NONO CANTO

 

 

 

NO  SONETO,  REMOTA  VOZ  ANTIGA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1107 e 1152 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                1107 - No soneto, remota voz antiga

 

                                                No soneto, remota voz antiga

                                                Que os amores cantou de antigamente

                                                Cantarei quanto amor há no presente,

                                                Retomo o testemunho que nos liga.

 

                                                No jogo interminável bem assente,

                                                No metro popular encontro a amiga

                                                Inspiração da voz que nos religa

                                                À fonte maternal que nos fez gente.

 

                                                Urgente os traços disporei no quadro

                                                Que nos enlaçam firmes na voragem,

                                                Nos vão deixar da romaria no adro.

 

                                                Descrevo então as rotas da viagem:

                                                Sempre ao compasso irão do coração

                                                Batendo-nos pegadas pelo chão.

 

 

1108 - Economia

 

Tendo a economia em vista,

Mato atrasados mentais

E mongolóide que exista

Ninguém o verá jamais.

 

A eutanásia na lista,

Os doentes terminais,

Velhos, inúteis, regista

E larga nos matagais,

 

Para os lobos devorarem.

Porém, os que valorarem

Vida e dignidade humana

 

Não o farão, que o progresso

Do valor virá que egresso

For do que respeito emana.

 

 

1109 - Namorados

 

O dia dos namorados

Não é um dia diferente

Nem são presentes contados:

- É um dia sempre presente.

 

Assim por nós fica assente,

Diferente e sem cuidados,

O dia que ninguém sente,

que o sente em dias marcados.

 

Assim, à espera do dia,

Dele quenquer fica ausente,

Que um dia acaba depressa.

 

E não descobre a alegria

Que cada dia pressente

Se em todos sempre começa.

 

 

1110 - Mistério

 

Toda a criatura humana

Forma um mistério, um segredo

Para os outros, cujo credo

Do imo jamais dimana.

 

Uma casa, uma cabana,

Mais que preservam do medo:

Lá dentro apontam a dedo

Que ninguém, ao fim, se irmana.

 

É uma morte antecipada,

Pois aqui de vez quebrou

A ponte que houver na estrada.

 

Só que antes, por onde vou,

Se em comum é a caminhada,

Sou sempre os passos que dou.

 

 

1111 - Ofereço

 

Não te ofereço certezas,

Dúvidas é que ofereço.

Como pessoa de apreço,

Inteligente, o que prezas

 

São as dúvidas que rezas.

Só, nas dúvidas que meço,

Aquilo que a ti te peço

É que as contrárias tão presas

 

Mantenhas como as que tens.

O ponto de vista incréu

De sermos todos reféns

Dum mundo louco e sem véu,

 

Vê que é um acto ainda de crença:

Não é estranho que convença!

 

 

1112 - Rito

 

Um rito religioso

É um acto de nostalgia

Onde se pretenderia,

Selectivo, ter o gozo

 

De recordar o melhor

Que houvera dentro de tudo

E de então o sotopor

Ao que fora ali desnudo.

 

E, por este mecanismo

Com que o melhor elemento

Do passado então eu crismo,

 

Vou influir, porventura,

Deveras, convictamente,

No porvir que se inaugura.

 

 

1113 - Reclame

 

Quando uma pessoa os ritos

Cumpre da religião

E depois moucos os gritos

Dos mais larga pelo chão,

 

É um reclame cujos ditos

Falam dum deus charlatão.

Se, ao invés, dirime atritos,

Dirão que seu Deus é bom.

 

Para teu Deus tens de ser

Agente de relações

Ante dos homens qualquer.

Através das impressões

Que em redor de ti houver,

Sempre um Deus no mundo pões.

 

 

1114 - Adicional

 

Quando um animal

Sofre dor demais,

Sem o adicional

Morre dos sinais

 

De saber que a dor

É desnecessária,

Dura, sem valor,

Injusta, arbitrária…

 

Ignora a futilidade,

A perca, a brutalidade

De saber que nada vale,

 

Não é para um bem maior…

Se alguém morre até de dor,

- Dobra a dor saber do mal!

 

 

1115 - Paraíso

 

À consciência de que tudo

Poderá ser diferente,

Em infeliz me transmudo,

Devém o trabalho urgente.

 

Finda, pois, o Paraíso.

Porém, o conhecimento

Leva-me a moldar meu siso,

Pode ser bom instrumento.

 

Pois um homem ignorante

Não poderá bem ser justo,

Que a intenção não é bastante.

 

Mas ao fim paga-se o custo:

Do saber nem há medida

Com que melhorar a vida.

