SEXTO CANTO
OS ROTEIROS
ENCONTRO QUE PROPONHO
Escolha aleatoriamente um
número entre 681 e 861 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
681 - Os roteiros encontro que proponho
Os roteiros encontro que proponho
Na quadra popular que me projecta
Os rumos, os desejos, qualquer sonho
Em busca da distante, ignota meta.
Salpico de poesia, à quadra aponho
Como a um marco na estrada, a minha seta,
A indicar-me na recta o alvor risonho
Cuja luz buscarei ao fim secreta.
Se neste quase nada, quase tudo,
Os buracos e as curvas no caminho
Jamais serão descritos, sobretudo
O que na quadra apuro, meu cadinho,
São os oiros que o mundo põem mudo,
Pois jóia rara a vida me adivinho.
682 - Sentido
Dizer não, sentido
Tem bem mais no fim
Se tiver sabido
Também dizer sim.
683 - Bicho
É o Homem um bicho
Que a armadilha monta,
Isca-a com um lixo
E cai nela à tonta.
684 - Bofetadas
Liberdade é ser capaz
De aguentar as bofetadas
Que sempre a vida nos traz
Pelas decisões tomadas.
685 - Futuro
Futuro apenas vai ter
Quem passado tiver tido:
Quem a identidade houver
Da história de que é nascido.
686 - Receita
De irritar um irritante
Eis a receita feliz:
Dar-lhe um sorriso galante
E escapar-lhe por um triz.
687 - Paz
Melhor a um homem deveras
É morrer em paz consigo
Que em guerra perdurar eras
Dele próprio sem o abrigo.
688 - Acção
As palavras, sim, serão,
Abundantes, belicosas,
Mas apenas uma acção
Cria as coisas preciosas.
689 - Sair
No smocking, mesmo lá dentro,
Mora em T-shirt um rapaz
Sempre a viver no tormento
De dali fugir em paz.
690 - Circo
O tempo é o circo ambulante
Sempre a ser alevantado
E a mudar, a cada instante,
A mudar para outro lado.
691 - Tarefa
Não é deixar-se viver
Tarefa de cidadão,
É os desempates que houver
Decidir com posição.
692 - Vergonha
Certifica que a criança
Que algum dia foste outrora
A vergonha a não alcança
Deste adulto que és agora.
693 - Vitórias
De ontem as minhas vitórias
Serão menos importantes
Do que os planos para as glórias
Que amanhã quero ter antes.
694 - Missão
Há vidas cuja missão
É um destino de tal sorte
Que se inaugura a função
Apenas depois da morte.
695 - Líder
Quem lidera é quem tiver
O mais longínquo horizonte:
Quem líder pretende ser
Terá que ser uma ponte.
696 - Poder
O verdadeiro poder
É sabermos que podemos
E, por respeito ao dever,
Todavia, não fazemos.
697 - Chafurdar
Aprender com o passado
É o que à sensatez impele.
Insensato e bem errado
É, porém, chafurdar nele.
698 - Espada
Se um valor não vale nada,
Se a autoridade não manda,
- Como irá deter-se a espada
Que a todos nos põe de banda?
699 - Quebra-cabeças
A vida é um quebra-cabeças
De unir linhas infinitas:
Só quando no fim as meças
É que teu desenho fitas.
700 - Monumento
Diminuído da usura
Do tempo de tal momento,
Resta sempre, da loucura
De sonhar, um monumento.
701 - Sério
A sério prezar a vida
No que ela for justamente
É abandoná-la, perdida,
Por um sonho que se tente.
702 - Ferramentas
Todos somos ferramentas
Mais ou menos resistentes.
Que mal há, se enquanto tentas,
Se quebre acaso, entrementes?
703 - Intervalo
Este homem, um falso deus,
Não vais conseguir matá-lo:
Se morrer, nesse intervalo,
Triunfará pelos céus.
704 - Esperança
Todas as coisas se somem,
A questão é como ser
E a esperança do homem
É a razão de ele viver.
705 - Vitória
Não veremos a vitória
Mas teremos contribuído.
Jamais é vã a memória
Se o que sou é de haver sido.
706 - Conturbado
O futuro conturbado
Futuro é desconhecido:
Este obscurecido dado
Morre à espera de sentido.
707 - Instrumento
Toda a vida é um instrumento
Inesperado da sorte:
É que a vida é um alimento,
- É o alimento da morte!
