprovar completamente.
O indivíduo, nas nações,
Se duma é parte sem reservas nem senões,
Não é mais que a célula viva
Do indivíduo-nação de que é cativa:
- Quanto mais um conviva ele ali seja
Menos tem a objectividade que se almeja.
358 - Entrega
Feliz da mulher que sem dar nada
Muito mais recebe que quando se entrega.
A mente apaixonada
Crê, do amor no meio da refrega,
De seu ídolo na virtude.
E com isto se ilude:
A auréola de que a virtude envolve
É o produto esquivo
Apenas criado e a que revolve
Aquele amor excessivo.
359 - Lápides
Vida fora, por todo o lugar,
Colhi um gesto, uma palavra
Que logro recordar.
Contudo, meu registo nada lavra
De quem foi de cada qual o autor singular.
Um livro é um enorme cemitério
Onde, na maior parte das sepulturas,
O mistério
É que nas lápides se apagaram as
assinaturas.
360 - Grosseira
Só uma percepção grosseira
Coloca tudo no objecto,
Quando a mente é a primeira
Instância de qualquer projecto.
Na realidade perdi
Qualquer meu ente querido
Meses após tê-lo visto ali
No caixão estendido.
Vi pessoas variarem de aspecto
Conforme a ideia
Que eu e outros tínhamos, em concreto,
Das linhas de sua teia.
Uma só serão várias, segundo
As pessoas que a lerem,
até para uma apenas, pois muda o mundo
Conforme os anos que entretanto
decorreram.
Vi sempre o amor colocar
Num ente
O que apenas em quem o amar,
Afinal, está presente.
A percepção
Do objecto
Apenas me oferece o chão
Sobre que implanto meu tecto.
361 - Retrato
Sabendo embora que os anos passam,
Que a juventude dá lugar à velhice,
Que as fortunas e os tronos se deslaçam,
Que a celebridade é passageira sovinice,
- Nossa maneira de tomar conhecimento,
De tirar um retrato qualquer
A este universo em movimento
Imobiliza-o num momento de ser.
Pelos tempos arrastados
que nos movem,
Vemos sempre como jovem
Quem jovem de si nos deu traslados.
Com as virtudes da velhice
Vemos os que conhecemos velhos,
Mesmo quando o tempo já nos disse
Que com eles nos morreram os conselhos.
Confiamos no crédito dum milionário,
No apoio dum soberano,
Quando a razão nos murmura quanto é vário
O destino em cada ano.
Não acreditamos, efectivamente,
Que amanhã é deveras outro dia
Que, neste, outro continente
Principia.
O sentido da história
Não mo dá, de facto,
Esta memória,
Apenas o acto consumado, o acto.
362 - Ideais
Viver e trabalhar
Para os tarecos conseguir
Foram ideais
De nossos pais.
Mudámos, porém, de lugar
E de porvir,
Devagar.
Doravante aquilo
É a mínima comodidade:
Não é um ideal de verdade
Consegui-lo.
O mais é o vazio
Onde continuamos a procurar
O fio
A que venhamos o Mundo a atar,
No fim do desvio.
363 - Cauda
Ela é sempre, ela,
Uma criatura vinda duma estrela,
agarrada à cauda dum cometa,
e que se deixou tombar, discreta,
No extremo do carreiro
A mim fronteiro.
- Depois
Conto sempre um onde houve dois.
364 - Cavador
O agricultor,
De enxada às costas,
Mistura, ao sol-pôr,
As sombras das encostas.
Fecundo cavador,
Cinzentamente
Mergulha na terra do suor
Onde se perde, semente.