DÉCIMO CANTO
VAI DEMUDANDO
IRREGUALR O TOM
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aleatoriamente um número entre 1153 e 1222 inclusive.
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o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1153 - Vai demudando irregular o tom
Vai demudando irregular o tom
Da vida e do soneto em paralelo,
Palavra e vida se entrosaram no elo
Que a atitude incarnou como o que é bom.
O poema o ser do sonho tem o dom
De transformar no ter moldado ao belo,
No espelho da palavra, com o selo
Da realidade firme a que é pregão.
Então da norma as parcas desviâncias
Desviarei nos termos, quais na vida
Vier de parto a constatar em ânsias.
Eis como, em paralelo, de seguida
Ora sou eu que rasgo em actos trilhos,
Ora deles o poema canta os brilhos.
1154 - Linguagem
A linguagem falada
Fora impulsiva, imprecisa.
Não dá tempo nem põe nada
A reflectir no que visa.
Não permite, quando usada,
A elegância que ajuíza,
Induz à aventura errada,
Não acompanha o que giza,
Doutrem a presença quer.
A linguagem escrita
Reflecte o tempo a escolher,
É lógica e ponderada.
Acompanha a solidão que requisita,
Transmuda-a em solidão acompanhada.
1155 - Escritor
Para sobreviver urge pensar,
Para pensar urgem ideias:
É o escritor que ocupa o lugar
Nas teias.
Quem mais do que ele as produz,
Quem mais do que ele as fornece?
Ele é esponja que absorve a vida e a
traduz
Nas ideias que entretece.
Vaca eternamente prenha
A parir vitelos em cadeia,
Vedor a levar água para a azenha
Do deserto na areia,
Escrever é a mais útil invenção:
- Aqui principia em nós a Criação!
1156 - Adolescência
Antes da adolescência, a rapariga
Às árvores podia amarinhar,
Do ginásio trepar ao espaldar,
Em jangadas cruzar água inimiga.
Porém, por essa altura, o corpo obriga:
Vai dela o vestuário ao lugar,
Corre a comunidade a atanazar,
Mais e mais se combina para a intriga.
As raparigas tenta convencer
De que a finalidade primordial
De cada geração não é qualquer,
É uma seguinte produzir igual.
Como no reino vegetal: a par,
Disseminar sementes e secar!
1157 - Velhice
Nossa história na velhice
Tem de continuar a crer
Que é um início a não perder,
Rumo a um porvir que surgisse.
E, se crermos num porvir,
Tal é confiar em Deus.
E, se for dever dos meus
Pelo porvir algo agir,
Então é que o meu ensejo
O de Deus recobrir vejo.
Ao considerar maneiras
De o fazer, eu lavro as jeiras
De às fomes cozer meu pão
- E assim nasce a religião.
1158 - Cortina
Esta cortina corrida
Sobre os motivos de alguém
Impenetrável revida
Quando um amor intervém.
Obscuro o julgamento
E o gesto da criatura,
Abandona, amada, o intento
De valorar o que apura,
Ao invés do que ocorrera
Se desamada se vira.
Mais certeira tudo lera
Se o amor a não delira.
E quanto mais se empenhara
Se amar fora jóia rara!
1159 - Interpuser
Entre mim e uma mulher
A quem já não amar mais
Se a morte se interpuser
Só se vier matar demais.
Se um amor não existir
Em mortas se converteram
As que ele fez ressurgir
Do nada donde irromperam.
Não somos mais deste mundo
Nem elas nem nós, no fundo.
Meras sombras ambulantes,
Quando o amor desaparece
Somos adiados instantes
De vida que tudo esquece.
1160 - Imaginário
É a paixão o imaginário:
Lógica a conveniência
São motes doutro fadário,
Aquartelado em decência.
É que um homem de paixão
é um homem livre de vez,
Não é mera erudição
O sangue a golfar que fez.
Quando o coração rebenta
Não há lógica que baste
Para aquilo que ele tenta,
Nem há razão que me afaste:
Conforme ao que me convida,
A paixão é morte ou vida!