708 - Carácter
O carácter, de embrulhada,
Tão complexo é que se perde?
- Todo o fio da meada
Finca na estação mais verde.
709 - Traço
Filosofia na História:
- Foi real, foi fantasia,
Mero traço de memória,
Ou renasce em cada dia?
710 - Margens
Primeiro perguntámos pela Terra
E depois perguntámos pelo Homem:
Entre ambas estas margens se nos ferra
O dente das questões que nos consomem.
711 - Caminho
Do ser ao conhecimento
É o caminho do que sou,
Até devir o momento
De ser o que alguém sonhou.
712 - Fracturas
No século dezanove
Quantas fracturas avançam
Que o vinte depois promove!
- Os homens nunca descansam!
713 - Ovelha
Que importa uma vida velha
De olhos a arrastar no chão?
Valem cem anos de ovelha
Menos do que um de leão.
714 - Medo
Ter medo não é cobarde:
A coragem vem do medo,
Quantas vezes, quando ele arde
E foi vencido em segredo!
715 - Promessa
O futuro é uma promessa
Que muitos crerão que é vã,
Mas a promessa começa
A sério mesmo amanhã.
716 - Mistério
A vida não é, bem sério,
Um problema a resolver:
A nossa vida é um mistério,
É mesmo o mistério a ser.
717 - Senão
Para reter o lugar
Onde não haja senão
É preciso acreditar
Que as questões têm solução.
718 - Enquanto
Se não lograr uma coisa,
Abandono-a, enquanto novo,
O bastante para à loisa
Outra tentar em que aprovo.
719 - Crença
Quem se não crê deus-com-amos
À vida quer os extremos:
Não é a crença o que julgamos
Mas aquilo que fazemos.
720 - Singularidade
Nossa singularidade
É que há biliões que embebe
Quem uma ideia concebe,
A ideia que persuade.
721 - Presidir
Todo o fim da caridade,
Longe duma ostentação,
É duma boa cidade
Presidir à construção.
722 - Parar
Não podemos parar para pensar,
Teremos de pensar quando vivemos,
Que a vida continua a amarinhar
E, se paramos, logo então perdemos.
723 - Quimeras
Se estamos vivos deveras,
Antes do tempo colhidos
Somos todos e às quimeras
Nem dá tempo a dar ouvidos.
724 - Teima
Por quê continuar a teima
Se ela ao fim nada resolve?
- Aprendi algo que queima
E à frente há mais que me absolve.
725 - Raízes
Não se alongam as raízes
Andando-as a procurar,
Delas formam-se as matrizes
Fixando-me num lugar.
726 - Vasculhamos
A origem do grande evento
É como a origem do rio,
Vasculhamos terra e vento
E ninguém lhe encontra o fio.
727 - Nomes
Qualquer homem tem dois nomes:
Tem o nome que lhe deram
Mais o que aos frios e fomes
Rouba aos tempos que o toleram.
728 - Justiça
Quando a justiça é o que sai
Da espada nas mãos dum rei,
Que juiz é que não cai,
Bem e mal terão que lei?
729 - Ave
Ave que foge à prisão,
Que para longe esvoaça,
Por que atrás já corre em vão
A esmagar-se na vidraça?
730 - Génios
Não, os génios não os quero:
É que o fim de meus convénios
É pôr fim ao desespero,
- É que todos sejam génios!
731 - Ganância
A ganância não tem fé,
Quer ter os olhos na boca
E pouco importa o que vê,
- Dela importa é o que nos toca!
732 - Quase
Chega um dia e serei quase,
Quase mesmo um Professor.
Pois não é que nesta fase
Findo quando quase o for?!
733 - Sina
O que é preciso ensinar
É aquilo que não se ensina:
Ir sendo, bem devagar,
Quem se impõe a própria sina.
734 - Falsificador
“Não, porque parece mal”
Torna-nos em maus poetas:
Já ninguém vale o que vale,
Falsificador de metas.
735 - Reguada
Um risco sobre o trabalho
A sangrar de bem vermelho:
Reguada em almas que eu malho,
Reguada com que as engelho!
736 - Denega
Aprender como se faz
É mais luta que ciência:
Deus, que me denega a paz.
Deu-me em troca paciência.
737 - Prescrita
Má lição ou lição boa
Vem da fonte não prescrita:
Eu ser lição em pessoa,
Não o papel onde é escrita.
