SÉTIMO  CANTO

 

 

 

 

PEDRA  A  PEDRA  SEGUIR,  RUMO  AO  SUBIDO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 862 e 1043 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                862 - Pedra a pedra seguir, rumo ao subido

 

                                                Pedra a pedra seguir, rumo ao subido

                                                Destino meu traçado, para ser

                                                A promessa que em mim me prometer

                                                Levar-me ao que jamais hei atingido,

 

                                                É o que na quadra cantarei, ao ver

                                                Os traços do perfil nunca fingido

                                                Que em mim incarnarão, metal polido

                                                De estátua viva que ando a acontecer.

 

                                                E assim na quadra fixos ficarão

                                                Os entalhes e as marcas duma história,

                                                Tais como regulares eles hão-

 

                                                - De ter acontecido. E na memória

                                                Restarão tais solenes patamares

                                                Para o porvir seguro que tentares.

 

 

863 - Melhor

 

Prefiro pensar

O melhor de todos

E assim vou poupar

Problemas a rodos.

 

 

864 - Faz

 

Ouvimos sempre falar

Em quem tem e quem não tem.

Será que não há lugar

A quem faz ou não também?

 

 

865 - Fardo

 

Duro é o fardo da pobreza,

O da ignorância é real,

Mas o maior se despreza:

- Só ter, só, potencial!

 

 

866 - Página

 

Qualquer acto de justiça

Volta a página do mal.

O da vingança o enguiça:

Lavra outra página igual.

  

 

867 - Tempestade

 

Democráticas são poucas

Coisas, tanto e de verdade

Como são de neve as loucas

Danças duma tempestade.

 

 

868 - Alma

 

Não canta o canto o cantor

Com braveza nem com calma

Enquanto o canto não for

Cântico a cantar na alma.

 

 

869 - Enganar

 

Não ter possibilidade

De me enganar longe ou perto

Era ignorar de verdade

Todo o prazer de estar certo.

 

 

870 - Honesto

 

Ser honesto é o meu seguro

Gratuito e sem evidência

Em que afinal eu apuro

Minha paz de consciência.

  

 

871 - Natural

 

A tempestade é uma acção

Natural mas não humana:

Donde houver o sim e o não

É que o que é humano dimana.

 

 

872 - Conveniente

 

O que é certo, o que é decente,

Quantas vezes é varrido

Por aquilo que é entendido

Como o que é conveniente!

 

 

873 - Biblioteca

 

Se morre em África um velho,

Morre mais que esta erva seca,

Morre a fonte do conselho:

- Morre uma biblioteca!

 

 

874 - Erros

 

São a ponte habitual

Da ignorância à sapiência

Os erros que cada qual

Comete por excelência.

 

 

875 - Mil

 

Obra de arte vai viver

De mil maneiras: conforme

Os olhos de quem quiser

E o tempo que ali não dorme.

 

 

876 - Passeia

 

Religião é eternidade

Que pelo tempo passeia:

Além é igual a verdade,

Aqui muda em cada aldeia.

 

 

877 - Céu

 

Pão nosso de cada dia

Para a fome e mais escolhos

No céu azul principia:

- É o pão nosso para os olhos.

 

 

878 - Vestígio

 

Um vestígio de verdade

Com distorção, exagero,

Mais eficácia ter há-de

Que a que tem um erro inteiro.

 

 

879 - Pólo

 

Nunca lá estive e tu, sim,

Portanto podes julgar?

- Nunca ao Pólo Norte vim

Mas sei quão frio é o lugar!

 

 

880 - Tentador

 

Que é que há de mais tentador

Que um segredo mencionado,

Retido após com pudor,

A meias posto de lado?

 

 

881 - Cativa

 

A verdade é relativa

E depois, como a beleza

Está dos olhos cativa

De quem a contempla e preza.

 

 

882 - Surdez

 

São as palavras que acodem

A vergarem-nos às palmas?

- As palavras nada podem

Contra uma surdez das almas.

 

 

883 - Traem

 

As doutrinas que se traem,

Tal mulher abandonada,

Nunca estão, enquanto caem,

Com a razão que as degrada.

 

 

884 - Derrota

 

Uma das lições que esquecem

De experiência de alta nota,

É que os vencidos merecem,

Por norma, a sua derrota.

