SÉTIMO CANTO
PEDRA A
PEDRA SEGUIR, RUMO AO SUBIDO
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aleatoriamente um número entre 862 e 1043 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
862 - Pedra a pedra seguir, rumo ao subido
Pedra a pedra seguir, rumo ao subido
Destino meu traçado, para ser
A promessa que em mim me prometer
Levar-me ao que jamais hei atingido,
É o que na quadra cantarei, ao ver
Os traços do perfil nunca fingido
Que em mim incarnarão, metal polido
De estátua viva que ando a acontecer.
E assim na quadra fixos ficarão
Os entalhes e as marcas duma história,
Tais como regulares eles hão-
- De ter acontecido. E na memória
Restarão tais solenes patamares
Para o porvir seguro que tentares.
863 - Melhor
Prefiro pensar
O melhor de todos
E assim vou poupar
Problemas a rodos.
864 - Faz
Ouvimos sempre falar
Em quem tem e quem não tem.
Será que não há lugar
A quem faz ou não também?
865 - Fardo
Duro é o fardo da pobreza,
O da ignorância é real,
Mas o maior se despreza:
- Só ter, só, potencial!
866 - Página
Qualquer acto de justiça
Volta a página do mal.
O da vingança o enguiça:
Lavra outra página igual.
867 - Tempestade
Democráticas são poucas
Coisas, tanto e de verdade
Como são de neve as loucas
Danças duma tempestade.
868 - Alma
Não canta o canto o cantor
Com braveza nem com calma
Enquanto o canto não for
Cântico a cantar na alma.
869 - Enganar
Não ter possibilidade
De me enganar longe ou perto
Era ignorar de verdade
Todo o prazer de estar certo.
870 - Honesto
Ser honesto é o meu seguro
Gratuito e sem evidência
Em que afinal eu apuro
Minha paz de consciência.
871 - Natural
A tempestade é uma acção
Natural mas não humana:
Donde houver o sim e o não
É que o que é humano dimana.
872 - Conveniente
O que é certo, o que é decente,
Quantas vezes é varrido
Por aquilo que é entendido
Como o que é conveniente!
873 - Biblioteca
Se morre em África um velho,
Morre mais que esta erva seca,
Morre a fonte do conselho:
- Morre uma biblioteca!
874 - Erros
São a ponte habitual
Da ignorância à sapiência
Os erros que cada qual
Comete por excelência.
875 - Mil
Obra de arte vai viver
De mil maneiras: conforme
Os olhos de quem quiser
E o tempo que ali não dorme.
876 - Passeia
Religião é eternidade
Que pelo tempo passeia:
Além é igual a verdade,
Aqui muda em cada aldeia.
877 - Céu
Pão nosso de cada dia
Para a fome e mais escolhos
No céu azul principia:
- É o pão nosso para os olhos.
878 - Vestígio
Um vestígio de verdade
Com distorção, exagero,
Mais eficácia ter há-de
Que a que tem um erro inteiro.
879 - Pólo
Nunca lá estive e tu, sim,
Portanto podes julgar?
- Nunca ao Pólo Norte vim
Mas sei quão frio é o lugar!
880 - Tentador
Que é que há de mais tentador
Que um segredo mencionado,
Retido após com pudor,
A meias posto de lado?
881 - Cativa
A verdade é relativa
E depois, como a beleza
Está dos olhos cativa
De quem a contempla e preza.
882 - Surdez
São as palavras que acodem
A vergarem-nos às palmas?
- As palavras nada podem
Contra uma surdez das almas.
883 - Traem
As doutrinas que se traem,
Tal mulher abandonada,
Nunca estão, enquanto caem,
Com a razão que as degrada.
884 - Derrota
Uma das lições que esquecem
De experiência de alta nota,
É que os vencidos merecem,
Por norma, a sua derrota.
885 - Julgar
Julgar, ficará provado,
Será não compreender:
Quem compreende um bocado
Julgar já não vai poder.
886 - Doença
A doença não podemos
Sabê-la senão doentes:
Estranha a nós nós a cremos
E afinal damos-lhe os dentes.
887 - Sobrenada
Se a vida não vale nada,
O que importa, de seguida,
Do nada é o que sobrenada:
Nada não vale uma vida!
888 - Vaidade
Não há força nem há vida
Sem a certeza certeira
Da vaidade desmedida
Do mundo e sua maneira.
889 - Sofrimento
O sofrimento reforça
Todo o absurdo que é o da vida:
Não a ataca nem destroça,
Dá-lhe a irrisória medida.