738 - Enviesado
“Cuidado com este aluno!”
- Rosna o mau mestre enviesado.
E ao invés eu me reúno
Com este aluno cuidado.
739 - Errando
Errando é que alguém aprende,
Não acertando à primeira:
Corrigindo é que se entende
A falsa frecha e a certeira.
740 - Produtivo
O prazer do sacrifício
Troca-o, vazio e cativo,
Pelo livre benefício
Do trabalho produtivo.
741 - Gala
Tomada uma decisão,
Visto-me logo de gala
E já nem reparo então
Quanto falta executá-la.
742 - Cheio
A vida cheia de nada,
Na desilusão ferida,
Pode ser, por fim, a entrada
A um nada cheio de vida.
743 - Sombra
Outrora se desvanece
Neste agora que existir,
Como uma sombra se esquece
Nas ondas de luz a vir.
744 - Fadário
Em troca do imaginário
Que tentamos descobrir,
Dá-nos a vida um fadário
Que ninguém vai vera vir.
745 - Sujeição
Nós não temos liberdade
De deixar de forjar dor:
É vã a nossa vontade
De aos mais sujeição impor.
746 - Jeiras
Do lado aqui da realidade funda
Restam mentiras que serão verdade
Do lado além que ignoto nos fecunda
Nas jeiras do destino que nos grade.
747 - Esferas
Não conhecemos deveras
Senão aquilo que é novo,
O que nos muda de esferas:
- O hábito não choca o ovo.
748 - Sofrimento
Livrar-me dum sofrimento
Requer que nele me grude,
Que vem dele o apagamento
De vivê-lo em plenitude.
749 - Sintomas
Nossas impressões, ideias,
De sintomas têm valor:
Sondo, médico, nas veias
As causas do que isso for.
750 - Frívola
Vida frívola e mundana
Põe-nos os sentidos tortos,
Mata o poder que em nós mana
De ressuscitar os mortos.
751 - Pico
Não é por sorte ou azar
Que falho o pico da serra:
Quero aprender a voar
Conservando os pés em terra!
752 - Desejo
O desejo engendra a crença
E, se em tal não reparamos,
É que ele não tem detença
Senão quando nos finamos.
753 - Fadiga
A fadiga da velhice
Ao recordar o passado
Dificulta que emergisse
Do presente algum bocado.
754 - Deprimente
Nada é tão deprimente
Como quando nos propomos
Ser pessoa diferente
Daquela que a sério somos.
755 - Inseguro
O que hesita ao fazer planos
É que se sente inseguro
Do poder de, em vez de danos,
Se destacar com apuro.
756 - Assustadora
Se não tentar conhecer
Gente doutra raça ou fé,
Assustadora a vou crer,
De pôr-me o cabelo em pé!
757 - Limite
Decide rápido qual
É teu limite no evento.
Não transgridas o sinal,
Depois, em nenhum momento.
758 - Zero
Se tiver de ser um zero
Mais vale zero p’ra vinte
Do que zero para zero:
- Ao menos sonho o requinte!
759 - Crédito
É vital ceder-me o crédito
Da adversidade vencida,
A que tenho jus por rédito
Do que ultrapassei na vida.
760 - Comportamento
Ao olharmos para a História,
O comportamento humano
Mais fácil é de memória
Prever que do tempo o dano.
761 - Travessia
travessia do deserto,
De opções pobre e de esperança…
- Não te percas, que estás perto,
O que importa é quem não cansa!
762 - Exercício
O exercício nos liberta
Do sofrer que há na cabeça
E o corpo o sentido acerta
Com o pé que o chão nos meça.
763 - Renuncia
A minoria é dever
Do que a ser não renuncia,
Por isso é tão fácil ser
O que for a maioria.
764 - Indignação
A indignação facilmente
Dará boa consciência
Mas rápida se desmente
Se de agir não leva à urgência.
765 - Pegada
Conserva no coração
A impaciência de fazer,
Com a indignação na acção
Da pegada a não perder.
766 - Procurar
À força de procurar
Caminho em rota perdida
Algum dia hei-de encontrar
As referências da vida.
767 - Curso
O papel do ser humano
é provar que neste chão
Está mesmo em curso um plano:
Nada, nada é sem razão.
768 - Heroísmo
O heroísmo da perfeição
Importa tê-lo visível
Mas só crer na imposição
Do humanamente possível.