1161 - Mar
O mar é destino,
Mundo em que nascemos,
Quase em desatino
Todos os extremos.
Por isso a odisseia
Por todos os lados
Meus traços me ameia
Multifacetados.
Então a coragem
De atirar-me às vagas
Faz de mim viagem
Rumo a quaisquer plagas:
- De vez ultrapasso
Ser-me dum só traço!
1162 - Chamiços
Igrejas e compromissos,
Do ponto de vista de alma,
São riquezas: são chamiços
A atear no frio a calma.
Reduzir todas a uma
Pode ser a tentação
Que de alma tanto nos suma
Que nos seja a danação.
Pode ser uma ameaça:
A vida numa só via
Ao lado da vida passa
Múltipla na ramaria.
E o ninho gorado ao chão
Tomba da religião.
1163 - Pedra
Qualquer história sagrada
Tem do mistério da vida
Uma pedra facetada
Que lhe irisa a flor nascida.
Mas o fundamentalismo
Usa-a defensivamente:
Com ele nunca mais cismo
Das escolhas que haja em mente.
Nem responsabilidade,
Nem este meu eu instável.
Como é trágica a vontade
De congelar, inegável,
Num só termo de sentido
Os rios do que é vivido!
1164 - Síndrome
Se a um grupo me identifico,
Sou síndrome patológica,
Se um diagnóstico me aplico,
Serei uma abstracção lógica.
Sendo no imo individual,
Com passado singular,
Minha saúde mental
Vem de eu ser particular.
Quando afinal me resumo
A u índice que é comum,
Ali perco meu aprumo:
Igual aos mais, sou nenhum.
Eu sou aquele que sou,
Que a ser deus lento me vou.
1165 - Asa
Se alguém corta o castanheiro
Que espreita por trás da casa
A mim é que dói primeiro,
Ave que partiu a asa.
Mais do que o tempo passado,
É o respirar da beleza,
Da memória rodeado,
Um parente que se preza.
É doutra espécie, é verdade,
Mas tem tais laços comigo
Que é desta comunidade
Como qualquer outro amigo.
Mais que muitos verdadeiro
É meu irmão castanheiro.
1166 - Auto-estrada
Ao viajar numa auto-estrada
Deparo subitamente
Com a paisagem que é dada
Ali, tão gratuitamente,
Contemplo a grandiosidade
Que me oferta a natureza,
O espanto que persuade,
quanto arrebata a beleza.
Do ponto de vista do imo
A beleza é o componente
Que na vida ocupa o cimo.
A cada dia inerente,
É o momento favorável
De eu ser eu inadiável.
1167 - Heróis
Quando uma nação elege
Homens altos para heróis,
Já nada mais a protege,
Está condenada, pois.
Bom senso suficiente
A suspeitar dos Golias
Garantirá normalmente
Crédito a mais altas vias.
Mérito à normalidade,
Ao comum que se engrandece,
Criança a crescer de idade,
É que nos semeia a messe:
- O que garante o porvir
É o génio de em comum ir.
1168 - Estátuas
Metade ou mais das estátuas
Deviam por pedestal
Ter crânios, o seu sinal
Do que na base são fátuas.
De vítimas e carrascos
O mundo se dividiu:
O pé destes percorreu
Aqueles, chão de seus cascos.
Porém, as vítimas tecem
De tal modo a vida delas
Que a sorte delas merecem,
Tanto lhe abrem as janelas.
Depois de tudo pesar
Quem nos resta para amar?
1169 - Traficante
Mas que olhar de traficante:
Pesas-me em peso de carne?!
E o sonho que em mim incarne
arrastando o mundo avante?
Aquele é mais forte que eu,
Pesa bem mais de cem quilos?
Meus projectos são tranquilos,
Um nada e é um ar que lhes deu?
E, portanto, cada qual
De carnadura e feijão
Mais que seu peso não vale,
Mais que seu peso de pão?!