890 - Guerra
Um homem continua a ser julgado,
Não noutra, mas na sua própria terra,
Cada qual é que pesa o próprio fado:
Um homem é sempre esta infausta guerra.
891 - Vassalagem
Involuntária homenagem,
Detestar o superior
É de quem a vassalagem
Presta de ser inferior.
892 - Tragédia
Baptizou a Idade Média
Os filósofos pagãos,
Só que não viu que a tragédia
É que não ficam cristãos.
893 - Impresso
Usam o papel impresso
Porque em impresso papel
A patranha ganha o excesso
Dum sagrado capitel.
894 - Promulga
Aquele que sofre julga
Ser o único a sofrer
E o que sofre então promulga
Que não sofre mais quenquer.
895 - Conta
A melhor conta de banco
Dum homem em evidência
A moeda não é que tranco,
Será dele a inteligência.
896 - Aprendiz
Um velho é feito juiz,
Que em miúdo estudou leis:
- Fica a velhice aprendiz
Dum miúdo de dez reis!
897 - Pitéu
Morreu tão novo que quase
Nem chega a ver que viveu,
Provou o molho de base
Sem saborear o pitéu.
898 - Triagem
Questão é como viver:
Quando crente e não crente agem
De igual modo, nem sequer
Faz sentido haver triagem.
899 - Obsessiva
A carência preenchida
Deixa logo de obcecar,
É a recusa toda a vida
Que obsessiva a vem tornar.
900 - Santuário
No santuário que é que havia
Quando o templo se erigiu?
A sala inteira vazia:
- Tudo o que de Deus se viu!
901 - Derrota
Quando já não és um jovem,
Não é a vida um desafio,
Na derrota só te movem
As condições do fastio.
902 - Abismo
Quando à beira dum abismo
E se Deus me abandonou,
Então deveras eu cismo
No milagre: no que sou!
903 - Humildade
A humildade, quando chega
E se chega a dar sinais,
Aquilo que mais adrega
É chegar tarde demais.
904 - Cão
Se tenho um cão, tenho um cão
que faz tudo o que eu aprovo.
Tenho um cão? Não! Tenho o irmão,
Tenho o meu irmão mais novo!
905 - Infeliz
O poeta é um infeliz:
Vê do mundo a imensidade;
Só no provir, de raiz,
Vê-o a ele a Humanidade.
906 - Crítico
Crítico é quem vende o peixe,
Mas quem do peixe percebe
Não é o peixeiro a que o deixe,
É o que do mar o recebe.
907 - Pescador
Pescador é da paisagem
Mero pormenor humano:
Para um olhar de viagem
Nem à solidão traz dano!
908 - Vendaval
Ramo verde e vigoroso
Que o vendaval chicoteia,
Logo me endireito ao gozo
Do alvor da vida que ameia.
909 - Adolescente
No banco de jardim, o adolescente.
Orvalha a nostalgia e vence-o, vence-o,
Magoando e ferindo molemente…
- Até que ele no fundo ouve o silêncio.
910 - Encruzilhada
De tudo vem poesia
Da vida na encruzilhada:
Quando se abre a gelosia,
Vem poesia até de nada.
911 - Desilusão
Satisfeito o meu desejo,
Começa a desilusão,
Não por aquilo que vejo,
Porque vejo quanto é vão.
912 - Eleito
Se em tudo lhe encontro o efeito
Na presença da emoção,
Ao que é o meu motivo eleito
Não o encontro em nada então.
913 - Electrão
A força que dá mais vezes
Da Terra a volta em redor:
- Do electrão as rapidezes
São batidas pela dor!
914 - Doença
Quando a doença me leve
A ver a morte de perto,
Como a vida, agora breve,
Gozaria pelo certo!
915 - Atmosfera
As mudanças de atmosfera
Mudam o homem interior:
Despertam eus doutras eras,
Sopram do hábito o torpor.
916 - Recanto
As artes põem encanto
No mais insignificante,
Como a dor cada recanto
Nos torna a nós relevante.
917 - Transeunte
Tanto prazer, tanta dor,
Sem do corpo jamais ter
Um perfil nada melhor
Que dum transeunte qualquer!
918 - Estado
Um facto, como uma imagem,
Diverge conforme o estado
Em que o olha o personagem:
Qualquer pó lhe muda o dado.
919 - Encruzilhada
Uma ideia: encruzilhada
Da floresta donde parte
Tanta estrada, tanta estrada
Que só aventuras reparte.