 

 

1116 - Água

 

Se casara com um homem

Que não liga a certas coisas,

Logo nela se lhe somem,

Praticara noutras loisas,

 

Com toda a facilidade:

Transmudar uma mulher,

Fixá-la ali de verdade,

Ou convertê-la quenquer,

 

Por mais que o sonhe a paixão,

Nem se notará sequer,

Por muito que doa a mágoa.

 

É que intentar tal missão

É sempre como escrever

O nosso nome na água.

 

 

1117 - Lascívia

 

A lascívia será o sexo

De tudo o mais isolado.

De tudo o mais desconexo,

Finda o mais pondo de lado.

 

Ignora que envelhecemos,

O homem e a mulher também,

E que ambos por fim morremos

Como a tudo o mais convém.

 

É uma pílula doirar

Para quantos se revelam

De jogada já perdida,

 

Incapazes de aceitar,

Em tudo quanto modelam,

A realidade da vida.

 

 

1118 - Estudioso

 

Um estudioso requer

Os demais estudiosos

Para o saber lhe acrescer

Do trato comum nos gozos.

 

Por isto vens às cidades

E nem reparas que perdes,

Num poço de alma, as saudades

De aldeias e campos verdes.

 

Só não vê compensação

Quem se afeiçoara tanto

Ao jardim, horta, capão,

 

Que nada lhes valha o encanto.

E que mais sabedoria

Vale o que ali viveria?

 

 

1119 - Redundantes

 

A longo prazo, os amantes

Condenados devirão

De dois entes redundantes

A ser vazio balão.

 

A menos que ambos primeiro

Apaixonado se houveram

Por qualquer rumo terceiro:

Uma causa comum eram.

 

Ter este factor qualquer

Mas altamente estimado

É que faz reconhecer

 

O companheiro do lado:

Tão fiel é um amador

Quanto o for de tal valor.

 

 

1120 - Separação

 

Julguei que a separação

Era o que mais desejava,

Que o que amor proporcionava

Não compensava o senão

 

Do que me impedia em vão.

Mas quando ela se afastava

Revirou-me o coração:

Afinal ainda a amava!

 

É um sofrimento tamanho

Que nem logra resistir

O tempo dum outro ganho.

 

E o que cri nada devir

É a vida toda, afinal:

- Como me conheço mal!

 

 

1121 - Fanada

 

Quando a mulher já fanada

Nos diz triste o triste adeus

Daquela porta de entrada

Onde há só nuvens nos céus,

 

É que sinto a punhalada:

Não mais é um muro entre os meus

Desejos e a revoada

Das outras a cujos véus

 

Fáceis sonhei em despir.

A mulher do amor perdido

De repente em mim renasce.

 

Mais forte que outro porvir,

Mais que o prazer sem sentido,

Tudo é dor o que em mim pasce.

 

 

1122 - Desconhecidos

 

Andamos no mundo todos,

Como se desconhecidos.

Quero aberta a mesa e os modos,

Fora os sentidos proibidos!

 

Na aldeia a gente os bons-dias

Vai dando sempre a quem passa

E levanta as gelosias

À paisagem da vidraça.

 

Na cidade não é assim,

Não há nós de que me adone:

Alguns são membros de mim

E os demais, no meu confim,

Números de telefone!

 

Quem pode a tal dar o sim?!

 

 

1123 - Pálpebras

 

A mulher cujo rosto temos diante

Frequentemente mais que a própria luz,

Pois as cerradas pálpebras induz

A me obrigar a amar, a cada instante,

 

Seus lindos olhos, o nariz galante,

E a procurá-la porque me seduz,

- Tal mulher ímpar outra a reproduz

Se noutro mundo moro bem distante:

 

Suponho-a ímpar, fica inumerável!

Entretanto compacta, indestrutível,

Ei-la aqui permanece insubstituível

 

Por quanto tempo o amor nos for durável.

É que os mil elementos da ternura

Em nós concita numa só figura.

 

 

1124 - Amplificar

 

Mais desejamos alguém

Se demora ao se entregar:

A esperança é antecipar

Do abandono todo o bem.

 

Mas a saudade é também

Um meio de amplificar

O desejo que operar

No sangue que a ausência tem.

 

Como pouco lamentamos

O que é de todo impossível,

Tido então por irreal!

 

Porém, quanto desejámos,

Quanto mais foi sonho incrível,

Mais foi festa principal.

 

 

1125 - Estranho

 

O estranho do pensamento

Que pensa naquela que ama

É que pensa no momento

Em que de longe a reclama.