- Detesto quem muda de alma,
Quem de frios mente calma!
1170 - Antiguidade
Eu detesto a antiguidade,
De incapazes promoção,
Última autorização
Do abuso de autoridade.
Fixa a história (sempre em vão)
O dos grandes que a degrade,
Não o que, pior, se evade,
O dos medíocres, não:
O abuso mais odioso
Não é o da pata dum grande,
De certo lado ainda honroso,
É o de alguém que se desmande,
Que enche enorme um balão de ar…
- E eu detesto detestar!
1171 - Estranho
Que haverá de mais estranho
Para quem é prisioneiro
Que havê-lo sido primeiro
E agora ter livre o ganho?
Para um doente, o tamanho
De seu espanto cimeiro
Há-de ser quando ele inteiro
De curado tem o amanho.
Que é que vai ser do rapaz
Que com o tempo se muda,
Nem dá conta que é capaz
Deste outro que a si se gruda?
Que estranhezas são que o tomem
quando descobrir que é um homem?
1172 - Preto
Volta a ser mulher de preto,
Atenta à dor do querido
Filho que resta discreto,
Semimorto, quase olvido…
É, porventura, encantada,
Que das lágrimas o sal
Mudou na estátua lavrada.
Mas ninguém lhe lê o sinal:
Sombra de alguém falecido
Quem é que a distingue ainda,
À viuvez do vestido
Preto da noite benvinda?
No apartamento deserto
Só o muito longe está perto.
1173 - Cavernas
Hoje é idade das cavernas,
Mundo que se basta a si,
Com alfaiate, casernas,
A escola, a pista de esqui…
Mundo espartilhado aqui,
A viver encurralado,
De muros de frenesi
Sempre, sempre cerceado.
Prisão dentro da prisão
É a das janelas gradeadas.
Que diferença farão
Uma doutra, após criadas?
Ninguém sonha de seguro
Nada além do próprio muro.
1174 - Aguaceiro
O leitor que o livro fecha
Para sair e aspirar
Uma rosa ou ofertar
Do aguaceiro a cara à flecha,
Tem razão quando assim mexa.
A bagagem que arranjar
Literária sopro é de ar
Que só a vida acende em mecha.
O bom aluno viajante
Será sempre sem bagagem:
Não é equipá-lo o importante
Mas despertá-lo à viagem.
Um cérebro recheado
Não se educa, é cozinhado.
1175 - Estátua
O escritor que tanto admiras
Não é uma estátua, mas homem,
Portanto os traços que o tomem
Todos importa que viras.
Admirar e tocar liras
Sem ternuras que te domem,
Em desprezos se consomem
De que rápido fugiras.
Quenquer pode admirar génios,
Mas perde o fundamental
Que jamais vem nos convénios:
Ter-lhes um amor real.
Mais que fruir um regalo,
Importa aprender a amá-lo.
1176 - Arcano
Quarenta formei este ano,
Mais quarenta no que vem,
Todos a marca me têm
Toda a vida, como arcano.
Tal qual como por engano,
Sem o saberem, mantêm
O rumo que ter convém,
Corpo à medida do pano.
Não são, pois, um batalhão
Nem qualquer corpo de guerra:
Meus alunos o que são
é um pulsar denso da terra.
O que eu semeio no chão
É o ritmo do coração.
1177 - Uniforme
Heroísmo de uniforme
Não, nele não acredito:
Não há unidade conforme
Ao sabor que há no infinito.
Não há farda onde se forme
A solidão deste grito
Que sentimos tão enorme
Que lá mora nosso fito.
Dum uniforme não é,
Nem dum corpo, dum conjunto,
Mas de alguém ficar de pé
Quando anulá-lo é o assunto.
Heroísmo é, quando aflito,
Fincar pé contra o atrito.
1178 - Espectador
O espectador é cobarde?
Ao invés é heróico o actor
Só porque a chama nele arde
Sem ver se ateia o fulgor?
Sem do espectáculo o alarde
Não havia espectador…
Mas, embora o peito tarde,
Não é apenas se propor.