769 - Solução
Eutanásia, talvez não,
Mas terapêutico afã
Sem vislumbrar solução
Não traz nenhum amanhã.
770 - Pátria
Pela pátria fazem guerra
E muita paixão se ateia,
Quando a pátria fora a terra
Que se antes de mais semeia.
771 - Trapaça
Há quem chore uma desgraça,
A consciência a seduzir,
E me engane na trapaça…
- Chorar, não: não é agir!
772 - Prata
Se o sonho não for jucundo,
Olha a paz, olha o calor:
Nem tudo é oiro no mundo,
Também prata tem valor.
773 - Tentação
A tentação do perigo
Rodeia cada mortal
Desde o berço em que é nascido
À tumba que é seu final.
774 - Caminhar
Quando não dá para agir,
Já me contento em pensar:
A questão é que é o porvir
Que anda aí a caminhar.
775 - Promessas
Desatamos a embarcar
Em promessas de amanhã
E o dia-a-dia a afundar,
Noite, noite sem manhã…
776 - Constância
Num mundo sempre em mudança
A constância significa,
Muitas vezes, que o que alcança
Mudar de ideias implica.
777 - Tranquilidade
Encontrar tranquilidade
Torna, ao princípio, feliz,
Mas jamais, ao fim, condiz
Com o que é felicidade.
778 - Contente
Contente com o que tem,
Que ora é demais ou de menos,
Não vive nunca ninguém,
Do maior aos mais pequenos.
779 - Reparo
Não fiz as coisas por mim.
As coisas que aconteceram,
Se reparo bem, no fim,
Elas é que me fizeram.
780 - Drenos
O problema não é sermos
Maiores ou mais pequenos,
É vivermos noutros termos:
- Sejamos fontes, não drenos!
781 - Fugidia
Fugidia, a ideia nova,
Se a não prendes, se afigura
Ilusão e põe à prova
O teu poder de captura.
782 - Individual
Um estímulo não há-de
Fazer nunca nenhum mal,
Mas a criatividade
É sempre individual.
783 - Fortuna
A fortuna é dos audazes,
Dos tímidos, a má sina:
Será conforme o que fazes
Que tua vida se inclina.
784 - Indescoberto
Sempre o mundo é indescoberto,
Por mais que, descobridor,
Cada qual fique mais perto:
- Além fica sempre o alvor.
785 - Grau
Dos ódios o grau mais alto
Não é o que frustra o que quero,
é o que tenho ao que me falto:
- De mim mesmo é o desespero.
786 - Peito
Um homem nunca foi feito
Para ter tranquilidade,
Mas para, de peito feito,
Germinar paz e verdade.
787 - Adense
Esta terra nem me vence
Nem me deixa desistir,
Onde há pátria que se adense
É que balança o porvir.
788 - Figos
No dia em que houver porvir
E nós nele bem seguros,
As estrelas vão cair,
Vão, como figos maduros!
789 - Ressentimento
Reincidimos naquilo
Que nos deu ressentimento
E até na Fé me perfilo
O liame ao violento.
790 - Mister
Esperar o sol mister
É de pessoas bem cheias
Com o trânsito que houver
Grande das grandes ideias.
791 - Fuga
Toda a fuga é uma recusa:
Tudo é melhor do que aquilo!
A certeza humana inclusa
É que a um facto outro há a segui-lo.
792 - Perdigoto
Perdigoto disparado,
Pelos matos me fugi
Logo que da mãe saí…
- E assim destinei meu fado!
793 - Demais
Trabalho todos os dias
Para nunca trabalhar
Demais minhas fantasias
Nem demais ter de suar.
794 - Centro
Por que te custa aceitar
Que não és centro do mundo?
Na terra, no mar e no ar
A fundo o que importa é o fundo.
795 - Dédalo
Em tal dédalo de estradas
O homem moderno anda preso
Que o não levam, palmilhadas,
A lado nenhum ileso.
796 - Distante
Quando te calhar o inferno,
Toca a vida para diante:
Quando principia o Inverno
Que Primavera é distante?
797 - Parada
Nem queiras sequer supor
O que é uma vida parada,
A vida vive o melhor
Ao viver vida agitada!
798 - Coleccionador
Um homem, quando homem for,
Não é um animal de excesso,
Antes coleccionador
De esperanças em processo.
799 - Invés
O invés da oportunidade
É a tentação que nos tece:
- Outra hipótese nos há-de
Vir à mão e a de hoje esquece.
