DÉCIMO CANTO

 

 

 

VAI  DEMUDANDO  IRREGUALR  O  TOM

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1153 e 1222 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                1153 - Vai demudando irregular o tom

 

                                                Vai demudando irregular o tom

                                                Da vida e do soneto em paralelo,

                                                Palavra e vida se entrosaram no elo

                                                Que a atitude incarnou como o que é bom.

 

                                                O poema o ser do sonho tem o dom

                                                De transformar no ter moldado ao belo,

                                                No espelho da palavra, com o selo

                                                Da realidade firme a que é pregão.

 

                                                Então da norma as parcas desviâncias

                                                Desviarei nos termos, quais na vida

                                                Vier de parto a constatar em ânsias.

 

                                                Eis como, em paralelo, de seguida

                                                Ora sou eu que rasgo em actos trilhos,

                                                Ora deles o poema canta os brilhos.

 

1154 - Linguagem

 

A linguagem falada

Fora impulsiva, imprecisa.

Não dá tempo nem põe nada

A reflectir no que visa.

 

Não permite, quando usada,

A elegância que ajuíza,

Induz à aventura errada,

Não acompanha o que giza,

 

Doutrem a presença quer.

A linguagem escrita

Reflecte o tempo a escolher,

 

É lógica e ponderada.

Acompanha a solidão que requisita,

Transmuda-a em solidão acompanhada.

 

 

1155 - Escritor

 

Para sobreviver urge pensar,

Para pensar urgem ideias:

É o escritor que ocupa o lugar

Nas teias.

 

Quem mais do que ele as produz,

Quem mais do que ele as fornece?

Ele é esponja que absorve a vida e a traduz

Nas ideias que entretece.

 

Vaca eternamente prenha

A parir vitelos em cadeia,

Vedor a levar água para a azenha

Do deserto na areia,

 

Escrever é a mais útil invenção:

- Aqui principia em nós a Criação!

 

 

1156 - Adolescência

 

Antes da adolescência, a rapariga

Às árvores podia amarinhar,

Do ginásio trepar ao espaldar,

Em jangadas cruzar água inimiga.

 

Porém, por essa altura, o corpo obriga:

Vai dela o vestuário ao lugar,

Corre a comunidade a atanazar,

Mais e mais se combina para a intriga.

 

As raparigas tenta convencer

De que a finalidade primordial

De cada geração não é qualquer,

É uma seguinte produzir igual.

 

Como no reino vegetal: a par,

Disseminar sementes e secar!

 

 

1157 - Velhice

 

Nossa história na velhice

Tem de continuar a crer

Que é um início a não perder,

Rumo a um porvir que surgisse.

 

E, se crermos num porvir,

Tal é confiar em Deus.

E, se for dever dos meus

Pelo porvir algo agir,

 

Então é que o meu ensejo

O de Deus recobrir vejo.

 

Ao considerar maneiras

De o fazer, eu lavro as jeiras

 

De às fomes cozer meu pão

- E assim nasce a religião.

 

 

1158 - Cortina

 

Esta cortina corrida

Sobre os motivos de alguém

Impenetrável revida

Quando um amor intervém.

 

Obscuro o julgamento

E o gesto da criatura,

Abandona, amada, o intento

De valorar o que apura,

 

Ao invés do que ocorrera

Se desamada se vira.

Mais certeira tudo lera

Se o amor a não delira.

 

E quanto mais se empenhara

Se amar fora jóia rara!

 

 

1159 - Interpuser

 

Entre mim e uma mulher

A quem já não amar mais

Se a morte se interpuser

Só se vier matar demais.

 

Se um amor não existir

Em mortas se converteram

As que ele fez ressurgir

Do nada donde irromperam.

 

Não somos mais deste mundo

Nem elas nem nós, no fundo.

Meras sombras ambulantes,

Quando o amor desaparece

Somos adiados instantes

De vida que tudo esquece.

 

 

1160 - Imaginário

 

É a paixão o imaginário:

Lógica a conveniência

São motes doutro fadário,

Aquartelado em decência.

 

É que um homem de paixão

é um homem livre de vez,

Não é mera erudição

O sangue a golfar que fez.