 

 

885 - Julgar

 

Julgar, ficará provado,

Será não compreender:

Quem compreende um bocado

Julgar já não vai poder.

 

 

886 - Doença

 

A doença não podemos

Sabê-la senão doentes:

Estranha a nós nós a cremos

E afinal damos-lhe os dentes.

 

 

887 - Sobrenada

 

Se a vida não vale nada,

O que importa, de seguida,

Do nada é o que sobrenada:

Nada não vale uma vida!

 

 

888 - Vaidade

 

Não há força nem há vida

Sem a certeza certeira

Da vaidade desmedida

Do mundo e sua maneira.

 

 

889 - Sofrimento

 

O sofrimento reforça

Todo o absurdo que é o da vida:

Não a ataca nem destroça,

Dá-lhe a irrisória medida.

 

 

890 - Guerra

 

Um homem continua a ser julgado,

Não noutra, mas na sua própria terra,

Cada qual é que pesa o próprio fado:

Um homem é sempre esta infausta guerra.

 

 

891 - Vassalagem

 

Involuntária homenagem,

Detestar o superior

É de quem a vassalagem

Presta de ser inferior.

 

 

892 - Tragédia

 

Baptizou a Idade Média

Os filósofos pagãos,

Só que não viu que a tragédia

É que não ficam cristãos.

 

 

893 - Impresso

 

Usam o papel impresso

Porque em impresso papel

A patranha ganha o excesso

Dum sagrado capitel.

 

 

894 - Promulga

 

Aquele que sofre julga

Ser o único a sofrer

E o que sofre então promulga

Que não sofre mais quenquer.

 

 

895 - Conta

 

A melhor conta de banco

Dum homem em evidência

A moeda não é que tranco,

Será dele a inteligência.

 

 

896 - Aprendiz

 

Um velho é feito juiz,

Que em miúdo estudou leis:

- Fica a velhice aprendiz

Dum miúdo de dez reis!

 

 

897 - Pitéu

 

Morreu tão novo que quase

Nem chega a ver que viveu,

Provou o molho de base

Sem saborear o pitéu.

 

 

898 - Triagem

 

Questão é como viver:

Quando crente e não crente agem

De igual modo, nem sequer

Faz sentido haver triagem.

 

 

899 - Obsessiva

 

A carência preenchida

Deixa logo de obcecar,

É a recusa toda a vida

Que obsessiva a vem tornar.

 

 

900 - Santuário

 

No santuário que é que havia

Quando o templo se erigiu?

A sala inteira vazia:

- Tudo o que de Deus se viu!

 

 

901 - Derrota

 

Quando já não és um jovem,

Não é a vida um desafio,

Na derrota só te movem

As condições do fastio.

 

 

902 - Abismo

 

Quando à beira dum abismo

E se Deus me abandonou,

Então deveras eu cismo

No milagre: no que sou!

 

 

903 - Humildade

 

A humildade, quando chega

E se chega a dar sinais,

Aquilo que mais adrega

É chegar tarde demais.

 

 

904 - Cão

 

Se tenho um cão, tenho um cão

que faz tudo o que eu aprovo.

Tenho um cão? Não! Tenho o irmão,

Tenho o meu irmão mais novo!

 

 

905 - Infeliz

 

O poeta é um infeliz:

Vê do mundo a imensidade;

Só no provir, de raiz,

Vê-o a ele a Humanidade.

 

 

906 - Crítico

 

Crítico é quem vende o peixe,

Mas quem do peixe percebe

Não é o peixeiro a que o deixe,

É o que do mar o recebe.

 

 

907 - Pescador

 

Pescador é da paisagem

Mero pormenor humano:

Para um olhar de viagem

Nem à solidão traz dano!

 

 

908 - Vendaval

 

Ramo verde e vigoroso

Que o vendaval chicoteia,

Logo me endireito ao gozo

Do alvor da vida que ameia.

 

 

909 - Adolescente

 

No banco de jardim, o adolescente.

Orvalha a nostalgia e vence-o, vence-o,

Magoando e ferindo molemente…

- Até que ele no fundo ouve o silêncio.

 

 

910 - Encruzilhada

 

De tudo vem poesia

Da vida na encruzilhada:

Quando se abre a gelosia,

Vem poesia até de nada.

