QUARTO  CANTO

 

 

 

 

E  ERGO-ME  DE  PALAVRAS  REVESTIDO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 365 e 481 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                365 - E ergo-me de palavras revestido

 

                                                E ergo-me de palavras revestido

                                                No estreito

                                                E faço peito

                                                Do mar às ondas e ao bramido.

 

                                                E deste jeito

                                                Me descubro erguido

                                                Na onda, na maré, no penhasco subido,

                                                Tal se fora a tal afeito.

 

                                                E quando, na verdade,

                                                É a palavra que digo,

                                                Então é meu abrigo,

 

                                                É minha identidade:

                                                Não é um verso de pé trocado,

                                                Sou eu que moro ao lado.

 

366 - Passagem

 

A passagem de ano,

Ridícula na importância,

Sem relevância nenhuma,

Nos revela o arcano

De que muda o pano:

Recomeço de ânsia,

De esperança, em suma,

 

Que será melhor e fácil,

Que é possível  impossível…

E, afinal, o tempo, grácil,

Sempre igual, sempre impassível…

 

Continuamos pequenos

E frágeis, envergonhados

De crédulos nos terrenos

Que apenas serão sonhados.

 

Mas nós, os que acreditamos,

Vemos que é outra a verdade:

Além de quaisquer reclamos,

De que terão fruta os ramos

Só o coração persuade.

 

Tudo o que for construído

Principia

No coração refundido

Que o mundo que está para vir

Extasia:

- E assim germina o porvir!

 

A passagem de ano

É mesmo devida:

Semeia, por engano,

A outra vida.

 

 

367 - Intestino

 

Até há um milhão e oitocentos mil anos

O homem era um enorme intestino

Para diferir alimentos vegetarianos

Num intérmino metabolismo: um desatino!

 

O Homo Erectus, então,

Nosso antepassado,

Aumentou da carne o quinhão

E mudou-nos o fado.

 

Carne, gordura e tutano,

De fácil digestão,

É quase por engano

Que requerem estômago e intestino:

Ficam estes tão pequenos

Que a energia a menos

A alimentar o cérebro a destino.

 

Cresce o encéfalo em tamanho

E o Homem, em ganho.

 

Há quinhentos mil anos vem o fogo:

O alimento cozinhado

é digerido logo,

O aparelho digestivo é encurtado,

E, em contrapartida;

Aumenta o cérebro outra vez de medida.

 

Agora o Homo Sapiens é tão inteligente

Que até o vegetarianismo é coisa que o tente.

 

E nem vê que ser vegetariano é regredir

Às eras em que o Homem ainda estava para vir.

 

 

368 - Mesa

 

Dantes, quantas perguntas sem resposta!

Hoje, quantas respostas sem pergunta!

O computador aposta

Que nos junta

Na mesa posta.

Mas apenas a fome pode juntar

O Homem à mesa do lar:

- Sem a questão,

Como escolher o lugar,

Como pôr o pé no chão

E caminhar?

 

 

369 - Leitura

 

A leitura me povoa

Dos rostos e do lugar

Que terei de imaginar.

À toa,

A televisão

Imagina por mim:

Assim,

Não!

 

Quando quero viajar

Sem ter de sair de casa,

Viro a lauda devagar

Como quem abre uma asa.

 

E fico então bem entregue,

Exploro a selva ou o rio

Sem dar pelo tempo empregue

A encher de mundo o vazio.

 

Assim invento a aventura

Num lugar inebriante

E tudo é apenas o instante

Da leitura.

  

 

370 - Grão

 

Quando o grão de verdade não for encontrado,

Enquanto por tudo bolem,

Os homens mastigam e engolem

De mentiras enorme quantidade.

 

Muitas vezes a verdade

É oculta de tal maneira

Que quanto mais alguém a procura e peneira

Mais lhe perde a identidade.

 

 

371 - Largada

 

Cabeças quentes, frios corações

Nunca resolveram nada.

Cabeça fria, no coração vulcões,

É o que nos põe de largada

Sem juntar nossos senões

Aos da estrada.

 

 

372 - Elemento

 

Entre um ancião de incontáveis cãs

E um chimpanzé da mesma idade

Não divergem as manhãs

Vividas em comum

Senão, na diversa identidade,

Por um elemento,

Apenas um:

- É que o ancião desenvolveu o pensamento.

 

 

373 - Monde

 

Que é a filosofia?

Todo e qualquer responde

E ninguém responderia:

É que atrás dela se esconde

O real e a fantasia.

 

E onde encontrar quem monde,

Sem perigo,

O rebento melado dentre o virente trigo,

Sem arrancar do chão,

De vez, o pão?

 

 

374 - Cura

 

Sê pessimista.

Porém,

Ao agir, age como quem

É um incurável optimista!

 

Não cura

A vida,

Mas apura

A medida

Da energia devida

A quanto dura.

 

 

375 - Quão

 

Quão mais pequena a República,

Mais flamejante a bandeira.

Quão mais sonorosa e pública

Do programa a lista inteira,

Mais mesquinho e virulento

Do sectarismo o elemento.

 

É uma lei

que não requer Parlamento

Nem que a dite nenhum rei.

 

É o tormento

Que atormenta qualquer grei

Desde os princípios do tempo.

 

 

376 - Palhaço

 

Rimos todos do palhaço

Que cai por não agarrar

Aquilo a que estende o braço.

 

- Por fazer, se calhar,

De maneira fingida

O que a sério fazemos toda a vida.

 

 

377 - Cintos

 

Apertemos os cintos,

Voltemos ao trabalho!

 

De sonhos extintos

Por tudo quanto falho,

Do descontentamento preciso

Para tornar mais real

O sinal

Do paraíso.

  

 

378 - Pregação

 

A pregação adequada

Podemos conhecê-la

No que em nós abre uma estrada:

Porque nos revela

Segredos inefáveis e extremos

- Que nós, afinal, sempre soubemos!

 

 

379 - Pilares

 

Suportam o templo do mundo

Quatro pilares:

Dos sábios a sabedoria,

Dos bravos o valor fecundo,

Dos justos a prece sem altares,

Dos grandes em justiça a primazia.

 

Porém, tudo em nada vai dar

Se deles adiante

Não tiver um governante

Que saiba governar.