 

Quando o coração rebenta

Não há lógica que baste

Para aquilo que ele tenta,

Nem há razão que me afaste:

 

Conforme ao que me convida,

A paixão é morte ou vida!

 

 

1161 - Mar

 

O mar é destino,

Mundo em que nascemos,

Quase em desatino

Todos os extremos.

 

Por isso a odisseia

Por todos os lados

Meus traços me ameia

Multifacetados.

 

Então a coragem

De atirar-me às vagas

Faz de mim viagem

Rumo a quaisquer plagas:

 

- De vez ultrapasso

Ser-me dum só traço!

 

 

1162 - Chamiços

 

Igrejas e compromissos,

Do ponto de vista de alma,

São riquezas: são chamiços

A atear no frio a calma.

 

Reduzir todas a uma

Pode ser a tentação

Que de alma tanto nos suma

Que nos seja a danação.

 

Pode ser uma ameaça:

A vida numa só via

Ao lado da vida passa

Múltipla na ramaria.

 

E o ninho gorado ao chão

Tomba da religião.

 

 

1163 - Pedra

 

Qualquer história sagrada

Tem do mistério da vida

Uma pedra facetada

Que lhe irisa a flor nascida.

 

Mas o fundamentalismo

Usa-a defensivamente:

Com ele nunca mais cismo

Das escolhas que haja em mente.

 

Nem responsabilidade,

Nem este meu eu instável.

Como é trágica a vontade

De congelar, inegável,

 

Num só termo de sentido

Os rios do que é vivido!

 

 

1164 - Síndrome

 

Se a um grupo me identifico,

Sou síndrome patológica,

Se um diagnóstico me aplico,

Serei uma abstracção lógica.

 

Sendo no imo individual,

Com passado singular,

Minha saúde mental

Vem de eu ser particular.

 

Quando afinal me resumo

A u índice que é comum,

Ali perco meu aprumo:

Igual aos mais, sou nenhum.

 

Eu sou aquele que sou,

Que a ser deus lento me vou.

1165 - Asa

 

Se alguém corta o castanheiro

Que espreita por trás da casa

A mim é que dói primeiro,

Ave que partiu a asa.

 

Mais do que o tempo passado,

É o respirar da beleza,

Da memória rodeado,

Um parente que se preza.

 

É doutra espécie, é verdade,

Mas tem tais laços comigo

Que é desta comunidade

Como qualquer outro amigo.

 

Mais que muitos verdadeiro

É meu irmão castanheiro.

 

 

1166 - Auto-estrada

 

Ao viajar numa auto-estrada

Deparo subitamente

Com a paisagem que é dada

Ali, tão gratuitamente,

 

Contemplo a grandiosidade

Que me oferta a natureza,

O espanto que persuade,

quanto arrebata a beleza.

 

Do ponto de vista do imo

A beleza é o componente

Que na vida ocupa o cimo.

A cada dia inerente,

 

É o momento favorável

De eu ser eu inadiável.

 

 

1167 - Heróis

 

Quando uma nação elege

Homens altos para heróis,

Já nada mais a protege,

Está condenada, pois.

 

Bom senso suficiente

A suspeitar dos Golias

Garantirá normalmente

Crédito a mais altas vias.

 

Mérito à normalidade,

Ao comum que se engrandece,

Criança a crescer de idade,

É que nos semeia a messe:

 

- O que garante o porvir

É o génio de em comum ir.

 

 

1168 - Estátuas

 

Metade ou mais das estátuas

Deviam por pedestal

Ter crânios, o seu sinal

Do que na base são fátuas.

 

De vítimas e carrascos

O mundo se dividiu:

O pé destes percorreu

Aqueles, chão de seus cascos.

 

Porém, as vítimas tecem

De tal modo a vida delas

Que a sorte delas merecem,

Tanto lhe abrem as janelas.

 

Depois de tudo pesar

Quem nos resta para amar?

 

 

1169 - Traficante

 

Mas que olhar de traficante:

Pesas-me em peso de carne?!

E o sonho que em mim incarne

arrastando o mundo avante?

 

Aquele é mais forte que eu,

Pesa bem mais de cem quilos?

Meus projectos são tranquilos,

Um nada e é um ar que lhes deu?

 

E, portanto, cada qual

De carnadura e feijão

Mais que seu peso não vale,

Mais que seu peso de pão?!