 

 

911 - Desilusão

 

Satisfeito o meu desejo,

Começa a desilusão,

Não por aquilo que vejo,

Porque vejo quanto é vão.

 

 

912 - Eleito

 

Se em tudo lhe encontro o efeito

Na presença da emoção,

Ao que é o meu motivo eleito

Não o encontro em nada então.

 

 

913 - Electrão

 

A força que dá mais vezes

Da Terra a volta em redor:

- Do electrão as rapidezes

São batidas pela dor!

 

 

914 - Doença

 

Quando a doença me leve

A ver a morte de perto,

Como a vida, agora breve,

Gozaria pelo certo!

 

 

915 - Atmosfera

 

As mudanças de atmosfera

Mudam o homem interior:

Despertam eus doutras eras,

Sopram do hábito o torpor.

 

 

916 - Recanto

 

As artes põem encanto

No mais insignificante,

Como a dor cada recanto

Nos torna a nós relevante.

 

 

917 - Transeunte

 

Tanto prazer, tanta dor,

Sem do corpo jamais ter

Um perfil nada melhor

Que dum transeunte qualquer!

 

 

918 - Estado

 

Um facto, como uma imagem,

Diverge conforme o estado

Em que o olha o personagem:

Qualquer pó lhe muda o dado.

 

 

919 - Encruzilhada

 

Uma ideia: encruzilhada

Da floresta donde parte

Tanta estrada, tanta estrada

Que só aventuras reparte.

 

 

920 - Trovão

 

Instantes após o choque,

A inteligência, trovão

Duma faísca a reboque,

Ruge a luz da intuição.

 

 

921 - Inventivo

 

Recordar não é inventivo,

É impotente em desejar

Algo para além do arquivo,

Mas pode o ausente me dar.

 

 

922 - Arcaico

 

Esquecer é um instrumento

Que me adapta à realidade:

O arcaico semeia ao vento,

Só germina o que persuade.

 

 

923 - Citadino

 

Quem nada tem que fazer

Lê virtudes, lê defeitos,

É um citadino a colher

Ervas em becos estreitos.

 

 

924 - Ensejo

 

O sofrimento e o desejo

Agravam se penso neles,

Ter que fazer é o ensejo

De ignorar como são reles.

 

 

925 - Pensamento

 

Os hábitos de pensar

Impedem, cada momento,

O real de se agarrar,

Colhido no pensamento.

 

 

926 - Dois

 

Há dois mundos lado a lado:

O que clamam os mentores

E o que fazem, recatado,

Nas costas, os tais senhores.

 

 

927 - Luz

 

A mesma obra produz

Sobre uma e outra pessoa

Diversos traços de luz:

- Eis o que a torna ou não boa.

 

 

928 - Expresso

 

Tudo o que eu, vida, te peço,

É que acabe conformado

Na rota de teu expresso

De percurso limitado.

 

 

929 - Mentiras

 

A nós próprios as mentiras

Que dizemos mais fatais

São aos outros as que atiras

Das deles como rivais.

 

 

930 - Asneira

 

Quando fizer uma asneira,

Logo anote o que aprendeu:

Lê-lo, então, logo à primeira

De a repetir o impediu.

 

 

931 - Maior

 

Em labor igual, obrar

Doze horas por dia deve

Para casa um pão cobrar

Maior que quem oito teve.

 

 

932 - Pobreza

 

Se a pobreza gera o crime,

Muito mais vezes, porém,

É o crime que gera além

Pobrezas que ninguém lime.

 

 

933 - Oração

 

Quanto mais velho ficar,

Tão mais sinceras serão

As palavras que rezar

Minha descrente oração!

 

 

934 - Cansado

 

O que nunca trabalhar

Fica mais vezes cansado

Que quem sua, se calhar,

Mais cedo cai para o lado.

 

 

935 - Extremos

 

A vida é feita de extremos,

Que tudo nela se acama:

Ora é bronze o que lá vemos,

Ora é só feita de lama.

 

 

936 - Contas

 

Com a vida ou com dinheiro,

Da guerra nas desafrontas,

Não é o rei nem seu parceiro,

É o povo que paga as contas.

 

 

937 - Transplantar

 

Se o jovem é como a flor

Será só para enganar.