O espectador sempre paga
O bilhete dia a dia,
Trabalhando quanto afaga,
Madrugando quanto adia.
O espectador é que aceita
Tudo o que o palco rejeita.
1179 - Briga
Talvez uma mulher, não,
Antes uma rapariga:
Criança e mulher estão
Aqui juntas e sem briga.
Incumbidas de doar
E de conservar a vida,
Ambas duma no lugar,
Todas numa e sem medida.
Oposto do que primeiro
Fora o mais irracional
Voto eterno do guerreiro:
A morte como ideal.
Ideal, só o de viver,
Mesmo se a paga é morrer.
1180 - Calor
Do vero calor da Terra
É a mulher a detentora,
Privilégio que não mora
Em quem à morte se aferra.
Toda a ambição colabora,
No limite, com a guerra,
Violência e morte que aterra
Há milénios, mundo fora.
Animal por entre os mais,
O homem só poderia
Sobreviver entre os ais
Dos iguais que mataria.
Sem a mulher amorável
O mundo era inabitável.
1181 - Quisto
No sistema dominante
Até o suicídio previsto
Se integra lá como um quisto
Na carne viva pujante.
Como os batoteiros ante
No casino o que é benquisto,
O suicídio é bem visto
Desde que fique distante.
Serve para renovar
O gostoso de viver
Que nos outros tem lugar
E deve atingir quenquer,
A morte real, que despreza,
No sistema?! - Que baixeza!
1182 - Metal
Os heróis serão feitos dum metal
Que se não pode retirar do fogo,
Pois liquefazem-se ao inverso, logo
Que o dia a dia devier normal.
São corajosos, aliás, por fal-
Ta de imaginação: o herói abrogo
Quando não passa do perverso jogo
Da miopia de quem já vê mal.
Se a mulher não gostasse dos guerreiros,
Nunca estaria reduzida apenas
A devir o repouso dos parceiros,
A transmudar-se num colchão de penas.
O herói não traz dum uniforme a pele,
É um uniforme, antes, que o traz a ele.
1183 - Bandeira
A bandeira toca mais
Do que o busto da República:
É que ela é viva demais
E não cheira a mulher pública.
Quererá isto dizer
Que a bandeira que alimento
Simboliza o pátrio ser
Como só feito de vento?
Homem de pistola à mão
Que ameaça, fere ou mata,
É cobardia que acata,
Heroicidade é que não.
Neste mundo o que mais dói
É que este é que é seu herói.
1184 - Super-homem
O super-homem jamais
Será de fabrico em série
Como qualquer intempérie
De tropas especiais.
Foi da Guerra Mundial
que a força armada nasceu.
Hoje em profissional deu
Da defesa nacional.
É o retorno aos semi-deuses
De campeões e vedetas,
Meteóricos cometas
Que ao vulgo acenam adeuses.
- Mas no vulgo outra semente
Lenta gemina outra gente.
1185 - Felizes
“Aqueles foram os mais
Felizes dias da vida”
- O que choca em termos tais
O passado é ser que os lida,
Pois que o presente jamais
Logrará cá ter haurida
Vivência ou facto reais
Daquela matriz volvida.
Passado, quando presente
Foi vivido, por igual
Jamais nele viu assente
Felicidade que tal.
- Ser feliz, mas hoje em dia,
É viver já o que viria.
1186 - Já
“Já?! Valha-me Deus, pois já?!”
- Dos lamentos é o mais triste
Que a Terra produzirá:
O desencanto que existe
Do porvir que já não há.
A criatura subsiste
Só para ver que acolá,
Até onde o olhar aviste,
Se tudo o mais se vê lá,
Ela, não, findou-lhe o chiste
No grito que afogará
Ao não constar do que liste.
- Nossa alegre vida é a vida
Já pelo tempo vencida.
1187 - Máscara
Toda a máscara nos mente
Mais que quanto se acredita,
Pois que mente duplamente
Dela por trás da visita.