 

- Detesto quem muda de alma,

Quem de frios mente calma!

 

 

1170 - Antiguidade

 

Eu detesto a antiguidade,

De incapazes promoção,

Última autorização

Do abuso de autoridade.

 

Fixa a história (sempre em vão)

O dos grandes que a degrade,

Não o que, pior, se evade,

O dos medíocres, não:

 

O abuso mais odioso

Não é o da pata dum grande,

De certo lado ainda honroso,

É o de alguém que se desmande,

 

Que enche enorme um balão de ar…

- E eu detesto detestar!

 

 

1171 - Estranho

 

Que haverá de mais estranho

Para quem é prisioneiro

Que havê-lo sido primeiro

E agora ter livre o ganho?

 

Para um  doente, o tamanho

De seu espanto cimeiro

Há-de ser quando ele inteiro

De curado tem o amanho.

 

Que é que vai ser do rapaz

Que com o tempo se muda,

Nem dá conta que é capaz

Deste outro que a si se gruda?

 

Que estranhezas são que o tomem

quando descobrir que é um homem?

 

 

1172 - Preto

 

Volta a ser mulher de preto,

Atenta à dor do querido

Filho que resta discreto,

Semimorto, quase olvido…

 

É, porventura, encantada,

Que das lágrimas o sal

Mudou na estátua lavrada.

Mas ninguém lhe lê o sinal:

 

Sombra de alguém falecido

Quem é que a distingue ainda,

À viuvez do vestido

Preto da noite benvinda?

 

No apartamento deserto

Só o muito longe está perto.

 

 

1173 - Cavernas

 

Hoje é idade das cavernas,

Mundo que se basta a si,

Com alfaiate, casernas,

A escola, a pista de esqui…

 

Mundo espartilhado aqui,

A viver encurralado,

De muros de frenesi

Sempre, sempre cerceado.

 

Prisão dentro da prisão

É a das janelas gradeadas.

Que diferença farão

Uma doutra, após criadas?

 

Ninguém sonha de seguro

Nada além do próprio muro.

 

 

1174 - Aguaceiro

 

O leitor que o livro fecha

Para sair e aspirar

Uma rosa ou ofertar

Do aguaceiro a cara à flecha,

 

Tem razão quando assim mexa.

A bagagem que arranjar

Literária sopro é de ar

Que só a vida acende em mecha.

 

O bom aluno viajante

Será sempre sem bagagem:

Não é equipá-lo o importante

Mas despertá-lo à viagem.

 

Um cérebro recheado

Não se educa, é cozinhado.

 

 

1175 - Estátua

 

O escritor que tanto admiras

Não é uma estátua, mas homem,

Portanto os traços que o tomem

Todos importa que viras.

Admirar e tocar liras

Sem ternuras que te domem,

Em desprezos se consomem

De que rápido fugiras.

 

Quenquer pode admirar génios,

Mas perde o fundamental

Que jamais vem nos convénios:

Ter-lhes um amor real.

 

Mais que fruir um regalo,

Importa aprender a amá-lo.

 

 

1176 - Arcano

 

Quarenta formei este ano,

Mais quarenta no que vem,

Todos a marca me têm

Toda a vida, como arcano.

 

Tal qual como por engano,

Sem o saberem, mantêm

O rumo que ter convém,

Corpo à medida do pano.

 

Não são, pois, um batalhão

Nem qualquer corpo de guerra:

Meus alunos o que são

é um pulsar denso da terra.

 

O que eu semeio no chão

É o ritmo do coração.

 

 

1177 - Uniforme

 

Heroísmo de uniforme

Não, nele não acredito:

Não há unidade conforme

Ao sabor que há no infinito.

 

Não há farda onde se forme

A solidão deste grito

Que sentimos tão enorme

Que lá mora nosso fito.

 

Dum uniforme não é,

Nem dum corpo, dum conjunto,

Mas de alguém ficar de pé

Quando anulá-lo é o assunto.

 

Heroísmo é, quando aflito,

Fincar pé contra o atrito.

 

 

1178 - Espectador

 

O espectador é cobarde?

Ao invés é heróico o actor

Só porque a chama nele arde

Sem ver se ateia o fulgor?