 

 

380 - Fraterna

 

A persuadir,

A força de quem governa

Terá de aprender,

Fraterna,

Em lugar de se perder

Sempre, sempre a compelir.

 

A persuadir

É que, eterna,

Poderá ir, poderá ir, poderá ir…

 

 

381 - Rigorosamente

 

É assim:

Qualquer estrada

Seguida rigorosamente até ao fim

Não leva rigorosamente a nada.

 

Trepa à montanha um pouco apenas,

Até verificares que é uma montanha:

Do cimo da montanha quando acenas

Então já teu olhar a não apanha.

 

- Poderás ver pelo mundo além

Mas teu pé não vê o que por baixo tem.

 

 

382 - Grandeza

 

A grandeza é transitória,

Jamais devém consistente.

Depende do imaginário e da memória

Com que um mito um homem tente.

 

Quem experimenta a grandeza

Tem de ter senso do mito

Que a rodeia e embeleza,

Reflectir esse infinito

Com a ironia que o preza.

 

Então é que se desliga

Das pretensões que tiver,

Mora por baixo da liga

De sonho que imita ser.

 

As grandezas, sem esta qualidade,

Por minúsculas que o tomem,

Mesmo a da mera ocasionalidade,

Matam um homem.

 

 

383 - Côdea

 

Melhor é uma côdea de pão seco

E em paz

Que um palácio cujo tecto

Apenas com sacrifícios e lutas se compraz.

 

Aqui ninguém come.

- A paga

É uma fome

Que tudo traga.

 

 

384 - Nutriente

 

A vida melhora o ambiente

Para a vida sustentar.

Torna o nutriente

Preciso e a disponibilizar

Mais rapidamente

Presente.

Reúne mais energia

No sistema em cataclismo,

Pela interacção que inicia

De organismo a organismo.

 

Quimicamente,

A vida faz que a vida assente

Na vida

Que a mais vida convida,

Indefinidamente…

 

 

385 - Nómadas

 

A vida é movimento

Na paisagem animal.

Os nómadas seguem o elemento

Necessário e fatal.

 

A trilha do itinerário

Ajusta-se à carência de água,

De comida e minerais.

O mapa, rigoroso e vário,

Traz de nossa mágoa

Os sinais.

 

E o segredo

De como aprendemos a perder o medo.

 

 

386 - Cútis

 

O homem e a obra

São a doença na cútis do planeta.

 

Quando a natureza se dobra

E a doença detecta,

Tende a retirá-la,

A compensá-la,

A encapsulá-la,

Até incorporá-la

No sistema.

Até que nada tema:

Nem que, de enxurrada,

Nos leve ao nada.

 

Até porque, ao fim, o homem

É sempre o que os vermes comem.

 

 

387 - Chusma

 

Um chefe é o que distingue

Duma chusma um povo:

Para que deste o nível vingue

Ele o choca, como um ovo,

E, para onde o inclina,

Eternamente o germina.

 

 

388 - Ameaças

 

Quando a premência

Nos invade

Com ameaças tamanhas,

A sobrevivência

É cada vez mais a capacidade

De nadar em águas estranhas.

 

 

389 - Divisória

 

A linha divisória

Entre ignorância e conhecimento,

Entre a cultura e a brutalidade,

É da memória

A dignidade:

- Os troncos erectos ou tortos

É do modo como tratamos os mortos.

 

 

390 - Elo

 

Trago comigo a corrente

Forjada em vida,

Elo a elo, lentamente,

Por minha vontade entretecida,

Por minha vontade atada à mente;

Tolhendo-me os pés.

 

Saberás o peso e o comprimento

Da corrente que és?

É um comprido e pesado elemento

Que de ano em ano trabalhas

E em que teus passos atrapalhas

Em lugar de te soltar ao vento.

 

És a corrente de ferro

A que te soldaste de erro em erro.

 

 

391 - Dinheiro

 

Meia dúzia de moedas

É caso para propor

Que lhe concedas

Tamanho louvor?

 

Ou ele tem o poder

Das raízes,

De nos fazer

Felizes ou infelizes?

 

De nos tornar o trabalho

Leve ou um fardo,

Como à sombra dum carvalho

O canto dum bardo?

 

Um prazer

Ou uma fadiga,

Conforme o jeito de acolher

Se ameiga ou obriga?

 

O poder é o do dinheiro

Ou reside, se calhar,

Na palavra, num olhar

Que da moeda escorre inteiro?

 

Em coisas tão ligeiras

E tão insignificantes

Que delas nem sequer te inteiras,

De tão hesitantes

Nas maneiras

Que nem dão para somá-las nem contá-las,

Por mais que vistam galas?

 

- É pouco dinheiro… Será?

Para os sedentos na duna,

A alegria que nos dá

É quase tão grande

Como se aquilo que nos mande

Houvera custado uma fortuna.

 

 

392 - Parcial

 

Como o mundo é parcial!

É duro com a pobreza

Mas condena por igual

A procura de riqueza!

 

É assim a vida…

Depois queixamo-nos de que não há mais saída.

 

 

393 - Fulminar

 

Que demora a da vingança e do castigo!

Que rápido fulminar um homem!

Que tempo leva a criar e guardar o perigo

Dos raios que o somem?

 

Não demora muito um terramoto

A engolir uma cidade,

Mas a prepará-lo, ignoto,

Quantas eras decorreram de verdade?

 

Pronto, acontece e destrói tudo;

Ao preparar-se, ninguém o ouve nem vê.

- A consolação

É, sobretudo,

A de quem espera e crê.

E crê que não!

 

 

394 - Grão-senhor

 

Todo o grão-senhor

Que a vida inteira pagou juros ao diabo,

Quando à frente o logrou pôr,

Acaba de tal modo amedrontado

Que, sem tugir nem mugir,

Recorre aos nobres pés para fugir.

 

Foge à raiva do faminto,

Às desolações da guerra,

Foge às chacinas do instinto…

 

Porém, não o converte o que o aterra:

À primeira oportunidade,

Retomará logo

Quanto fizer explodir o fogo

De sua diabólica divindade.

 

 

395 - Margarida

 

Entre os escombros, uma margarida,

No campo de batalha,

Quão mais se torna querida

Do que a que no canteiro de casa

Por sorte nos calha!