920 - Trovão
Instantes após o choque,
A inteligência, trovão
Duma faísca a reboque,
Ruge a luz da intuição.
921 - Inventivo
Recordar não é inventivo,
É impotente em desejar
Algo para além do arquivo,
Mas pode o ausente me dar.
922 - Arcaico
Esquecer é um instrumento
Que me adapta à realidade:
O arcaico semeia ao vento,
Só germina o que persuade.
923 - Citadino
Quem nada tem que fazer
Lê virtudes, lê defeitos,
É um citadino a colher
Ervas em becos estreitos.
924 - Ensejo
O sofrimento e o desejo
Agravam se penso neles,
Ter que fazer é o ensejo
De ignorar como são reles.
925 - Pensamento
Os hábitos de pensar
Impedem, cada momento,
O real de se agarrar,
Colhido no pensamento.
926 - Dois
Há dois mundos lado a lado:
O que clamam os mentores
E o que fazem, recatado,
Nas costas, os tais senhores.
927 - Luz
A mesma obra produz
Sobre uma e outra pessoa
Diversos traços de luz:
- Eis o que a torna ou não boa.
928 - Expresso
Tudo o que eu, vida, te peço,
É que acabe conformado
Na rota de teu expresso
De percurso limitado.
929 - Mentiras
A nós próprios as mentiras
Que dizemos mais fatais
São aos outros as que atiras
Das deles como rivais.
930 - Asneira
Quando fizer uma asneira,
Logo anote o que aprendeu:
Lê-lo, então, logo à primeira
De a repetir o impediu.
931 - Maior
Em labor igual, obrar
Doze horas por dia deve
Para casa um pão cobrar
Maior que quem oito teve.
932 - Pobreza
Se a pobreza gera o crime,
Muito mais vezes, porém,
É o crime que gera além
Pobrezas que ninguém lime.
933 - Oração
Quanto mais velho ficar,
Tão mais sinceras serão
As palavras que rezar
Minha descrente oração!
934 - Cansado
O que nunca trabalhar
Fica mais vezes cansado
Que quem sua, se calhar,
Mais cedo cai para o lado.
935 - Extremos
A vida é feita de extremos,
Que tudo nela se acama:
Ora é bronze o que lá vemos,
Ora é só feita de lama.
936 - Contas
Com a vida ou com dinheiro,
Da guerra nas desafrontas,
Não é o rei nem seu parceiro,
É o povo que paga as contas.
937 - Transplantar
Se o jovem é como a flor
Será só para enganar.
Na velhice a convém pôr:
Pois como ambas transplantar?
938 - Tolo
Cheio de suficiência,
O tolo, por ignorância,
Não repara que a ciência
Pouco nos diz de importância.
939 - Minúsculo
O homem de hoje é colossal
Nas responsabilidades
E um minúsculo animal
Na tarefa em que o engrades.
940 - Vagalhão
Nem tudo há-de ser vaidade,
Fugaz vagalhão de espuma,
Um caminho de verdade
Que não vai a parte alguma.
941 - Precisões
Recursos para viver
Se dão grandes precisões,
Mais dará tentar saber
Para viver as razões.
942 - Consentimento
A liberdade é uma escolha
E bem mais consentimento:
Quando chover, para a molha,
Ao sol, prò divertimento.
943 - Esmagá-lo
Um homem não vale nada,
Pode esmagá-lo o Universo,
Mas só ele sabe à entrada
Que no Imenso morre imerso.
944 - Rol
Fomes, mortes, coronéis,
Onde anda Deus neste rol?
- Nuvens, mesmo se cruéis,
Nunca negareis o Sol!
945 - Reduto
Para nós, se a morte ocorre,
Cai o último reduto.
Para Deus, quando alguém morre
Colhe apenas d’Ele um fruto.
946 - Miséria
A miséria das igrejas
Não é de santos egrégios,
É o que alimenta as invejas:
Miséria dos privilégios.
947 - Sagrado
O que deve ser sagrado
É o que a todos é preciso,
Propriedade em nenhum lado
De ninguém que tenha siso.
948 - Naufrágio
Das tragédias é apanágio
Mobilizar energias,
Mas que fazer do naufrágio
Que afoga todos os dias?
949 - Bola
Ao alvo a bola atirei,
Bateu-lhe um pouco de lado:
Em minha vida esta é a lei,
A de acertar só um bocado.
950 - Fogo
Um homem é sempre fogo:
Se arde, tem de devorar:
Se não devora, então logo
Tem mesmo de se apagar.