 

Sem do espectáculo o alarde

Não havia espectador…

Mas, embora o peito tarde,

Não é apenas se propor.

 

O espectador sempre paga

O bilhete dia a dia,

Trabalhando quanto afaga,

Madrugando quanto adia.

 

O espectador é que aceita

Tudo o que o palco rejeita.

  

 

1179 - Briga

 

Talvez uma mulher, não,

Antes uma rapariga:

Criança e mulher estão

Aqui juntas e sem briga.

 

Incumbidas de doar

E de conservar a vida,

Ambas duma no lugar,

Todas numa e sem medida.

 

Oposto do que primeiro

Fora o mais irracional

Voto eterno do guerreiro:

A morte como ideal.

 

Ideal, só o de viver,

Mesmo se a paga é morrer.

 

 

1180 - Calor

 

Do vero calor da Terra

É a mulher a detentora,

Privilégio que não mora

Em quem à morte se aferra.

 

Toda a ambição colabora,

No limite, com a guerra,

Violência e morte que aterra

Há milénios, mundo fora.

Animal por entre os mais,

O homem só poderia

Sobreviver entre os ais

Dos iguais que mataria.

 

Sem a mulher amorável

O mundo era inabitável.

 

 

1181 - Quisto

 

No sistema dominante

Até o suicídio previsto

Se integra lá como um quisto

Na carne viva pujante.

 

Como os batoteiros ante

No casino o que é benquisto,

O suicídio é bem visto

Desde que fique distante.

 

Serve para renovar

O gostoso de viver

Que nos outros tem lugar

E deve atingir quenquer,

 

A morte real, que despreza,

No sistema?! - Que baixeza!

 

 

1182 - Metal

 

Os heróis serão feitos dum metal

Que se não pode retirar do fogo,

Pois liquefazem-se ao inverso, logo

Que o dia a dia devier normal.

 

São corajosos, aliás, por fal-

Ta de imaginação: o herói abrogo

Quando não passa do perverso jogo

Da miopia de quem já vê mal.

 

Se a mulher não gostasse dos guerreiros,

Nunca estaria reduzida apenas

A devir o repouso dos parceiros,

A transmudar-se num colchão de penas.

 

O herói não traz dum uniforme a pele,

É um uniforme, antes, que o traz a ele.

 

 

1183 - Bandeira

 

A bandeira toca mais

Do que o busto da República:

É que ela é viva demais

E não cheira a mulher pública.

 

Quererá isto dizer

Que a bandeira que alimento

Simboliza o pátrio ser

Como só feito de vento?

 

Homem de pistola à mão

Que ameaça, fere ou mata,

É cobardia que acata,

Heroicidade é que não.

 

Neste mundo o que mais dói

É que este é que é seu herói.

 

 

1184 - Super-homem

 

O super-homem jamais

Será de fabrico em série

Como qualquer intempérie

De tropas especiais.

 

Foi da Guerra Mundial

que a força armada nasceu.

Hoje em profissional deu

Da defesa nacional.

 

É o retorno aos semi-deuses

De campeões e vedetas,

Meteóricos cometas

Que ao vulgo acenam adeuses.

 

- Mas no vulgo outra semente

Lenta gemina outra gente.

 

 

1185 - Felizes

 

“Aqueles foram os mais

Felizes dias da vida”

- O que choca em termos tais

O passado é ser que os lida,

 

Pois que o presente jamais

Logrará cá ter haurida

Vivência ou facto reais

Daquela matriz volvida.

 

Passado, quando presente

Foi vivido, por igual

Jamais nele viu assente

Felicidade que tal.

 

- Ser feliz, mas hoje em dia,

É viver já o que viria.

 

 

1186 - Já

 

“Já?! Valha-me Deus, pois já?!”

- Dos lamentos é o mais triste

Que a Terra produzirá:
O desencanto que existe

 

Do porvir que já não há.

A criatura subsiste

Só para ver que acolá,

Até onde o olhar aviste,

 

Se tudo o mais se vê lá,

Ela, não, findou-lhe o chiste

No grito que afogará

Ao não constar do que liste.

 

- Nossa alegre vida é a vida

Já pelo tempo vencida.

 

 

1187 - Máscara

 

Toda a máscara nos mente

Mais que quanto se acredita,

Pois que mente duplamente

Dela por trás da visita.