É que, lá nascida

Contra quanto a arrasa,

Demonstra quanto a vida

É forte e por medida.

Quão preciosa

Nos abrasa

Onde a vida já não goza

Senão desta tremura de asa!

 

 

396 - Erro

 

O erro é o Homem,

Não o mundo.

O Homem é que não muda, infecundo,

Que não há forças de rico ou pobre que o domem.

 

Do mundo à tona,

É o Homem que, culto ou inculto, não funciona.

 

É o Homem que, do Mundo na magia,

Mantém a mais perversa hierarquia.

 

Basta de miséria que absolve,

De mentiras evangélicas

Sobre a ignorância que tudo resolve,

De implorar pelo perdão

Basta rezas angélicas!

Não!

 

“Perdoa-lhes, Pai,

Porque não sabem o que fazem”?!

- Ai

Sabem, sabem!

E, enquanto com o iníquo se comprazem,

De estúpida euforia em si não cabem!

 

Sabem e, por tal motivo,

É que se perdeu a estrada.

Doravante o Homem vivo

Já não acredita em nada.

Isto é que é de arrepiar:

É o Homem a doença

que nos anda a roubar a pertença

De nosso lugar.

 

 

397 - Paragem

 

Por que é que nunca a vi,

Por que é que nunca a vejo,

À palavra que senti,

Que desejo?

 

É que além de ouvida e vista,

Uma palavra se vive,

Respira-se, toca-se quando exista

No vago som que cative.

 

Além de som e de imagem,

É carne de minha carne,

É o mistério em paragem:

É sempre o verbo que incarne.

 

De vez

Quando incarnar em mim,

Então, sim,

Acabará todo o talvez,

- Será do entremez o grande Fim!

 

 

398 - Livro

 

Por trás de cada banho de sangue

Que houver nome de revolução,

Há um livro:

Não me livro,

Langue,

Olhando, cândido, para a ilusão!

 

Por trás de cada loucura

Institucionalizada,

Há um livro:

Não me livro

Por trás da desculpa da procura

Duma estrada!

 

Por trás de cada violência

Colectiva

Há um livro:

Não me livro

Com a evidência

De que toda a liberdade é furtiva!

 

Por trás de cada

Genocídio

Há um livro:

Não me livro

Com a desculpa de que uma rua rasgada

Requer ao lado um presídio,

Ou não haverá caminhada!

 

Ideologias que escravizam

E impedem de ter ideias,

Palavreados que visam

Nobres sonhos e são teias

Onde o real de cotio

Só não morreu por um fio,

Sugestões diabólicas

De boas sinas

Que, de utópicas,

Levam a carnificinas,

Contra um cancro sagrados protestos

Que em troca geram outros mais molestos…

 

E quantos rapapés e lambidelas

Por trás das desgraçadas sequelas!

 

Onde encontrar

Os adivinhos?

Nós somos, afinal, que caminhos,

Que lugar?

 

 

399 - Quem?

 

“Quem és tu?”

“Serei aquele que for

Sendo.”

- Nada mais nos resta no baú,

Apenas o amor

Que nos for entretecendo.

 

- Posso ver-Te, Deus, apostas?

Nem vale a pena, que Ele vira as costas!

 

Em teólogo alguém se emproar,

Que desperdício de tempo e de energia

Numa fantasia

Para ao fim se enganar!

 

- Para ao fim nos encurralar

Qualquer dia,

Se calhar…

 

 

400 - Jornalista

 

O jornalista é importante:

É onde o público pode ler

De que é que o público poder

Quer que ele seja garante.

 

O jornalista, em democracia,

É o intérprete medianeiro

Entre os governantes e a cidadania

Que um dia o público assumirá por inteiro.

 

 

401 - Preparo

 

Quando a não preparo,

A lição

Acontece muito raro

Então.

 

Se preparo a lição,

Porém,

Acontece ou não

Também.

 

A diferença

É apenas uma ilusão?

Quando chega a ocasião

Quero ou não quero que vença?

 

Ora,

Se não estiver prevenido,

Demais a reacção me demora,

Escapa-me o gesto devido:

Tudo são reveses

O mais das vezes.

 

Preparado, fico ao abrigo

Do vergonhoso castigo:

O de o milagre acontecido

Haver, ao fim,

Sem mim ocorrido,

Ou ocorrer contra mim.

 

 

402 - Posteridade

 

Cada qual dará o que tem.

Bom e mau, tudo depende:

Ninguém

É juiz último da qualidade.

Depois escolhe disto o que entende,

Definitiva, a posteridade.

E nem prestará contas do que lhe convém,

Que nem sequer vai ter a quem.

 

 

403 - Acalenta

 

O ideal acalenta

E atormenta,

A angústia enregela

E apela…

 

…O problema é que ninguém ainda mora já

Do lado de lá!

 

 

404 - Sinal

 

Cada qual é o que é

E é mais.

Ser pessoa é ir pondo de pé

este sinal dos sinais.

 

Cada qual, quando se fite,

Vê que somos este grito:

- Apetite

De infinito!

 

 

405 - Atropelado

 

Os mundos rolam que rolam,

Cada estrela,

Secreta, é um novo dado…

 

As palavras os mundos rebolam.

- Cautela

Para não seres atropelado!

  

 

406 - Fruteira

 

Como a fruta madura cai do galho,

Assim eu, da vida no termo do trabalho.

 

Como a fruteira da fruta recolhida

Não tem mais informação por toda a vida,

 

Assim eu aqui deixo o galho seco

Onde os mais lêem meu corpo que peco.

 

Da prisão da raiz enfim liberto

Pelo mundo secreto então me perco…

 

E os mais

Aqui ficam sem sinais

Da aventura

Que infindável, afinal, em mim perdura.

 

 

407 - Sabedoria

 

A sabedoria da mulher

É que não pensa,

Por isso lhe sai tão bem:

Nada premedita, quer!

Deixa-se guiar por instinto, crença…

- Nunca falha, porém.

 

O homem não é, afinal,

Um animal racional:

É o que nele quiser

O fundo enigmático do ser.

 

 

408 - Leveza

 

Como pesa

acabrunhada

Minha pobreza

Letrada!