É primeiro mentirosa
Por esconder a verdade.
A impunidade que goza
É a do vazio que agrade.
Mas depois vai permitir
Todas as suposições
E esta forma de mentir
Ainda traz mais aleijões.
Das duas barras na grade
Aprisiona a verdade.
1188 - Andanças
A vida inteira as crianças
Querem pelo mundo fora
Que os pais, ao fim das andanças,
As esperem toda a hora.
Porém, estas esperanças,
O que estranho as edulcora
É que a idade não alcanças
Que lhes remova a demora.
Duram, então uma vida
Que a criança, mesmo velho,
Se recusa à despedida
Que a velhice lhe aconselha.
Se em casa não anda o pai,
O pródigo outra vez cai.
1189 - Predadores
Os espectadores,
Prontos a saltar,
Gritar, arranhar,
São os predadores
Juntos no comício
Para ter à mão,
Pronto ao exercício,
De raiva a ração.
São, de cara erguida,
Como os cães à espera
Que salte a comida…
- E então salta a fera!
- Como o espectador
De gente é um tumor!
1190 - Cortado
As vítimas e os carrascos,
Actores e espectadores,
Do mundo são os valores
Cortado entre amores e ascos.
Espectadores pacíficos
Num instante são selvagens:
Quanto mais forem magníficos
Os actores nas voragens
Que alto falam no silêncio,
Mais querem aplauso e luz
- Da plateia o rosto vence-o
A penumbra, em contraluz.
Tais rostos irão sempre onde
A luz que brilha os esconde.
1191 - Farinha
Somos todos amassados
Com esta mesma farinha:
Ideal por um dos lados,
A intolerância, vizinha,
Violência à flor da pele…
Os partidos e os modelos,
A quem aceita e repele,
São feitos dos mesmos elos.
Que serve, pois, atacar?
A apanhar ou a bater,
Cada qual é o avatar
De si mesmo e de quenquer.
Melhor é um pouco de graça
Em tudo, que tudo passa!
1192 - Direito
Se alguém crer numa verdade,
Se arroga logo o direito,
Para a implantar na cidade,
De levar o mundo a eito.
Justamente por também
Ser por ela responsável
É que tem de ir mais além,
Até ao inevitável.
Só porque a crença conspira
E só porque é sempre assim,
Toda a verdade é mentira,
Ali encontra seu fim.
Se me acometo de lado,
Não é verdade, é pecado.
1193 - Atrapalha
Onde o Homem sempre falha
Tantos séculos após,
A Mulher não se atrapalha,
Poderá vencer a sós.
Só com uma condição,
Tem de usar armas opostas:
O Amor em primeira mão,
Não dos ódios as congostas.
Trocando a força em desdém,
Irá tentar persuadir:
Assim deveras convém
Que modelemos porvir.
- Do tempo eis-nos na charneira
E o porvir não há maneira!
1194 - Semideuses
De todos os semideuses
Que o dia a dia venera
Nem um só foge as reveses
Em seu tempo noutra era.
Deles sempre as teorias,
Por mais que gestas homéricas
Lhes marquem as profecias,
Foram tidas por quiméricas.
Que é que importa ser uns séculos
Mais velho, se continuamos
Em marcha atrás, como espéculos
Dos mortos tornados amos?
- O que importa é prosseguir
Em frente rumo ao porvir.
1195 - Fiéis
Aos amores mortos
Somos mais fiéis,
Sempre de seus hortos
Tornados segréis.
Contamos as luas
Com que lá sonhámos
Ignorando as puas
De que nos lavrámos.
Os mortos amores
Em que me ensimesmo
Não são, pois, odores
Perdidos a esmo:
- Sou fiel às cores
Que tenho em mim mesmo.
1196 - Doçura
A doçura é uma palavra
Que depura na mulher,
Que por outras lavras lavra
O porvir que houver de ser.
Estas palavras são horas
De levarem a melhor
Sobre as grosseiras demoras
Que os machos lavram de cor.