 

É primeiro mentirosa

Por esconder a verdade.

A impunidade que goza

É a do vazio que agrade.

 

Mas depois vai permitir

Todas as suposições

E esta forma de mentir

Ainda traz mais aleijões.

 

Das duas barras na grade

Aprisiona a verdade.

 

 

1188 - Andanças

 

A vida inteira as crianças

Querem pelo mundo fora

Que os pais, ao fim das andanças,

As esperem toda a hora.

 

Porém, estas esperanças,

O que estranho as edulcora

É que a idade não alcanças

Que lhes remova a demora.

 

Duram, então uma vida

Que a criança, mesmo velho,

Se recusa à despedida

Que a velhice lhe aconselha.

 

Se em casa não anda o pai,

O pródigo outra vez cai.

 

 

1189 - Predadores

 

Os espectadores,

Prontos a saltar,

Gritar, arranhar,

São os predadores

 

Juntos no comício

Para ter à mão,

Pronto ao exercício,

De raiva a ração.

 

São, de cara erguida,

Como os cães à espera

Que salte a comida…

- E então salta a fera!

 

- Como o espectador

De gente é um tumor!

 

 

1190 - Cortado

 

As vítimas e os carrascos,

Actores e espectadores,

Do mundo são os valores

Cortado entre amores e ascos.

 

Espectadores pacíficos

Num instante são selvagens:

Quanto mais forem magníficos

Os actores nas voragens

 

Que alto falam no silêncio,

Mais querem aplauso e luz

- Da plateia o rosto vence-o

A penumbra, em contraluz.

 

Tais rostos irão sempre onde

A luz que brilha os esconde.

 

 

1191 - Farinha

 

Somos todos amassados

Com esta mesma farinha:

Ideal por um dos lados,

A intolerância, vizinha,

 

Violência à flor da pele…

Os partidos e os modelos,

A quem aceita e repele,

São feitos dos mesmos elos.

 

Que serve, pois, atacar?

A apanhar ou a bater,

Cada qual é o avatar

De si mesmo e de quenquer.

 

Melhor é um pouco de graça

Em tudo, que tudo passa!

 

 

1192 - Direito

 

Se alguém crer numa verdade,

Se arroga logo o direito,

Para a implantar na cidade,

De levar o mundo a eito.

 

Justamente por também

Ser por ela responsável

É que tem de ir mais além,

Até ao inevitável.

 

Só porque a crença conspira

E só porque é sempre assim,

Toda a verdade é mentira,

Ali encontra seu fim.

 

Se me acometo de lado,

Não é verdade, é pecado.

 

 

1193 - Atrapalha

 

Onde o Homem sempre falha

Tantos séculos após,

A Mulher não se atrapalha,

Poderá vencer a sós.

 

Só com uma condição,

Tem de usar armas opostas:

O Amor em primeira mão,

Não dos ódios as congostas.

 

Trocando a força em desdém,

Irá tentar persuadir:

Assim deveras convém

Que modelemos porvir.

 

- Do tempo eis-nos na charneira

E o porvir não há maneira!

 

 

1194 - Semideuses

 

De todos os semideuses

Que o dia a dia venera

Nem um só foge as reveses

Em seu tempo noutra era.

 

Deles sempre as teorias,

Por mais que gestas homéricas

Lhes marquem as profecias,

Foram tidas por quiméricas.

 

Que é que importa ser uns séculos

Mais velho, se continuamos

Em marcha atrás, como espéculos

Dos mortos tornados amos?

 

- O que importa é prosseguir

Em frente rumo ao porvir.

 

 

1195 - Fiéis

 

Aos amores mortos

Somos mais fiéis,

Sempre de seus hortos

Tornados segréis.

 

Contamos as luas

Com que lá sonhámos

Ignorando as puas

De que nos lavrámos.

 

Os mortos amores

Em que me ensimesmo

Não são, pois, odores

Perdidos a esmo:

 

- Sou fiel às cores

Que tenho em mim mesmo.

 

 

1196 - Doçura

 

A doçura é uma palavra

Que depura na mulher,

Que por outras lavras lavra

O porvir que houver de ser.

 

Estas palavras são horas

De levarem a melhor

Sobre as grosseiras demoras

Que os machos lavram de cor.