 

E se a lonjura é alimento

De quanto amor o recama,

O amor ausente é cimento

Onde a saudade era a trama.

 

Quando uma divagação

A qualquer ausência aluda

E lhe preencha o desvão

 

Com quanto de amor a iluda,

É morte em premonição:

- A morte real pouco a muda.

 

 

1126 - Inútil

 

A mulher que torno a ver

Quando a já não amo mais,

Se tudo diz, quer dizer

Que ela já não é, jamais,

 

Ou já não somos mais nós:

Quem amava não existe,

A morte do amor os nós

Lhe cortou, nada resiste.

 

Tudo em fácil derivou,

Que tudo se torna fútil

No manto que se rasgou

Do que antes fora inconsútil.

 

O problema é que tornou

Todo o importante em inútil.

 

 

1127 - Perspicácia

 

Na mais completa cegueira

Permanece a perspicácia

Sob a ternura fagueira,

Da predilecção a audácia.

 

De modo que erro é falar

Em escolha má de amor:

Quando a escolha tem lugar,

Se má não for, é pior.

 

Pois que quem ama deveras

Ou amará o impossível

Ou amará más esperas:

 

Será sempre o imprevisível,

É jogar-se inteiro às feras…

- Como o mal é apetecível!

 

 

1128 - Comporta

 

É o homem a criatura

Que não tem idade certa:

Ora jovem se afigura,

Ora, na comporta aberta,

 

Desce ao fundo da secura

Onde a velhice acoberta:

No tanque onde a vida dura

A flor de água é sempre incerta.

 

Poderei ter ao alcance

quer uma quer outra idade,

Conforme o que o tempo lance

 

Dos muros em que me engrade.

Constante transcorre o nível:

Eis-me, no fim, nisto acessível.

 

 

1129 - Intelectualizado

 

Alguém que é muito sensível,

Muito intelectualizado,

Com terror da dor terrível

Sofre dor em todo o lado.

 

Perpetuamente temível

A dor que houver agoirado,

Não foge à que hoje é sofrível,

eterniza-a por contado.

 

À mulher que o já não ama

Nunca irá repudiar,

Sofre a frigidez na cama…

 

Sempre então vai ter a par

A dor que lenta o descama

- E não vê como escapar!

 

 

1130 - Rosto

 

Se o rosto duma mulher

É um enigma para o olhar,

Muito mais ele há-de ser

Se a memória o evocar.

 

Se as nuvens que irão chover

O alteram conforme o par

Ou a classe que tiver,

O que há de mais singular

 

É a cortina que separa

Um acto das razões dele:

Estas formam outra cara

 

Escondida atrás da pele.

E tal rosto, a quem repara,

Mostra o invés do que revele.

 

 

1131 - Misérias

 

“Mas por quê tanta aflição

Pelas misérias distantes

Se as temos aqui à mão

Porventura mais gritantes?”

 

É que chego à conclusão,

Vendo bem tais protestantes,

Que os que fazem menos são

Pelos que ao lado andam antes.

 

Principiar por ali

Não é ficar limitado:

É o coração que sofri

 

Ter o critério apurado

Para denunciar que vi

Do mundo a chaga do lado.

 

 

1132 - Lago

 

Narciso no tormento à beira-lago,

Ao descobrir que para a imagem bela

Não basta o aceno que por ela apela,

Não entendo o interdito que em mim trago.

 

Como é que próximo meu sonho afago

E este muro invisível se revela

Em que distante e próximo daquela

Meta eterno fiquei e enfim me apago?

 

Enquanto assim me enleio em pensamentos,

Em mim explode repentina a ideia:

Sou eu a minha fonte de tormentos!

 

Desconhecera o que afinal me ateia…

O fogo que procuro tendo-o cá,

O meu “ainda-não” busco no “já”.

 

 

1133 - Prima

 

Gostamos tanto desta prima imagem

Que identifico como sendo nós!

Que existem outros nós descubro após,

Tão acidentalmente que a mensagem

 

São pontas desatadas de retrós,

Surpreendentes de atracção quando agem,

Mas soltas neste lago de voragem

Que à minha identidade empresta voz.

 

Então a cura para o narcisismo,

Cuidados de alma urgentes certamente,

Em renovar consiste quanto crismo:

 

Manter-me receptivo ao diferente,

Em mim e de mim fora, é alternativa,

Que à vida que em mim morre outra dá viva.

 

 

1134 - Casca

 

Narciso apenas vai-se amar bem apto

Quando aprender a amar-se como objecto,

Quando seu outro eu olhar correcto,

Que atrás da casca é que eu veraz me capto.