 

Mas que leveza,

Esta leveza de nada!

 

 

409 - Coxa

 

Da coxa da inteligência

Brotam gigantes.

 

E a impotência

Dos restantes,

Debatendo-se à sombra do tamanho,

Sem daí auferirem jamais ganho…

E a confusão, na sociedade,

Da sombra com a realidade…

 

 

Da coxa da inteligência

Brotam gigantes.

- E o mistério da excelência,

Tão mistério como dantes.

 

 

410 - Orelha

 

De repente, ele profere

O Belo.

 

Não é ouvido.

 

À orelha contemporânea o que a fere

Larga demais, é o atropelo

Vulgar e repetido

Que sobrenada à flor

Do rio da cultura.

 

E o que veio transpor

A fundura,

Mesmo surpreendente e surpreendido,

De pão embora provido,

Há-de caminhar sempre sozinho

Ressuscitando mortos pelo caminho.

 

A banalidade não vê

Senão

A humilhação

Daquele que é!

 

 

411 - Carro

 

Não sonhas, como eu, num carro

Em que iremos viajar,

Sem conseguir, quando o agarro,

Para dentro dele entrar?

 

Tal e qual a vida:

Sempre a mudar de lugar,

E nós, de seguida,

Aqui a vê-la passar…

 

 

412 - Sítio

 

Por que escrevo, por que escrevo?

É o sinal

Que levo

Daquilo que convém:

 

- Em qualquer sítio real,

Uma qualquer porta de além,

Atrás da qual

Pode estar Alguém…

 

 

413 - Nascimento

 

Fatalmente o dia

Pelo desconforto principia:

O estranho nascimento

Das vidas

No estremecimento

Das coisas conhecidas.

 

Que seria

Se fora a vez primeira,

Se fora o primeiro dia

De cada vez à cabeceira?

 

 

414 - Amanhã

 

Olhamos para amanhã.

Corremos o perigo

De esquecermos nosso umbigo:

Toda a corrida é vã

Se, enquanto foges

Sonhando,

Esqueces todos os hojes

Que vão passando.

 

 

415 - Figo

 

O agricultor, com toda a calma,

Cultiva

O campo.

E ali colhemos o figo lampo

De nossa alma

Colectiva.

 

 

416 - Súbita

 

Súbita vislumbro alma

No trivial ligeiramente remoçado

E o invisível  me acalma,

De ali visibilizado.

 

Então sei que conseguimos:

- Já imos!

 

 

417 - Inclinação

 

Como arquivas

Tua estranha inclinação

Para as expectativas

Contradizer?

 

- Perdão, salvação,

Ou a ignota voz funda do ser?

 

 

418 - Superfície

 

Eis uma flor à espera de romper

A superfície dura do que creio

Que é o vero seio

De meu ser.

 

À espera, eternamente à espera…

- Mesmo quando

Eu vá navegando

Outros rumos na galera.

 

 

419 - Capacidade

 

O problema verdadeiro

Não é o da capacidade

De ter uma boa vida.

Temos, para tal, o dom inteiro

E a maturidade

Devida.

Problema é a nossa capacidade

De a não ter.

Ainda por cima esta é a verdade

Que mais custa a crer!

 

 

420 - Missão

 

A missão é procurar

Para nossa alma um sentido

E preservá-la.

Por nós o mesmo anda a obrar

Nossa alma, no rumo desconhecido

Que a iguala

E por nós não é medido.

 

Esforço-me por respeitar

O que a alma me apresenta,

Mas a alma é que tenta

O sentido, ao fim, descortinar.

 

Nesta reciprocidade

É que a saúde me invade.

 

 

421 - Trágico

 

Numa cultura protegida

Contra o sentido trágico da vida,

A depressão

É o inimigo:

A doença é um fatal papão

Sem remissão nem castigo.

 

No entanto,

Numa colectividade

Onde apenas a luz conta tanto,

A depressão devirá,

Na verdade,

Tão poderosa desde já

Que o mais vulgar

É ser o ar

Que se respira:

- Se no-lo tiram, tudo em nós delira!

 

 

422 - Melancólico

 

O pensamento melancólico

Escava a caverna interior

Onde instalar a sabedoria.

É o chumbo que, bucólico,

Empresta peso e ardor

À intimidade fugidia,

A combinar

A busca da luz com a fluidez do ar.

 

No íntimo a semente se intromete

Onde eterna a escavação se nos repete.

 

 

423 - Derradeiro

 

O derradeiro mistério

Somos nós.

Pesado o Sol, medida a Lua,

Traçado o roteiro de cada Império,

Desatados os górdios nós

De cada estrela, de cada rua,

- Restamos nós ainda.

 

Quem poderá calcular

A história advinda

Por onde a alma nos vai orbitar?

 

Que fim nunca, nunca finda?

 

 

424 - Carpinteiros

 

Dentro em  nós os carpinteiros

alicerces e esqueletos

Construindo dos viveiros…

Tempo de melancolia,

De renovar os tectos,

Quando o velho de mim removo,

Quando o troco, dia a dia,

Pelo novo.

 

Sonho com estaleiros,

Parede a ser erigida…

- Minha alma a ser construída

Desde os fundos primeiros.

 

Trabalho e engenho…

Na melancolia

A vida externa antolha-se vazia,

Mas, na interna, o empenho

Pode mudá-la, tanto quanto me esforço,

Dum milagre com o escorço.

 

 

425 - Fonte

 

O corpo humano é uma fonte

De imaginação,

Onde ela se diverte, pelo monte,

Às cabriolas no chão.

 

O corpo anda cheio de alma

Na forma mais expressiva:

O gesto, o movimento, leva a palma

À fisionomia viva,

 

Os tiques, as doenças,

O vestuário, a temperatura…

 

- De carne quantas sentenças!

E não é precisa nenhuma literatura…

 

 

426 - Reparte

 

Meu corpo reflecte e faz parte

Do corpo do mundo:

Quando neste o dano aprofundo

Comigo ele se reparte.

O exterior, no fim,

Faz parte de mim.

 

Afinal,

Não há engano:

Nada distingue, no essencial,

O corpo do mundo do corpo humano.

 

 

427 - Máquina

 

É como a máquina o corpo de agora.