 

Sobre nossos pedantismos

De vez masculinizados

Só se cavaram abismos

Em quaisquer eras e lados.

 

Nova espero que a receita

De vez renove a colheita.

 

 

1197 - Engenhos

 

Passeamos sobre a Lua,

Temos engenhos em Marte,

Mas aqui na minha rua

Com famintos quem reparte?

 

Por cada três homens há

Dois com fome aqui ao lado

E a solar fronteira já

Nossas naves hão passado.

 

Que engenhosos os engenhos

De navegar nos espaços!

E que pobreza nos cenhos

De imaginar novos laços!

 

Quanta vitória, afinal,

Para o fracasso total!

 

 

1198 - Pedra

 

A coragem de papel

Não é coragem deveras,

Breve aflora à flor da pele,

Esfuma-se nas esperas.

 

Porém, a dos solidários,

A do fracasso aparente,

Coragem de pedra, vários

Milénios dura presente.

 

Tem isto a razão de estranho:

De funda, ninguém a vê,

Só com tempo tem de ganho

Aquilo que afinal é.

 

Assim, a humana coragem

Requer do tempo a viagem.

 

 

1199 - Narciso

 

Narciso, de fascinado

Consigo próprio, um afago

Tanto tenta que afogado

Fica no fundo do lago.

 

Se à vítima, porém, chora

O lago que fez de espelho,

Não é do belo ido embora,

É de perder-lhe o conselho:

 

É que aos olhos de Narciso

É que o lago recorria

Para ver, quando preciso,

Que beleza em si havia.

 

- Só atento a seu próprio selo,

Ninguém noutrem vê o que é belo.

 

 

1200 - Gamas

 

Sempre os homens podem ter

Gamas várias de prazer

 

E aquele que é o verdadeiro

é o que vem por derradeiro,

 

Faz crescer água na boca,

Outro largando por troca.

 

Outro que, por sua vez,

O mesmo ao dantes já fez.

 

Assim é que, inteligente,

Segue o homem sempre em frente.

 

Como é que isto então seria

Se em lugar de inteligente

Sem razão talhara a via

De si este eterno ausente?

 

 

1201 - Bússola

 

De toda a bússola a perca

E de toda a direcção

Que o chão da espera serão,

Martelam ainda a cerca

 

Em que nos prendem em vão

quando o esperado se acerca,

Como a quem, após a merca,

Faltara o mercado pão.

 

Substituindo em nós a calma

Que sonhámos da chegada,

Da festa nos rouba a palma

Levando anão sentir nada:

 

Ninguém vai saborear

O prazer que antecipar.

 

 

1202 - Imagens

 

As imagens recordadas,

Tão arbitrárias, estreitas,

De inacessíveis afeitas

Às do imaginário dadas,

 

Ambas formam as fornadas

Pelo pensamento feitas.

E a nós ficam tão atreitas

Que se finam deslaçadas.

 

O imaginário formara

O que o real destruíra

E não será coisa rara

Que o facto, o que possuíra,

 

É memória como é sonho

E, ao fim, nada que lá ponho.

 

 

1203 - Calendário

 

O calendário dos factos

Jamais é o dos sentimentos.

No anacronismo dos pactos,

Picam os picos dos cactos

Sempre fora dos eventos.

 

É quando um desejo louco

De me lançar em seus braços

(Onde pequeno me apouco)

Me toma que fico mouco:

Descubro da morte os traços.

 

E às vezes passaram anos

Sobre da mortalha os panos.

 

- Da morte só vou saber

Tarde demais o que houver.

 

 

1204 - Compaixão

 

Se julgo só recriar

A dor de quem mais amei,

A compaixão, em lugar,

exagera a dor que sei.

 

Porém, pode ser que a lei

Que aqui me vem comandar

Melhor saiba como é que hei-

-De ao real contas prestar.

 

A tristeza do que sofre

Oculta a triste da vida

Da recordação no cofre.

A compaixão desmedida

 

É que a vai ler tal qual era,

Por isso é que desespera.

 

 

1205 - Cebola

 

Qualquer pessoa, à medida

Que alguém a vai conhecendo,

É uma cebola que fendo,

Casca a casca dividida.