Na velhice a convém pôr:

Pois como ambas transplantar?

 

 

938 - Tolo

 

Cheio de suficiência,

O tolo,  por ignorância,

Não repara que a ciência

Pouco nos diz de importância.

 

 

939 - Minúsculo

 

O homem de hoje é colossal

Nas responsabilidades

E um minúsculo animal

Na tarefa em que o engrades.

 

 

940 - Vagalhão

 

Nem tudo há-de ser vaidade,

Fugaz vagalhão de espuma,

Um caminho de verdade

Que não vai a parte alguma.

 

 

941 - Precisões

 

Recursos para viver

Se dão grandes precisões,

Mais dará tentar saber

Para viver as razões.

 

 

942 - Consentimento

 

A liberdade é uma escolha

E bem mais consentimento:

Quando chover, para a molha,

Ao sol,  prò divertimento.

 

 

943 - Esmagá-lo

 

Um homem não vale nada,

Pode esmagá-lo o Universo,

Mas só ele sabe à entrada

Que no Imenso morre imerso.

 

 

944 - Rol

 

Fomes, mortes, coronéis,

Onde anda Deus neste rol?

- Nuvens, mesmo se cruéis,

Nunca negareis o Sol!

 

 

945 - Reduto

 

Para nós, se a morte ocorre,

Cai o último reduto.

Para Deus, quando alguém morre

Colhe apenas d’Ele um fruto.

 

 

946 - Miséria

 

A miséria das igrejas

Não é de santos egrégios,

É o que alimenta as invejas:

Miséria dos privilégios.

 

 

947 - Sagrado

 

O que deve ser sagrado

É o que a todos é preciso,

Propriedade em nenhum lado

De ninguém que tenha siso.

 

 

948 - Naufrágio

 

Das tragédias é apanágio

Mobilizar energias,

Mas que fazer do naufrágio

Que afoga todos os dias?

 

 

949 - Bola

 

Ao alvo a bola atirei,

Bateu-lhe um pouco de lado:

Em minha vida esta é a lei,

A de acertar só um bocado.

 

 

950 - Fogo

 

Um homem é sempre fogo:

Se arde, tem de devorar:

Se não devora, então logo

Tem mesmo de se apagar.

 

 

951 - Hábito

 

O hábito nos tem de cor,

Nos livra ou joga ao degredo:

Se hábito devém o medo,

É dos medos o maior.

 

 

952 - Contrariada

 

A vida que nos alcança

Não é vida nem é nada:

Somos a eterna criança

Sempre ao fim contrariada!

 

 

953 - Acontecer

 

O melhor a acontecer,

Ante o que a vida nos traz,

É crer no que se disser

E gostar do que se faz.

 

 

954 - Presunção

 

Quem no mar da maioria

Se afoga, afoga-se em vão,

Não de marés que engolia,

De vagas de presunção.

 

 

955 - Russa

 

Conspirador que se embuça,

Suaves fêmeas, viris machos…

- É a vida montanha russa,

Ela toda altos e baixos.

 

 

956 - Alimento

 

Alimento proibido

Não existe, tanto monta:

Quanto é que fica envolvido,

A quantidade, é que conta.

 

 

957 - Integridade

 

É difícil ter o tom

Quando a solo ou nem sequer.

Integridade é ser bom

Quando ninguém fica a ver.

 

 

958 - Chaga

 

A velha chaga fechou,

Porém, sob a pele, fita

O que ali cicatrizou:

Ali sempre a dor dormita.

 

 

959 - Exéquias

 

Há desgraças que se vivem

Como as exéquias em vida,

Tão lentas que nem se arquivem

Dentro nem fora da ermida.

 

 

960 - Mestre

 

O grito das sentinelas

Vibrará disciplinado

Se o mestre supremo delas,

O medo, rondar ao lado.

 

 

961 - Navega

 

As águas do rio

Navegam a calma

E por este ousio

Nos navegam alma.

 

 

962 - Desprezo

 

Não há, não, maior desprezo

Do que o desprezo dos fracos

Se vão enfrentar, por vezo,

Da fraqueza alheia os cacos.

 

 

963 - Santidade

 

Um santo entrará nos céus

Se entrar sem humilhação:

Tudo o humilha, valha-o Deus,

Só a santidade não!