Não funciona? Troca de peça,

Que logo na hora

Recomeça.

 

Outrora, um corpo assim,

Sem poesia,

Sem outro fim,

Só no frenesim

Da esquizofrenia!

 

Um corpo com alma respira

A partir do corpo do mundo.

Hoje, sem fundo,

O corpo é mentira.

 

 

428 - Reino

 

O maior deleite

Dos campos, dos bosques,

É que és sempre aceite

Quando, verme, te desenrosques.

 

É neles que treino

A relação oculta

Com o vegetal reino:

Acolhe-me, não me sepulta.

 

Não fico sozinho

Nem despercebido:

Os bosques acenam-me carinho,

Eu aceno-lhes sentido.

 

 

429 - Secular

 

O trabalho jamais é

A tarefa secular

Que o mundo moderno julga pôr de pé

E a caminhar.

 

Quer de arte e de cuidado,

Quer de repetitivo talhe inconsciente,

O trabalho executado

Atinge bem mais fundo do que a mente.

 

Prenhe de imaginação,

Atinge alma em níveis diferentes,

Invoca lembranças, fantasias, tradição,

Mitos familiares ausentes

De súbito virentes.

 

O trabalho é vocação,

Chamamento do lugar

Do significado e da identificação:

As raízes irão mergulhar

Para além das intenções,

Para além das interpretações,

No alicerce que me anda a semear

Pela mão, pela mão dum outro olhar.

 

 

430 - Artístico

 

Falta o artístico elemento

No território da vida:

Fragiliza de alma o alento,

Minga-lhe a medida.

 

A indústria moderna

Tem um problema:

Não é de a produtividade ter à perna,

É de ter perdido das almas o lema.

 

Ora, tal perca

Em que mercado se merca?

 

 

431 - Produtos

 

O trabalho é narcisista

Quando já não logro amar-me

Nos produtos em que exista,

Perdido de vez o charme.

 

A vida desenvolver

É do facto dependente

De nela poder colher

Meu reflexo iridescente.

 

Se nem sequer tenho imagem,

Quem sou eu?

Em que viagem?

  

 

432 - Defesa

 

Se o dinheiro for apenas defesa

Contra a pobreza,

Quem a tal se der

Nunca vem a conhecer

A riqueza.

 

É que, para uns, rico

é de crédito um cartão,

Para outros o nome é um salpico

Na lua da ilusão

- Tão subjectivo é o toque

De cada enfoque.

 

A riqueza não é calculada

Pela conta bancária,

É o que lhe pintar na fachada:

- A riqueza é imaginária.

 

 

433 - Fracasso

 

O fracasso laboral

É componente fatal

Dum espírito, ao descer

Sobre o nada humano:

Dum mistério mais arcano

Do que problema vai ser.

 

Quando em mim este estilhaço

Do fracasso

Aprender

A conhecer,

Este Infinito sempre falhado

Que é minha chaga do lado,

Então é que a sério

Ponho o dedo no mistério:

 

- Posso começar a ser

Quanto em mim aparecer,

Sem o tropeço

De quem não há meio de aprender

Que é sempre e só começo.

 

 

434 - Alquimia

 

Se a apreender não vier

A alquimia do fracasso,

Nunca venho a conhecer

O sucesso

E me deslaço.

 

De minha incapacidade

O recesso,

Quando a acolho e enfim me invade,

É que me tranca de vez a janela

De identificar-me a mim com ela.

Liberto assim,

Poderei então voar por fim.

 

 

435 - Criativa

 

A obra criativa pode ser

Excitante, inspiradora e divina,

Mas também há-de conter

A rotina.

 

Enfadonho, de ansiedade pejado,

Frustrante, prenhe de impasses,

De erros e fracassos alinhavado,

- Eis os traços de que traces

O roteiro do divino

Em teu destino.

 

Caminha para a luz, caminha…

Entretanto,

Enquanto se avizinha,

Quanto suor, quanto pranto,

Quanto desencanto

A deslaçar os nós da linha!

 

 

436 - Animal

 

Talqualmente um animal,

A alma se alimenta

Da vida que floresce no local

Onde espontânea se apresenta.

 

Para ela, o comum é sagrado

E o quotidiano

É a fonte e o dado

Primordial da religiosidade,

Não é profano.

 

Esta das verdades é a verdade

E é por isso que me engano.

 

No que tenho não vivo o mais-além,

Portanto este não me invade,

Não me persuade…

- E eis porque jamais vem.

  

 

437 - Esófago

 

Os meios ao dispor

Para nos ligarmos ao trabalho interior

Não penetram tão fundamente

Como deveríamos ter em mente.

 

O esófago não transfere para dentro

A matéria do mundo exterior,

que é curto demais, quando nele entro,

Para o quimo transpor

Até ao estômago das almas.

 

Quando o vês cada dia mais elástico,

Bates palmas

E acalmas,

Não reparas na superficialidade:

Ele é feito de plástico,

Como toda a cidade

Nesta idade.

 

Qualquer alma de plástico alimentada

Em vão busca vestígios de beleza

Na falsificada

Natureza.

 

E, enquanto a vida inteira

A autenticidade imola,

Leveira, cada vez mais leveira,

A alma estiola.

 

 

438 - Análise

 

De nós mesmos compreensão

De análise confundimos

Racional, até mais não

Visarmos o que medimos.

 

A maioria

Gosta de testes verbais,

A moda em psicologia

Onde baralhamos sinais.

Não vemos quão inibidos

De autoconhecimento

Acabamos, preteridos

Pelo elemento

Sempre em vista

Duma fórmula simplista.

 

Só na complexidade

Me fito:

Minha verdade

É o infinito.

 

 

439 - Plantada

 

A espiritualidade é plantada,

Germina e cresce

No mundo material que floresce.

 

Tem de ser descoberta e encorajada

Em cada nada,

Nas mais comuns, nas mais ordinárias

Tarefas diárias.

 

Espiritualidade é, sobretudo,

Descobrir, em cada nada, tudo!

 

 

440 - Surpresa

 

O esforço intelectual

De viver no conhecido

Priva o quotidiano do normal

Inconsciente vivido,

Aquilo com que me cruzo

Diariamente

Mas que, de uso,

Ninguém sente.