800 - Ócio
É impossível desfrutar
Plenamente qualquer ócio
A menos que imenso a obrar
Se haja feito no negócio.
801 - Importa
Preocupar-me com tudo?!
Como permanecer são?
Se nada importa, contudo,
Não há de humano mais chão.
802 - Acordo
Pouco importa se concordo
Com o que dizes sequer,
Mas luto (que importa o acordo?)
Para que o possas dizer.
803 - Através
Caminho através do mundo
É que é difícil deveras,
Que além dele é o infecundo
Devaneio das esperas.
804 - Redor
Em vez de me redimir
O melhor é respeitar
O que em redor existir:
- Do céu a terra é um lugar!
805 - Servo
Um servo da natureza
Não é seu dono e senhor:
Só cura quem nela preza
Obedecer-lhe a primor.
806 - Meço
Na vida que existe em mim,
Quando o fundo daqui meço,
Não lhe encontro jamais fim,
Pois todo o fim é um começo.
807 - Odisseia
A verdadeira odisseia
Não é um monte de experiências:
Viagem de riscos cheia,
Do imo é gerar existências.
808 - Rumo
Desfechos e recompensas
Na busca do rumo certo
Nunca autorizam dispensas,
Que o longe nunca está perto.
809 - Ressurreição
Tema da ressurreição:
- Na vida sobrevivi
A uma fase de tensão
E hoje melhor eis-me aqui!
810 - Expor-me
Expor-me perante a vida
Ameaça de verdade
Mas é, na mesma medida,
A minha oportunidade.
811 - Desaprender
Temos sempre de encontrar
Modos de desaprender
O que nos tapa o lugar
Para a verdade que houver.
812 - Narcisismo
A cura do narcisismo
Vem da aspiração de eu ser
A pessoa com que cismo
Mais que outro sonho qualquer.
813 - Perigo
O perigo de Narciso
É sempre o da rigidez:
Ser maleável é de aviso
A quem queira ser de vez.
814 - Ónus
Se as ambições são demais
Pagam os ónus do jogo
Com dificuldades tais
Que ao dar-lhes corpo me afogo.
815 - Gozo
O prazer terreno
Convida à vivência
Doutro gozo pleno
Que é eterno de essência.
816 - Fulcral
A questão fulcral da vida
Não é da vitória a palma,
É fabricar, à medida
De cada qual, sua alma.
817 - Desfecho
A meta como o desfecho
Valem por imaginados,
Já que, quando neles mexo,
Não são nunca consumados.
818 - Alterar
De qualquer alma o percurso
É o de sentir a existência,
Não de lhe alterar o curso
Das lutas pela excelência.
819 - Errância
Deambulações, errância,
São de minha alma o percurso,
Tanto feito de ignorância
Como de excelso recurso.
820 - Pequenos
Repara nas coisas menos
Pelo lado da função
E mais por estes pequenos
Belos nadas do que são.
821 - Inventos
A natureza exploramos,
Cheios de novos inventos.
Dominados acabamos,
De em nosso imo andarmos lentos.
822 - Médico
Quando um médico é preciso,
A ajudar-te ajuda-o bem:
Ajuda com mais juízo
Quem se ajuda a si também.
823 - Regular
O exercício regular
A depressão e ansiedade
Reduzir-nos-ão a par
Da festa que nos invade.
824 - Rumo
Às vezes fico bem perto,
Mas perco o rumo aos assuntos:
Nenhum de nós tão esperto
É como todos nós juntos.
825 - Pergunta
Não perguntes ao país
Que pode fazer por ti,
Antes te pergunta aqui
Que dás por tua raiz.
826 - Grito
Quem tem medo do infinito
Encolhe-se no seu canto,
Se alguém mexe solta um grito,
Mata quem lhe oferta o espanto.
827 - Partidário
Como crer em meu sentido
Sem devir incendiário,
Como irei tomar partido
Sem tornar-me partidário?
828 - Imola
Uma ideia e já consola
Da morte, dos afazeres…
- Por que é que à ideia se imola
A preferência que queres?
829 - Repugna
Se me repugna a violência,
Então deixar-me matar
É a maneira de a decência
Dignamente protestar.
830 - Preciso
Não é deixar-se matar,
Importa mesmo é vencer:
Preciso é não se enganar
Na vitória a promover.