 

Metal a que o fogo acendo,

Liga mais e mais delida,

É uma alteração sofrida

O que do tempo apreendo.

 

Assim é que as qualidades

Pouco a pouco lhe descasco,

Surpreso doutras verdades.

Se nem sempre criar asco,

 

É que então qualquer defeito

Lho mondo também a eito.

 

 

1206 - Singular

 

Já que a originalidade

De quem for encantador

Exaspera quando invade

quem não se lhe ousar impor,

 

Todo o equilíbrio demora,

Que um hábito quer vagar:

Não há gente encantadora

Que não seja singular.

 

Desequilíbrio que apenas

Com o tempo se descobre,

É o da entrada nas arenas

Da incógnita que o encobre.

 

Quando alguém não vive afeito

Ficará logo sem jeito.

 

 

1207 - Talento

 

Valemos pelo talento.

A nobreza ou o dinheiro

São mero zero leveiro:

Só multiplica um portento.

 

Ocioso ao pé de nada,

Um zero de nada vale,

Multiplicado o sinal

Fica sem porta de entrada.

 

Aborrecimento, tédio,

Atingirá sempre aquele

Que de tanto nascer nédio

Se finará de osso e pele.

 

A história da Humanidade

É o fado desta verdade.

 

 

1208 - Esquivo

 

O espírito criativo,

Quando falta, é o elemento

Que faz que se torne esquivo

O efeito do sofrimento.

 

A verdade mais terrível

Magoa, concomitante

Com a alegria visível

Do que descobre diante.

 

É que nos revela a forma

Nova e plena de clareza

Do que em nós se não conforma,

Longa remoída reza.

 

Aqui, sem o suspeitar,

Se andou verdade a incubar.

 

 

1209 - Eléctrico

 

Sacudido por amores,

Eu vivi-os, eu senti-os,

Choque eléctrico de humores

Duma corrente sem fios.

 

Jamais, porém, consegui

Nem vê-los nem reflecti-los.

O que acaso mora ali

São de flor uns peristilos

 

Invisíveis, sob a forma

Da mulher, da bem-amada:

O que amei nela, por norma,

É a deusa lá mascarada.

 

A mulher que amo, de facto,

Com deus me põe em contacto.

 

 

1210 - Mensagem

 

No momento em que tudo parece perdido

É que chega a mensagem que me vem salvar.

Batemos aos portais que a nada vão levar

E o único por onde tínhamos podido

 

Entrar, buscado em vão, cem anos preterido,

Nós nele esbarraremos sem sequer notar:

E eis que se abre o portal então de par em par

E o condenado ali deixou de ser arguido.

 

Enquanto ruminar tristes os pensamentos,

Perdido em distracção, acaso recuarei,

Até me tropeçar o pé nos fundamentos.

Já nem sei se fui eu que então os procurei,

 

Se os portais se me abriram porque ignotos buscam

Os que no escuro sonham as luzes que ofuscam.

 

 

1211 - Impressão

 

A impressão é do escritor,

O experimento é do sábio.

E a razão é o astrolábio

Que neste vem-se antepor

 

E naquele se pospor

Aos balbuceios do lábio:

O que ficar claro sabe-o

Quem dele sofreu a dor.

 

Quem não quiser decifrar

Com suor bem pessoal

Ao saber não dó lugar.

O saber só é real

 

Se o tiro da escuridão

Que os mais em mim nem verão.

 

 

1212 - Eufemístico

 

Quem não tem sentido artístico,

Ao interior submissão,

Pode ter um eufemístico

Poder de conversação

Sobre arte, um sentido místico

De infinita reflexão,

Que os mais nunca esgotarão

Nem verão quanto é artístico

Modo de sublimação

Da perene frustração

De que constitui um dístico,

Pública demonstração.

- Tanto sofre, paroxístico,

Seu autor com o aleijão!

 

 

1213 - Ata

 

Um livro como os demais,

Logo que lido por nós,

Como outras coisas reais,

Com tudo nos ata nós.

 

São termos imateriais,

Tais quais nossas sensações

Hauridas em tempos tais,

Trançam com elas festões.

 

Um romance lido outrora

Entre as sílabas contém

O sol que brilhou lá fora,

Ao folhearmo-lo além…

 

- Literatura realista

É só curteza de vista.