 

Só como outra pessoa se me rapto,

De mim se me apaixona este outro tecto,

é que meu novo rosto enfim concreto

Me salva de devir um mentecapto.

 

É a cura de saltar do amor de mim,

De mim a outro amor bem diferente:

O deste abismo que não tem mais fim,

 

Deste eu presente eternamente ausente.

Romper o narcisismo é, pois, romper

Com a prisão do que eu quisera ser.

 

 

1135 - Politeísmo

 

Politeísmo é a noção

De criar intimidade

Com rostos do coração

Que são a minha verdade.

 

A via monoteísta

É de obrar o que é correcto,

A tradição ter em vista,

Vida sem mudar de aspecto.

 

Aqui aquelas vertentes

Mais distantes, mais ignotas,

Ficarão de vez ausentes.

 

Só quando de ambas as rotas

Eu retomar os sinais

Menos não serei mas mais.

 

 

1136 - Demarcar

 

Nunca autêntica é a virtude

Se se demarcar do mal.

De violências não há açude

Que ao que daqui vem se iguale.

 

Se não aceito o lugar

Que ela tem no coração,

Teimando identificar-

-Me apenas com o que é bom,

 

Encorajo só a presença

Da violência no mundo:

De mim solta, então se adensa,

 

E, ignorando-a, é que então dela

Em meu redor tudo inundo.

- E lavo as mãos da sequela!

 

 

1137 - Dedo

 

Julgamos que fomos nós

Que escolhemos o trabalho,

Mas ele é que atou os nós

Que ao pulso prendem o malho.

 

A presente ocupação

Foi o dedo do destino

Que à frente ma pôs no chão,

Me guiou no desatino.

 

E, por fim, somos amados

Pelo trabalho que obramos:

Excita ao jogar os dados,

 

Consolos, se perco, dá-mos,

E, ao termo, realizados

Faz assim que nos sintamos.

 

 

1138 - Estratégia

 

A estratégia defensiva

De restaurar o passado,

Como eficaz tentativa

Para lhe obter o traslado

 

Duma vida positiva,

Sofre sempre do pecado

Da memória selectiva

Que o mal tira e põe de lado.

 

Se resisto à tentação

De melhorar o presente

Pelo restauro do antigo,

 

Apto é que estarei então

Ao desafio que enfrente,

Me farei de mim amigo.

 

 

1139 - Glosas

 

Quer histórias pessoais,

Quer as mais religiosas,

As conclusões preciosas

Que se verificam mais

 

São pormenores, são glosas

Que significam sinais

Englobantes e totais

Das morais mais preciosas.

 

Alma viva e palpitante

Em cada história, só quando

Ela por si própria fala.

 

Uma ideia a não garante,

Que, distorções implantando,

Se dela falar, a cala.

 

 

1140 - Traído

 

Se alguém depositar a confiança

Num espiritual líder, já traído

Se verá, que ninguém é tão subido

Quanto na altura seu ideal alcança.

 

No entanto, demonstrar de fé sentido

Seria decidir se alguém na trança

Era digno de entrar, já que na frança

Trai qualquer ramo seu lado escondido.

 

Vulnerabilidade encontra a fé

Tanto sobre outrem como sobre mim

E após qualquer traição ergo-me em pé.

 

Sempre com duplo figurante, assim,

A fé conta: o descrente mais o crente

E um doutro sempre, sempre dependente.

 

 

1141 - Fraquezas

 

Interromper e questionar ideias

E temporariamente os assumidos

Compromissos retirar por revolvidos,

Como alterar a percepção das feias

 

Imagens, ritos, da fé preso às teias,

Como fraquezas poderão ser tidos

Pela razão. Mas, se por alma intuídos

Forem, serão a face oculta a meias

 

Por onde é criativa, responsável

Por minha fé fortalecer deveras,

Aumentando o diário troço viável.

 

Eliminando o risco em quaisquer eras

De algum perfeccionismo castrador,

Dum anjo e dum demónio sou senhor.

 

 

1142 - Preservar

 

Nossas almas preservar

Em lugar de as compreender

É o paradigma a implantar,

Moderno, de vir a ser.

 

Alterar radicalmente

De entender grandes esforços

É o valor por ora ausente,

Vagos de desfrute escorços,

 

Que amanhã toda a riqueza,

Profundidade poética,

Me dará quando sentir

 

O tecido que embeleza,

Desigual na malha estética,

Toda a trama do porvir.

 

 

1143 - Fadiga

 

Na fadiga mais real

Há uma parte dependente

Da atenção que lhe equivale

E só nesta mora assente.

