DÉCIMO  PRIMEIRO  CANTO

 

 

 

ATÉ  QUEBRADA  QUASE  SER  CANTIGA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1223 e 1323 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                1223 - Até quebrada quase ser cantiga

 

                                                Até quebrada quase ser cantiga

                                                A poesia do soneto

                                                Nos colmata o tecto

                                                Onde quanto é vital se nos abriga.

 

                                                Vou do sonho ao ser completo

                                                E no poema mostro a liga,

                                                Neste jogo de espelhos que me obriga

                                                De mim a elaborar saber directo.

 

                                                O prosaico dia a dia

                                                Me apareceria

                                                Transmudado em sonorosa

 

                                                Melodia:

                                                Eis como na beleza a dor podia

                                                Ser afinal ainda o que se goza.

 

 

1224 - Caos

 

É o caos a tendência

Inelutável das coisas.

Do átomo à molécula a degenerescência

Inscreve-se nas loisas,

 

Como das galáxias aos planetas,

Da grandeza infinita à mais pequena…

E, se te inquietas,

Descobres que nada vale a pena:

 

Em vão tentas combatê-lo,

Dar ordem à desordem,

Um sentido ao que nenhum sentido tem,

 

Que aumenta o caos quanto aumenta teu anelo,

Todos os campos a energia te mordem…

- Só que nas fímbrias a vida renasce também!

 

 

1225 - Infelicidade

 

Não tem a infelicidade

Só rosto de fome e frio.

Também tem o da solidão que há-de

Gelar de vazio

 

Quem pertence a um mundo que desapareceu,

Que, incompreendido, a ninguém persuade.

De navalha a viver no fio

De não ter identidade,

 

Não reconhecido, é ridicularizado,

Perseguido, humilhado

No chão da vulgaridade.

 

Este gelo eterno

É que rasga de inferno

A carne e o sangue da infelicidade.

 

 

1226 - Desnutrição

 

De desnutrição géneros há dois:

A do corpo que vem de não comer,

A das almas que vem de não saber.

O crescimento vem de ambas depois.

 

Além

de comer,

É preciso saber

Também.

 

Já leste um livro vez alguma?

Não, que os livros são caros

E como um bife nenhum deles ressuma?

 

Os saberes resultam muito raros…

- Se não pagas o custo de crescer

Jamais, porém, poderás ser.

 

 

1227 - Intelectual

 

És um intelectual:

Não tens partidarismos

De fé, de paixão nem de moral.

Tens de identificar-te com todos os abismos,

 

Tens de compreender tudo e todos por igual.

E quem compreende lê os exorcismos

De modo universal,

Absolve e perdoa os cataclismos

 

De tudo e de todos.

Ora, quem tudo perdoa

Em nada crê.

 

Quaisquer que sejam os modos,

Por muito que o cinismo te não doa,

Já nem sequer em ti podes ter fé.

 

 

1228 - Estilhaço

 

Ninguém compreenderá uma dor de alma?

Se apanhar um estilhaço,

Perdem todos logo a calma:

“Depressa, um garote neste braço!”

 

Se uma perna embaraço

E a quebro na trave que ma empalma,

Nunca o gesso é escasso

E a dor me acalma.

 

Mas se tenho o coração esfrangalhado

E o desespero me tolhe tanto a boca

Que a não abro nem por um bocado,

 

Os outros não darão por nada.

E assim fico tolhido, em minha toca,

A doer sem saída nem entrada.

 

 

1229 - Soberba

 

Com a soberba dos esquemas presunçosos

Duma cultura racionalista da vaidade,

Com a ilusão de explicar tudo o que invade,

Distraídos pela exigência de ter gozos,

 

Dos quais o que mais nos persuade

É de donos de nós ser os mais fogosos,

- Com tanta presunção, como morosos

São os regos em nós da fatuidade!

 

E não vemos como estamos à mercê

Duma lógica que nos é estranha

Invulneravelmente de pé.

O fado ou o destino nos amanha

E por mais que nos repugne seu mistério

Dele vivemos fatalmente sob o império.

 

 

1230 - Parapeito

 

No que aos homens diz respeito,

A dificuldade,

Quando surge a mulher no parapeito,

É conseguir, em continuidade,

 

Um comportamento ao jeito

De indivíduo da mesma identidade,

Afeito

À igualdade.

 

Quando há uma mulher por perto

Deixa o homem de ser pessoa,

Comporta-se como macho experto.

 

E de repente se escoa

Num desastrado deserto

A vida perdida à toa.