Sobre nossos pedantismos
De vez masculinizados
Só se cavaram abismos
Em quaisquer eras e lados.
Nova espero que a receita
De vez renove a colheita.
1197 - Engenhos
Passeamos sobre a Lua,
Temos engenhos em Marte,
Mas aqui na minha rua
Com famintos quem reparte?
Por cada três homens há
Dois com fome aqui ao lado
E a solar fronteira já
Nossas naves hão passado.
Que engenhosos os engenhos
De navegar nos espaços!
E que pobreza nos cenhos
De imaginar novos laços!
Quanta vitória, afinal,
Para o fracasso total!
1198 - Pedra
A coragem de papel
Não é coragem deveras,
Breve aflora à flor da pele,
Esfuma-se nas esperas.
Porém, a dos solidários,
A do fracasso aparente,
Coragem de pedra, vários
Milénios dura presente.
Tem isto a razão de estranho:
De funda, ninguém a vê,
Só com tempo tem de ganho
Aquilo que afinal é.
Assim, a humana coragem
Requer do tempo a viagem.
1199 - Narciso
Narciso, de fascinado
Consigo próprio, um afago
Tanto tenta que afogado
Fica no fundo do lago.
Se à vítima, porém, chora
O lago que fez de espelho,
Não é do belo ido embora,
É de perder-lhe o conselho:
É que aos olhos de Narciso
É que o lago recorria
Para ver, quando preciso,
Que beleza em si havia.
- Só atento a seu próprio selo,
Ninguém noutrem vê o que é belo.
1200 - Gamas
Sempre os homens podem ter
Gamas várias de prazer
E aquele que é o verdadeiro
é o que vem por derradeiro,
Faz crescer água na boca,
Outro largando por troca.
Outro que, por sua vez,
O mesmo ao dantes já fez.
Assim é que, inteligente,
Segue o homem sempre em frente.
Como é que isto então seria
Se em lugar de inteligente
Sem razão talhara a via
De si este eterno ausente?
1201 - Bússola
De toda a bússola a perca
E de toda a direcção
Que o chão da espera serão,
Martelam ainda a cerca
Em que nos prendem em vão
quando o esperado se acerca,
Como a quem, após a merca,
Faltara o mercado pão.
Substituindo em nós a calma
Que sonhámos da chegada,
Da festa nos rouba a palma
Levando anão sentir nada:
Ninguém vai saborear
O prazer que antecipar.
1202 - Imagens
As imagens recordadas,
Tão arbitrárias, estreitas,
De inacessíveis afeitas
Às do imaginário dadas,
Ambas formam as fornadas
Pelo pensamento feitas.
E a nós ficam tão atreitas
Que se finam deslaçadas.
O imaginário formara
O que o real destruíra
E não será coisa rara
Que o facto, o que possuíra,
É memória como é sonho
E, ao fim, nada que lá ponho.
1203 - Calendário
O calendário dos factos
Jamais é o dos sentimentos.
No anacronismo dos pactos,
Picam os picos dos cactos
Sempre fora dos eventos.
É quando um desejo louco
De me lançar em seus braços
(Onde pequeno me apouco)
Me toma que fico mouco:
Descubro da morte os traços.
E às vezes passaram anos
Sobre da mortalha os panos.
- Da morte só vou saber
Tarde demais o que houver.
1204 - Compaixão
Se julgo só recriar
A dor de quem mais amei,
A compaixão, em lugar,
exagera a dor que sei.
Porém, pode ser que a lei
Que aqui me vem comandar
Melhor saiba como é que hei-
-De ao real contas prestar.
A tristeza do que sofre
Oculta a triste da vida
Da recordação no cofre.
A compaixão desmedida
É que a vai ler tal qual era,
Por isso é que desespera.
1205 - Cebola
Qualquer pessoa, à medida
Que alguém a vai conhecendo,
É uma cebola que fendo,
Casca a casca dividida.
Metal a que o fogo acendo,
Liga mais e mais delida,
É uma alteração sofrida
O que do tempo apreendo.