 

Conserva-se ali presente

Só na memória que tal

Representação invente,

Mas fatiga por igual.

 

Sinto-me cansado

Só de o recear.

Mudo um bom bocado

 

Quando mudo de ar.

Fugir do atropelo?

- Bastará esquecê-lo.

 

 

1144 - Convicções

 

Quando alguém alguém deixou

Pejado de convicções,

Se uns anos após voltou

Encontra apenas senões.

 

Foram acasos, serões,

Um casal que se encontrou,

A  mulher das ilusões…

- E lento o mundo virou.

 

E os países se comportam

Como este homem que é sincero

Quando as convicções abortam.

 

Hoje um povo odeia as danças

Com que, se uns meses espero,

Amanhã lavra alianças.

 

 

1145 - Sereia

 

Por certo os encantos

Que alguém deterá

Não são causa já

De amor nem dos prantos

 

Que sempre ele dá.

Mais depressa os cantos

De sereia santos

A fala os trará.

 

Que a separação

Deixa de ameaça,

Quase em prevenção

 

De que tudo passa:

“Esta noite, não,

Não virei à praça!”

 

 

1146 - Traços

 

Queremos fervorosos outra vida

Em que iguais foram quaisquer traços de hoje,

Um outro mundo em que nos nada foge

De quanto em meio à dor nos deu guarida.

 

Porém, sem aguardar esta medida,

Quando aqui algum tempo mais se aloje,

Infiéis a qualquer paço de doge,

Qualquer Veneza foi já destruída.

 

Mesmo que a morte mais nos não mudara

Que a muda dia a dia transcorrente,

Se meu eu além-morte eu encontrara,

 

Decerto como estranho o rejeitara:

O paraíso que andarei prevendo

Já foi perdido mal nele eu sonhara.

 

 

1147 - Regra

 

A regra da humanidade

É que os duros são uns fracos

Que se vendem a patacos

A quem queira tal vaidade.

 

E aos fortes, a quem não há-de

Importar se são velhacos

Os que o mundo dão em cacos,

É que a doçura os invade.

 

Gostem deles ou não gostem,

Mantêm pronta a candura

A quantos na vida apostem.

 

E por mor de tal brandura

Aceita o vulgo que os postem

Da fraqueza à dependura.

 

 

1148 - Feiticeiro

 

O livro fundamental,

Único que é verdadeiro,

O grande escritor, primeiro,

Num sentido radical,

 

Não tem de inventá-lo, qual

Um ancestral feiticeiro,

Pois existe todo inteiro

Bem dentro de cada qual.

 

Só terá de traduzi-lo:

As tarefas, o dever

De quem for um escritor

 

É de sentar-se tranquilo

E deixar acontecer,

- É de ser um tradutor!

 

 

1149 - Raciocinante

 

Se a mente raciocinante

Põe-se a julgar obras de arte

Nada mais fica de instante,

Tudo prova em toda a parte.

 

Quando o talento é um bem

E seus bens, universais,

A que as modas não convêm

Nem o estilo convém mais,

 

Não é que a crítica prende

Aqui seus magros tentáculos

A classificar autores?

 

Sagra profeta um duende

Sem mensagem, nos cenáculos,

E ignora sempre os melhores.

 

 

1150 - Instinto

 

Há bem forte analogia

Entre do público o instinto

E o talento que haveria

Num génio que mal pressinto.

 

É que neste, bem retinto,

É um instinto o que o faria,

Religioso (assim o sinto),

Em silêncio vir na via.

 

Como é que a verbosidade

Sempre superficial,

De critério flutuante,

 

Dum juiz oficial

Encontraria a verdade

Se eternidade é do instante?

 

 

1151 - Diferença

 

O trabalho dum artista,

De entender sob a matéria,

Sob a palavra, o que exista,

Diferença quase etérea

 

Daquilo que a cada instante

Faz o hábito, a paixão,

É o contrário que adiante

Vida traz à vida em vão.

 

Só tal arte exprime aos mais,

Nos faz ver a própria vida,

De trás para a frente lida.

 

Ida aos fundos abismais

Donde brotam as sementes

Que alfobre serão de gentes.

 

 

1152 - Imbeles

 

Uma vez por outra aqueles

A quem amamos, porém,

Não mais sendo anhos imbeles,

Decepcionam-nos também.

 

E tão grande esta ferida

Pode ser que ensombre todo

O lar, tal noite caída

Que a fonte encubra de lodo.

 

Decepções menos gravosas

Podem ser minimizadas,

Todavia, se o casal

 

Evocar quanto gostosas

São as horas deslumbradas

Que à ternura dão aval.