 

 

964 - Vão

 

Deveras há os infelizes

E há quem o ignore de vez

Para escapar às raízes:

Sentir vão quanto se fez.

 

 

965 - Tristeza

 

Formosura que medita

Só de tristeza a vestistes:

Deuses belos, acredita,

São, para nós, deuses tristes.

 

 

966 - Ordem

 

Sob o que sucede

Numa dada ordem

Outra existe e mede

Quanto os dias mordem.

 

 

967 - Acasos

 

Acasos por explicar

Há-de haver até sabermos

Do ser qual seja o lugar:

- Do ser o que seja sermos.

 

 

968 - Desanimada

 

A manhã desanimada,

Se acorda presa a cadilhos,

A cara encosta anuviada

Das janelas aos caixilhos.

 

 

969 - Teia

 

A calamidade humana

Não são fúrias nem amores,

donde afinal mais dimana

É da teia dos terrores.

 

 

970 - Enfiada

 

O que crê tudo saber

Sabe menos que o que nada

Sabe mas deveras quer

Tudo saber de enfiada.

 

 

971 - Descoberta

 

A descoberta consiste

Em ver o que todos vêem

E pensar o que ninguém

Pensou do que ali existe.

 

 

972 - Uniforme

 

Um uniforme é uma ausência

Com que pago minha calma.

Uma uniforme experiência

É sempre uma ausência de alma.

 

 

973 - Fuga

 

Mais do que uma perversão,

A fuga à normalidade

Pode ser revelação

Particular da verdade.

 

 

974 - Viárias

 

Obstáculos e problemas

São como redes viárias:

Alternativas e temas

Dão às rotinas diárias.

 

 

975 - Monstro

 

Aqui, no fundo de mim,

Mora o monstro que em mim vela,

Que me aterra e que, no fim,

Se revela a minha estrela.

 

 

976 - Ignoro

 

Natureza e Deus ignoro

E tanto ambos me conhecem

Que estremeço quando, em coro,

De mim a malha entretecem.

 

 

977 - Lama

 

Eu não sou filho da luz,

Eu não sou filho do fogo,

Em lama é que se traduz

A raiz que nutre o jogo.

 

 

978 - Quase

 

É o nosso maior mistério

Que o que está quase a cumprir-se

Fica também sob o império

De estar prestes a esvair-se.

 

 

979 - Profundidade

 

Se profundidade quero,

Então hei-de estar ao lado

Do mundo inferior, por mero

Ser de mim um bom bocado.

 

 

980 - Inferior

 

Mais minha alma se revela

Onde me sinto inferior:

É como ir no barco à vela

De noite entregue ao terror.

 

 

981 - Inúmeras

 

Disposto a reconhecer

As inúmeras pessoas

Que sou no fundo do ser,

Que canção, meu eu, entoas?

 

 

982 - Traço

 

A insossa repetição

E a violência mais gritante

Têm um traço de união:

- Desta aquela é fiel amante.

 

 

983 - Preocupação

 

Se nossa alma constitui

Centro de preocupação,

O prazer logo ela inclui

No fulcro da discussão.

 

 

984 - Deprimido

 

O cérebro é deprimido,

Se é dito computador.

Fica o coração sentido,

Feito só bomba ou motor.

 

 

985 - Donos

 

Não somos donos do mundo,

Participamos da vida.

Quando o esquecemos, no fundo,

Somos nele uma ferida.

 

 

986 - Imaginado

 

Corpo não imaginado

Vai da doença a caminho.

Doente, sofre do fado

De sonhar seu fim vizinho.

 

 

987 - Sondas

 

Quem é fundamentalista,

Na Bíblia a seco acredita.

A fé, porém, vê uma lista

De sondas do imo à compita.

 

 

988 - Entranhas

 

Por fora tem rosto de homem?

Se se abrir por dentro, aposto

Que as entranhas que se tomem

Dos deuses dão todo o rosto.

 

 

989 - Regalia

 

Qualquer de alma economia

Num mundo novo encontrado

Põe um custo à regalia

Que é sempre um preço elevado.

 

 

990 - Germe

 

É impossível conhecer-me

Pensando o que me consome.

Só a morte lerá meu germe,

Só Deus, meu correcto nome.