Assim é que as qualidades
Pouco a pouco lhe descasco,
Surpreso doutras verdades.
Se nem sempre criar asco,
É que então qualquer defeito
Lho mondo também a eito.
1206 - Singular
Já que a originalidade
De quem for encantador
Exaspera quando invade
quem não se lhe ousar impor,
Todo o equilíbrio demora,
Que um hábito quer vagar:
Não há gente encantadora
Que não seja singular.
Desequilíbrio que apenas
Com o tempo se descobre,
É o da entrada nas arenas
Da incógnita que o encobre.
Quando alguém não vive afeito
Ficará logo sem jeito.
1207 - Talento
Valemos pelo talento.
A nobreza ou o dinheiro
São mero zero leveiro:
Só multiplica um portento.
Ocioso ao pé de nada,
Um zero de nada vale,
Multiplicado o sinal
Fica sem porta de entrada.
Aborrecimento, tédio,
Atingirá sempre aquele
Que de tanto nascer nédio
Se finará de osso e pele.
A história da Humanidade
É o fado desta verdade.
1208 - Esquivo
O espírito criativo,
Quando falta, é o elemento
Que faz que se torne esquivo
O efeito do sofrimento.
A verdade mais terrível
Magoa, concomitante
Com a alegria visível
Do que descobre diante.
É que nos revela a forma
Nova e plena de clareza
Do que em nós se não conforma,
Longa remoída reza.
Aqui, sem o suspeitar,
Se andou verdade a incubar.
1209 - Eléctrico
Sacudido por amores,
Eu vivi-os, eu senti-os,
Choque eléctrico de humores
Duma corrente sem fios.
Jamais, porém, consegui
Nem vê-los nem reflecti-los.
O que acaso mora ali
São de flor uns peristilos
Invisíveis, sob a forma
Da mulher, da bem-amada:
O que amei nela, por norma,
É a deusa lá mascarada.
A mulher que amo, de facto,
Com deus me põe em contacto.
1210 - Mensagem
No momento em que tudo parece perdido
É que chega a mensagem que me vem salvar.
Batemos aos portais que a nada vão levar
E o único por onde tínhamos podido
Entrar, buscado em vão, cem anos
preterido,
Nós nele esbarraremos sem sequer notar:
E eis que se abre o portal então de par em
par
E o condenado ali deixou de ser arguido.
Enquanto ruminar tristes os pensamentos,
Perdido em distracção, acaso recuarei,
Até me tropeçar o pé nos fundamentos.
Já nem sei se fui eu que então os
procurei,
Se os portais se me abriram porque ignotos
buscam
Os que no escuro sonham as luzes que
ofuscam.
1211 - Impressão
A impressão é do escritor,
O experimento é do sábio.
E a razão é o astrolábio
Que neste vem-se antepor
E naquele se pospor
Aos balbuceios do lábio:
O que ficar claro sabe-o
Quem dele sofreu a dor.
Quem não quiser decifrar
Com suor bem pessoal
Ao saber não dó lugar.
O saber só é real
Se o tiro da escuridão
Que os mais em mim nem verão.
1212 - Eufemístico
Quem não tem sentido artístico,
Ao interior submissão,
Pode ter um eufemístico
Poder de conversação
Sobre arte, um sentido místico
De infinita reflexão,
Que os mais nunca esgotarão
Nem verão quanto é artístico
Modo de sublimação
Da perene frustração
De que constitui um dístico,
Pública demonstração.
- Tanto sofre, paroxístico,
Seu autor com o aleijão!
1213 - Ata
Um livro como os demais,
Logo que lido por nós,
Como outras coisas reais,
Com tudo nos ata nós.
São termos imateriais,
Tais quais nossas sensações
Hauridas em tempos tais,
Trançam com elas festões.
Um romance lido outrora
Entre as sílabas contém
O sol que brilhou lá fora,
Ao folhearmo-lo além…
- Literatura realista
É só curteza de vista.