831 - Pressa
Erguer os olhos, mas como
Com tal pressa olhar o fundo?
- É pena que tal assomo
É que hoje conduza o mundo!
832 - Consciência
Nunca se pratica o mal
Tão completa e alegremente
Como quando ele, afinal,
Em consciência se implemente.
833 - Físsil
Inteiro ante um mundo físsil,
Tormento entre os mais tormentos,
Não violento é o mais difícil
De ser entre os violentos.
834 - Armado
Se qualquer homem armado
Aparecer, não como alvo,
Mas fraco e bem mal dotado,
Então fica o mundo salvo.
835 - Demasiado
Mudo mal se equilibrado
Não mudo quando me mudo,
Esforço demasiado
Acaba estragando tudo.
836 - Falésia
Da falésia sempre à beira,
Precisamos de saltar.
- De cair isto é maneira,
Ou maneira de voar?
837 - Recuo
O mundo novo construo
Dos antigos, peça a peça,
Não há fuga nem recuo
De nossa própria cabeça.
838 - Vendam
Quão mais tempo há-de correr
Até que todos entendam
Que por si pode quenquer
Mais fazer que o que outros vendam?
839 - Feixe
Que sujeitar-se a um regime
Difícil será bem mais
Contê-lo, em feixe de vime,
E não impô-lo aos demais.
840 - Raio
Muitos séculos depois
Do sujeito que emanava
Ainda escutamos Camões,
Ainda a Terra um raio a grava!
841 - Controlo
Reclamo, requeiro
Mais que o cheiro ao bolo…
- Perco se primeiro
Perder o controlo.
842 - Rir
Ri-te, que passa a teu lado
Muita freima desprezível:
Rir e estar preocupado
Ao mesmo tempo é impossível.
843 - Véu
Neste mundo fervilhante
Como levantar o véu
Que nos tapa sempre adiante
Qualquer nesga que há no céu?
844 - Cais
Da vida perante o ataque,
Prepara o rumo em que vais.
Queres que o navio atraque?
- Tens de construir-lhe um cais.
845 - Novo
Faz qualquer coisa de novo,
Por mais pequeno que seja,
Cada dia, que deste ovo
Nasce o porvir que se almeja.
846 - Aberta
Onde houver grande procura
A correspondente oferta
Tarde ou cedo lhe assegura,
Para as compras, porta aberta.
847 - Rasgar
Formação elementar
Não promete situação,
Vale a pena muscular
Quem queira rasgar o chão.
848 - Tomos
Somos aquilo que somos
Por termos o que teremos,
Ou antes lemos nos tomos
Que somos o que fazemos?
849 - Crime
Sobre a terra quanto crime
Que não fora consumado
Se o gesto honesto, sublime,
Se tivera sublevado!
850 - Desertos
Montes e plainos desertos
São de quantos se perderam,
São os caminhos incertos
Que foram e não vieram.
851 - Coisa
É o fazer que me interessa,
Não o ser que dele vem,
Quando este acaba e começa
Nas coisas, não em alguém.
852 - Horizontes
Há quem mude de horizontes
E desde então ande errado
Crendo que ao mudar de montes
Foi ele que foi mudado.
853 - Desatar
Que mediação hei-de ter
Para desatar o voo
Entre o que queria ser
E o que afinal sei que sou?
854 - Confuso
Para o espírito confuso
Não existe duradoiro
Paraíso para uso,
Só cacos de mau agoiro.
855 - Ecologia
A vida respeitas, amas,
Mas ecologia é morte
Se em mundo pequeno acamas
Infindas vidas à sorte.
856 - Cura
Paciência, paciência,
Usa o tempo sem usura,
Olha que a melhor ciência
É que exige tempo a cura.
857 - Subviver
Há quem creia que o sentido
Seja o de sobreviver
E nem veja que é mentido:
- Será sempre subviver.
858 - Andorinha
A humanidade andorinha,
Se o ninho se lhe destrói,
Volta ao beiral que convinha,
De penas o reconstrói.
859 - Credo
Quando acredita num credo,
Toda a Humanidade corre.
Mas onde se instala o medo,
Onde há medo tudo morre
860 - Humilhante
É humilhante descobrir
A própria insignificância
Em meio ao grande devir
Que nos chama da distância.
861 - Fogueira
Na fogueira moribunda
Em vão tentam surpreender
Chamas do amanhã que abunda…
- Só da cinza há renascer!