 

Vida integralmente consciente

Num mundo intelectualmente previsível,

De que o mistério fora ausente,

Só pelo conformismo legível,

Desperdiça

A vida intensa que há na liça.

 

A razão quer conhecer,

A alma quer a surpresa.

Olha aquela para fora, em busca do prazer

De ser iluminada no que preza.

Esta vira-se para dentro,

Busca a contemplação,

E, quando me adentro,

O maior estupor

Vem da revelação

Do mundo inferior.

 

Vem donde não chego,

Onde não moro,

Mas onde afinal me ancoro,

Donde a mim próprio me pego.

 

 

441 - Fundamentalismo

 

O fundamentalismo é uma defesa

Contra os harmónicos da vida,

Contra a riqueza

Desmedida,

Contra o politeísmo da razão:

- Nunca vê quantos sins moram num não.

 

 

442 - Sumário

 

A razão quer um sentido

Único e sumário,

Devido

A nosso pragmático itinerário.

 

A alma, porém, anseia

De sentido por múltiplos níveis,

Cambiantes infindos planeia,

Referências e alusões

E as mais incríveis

Prefigurações…

 

É o que enriquece

A textura duma imagem,

Duma história que acontece

E salvamos da voragem.

 

O que as almas gratifica

É o que lhes fornece

A matéria a que se aplica

Este ferrão

De reflectir,

É sentir, sentir, sentir,

Até nos mergulhar os pés no chão.

 

 

443 - Tacanhez

 

A espiritualidade

Estrutura a vida humana.

Quando o fundamentalismo a invade,

Toda em tacanhez se aplana.

 

Então em mim me divido

De meu fundo de sentido.

 

 

444 - Encegueiradas

 

Se ultrapassarmos, capazes,

Gestos fundamentalistas,

As morais de bons rapazes

Encegueiradas das vistas,

Interpretações fixistas

De histórias,

Comunidades fechadas

Que jogam fora, como escórias,

De cada qual as caminhadas

E as pessoais pernas quebradas,

Então

Muitas alternativas surgirão.

 

Toda a actividade humana,

Toda a emoção,

Da vida as inúmeras esferas,

Tudo, tudo em nós emana

De raízes tão para além das eras

Em nós tão fundo entranhadas,

Que só as podemos tomar como sagradas.

 

 

445 - Terreno

 

O intelecto requer prova

De pisar terreno firme.

Alma, porém, se renova

Só no gosto de seguir-me,

Adora a persuasão,

Da análise a subtileza,

Lógica do coração

Que a razão pesa e despreza.

 

É discussão inconclusa,

Por gosto de prolongar

Por ela a partilha que usa

Ou um livro a consultar…

 

Satisfeita de incerteza

E dúvida quanto baste,

Qualquer alma adora a reza

Que a partilha nunca afaste.

 

Mesmo em decisão tomada

Continua a reflectir,

Já que a vereda calcada

Tem pegadas doutro ir

No avesso da caminhada,

 

É que, se a mente é bordão,

Ter alma é que é mesmo o meu chão.

 

 

446 - Reivindicação

 

A alma sabe:

Da verdade a reivindicação,

Se dentro de nós cabe,

a verdade, não.

 

A verdade é relativa.

Sempre diante do espelho,

Em postura especulativa,

A alma, eterna espectadora,

Segue, avisada, o conselho

Da demora.

 

E constante desenvolvimento,

A verdade

É também subjectividade

E um secreto elemento

De paixão:

- A alma da verdade

É imaginação.

 

 

447 - Espírito

 

O espírito de criança:

A visão nova, o idealismo pretendido.

 

Quem alcança

Livrar-se do peso enorme

Do mundo estabelecido,

Da teia de ideias nada conforme

Ao pertinaz desenvolvimento,

Da criança sem o elemento?

 

Pode, porém, abrir feridas.

Ao elevar-se tão alto

No salto,

Pode perder as medidas

À fragilidade,

Ao fracasso

Da nossa inelutável mortalidade.

 

E é-lhe escasso

O atractivo:

Encantadora e atraente,

A criança

Tem também um lado esquivo.

Obscura e dissimulada,

A criança também fere

E nada,

Antes de experimentada,

No-lo previne ou confere.

 

Contudo, ser criança,

Quem dera!

Quem o alcança?

E, sem sê-lo, que lugar

Será lugar de alcançar?

  

 

448 - Tonturas

 

Quem acreditar na terra

E de lidar com as exigências dela for capaz

Se calhar com as alturas se aterra

A que seu espírito pode elevar-se,

Tais as tonturas que lhe traz.

 

Antes que esgarce

Poderá ter de largar a corda,

A permitir o nível adequado

A um espírito que acorda,

Finalmente nado e criado.

 

O espírito que se desata

Pode sofrer uma ameaça.

 

Mas o perigo maior é o da ligação timorata

Dum espírito elevado,

Pela massa.

Em demasia sobrecarregado

Que dimana

Da responsabilidade mundana.

 

 

449 - Sinecuras

 

Tememos as alturas

De que o espírito é capaz.

Pagamos as sinecuras

Duma religião que traz

Acalmia e contenção

A um espírito que poderia

arejar pela amplidão

Esta vida seca e fria.

 

Tudo então finalmente mudaria…

 

Mas tememos.

Então, terrenos

Continuaremos,

Pequenos, indefinidamente pequenos.

 

 

450 - Engolido

 

Quando

O não expando,

É o espírito engolido

De morbidez por más caras sintomáticas,

Como os cultos sem sentido

E as práticas

Da charlatanice.

Por fim, a superstição,

Ante a minha sovinice,

Ata-me a algema na mão.

 

Desbastado ao torno,

Em lugar de me expandir,

É o nada aonde retorno

O meu porvir.

 

 

451 - Limites

 

Tendemos a crer

Que é dentro dos limites da razão

Que o espírito é de manter.

 

Ele, porém,

É que tem

Seu princípio de limitação,

Capaz de encontrar o nível adequado

Para o sonho que haverá,

Ora aqui, ora acolá,

De ser em mim algum dia incarnado.

 

 

452 - Apelo

 

Falar de Espírito Santo

Não é vivê-lo.

Falar da fé

Não é

Nem sentir-lhe o encanto

Nem o apelo.