1214 - Visão
O estilo para o escritor
Como a cor para o pintor
Não são técnica questão
Mas a norma da visão.
Distância qualitativa
Com que o mundo, forma viva,
A nosso olhar aparece
E com que o mundo se aquece.
Se não fora um jeito de arte
Seria um segredo eterno
Que com cada qual se parte,
Segredo íntimo e superno.
Ao salvar a diferença
Mantém-se eterna a presença.
1215 - Fora
Só por arte irei sair
De mim mesmo para fora,
Saber o que o outro vir
Deste universo de agora
Que não é o mesmo que o nosso,
Cujas paisagens seriam
Tão ignotas como o fosso
Que em Marte os canais traíam.
Em vez dum mundo sozinho
Vemo-lo multiplicar-se
Em quantos os que adivinho
Que de arte tomam disfarce.
Mais diversos, neste fito,
Que os que rolam no infinito.
1216 - Leitor
O escritor diz “meu leitor”,
Quando, na realidade,
Que leitor lê um escritor?
Lê sua própria verdade.
E, quando um leitor vai ler,
Nas obras lê-se a si mesmo:
Nas obras, pois, escolher
O escritor é um pouco a esmo.
As laudas dum escritor
São a espécie de instrumento
Que ele oferece ao leitor,
A dar-lhe discernimento.
Sem tal obra talvez não
Vira além do que é o senão.
1217 - Reconhecer
Vir reconhecer alguém
E não o identificar,
Sob um só nome é pensar
Que há contradições também.
Quem aqui estava já não
existe e quem aqui está
Não o conheço senão
Como outrem que mora cá.
Mistério tão perturbante
Como a morte que anuncia,
Prefácio que vai adiante
Do livro do fim da via.
Rugas e cãs nos cabelos
São já morte a atar-nos elos.
1218 - Outro
Quem amou e já não ama
Devém nisto um outro ser,
Olha seu corpo na cama
Como o dum outro qualquer.
Estas mortes sucessivas,
Temíveis de aniquilar,
Indiferente as esquivas
Quando outro é já teu lugar…
Quando ali não estiver
Para as sentir, compreendo
Que a morte não vou temer:
Não serei quem lá está sendo.
Assim, é pouco sensato
Da morte ter medo ao acto.
1219 - Queixas
As queixas de que um do par
Já não é tão carinhoso
Como costumava usar
Matam do casal o gozo.
Voltem, pois, a namorar
E vejam como é gostoso
Isto de se requestar
Num convite deleitoso.
Até faz nascer luar
No temporal borrascoso
Um convite de jantar,
De rosa um botão cheiroso…
- Afinal ateia o lar
Fósforo à lenha chegar.
1220 - Sexo
Repete a mulher que o sexo
Físico afinal não é,
Questão é o amor conexo,
Ternura que toma pé,
Só comunicar até,
Todo o contacto complexo
Que vai gerar mútua fé.
Palavras que, por reflexo,
Dos homens na maior parte
Caem mesmo em saco roto.
Tardia vem sempre a arte,
Quando o instinto devém boto,
De atender ao que ela apele:
- Sexo é mais que a flor da pele.
1221 - Rendibilidade
A lógica da cidade
Não é de satisfação
Do que quer o cidadão
Mas da rendibilidade.
Quando será que a ilusão
Que das urbes nos invade
Afinal nos persuade
A procurar outro chão?
Rituais escapadelas
Em fugas hebdomadárias
Continuam sem sequelas
Duma das causas primárias:
- O retorno à natureza
Que esta cidade despreza.
1222 - Palavra
A palavra significa
Mas tem nela outra verdade:
Fonema que identifica
Apenas sonoridade.
É assim que a música fala,
Quando tudo o mais se cala,
Num canto, num instrumento,
A palavra que há no vento
E cujo sentido lavra
Como o vento da palavra.
Há sempre um outro sentido
Que ninguém afinal sente
Envolvendo o que é vivido:
- E este é que nunca nos mente.