 

 

991 - Lixo

 

O lixo é a recordação

Do passado que esquecemos:

Ainda a imaginação

Não sarou quanto fizemos.

 

 

992 - Escada

 

Neste mundo desalmado

A beleza é relegada

Para o degrau colocado

Por derradeiro na escada.

 

 

993 - Sustento

 

Para o corpo um alimento

Está como para a alma

O que a mantém, o que a acalma:

Dela o belo é que é o sustento.

 

 

994 - Aflito

 

Beleza não é o bonito:

Arte que me fere o olhar

Pode o coração aflito

Na sarjeta mergulhar.

 

 

995 - Aparência

 

Na aparência secular,

Qualquer assunto contém

Um sagrado patamar

Se o penetro mais além.

 

 

996 - Negócio

 

Num negócio pouco importa

Qual será o valor real,

Mas no comprador a porta

Do que ele crê que ele vale.

 

 

997 - Cedo

 

A morte não é o tempo de quenquer,

Pois somos vida da cabeça aos pés.

Sempre é cedo demais para morrer

Mesmo a quem já morreu por uma vez.

 

 

998 - Realiza

 

É a mente que na mão ponho

Quando a meta é o que se visa:

O cientista sonha o sonho,

O engenheiro o realiza.

 

 

999 - Jus

 

Épocas de obscurantismo

Não são de falta de luz

Mas dos que a jogam no abismo

De lhe não fazerem jus.

 

 

1000 - Longevidade

 

O problema do renovo

Gera o da longevidade:

Aquele que morrer novo

Eterna conserva a idade.

 

 

1001 - Vinha

 

Vinha escura, de sarmentos

De parca parra e sem uva,

Estátua dos monumentos

Aos mortos: - eis a viúva!

 

 

1002 - Castidade

 

A castidade transforma

Qualquer crente num fanático

Se a pureza não for norma

De qualquer nele húmus prático.

 

 

1003 - Expatriar

 

Um segredo tem lugar

Mesmo se se enlouqueceu:

Não me posso expatriar

Do espírito que é o meu.

 

 

1004 - Inclemente

 

A vida como inclemente

Dos heróis se embeleza!

O céu só poupa gente

A que, no fim, despreza.

 

 

1005 - Excessivo

 

A vida de quanto é vivo

Balança entre atrás e avante,

Tudo o que for excessivo

É sempre insignificante.

 

 

1006 - Sorte

 

A vida é melhor que a morte,

A paz, melhor do que a guerra…

O mais é apenas a sorte

Que formos tendo na terra.

 

 

1007 - Calendário

 

Marco a cruz no calendário

Cada dia decorrido:

Cemitério imaginário

De todo o tempo perdido.

 

 

1008 - Heroísmo

 

Qualquer heroísmo consiste

Em morrer por uma ideia,

Não em matar quem se aliste

Noutra qualquer praça meia.

 

 

1009 - Contrário

 

O contrário, de verdade,

Deveras da violência,

Jamais é a passividade,

Antes sempre a paciência.

 

 

1010 - Cheiro

 

Negócios são o dinheiro

Dos outros, que vai e vem.

A guerra é do sangue o cheiro

Dos outros, de mais ninguém!

 

 

1011 - Coragem

 

É no escudeiro e nos pagens

Que a maior coragem arde.

A coragem das coragens

É a de parecer cobarde.

 

 

1012 - Sequer

 

Que haverá de mim em mim?

Tão nada, tão quase nada!

- Tudo o mais foi com que vim,

Nem sequer abri a estrada!

 

 

1013 - Escritas

 

Sempre pensarás que as coisas

Devêm mais verdadeiras

Quando escritas: é que poisas

Nelas sempre que o requeiras.

 

 

1014 - Fito

 

O mundo é um livro infinito.

Ao darmos uma passada,

Deveras o que ali fito

É uma página virada.

 

 

1015 - Consolar

 

Tem-nos sempre a natureza

O poder de consolar

Mesmo se o mais nos despreza

E até a palavra falhar.

 

 

1016 - Hábito

 

Se um hábito é segunda natureza,

É que a primeira arrasta pelos cantos,

Não nos permite ver o que ela reza

Nem tem dela a crueza nem encantos.

 

 

1017 - Vaidade

 

Quem os saberes não preza

Frente à originalidade,

Nada aprende, que o despreza,

Marca pontos em vaidade.