 

Reagir confiante

Aos desafios da vida

É que leva a fé para diante

Até à justa medida.

 

Nada impede, porém,

De confinar a fé na crença,

De modo que na vida que a contém

Nada bula, nada vingue, nada vença.

 

Das crenças o sistema

É uma forma de manter

A distância como lema

Entre elas e o que a vida nos trouxer.

 

Quando a crença é absoluta,

Toda a vida,

Ao pedir-me confiança, disputa.

E, ao exigir-me novidade,

A vida impetuosa se evade,

Vai de fugida.

 

A crença é fixa, imutável.

A fé reage ao anjo

Que agitar meu lago navegável,

À descoberta dos mundos que ainda não abranjo.

 

 

453 - Multiplicidades

 

Lugares, eventos, personalidades

São das almas o percurso:

Da vida iniciação às multiplicidades,

Mais que à iluminação recurso.

 

No percurso instável,

Por obstáculos retardado,

Das tentações no fado,

Devirá inviável

Qualquer objectivo.

 

O desejo de progresso

Guardado no arquivo,

É de alma, é de alma no excesso

Que vivo!

 

 

454 - Pego

 

Alma não é o ego,

Não sou eu:

É a infinita profundidade

De meu pego,

O abismo da Terra, o do Céu…

 

Abrange os inúmeros aspectos

Misteriosos

Que intercombinam os tectos

De minha identidade.

 

E aflora os gozos

Duma prometida infinidade.

 

 

455 - Sibilinas

 

As ruínas,

Como velhos instrumentos,

Revelam-nos, sibilinas,

Da beleza os elementos.

 

Uma vez a função desaparecida,

Devém qualquer alma então visível,

Como se antes vivera escondida

Sob o funcionamento outrora exequível.

 

Alma não tem de ter função,

Mas beleza, forma, memória:

Alma é sempre uma história

De coração.

 

É sempre de alma um abuso

O mito dominante e cego

Do uso

A que exclusivo me apego.

 

 

456 - Atenção

 

Para as almas preservar

Das coisas, tanta atenção

Deveremos prestar

À forma como à função,

Ao invento

Como dele à degradação.

 

Tanto à eficácia do instrumento

Como à qualidade do toque

Com que leve a reboque

O coração.

 

 

457 - Vandalismo

 

O vandalismo

De escolas, sepulcros, igrejas

Revela, paradoxal, o sacralismo

Que afinal desejas

Mas nas coisas de ordinário ignoras.

 

Quando perdemos o sentido do sagrado

Ele reaparece a desoras,

Do negativo lado.

 

O mundo inferior

Pela via degradada

Tenta repor

Dele a dimensão sagrada.

 

O apreço pela beleza contém

Uma receptividade particular

Ao poder que as coisas têm

De nossa alma nos agitar.

 

 

458 - Pintor

 

Quando deixamos qualquer arte

Ao cuidado

Do pintor consagrado

E do museu que o reparte,

Em lugar de encorajar

Nossa sensibilidade,

Perdemos a oportunidade

De mais alma conquistar.

 

É o mesmo quando a religião engana

Uma actividade de fim-de-semana:

Relegada

Da vida à periferia,

Mesmo periferia exaltada,

À religião escaparia

A oportunidade

De a cada qual,

Afinal,

Emprestar alma de verdade.

 

 

459 - Intimamente

 

O espírito duma obra de arte

É vivido intimamente,

Não de forma distanciada.

 

Dele não faz parte

O metro, o peso, o reagente,

A leitura objectivada.

 

Afinal,

Muito mais que compreendido

E racional,

O espírito é sentido.

 

Longe de limitar-me,

O que isto contém

De alarme

É que requer que me desarme

E salte para além,

Par indefinidamente mais além…

..Até que um dia, talvez, venha a salvar-me!

 

 

460 - Berma

 

Arte é preservar, albergar alma,

É apreender vida,

Pará-la na corrida,

À berma da estrada,

Para poder, com calma,

Ser contemplada.

 

Arte capta eternidade

No dia-a-dia,

Mar vivo onde qualquer alma nade

E de que se alimentaria:

O pão

Que a permeia

É o mundo inteiro num grão

De areia.

 

 

461 - Quotidiano

 

Arte revela

O que já existe no quotidiano.

 

Porém, sem ela,

Viveríamos no engano

De que apenas o tempo existe

Numa opacidade

Que resiste

- E não a eternidade!

 

 

462 - Objectivo

 

Das artes o objectivo

Não é apenas exprimir alguém,

Mas também

Criar, externo, concreto,

Um modelo vivo

Em que a alma de nossa vida

Pode evocá-la qualquer olhar discreto

Por lá ficar retida.

 

 

463 - Número

 

Admirável

É que haja uma coisa tão estranha

Como o número,

Fiável

Úmero

A apoiar quem acompanha.

 

Mais admirável ainda:

Que os números se prestem, com naturalidade,

À exigência desavinda

Da humanidade.

 

 

464 - Relativo

 

Todo o medo é relativo.

Para quem morre de fome,

A geada matinal

Jamais é dele motivo,

Por mais que as alheias várzeas tome.

 

Já na fartura total

Preocupa-se o ripanço,

De perda ao menor sinal,

Com anos até de avanço!

 

 

465 - Lixo

 

Muitas vezes o que nos move,

Acelerados,

É o que como lixo nos remove:

- A guerra promove

Os grados,

A paz despromove!

 

Tendo isto em vista,

O que mais comove

É que a humanidade continue optimista!

 

 

466 - Vírus

 

Quando o espírito dum homem

De vez pára de expandir-se

São tais os vírus que o tomem

Que perde o tempo a esvair-se.

 

Num ai

Se murcha e contrai.

 

O pior é que tais senões

Não são individuais:

- Operam iguais

Nas civilizações.

 

 

467 - Precioso

 

Tudo quanto é precioso

É frágil

E mal um nada deu de gozo,

Ágil

Se foi.

 

Nada é seguro

E o herói

Mais puro

Devir pode um assassino

Ou o contrário,

Tudo pende do destino

Vário.

 

Não é tanto a necessidade

Ou a falta de tino,

- É só questão de oportunidade.