 

 

1214 - Visão

 

O estilo para o escritor

Como a cor para o pintor

Não são técnica questão

Mas a norma da visão.

Distância qualitativa

Com que o mundo, forma viva,

A nosso olhar aparece

E com que o mundo se aquece.

 

Se não fora um jeito de arte

Seria um segredo eterno

Que com cada qual se parte,

Segredo íntimo e superno.

 

Ao salvar a diferença

Mantém-se eterna a presença.

 

 

1215 - Fora

 

Só por arte irei sair

De mim mesmo para fora,

Saber o que o outro vir

Deste universo de agora

 

Que não é o mesmo que o nosso,

Cujas paisagens seriam

Tão ignotas como o fosso

Que em Marte os canais traíam.

 

Em vez dum mundo sozinho

Vemo-lo multiplicar-se

Em quantos os que adivinho

Que de arte tomam disfarce.

 

Mais diversos, neste fito,

Que os que rolam no infinito.

 

 

1216 - Leitor

 

O escritor diz “meu leitor”,

Quando, na realidade,

Que leitor lê um escritor?

Lê sua própria verdade.

 

E, quando um leitor vai ler,

Nas obras lê-se a si mesmo:

Nas obras, pois, escolher

O escritor é um pouco a esmo.

 

As laudas dum escritor

São a espécie de instrumento

Que ele oferece ao leitor,

A dar-lhe discernimento.

 

Sem tal obra talvez não

Vira além do que é o senão.

 

 

1217 - Reconhecer

 

Vir reconhecer alguém

E não o identificar,

Sob um só nome é pensar

Que há contradições também.

 

Quem aqui estava já não

existe e quem aqui está

Não o conheço senão

Como outrem que mora cá.

 

Mistério tão perturbante

Como a morte que anuncia,

Prefácio que vai adiante

Do livro do fim da via.

 

Rugas e cãs nos cabelos

São já morte a atar-nos elos.

 

 

1218 - Outro

 

Quem amou e já não ama

Devém nisto um outro ser,

Olha seu corpo na cama

Como o dum outro qualquer.

 

Estas mortes sucessivas,

Temíveis de aniquilar,

Indiferente as esquivas

Quando outro é já teu lugar…

 

Quando ali não estiver

Para as sentir, compreendo

Que a morte não vou temer:

Não serei quem lá está sendo.

 

Assim, é pouco sensato

Da morte ter medo ao acto.

 

 

1219 - Queixas

 

As queixas de que um do par

Já não é tão carinhoso

Como costumava usar

Matam do casal o gozo.

 

Voltem, pois, a namorar

E vejam como é gostoso

Isto de se requestar

Num convite deleitoso.

 

Até faz nascer luar

No temporal borrascoso

Um convite de jantar,

De rosa um botão cheiroso…

 

- Afinal ateia o lar

Fósforo à lenha chegar.

 

 

1220 - Sexo

 

Repete a mulher que o sexo

Físico afinal não é,

Questão é o amor conexo,

Ternura que toma pé,

 

Só comunicar até,

Todo o contacto complexo

Que vai gerar mútua fé.

Palavras que, por reflexo,

 

Dos homens na maior parte

Caem mesmo em saco roto.

Tardia vem sempre a arte,

Quando o instinto devém boto,

 

De atender ao que ela apele:

- Sexo é mais que a flor da pele.

 

 

1221 - Rendibilidade

 

A lógica da cidade

Não é de satisfação

Do que quer o cidadão

Mas da rendibilidade.

 

Quando será que a ilusão

Que das urbes nos invade

Afinal nos persuade

A procurar outro chão?

 

Rituais escapadelas

Em fugas hebdomadárias

Continuam sem sequelas

Duma das causas primárias:

 

- O retorno à natureza

Que esta cidade despreza.

 

 

1222 - Palavra

 

A palavra significa

Mas tem nela outra verdade:

Fonema que identifica

Apenas sonoridade.

 

É assim que a música fala,

Quando tudo o mais se cala,

 

Num canto, num instrumento,

A palavra que há no vento

 

E cujo sentido lavra

Como o vento da palavra.

 

Há sempre um outro sentido

Que ninguém afinal sente

Envolvendo o que é vivido:

- E este é que nunca nos mente.