951 - Hábito
O hábito nos tem de cor,
Nos livra ou joga ao degredo:
Se hábito devém o medo,
É dos medos o maior.
952 - Contrariada
A vida que nos alcança
Não é vida nem é nada:
Somos a eterna criança
Sempre ao fim contrariada!
953 - Acontecer
O melhor a acontecer,
Ante o que a vida nos traz,
É crer no que se disser
E gostar do que se faz.
954 - Presunção
Quem no mar da maioria
Se afoga, afoga-se em vão,
Não de marés que engolia,
De vagas de presunção.
955 - Russa
Conspirador que se embuça,
Suaves fêmeas, viris machos…
- É a vida montanha russa,
Ela toda altos e baixos.
956 - Alimento
Alimento proibido
Não existe, tanto monta:
Quanto é que fica envolvido,
A quantidade, é que conta.
957 - Integridade
É difícil ter o tom
Quando a solo ou nem sequer.
Integridade é ser bom
Quando ninguém fica a ver.
958 - Chaga
A velha chaga fechou,
Porém, sob a pele, fita
O que ali cicatrizou:
Ali sempre a dor dormita.
959 - Exéquias
Há desgraças que se vivem
Como as exéquias em vida,
Tão lentas que nem se arquivem
Dentro nem fora da ermida.
960 - Mestre
O grito das sentinelas
Vibrará disciplinado
Se o mestre supremo delas,
O medo, rondar ao lado.
961 - Navega
As águas do rio
Navegam a calma
E por este ousio
Nos navegam alma.
962 - Desprezo
Não há, não, maior desprezo
Do que o desprezo dos fracos
Se vão enfrentar, por vezo,
Da fraqueza alheia os cacos.
963 - Santidade
Um santo entrará nos céus
Se entrar sem humilhação:
Tudo o humilha, valha-o Deus,
Só a santidade não!
964 - Vão
Deveras há os infelizes
E há quem o ignore de vez
Para escapar às raízes:
Sentir vão quanto se fez.
965 - Tristeza
Formosura que medita
Só de tristeza a vestistes:
Deuses belos, acredita,
São, para nós, deuses tristes.
966 - Ordem
Sob o que sucede
Numa dada ordem
Outra existe e mede
Quanto os dias mordem.
967 - Acasos
Acasos por explicar
Há-de haver até sabermos
Do ser qual seja o lugar:
- Do ser o que seja sermos.
968 - Desanimada
A manhã desanimada,
Se acorda presa a cadilhos,
A cara encosta anuviada
Das janelas aos caixilhos.
969 - Teia
A calamidade humana
Não são fúrias nem amores,
donde afinal mais dimana
É da teia dos terrores.
970 - Enfiada
O que crê tudo saber
Sabe menos que o que nada
Sabe mas deveras quer
Tudo saber de enfiada.
971 - Descoberta
A descoberta consiste
Em ver o que todos vêem
E pensar o que ninguém
Pensou do que ali existe.
972 - Uniforme
Um uniforme é uma ausência
Com que pago minha calma.
Uma uniforme experiência
É sempre uma ausência de alma.
973 - Fuga
Mais do que uma perversão,
A fuga à normalidade
Pode ser revelação
Particular da verdade.
974 - Viárias
Obstáculos e problemas
São como redes viárias:
Alternativas e temas
Dão às rotinas diárias.
975 - Monstro
Aqui, no fundo de mim,
Mora o monstro que em mim vela,
Que me aterra e que, no fim,
Se revela a minha estrela.
976 - Ignoro
Natureza e Deus ignoro
E tanto ambos me conhecem
Que estremeço quando, em coro,
De mim a malha entretecem.
977 - Lama
Eu não sou filho da luz,
Eu não sou filho do fogo,
Em lama é que se traduz
A raiz que nutre o jogo.
978 - Quase
É o nosso maior mistério
Que o que está quase a cumprir-se
Fica também sob o império
De estar prestes a esvair-se.
979 - Profundidade
Se profundidade quero,
Então hei-de estar ao lado
Do mundo inferior, por mero
Ser de mim um bom bocado.
980 - Inferior
Mais minha alma se revela
Onde me sinto inferior:
É como ir no barco à vela
De noite entregue ao terror.
981 - Inúmeras
Disposto a reconhecer
As inúmeras pessoas
Que sou no fundo do ser,
Que canção, meu eu, entoas?
982 - Traço
A insossa repetição
E a violência mais gritante
Têm um traço de união:
- Desta aquela é fiel amante.