 

 

468 - Trocamos

 

Mudamos de governos mas não de usos,

Mudamos de ideologias, não de liças:

Trocamos de abusos,

Trocamos de injustiças…

- E de vez jamais com tudo isto acabamos.

 

Mudar de posição um doente

Nunca o curou.

Imitamos

Um alívio imaginariamente

Para que tudo fique como sempre ficou.

 

 

469 - Ocas

  

Só podemos fazer bem

A guerra com cabeças ocas.

O válido e o durável, porém,

Com robôs nunca o convocas.

 

A glória é um subproduto.

A liberdade e a justiça

É que são o verdadeiro conduto

Que a vida desenliça.

 

Tudo o mais

É só milho dos pardais.

 

 

470 - Artes

 

O homem e mais ainda a mulher

Têm artes de apagar

Da memória quanto houver

De vestígios de mortes e malfeitorias:

- É o lugar

Da arte de viver

O que sobrar dos dias.

 

 

471 - Pedra

 

No fundo do rio sou a pedra

Que o rio nem desarruma,

Nem quando minga nem quando medra,

Bordejando-me de espuma.

 

Com o tempo, porém,

Foi-me boleando, lento e lento,

Como convém,

- E tornou-me pensamento!

 

 

472 - Contra

 

A violência e a verdade

Uma contra a outra nada

Podem.

 

Uma com a outra aliada

A melhor identidade

Nos traçam.

 

E nos acodem

Quando as armadilhas nos laçam.

 

 

473 - Leitura

 

A vida ensina a baixar

O preço da leitura:

O que um autor anda a gabar

Não nos vale a sinecura.

 

Mas podemos também concluir,

Pelo contrário,

Que a leitura nos ensina a descobrir

Da vida o valor sumário

Que apreciar não soubemos,

Embora tudo comande,

E só pelo livro compreendemos

Como afinal era grande.

 

 

474 - Mérito

 

Os mais incapazes de julgar

O mérito

São os que, para o classificar,

Dão crédito

Aos critérios da moda.

 

Não esgotaram,

Nem mesmo afloraram

dos homens de génio a roda

Que havia numa geração

E agora a todos globalmente

Irão

Condená-los,

Pois a nova geração emergente

É um terramoto de abalos.

 

Só que a etiqueta doravante preferida

Não será melhor compreendida.

 

 

475 - Lavagem

 

Lavagem ao cérebro verdadeira

É a que nos fazemos pela esperança,

Figura cimeira

Do instinto de conservação

Que por igual alcança

Tanto o indivíduo como a nação.

 

O injusto do justo não distingui-lo

Não é falta de discernimento:

É o abismo

De certo estilo

De patriotismo.

 

O mais é o tormento

De ver como tudo é vento, só vento.

 

Não a frescura da aragem,

Mas do furacão a violência:

- Pode arrasar tudo à passagem

Mas não tem qualquer consistência.

 

 

476 - Tolos

 

Em todos os países, os tolos

São os mais numerosos.

 

Na falta de miolos

Se apoiam, preguiçosos.

 

Defender com tolice e paixão

Uma causa injusta,

Irrita.

É que à custa

Da razão

A razão se imita.

 

Não irrita menos, porém,

Com igual paixão e tolice

Defender a justa causa.

É que a justiça devém

Sandice

E logo merece pausa.

 

A lógica da paixão,

Ainda que serva do melhor direito,

Jamais é irrefutável a quem não

Se sinta à paixão atreito.

 

 

477 - Assola

 

A tempestade assola o mar,

O barco baloiça por todos os lados

- E nós a sonhar

Acordados!

 

Despenham-se do céu

Avalanches açoitadas pelos ventos

- E eu

A saborear a energia dos elementos!

 

Nós, tão pouca coisa

Diante do imenso

- E nosso olhar nem poisa

No cataclismo tenso!

 

A escala dos temores

Não corresponde à dos perigos

Que os inspiram:

De não dormir podemos sofrer horrores

E nem temer os inimigos

Que à morte de emboscada nos atiram.

 

Este é o trato

De nossa maldição:

Podemos temer um rato

E nem ver um leão!

 

 

478 - Privilégio

 

As coisas em si poder

Não têm,

Nós é que lho conferimos.

Na inocente idade da crença o que estiver,

Dum palacete retém

As luzes e grinaldas que nem vimos

Nos cimos.

 

Aquele privilégio

Quem a ultrapassou, porém, perdeu.

Vive agora o sacrilégio

De nem ver

Sequer

O céu no céu.

  

 

479 - Músculos

 

Do desgosto ou nos logramos consolar

Ou morreremos.

Apenas a felicidade é salutar

Para este corpo que temos.

O desgosto, porém, que nos revolve,

Os músculos do espírito desenvolve.

 

Mesmo que, aliás, não revelara,

A cada pegada, nova lei,

Indispensável nos chamara,

Constante, da verdade à grei:

Para nos forçar

A levar os dias a sério,

Para nos arrancar

Do império

De hábitos cheios de ervas daninhas

E das gavinhas

Do cepticismo, da leviandade,

Da indiferença com que o bem-estar

Tredamente fatal nos invade.

 

É verdade que esta verdade,

Incompatível com a saúde,

Porventura com a felicidade,

Tem a virtude

Sabida

De nunca ser incompatível com a vida.

 

E mais: o maior mistério

É que só daqui vem vida a sério.

 

 

480 - Sucedâneo

 

As ideias:

Sucedâneos dos desgostos.

Mal com alas lhes ameias,

Logo eles tombam dos postos,

Vão perdendo o efeito nocivo

Sobre nosso coração.

No primeiro instante, a transformação

Liberta, súbito e vivo,

O fogaréu da alegria.

 

Sucedâneos no tempo apenas, todavia:

É que a ideia é primeira

E o desgosto apenas a maneira

Como algumas entram em nós.

E quantas delas só têm da alegria a voz!

  

 

481 - Bonecos

 

Somos bonecos banhados

Da cor imaterial dos anos,

De tempo, pois, mascarados

Na verdade dos enganos.

 

Tempo que, habitualmente,

É invisível

E, a se visibilizar,

Procura corpos distraidamente

E, em qualquer lugar

Onde os encontra, previsível,

Deles se apodera:

E logo desata a revelar,

Trágica,

A fera

De sua lanterna mágica.