 

 

1018 - Sábio

 

Quem é sábio, céptico é:

O excesso, em tudo, é defeito.

- Eis a medida do pé

De génio ser a preceito.

 

 

1019 - Moedas

 

É falso que o dinheiro não tem cor.

Uma nova maneira de o gastar

Novas torna as moedas que o pintor

Dos usos desluzira devagar.

 

 

1020 - Lente

 

O meu livro é sempre a lente

Com que em si mesmo irá ler

O leitor mais exigente,

- Só que o nem verá sequer!

 

 

1021 - Oleiro

 

Sei que nunca estou inteiro

E as peças não há que as solde:

Bem podia ser oleiro

Mas não me adaptei ao molde.

 

 

1022 - Colchões

 

O vendedor de colchões

Vende na publicidade

Sexo e sonhos aos milhões…

- E há quem creia que é verdade!

 

 

1023 - Escapes

 

Pelos campos e aldeias

Procura escapes o jovem

E a vida oferta-lhe teias,

Jamais os sonhos que o movem.

 

 

1024 - Sonhar

 

Os velhos sonhos, que bom!

Nunca se realizaram,

Mas que bom sonhar no tom

Dos sonhos que se sonharam!

 

 

1025 - Diabo

 

Bem me pego pela mão

A regrar passos em volta.

Quando chega a inspiração

Anda aqui o diabo à solta!

 

 

1026 - Costas

 

Vida fora, a toda a hora,

Vão de costas, nos comboios:

A paisagem lá de fora,

Passado já morto, foi-os.

 

 

1027 - Arqueológica

 

A arqueológica verdade

De pedras, tumbas, escorços,

Sublinha a futilidade:

- Que valem nossos esforços?

 

 

1028 - Encegueirar

 

Ver tudo mui claramente

Pode encegueirar a estrada

E então o que um homem sente

É que acaba a não ver nada.

 

 

1029 - Magias

 

Já fui crente, quis meu pão

Das magias do luar.

Homem hoje de razão,

Agora nem sei sonhar.

 

 

1030 - Estaca

 

Por mais que enterrada e fraca

Permaneça, persuade:

Nunca se espeta uma estaca

No coração da verdade.

 

 

1031 - Triz

 

Sem medo, arrependimento,

Vê do assombro a imensidão:

Sempre há da luz o momento

Quando a um triz da escuridão!

 

 

1032 - Pregador

 

Amamos o pregador

Que nos tem o céu na mão

E não diz nem um rumor

Do inferno que os céus nos dão.

 

 

1033 - Providência

 

A irónica providência

Guia a noite que tacteio.

Se creio ter-lhe a ciência,

Jamais cumpre o que planeio.

 

 

1034 - Pergaminho

 

Uma pele velha e seca

É o pergaminho da idade

Onde a vida murcha e peca

Se escreveu à puridade.

 

 

1035 - Companhia

 

O mar ama companhia.

Porém, aqueles que ele ama

Cobiça com tal magia

Que em seu leito lhes dá cama.

 

 

1036 - Difícil

 

É difícil ver um homem

Como da primeira vez

Ver a Deus, se nos consomem

Dúvidas do que é talvez.

 

 

1037 - Esquivo

 

O que a vida desacata

É o que mais quer ser-lhe esquivo:

- A mentira sempre mata

E a verdade mantém vivo.

 

 

1038 - Sacrifício

 

Os sacrifícios também

Da vida parte farão.

Porém, só quem é refém

Os irá viver em vão.

 

 

1039 - Dores

 

As dores mais fundas

São as que nos mondem,

Discretas, fecundas…

- São as que se escondem.

 

 

1040 - Engana

 

Quem tem fala, engana.

Quem não acredita

Ainda mais se dana,

Que só tem desdita.

 

 

1041 - Bizarria

 

A bizarria embriaga,

Marca a compasso a cantiga.

Assim se bebe a triaga

E fica a sorte inimiga.

 

 

1042 - Taça

 

A verdade é uma bebida

Amarga e que nos esforça,

Mas se bebo a taça erguida

É nela que encontro a força.

 

 

1043 - Esperança

 

A nossa esperança mora

Onde sempre nos morou:

No próprio íntimo agora

E nos laços que gerou.