983 - Preocupação
Se nossa alma constitui
Centro de preocupação,
O prazer logo ela inclui
No fulcro da discussão.
984 - Deprimido
O cérebro é deprimido,
Se é dito computador.
Fica o coração sentido,
Feito só bomba ou motor.
985 - Donos
Não somos donos do mundo,
Participamos da vida.
Quando o esquecemos, no fundo,
Somos nele uma ferida.
986 - Imaginado
Corpo não imaginado
Vai da doença a caminho.
Doente, sofre do fado
De sonhar seu fim vizinho.
987 - Sondas
Quem é fundamentalista,
Na Bíblia a seco acredita.
A fé, porém, vê uma lista
De sondas do imo à compita.
988 - Entranhas
Por fora tem rosto de homem?
Se se abrir por dentro, aposto
Que as entranhas que se tomem
Dos deuses dão todo o rosto.
989 - Regalia
Qualquer de alma economia
Num mundo novo encontrado
Põe um custo à regalia
Que é sempre um preço elevado.
990 - Germe
É impossível conhecer-me
Pensando o que me consome.
Só a morte lerá meu germe,
Só Deus, meu correcto nome.
991 - Lixo
O lixo é a recordação
Do passado que esquecemos:
Ainda a imaginação
Não sarou quanto fizemos.
992 - Escada
Neste mundo desalmado
A beleza é relegada
Para o degrau colocado
Por derradeiro na escada.
993 - Sustento
Para o corpo um alimento
Está como para a alma
O que a mantém, o que a acalma:
Dela o belo é que é o sustento.
994 - Aflito
Beleza não é o bonito:
Arte que me fere o olhar
Pode o coração aflito
Na sarjeta mergulhar.
995 - Aparência
Na aparência secular,
Qualquer assunto contém
Um sagrado patamar
Se o penetro mais além.
996 - Negócio
Num negócio pouco importa
Qual será o valor real,
Mas no comprador a porta
Do que ele crê que ele vale.
997 - Cedo
A morte não é o tempo de quenquer,
Pois somos vida da cabeça aos pés.
Sempre é cedo demais para morrer
Mesmo a quem já morreu por uma vez.
998 - Realiza
É a mente que na mão ponho
Quando a meta é o que se visa:
O cientista sonha o sonho,
O engenheiro o realiza.
999 - Jus
Épocas de obscurantismo
Não são de falta de luz
Mas dos que a jogam no abismo
De lhe não fazerem jus.
1000 - Longevidade
O problema do renovo
Gera o da longevidade:
Aquele que morrer novo
Eterna conserva a idade.
1001 - Vinha
Vinha escura, de sarmentos
De parca parra e sem uva,
Estátua dos monumentos
Aos mortos: - eis a viúva!
1002 - Castidade
A castidade transforma
Qualquer crente num fanático
Se a pureza não for norma
De qualquer nele húmus prático.
1003 - Expatriar
Um segredo tem lugar
Mesmo se se enlouqueceu:
Não me posso expatriar
Do espírito que é o meu.
1004 - Inclemente
A vida como inclemente
Dos heróis se embeleza!
O céu só poupa gente
A que, no fim, despreza.
1005 - Excessivo
A vida de quanto é vivo
Balança entre atrás e avante,
Tudo o que for excessivo
É sempre insignificante.
1006 - Sorte
A vida é melhor que a morte,
A paz, melhor do que a guerra…
O mais é apenas a sorte
Que formos tendo na terra.
1007 - Calendário
Marco a cruz no calendário
Cada dia decorrido:
Cemitério imaginário
De todo o tempo perdido.
1008 - Heroísmo
Qualquer heroísmo consiste
Em morrer por uma ideia,
Não em matar quem se aliste
Noutra qualquer praça meia.
1009 - Contrário
O contrário, de verdade,
Deveras da violência,
Jamais é a passividade,
Antes sempre a paciência.
1010 - Cheiro
Negócios são o dinheiro
Dos outros, que vai e vem.
A guerra é do sangue o cheiro
Dos outros, de mais ninguém!
1011 - Coragem
É no escudeiro e nos pagens
Que a maior coragem arde.
A coragem das coragens
É a de parecer cobarde.
1012 - Sequer
Que haverá de mim em mim?
Tão nada, tão quase nada!
- Tudo o mais foi com que vim,
Nem sequer abri a estrada!
1013 - Escritas
Sempre pensarás que as coisas
Devêm mais verdadeiras
Quando escritas: é que poisas
Nelas sempre que o requeiras.
1014 - Fito
O mundo é um livro infinito.
Ao darmos uma passada,
Deveras o que ali fito
É uma página virada.
1015 - Consolar
Tem-nos sempre a natureza
O poder de consolar
Mesmo se o mais nos despreza
E até a palavra falhar.
1016 - Hábito
Se um hábito é segunda natureza,
É que a primeira arrasta pelos cantos,
Não nos permite ver o que ela reza
Nem tem dela a crueza nem encantos.
1017 - Vaidade
Quem os saberes não preza
Frente à originalidade,
Nada aprende, que o despreza,
Marca pontos em vaidade.
1018 - Sábio
Quem é sábio, céptico é:
O excesso, em tudo, é defeito.
- Eis a medida do pé
De génio ser a preceito.
1019 - Moedas
É falso que o dinheiro não tem cor.
Uma nova maneira de o gastar
Novas torna as moedas que o pintor
Dos usos desluzira devagar.
1020 - Lente
O meu livro é sempre a lente
Com que em si mesmo irá ler
O leitor mais exigente,
- Só que o nem verá sequer!
1021 - Oleiro
Sei que nunca estou inteiro
E as peças não há que as solde:
Bem podia ser oleiro
Mas não me adaptei ao molde.
1022 - Colchões
O vendedor de colchões
Vende na publicidade
Sexo e sonhos aos milhões…
- E há quem creia que é verdade!
1023 - Escapes
Pelos campos e aldeias
Procura escapes o jovem
E a vida oferta-lhe teias,
Jamais os sonhos que o movem.
1024 - Sonhar
Os velhos sonhos, que bom!
Nunca se realizaram,
Mas que bom sonhar no tom
Dos sonhos que se sonharam!
1025 - Diabo
Bem me pego pela mão
A regrar passos em volta.
Quando chega a inspiração
Anda aqui o diabo à solta!
1026 - Costas
Vida fora, a toda a hora,
Vão de costas, nos comboios:
A paisagem lá de fora,
Passado já morto, foi-os.
1027 - Arqueológica
A arqueológica verdade
De pedras, tumbas, escorços,
Sublinha a futilidade:
- Que valem nossos esforços?
1028 - Encegueirar
Ver tudo mui claramente
Pode encegueirar a estrada
E então o que um homem sente
É que acaba a não ver nada.
1029 - Magias
Já fui crente, quis meu pão
Das magias do luar.
Homem hoje de razão,
Agora nem sei sonhar.
1030 - Estaca
Por mais que enterrada e fraca
Permaneça, persuade:
Nunca se espeta uma estaca
No coração da verdade.
1031 - Triz
Sem medo, arrependimento,
Vê do assombro a imensidão:
Sempre há da luz o momento
Quando a um triz da escuridão!
1032 - Pregador
Amamos o pregador
Que nos tem o céu na mão
E não diz nem um rumor
Do inferno que os céus nos dão.
1033 - Providência
A irónica providência
Guia a noite que tacteio.
Se creio ter-lhe a ciência,
Jamais cumpre o que planeio.
1034 - Pergaminho
Uma pele velha e seca
É o pergaminho da idade
Onde a vida murcha e peca
Se escreveu à puridade.
1035 - Companhia
O mar ama companhia.
Porém, aqueles que ele ama
Cobiça com tal magia
Que em seu leito lhes dá cama.
1036 - Difícil
É difícil ver um homem
Como da primeira vez
Ver a Deus, se nos consomem
Dúvidas do que é talvez.
1037 - Esquivo
O que a vida desacata
É o que mais quer ser-lhe esquivo:
- A mentira sempre mata
E a verdade mantém vivo.
1038 - Sacrifício
Os sacrifícios também
Da vida parte farão.
Porém, só quem é refém
Os irá viver em vão.
1039 - Dores
As dores mais fundas
São as que nos mondem,
Discretas, fecundas…
- São as que se escondem.
1040 - Engana
Quem tem fala, engana.
Quem não acredita
Ainda mais se dana,
Que só tem desdita.
1041 - Bizarria
A bizarria embriaga,
Marca a compasso a cantiga.
Assim se bebe a triaga
E fica a sorte inimiga.
1042 - Taça
A verdade é uma bebida
Amarga e que nos esforça,
Mas se bebo a taça erguida
É nela que encontro a força.
1043 - Esperança
A nossa esperança mora
Onde sempre nos morou:
No próprio íntimo agora
E nos laços que gerou.