 

 

1231 - Infecundo

 

Nunca desprezes um novo

Que serve uma causa

Por causa do medo do renovo

Ou porque requeiras pausa.

 

É que servir um partido causa

Oportunidades em ovo,

Não é a quinta privada onde pausa,

Em uso próprio, qualquer política que movo.

 

Se esta nos não vier servir

É porque a si própria serve e já não dá

Em troca aos outros nada com porvir.

 

Então já ninguém actua neste mundo

Nem fará deste mundo parte já:

É um mero espectador por inteiro infecundo.

 

 

1232 - Mitos

 

Os nossos mitos são mitos

À sombra dos quais viver.

Decorativos meros fitos

Nem terão sequer.

 

A religião à vida há-de trazer

De beleza contributos benditos

Mas o que dum mito se quer

É a verdade que resgate os precitos,

 

Uma verdade usável,

Com que viver devenha viável.

 

Se um mito é certo, mais profundo

Devém com cada idade do mundo.

 

Do belo e do feliz não há busca directa:

- Busquemos a verdade e ela no-los dará, discreta.

 

 

1233 - Tempos

 

Tempos houve em que toda a gente

Morava em aldeias.

Sentavam-se a mesas alinhadas em corrente,

Falavam às mancheias.

 

Se com o que te importa, premente,

A esposa ao lado não ateias,

Do outro lado um primo, contente,

Escutar-te-á inteiro, não a meias.

 

Hoje, quando é impossível falar à esposa,

Resta o isolamento.

O automóvel dividiu-nos, não nos entrosa,

 

Dispersa os amigos ao sabor do vento.

- Quando uma visita requer planificação,

Os companheiros esfumar-se-ão.

 

 

1234 - Armadilha

 

Se da humanidade a maior alegria

Fora o sexo,

Em grande armadilha nos meteria

O destino a tal conexo.

 

Nosso fim na terra seria mero anexo

De todas as espécies em porfia:

Ser o nexo

Com a geração que nos seguiria

 

E com a outra e a outra, interminavelmente…

Joguetes do grande laboratório da Natureza,

Como seríamos tão pequenamente!

 

Serei tal poeira ilimitada?

- Se alguém se preza,

Então recuse ser tão nada!

 

 

1235 - Interrogação

 

Pendular, o Universo oscila

Ou provém único duma explosão?

- É a questão

Intranquila.

 

Primeiro era um relógio o Universo,

Depois, uma espiral de biliões de espirais,

Depois é de espaço curvo que converso,

Depois um balão que se expande indefinidamente mais…

 

Quando chegarem ao fim,

Verão

Que o que encontram, assim,

 

No termo da investigação,

É que o Universo é, enfim,

Um ponto de interrogação.

 

 

1236 - Corda

 

Nascemos numa família,

Noutra morremos depois.

Da velhice na vigília

O homem tem laços e nós

 

Que da família não sabem

De que ainda se recorda,

Até que também acabem

Da vida roendo a corda.

 

Não podemos viver

Nossas vidas

Em companhia que nos grude

 

De outrora a quenquer, a quenquer

Que nas lidas

Amámos da perdida juventude.

 

 

1237 - Radical

 

O homem luta pela permanência,

Para vencer a morte.

Deus quer a evolução, à sorte,

Com seu fluxo, desperdício, excrescência…

 

Entra a criança,

No mundo, amada.

Parte de abalada,

Menos amada, e descansa.

 

Em fermentação

O tempo bastante,

Talvez atinjamos a produção

De algo excelente lá para diante.

 

Pelo que resulta deste sinal,

O Homem é conservador, Deus é radical.

 

 

1238 - Fatia

 

Se Deus qualquer de nós fora,

Jamais o mundo seria

Agora

Como Deus o fabricou um dia.

 

Mas, para ser capaz, por ora,

De viver minha fatia

De tempo sem ir-me embora,

Num sentido qualquer disto apostaria:

 

Tenho de tentar viver

Como se tudo fizera

Sentido, mesmo sem crer.

 

Queiramos ou não, a espera

É nesta cela encerrados

De Universo por todos os lados.

 

 

1239 - Fronteira

 

Um ateu varre o problema

Para o chão,

Por falta de paciência para o tema

Em questão.

 

O agnóstico deixa-o em cima da mesa

Mas recusa-se a tocá-lo,

Do labor eterna presa,

À espera dum intervalo.

 

O religioso continua

A trabalhar na interrogação,

Mesmo depois de saber que não há rua,

 

Que não é capaz, que não tem mão,

Que a fronteira é minha, é tua,

- Jamais nada nem ninguém lhe encontra solução!

 

 

1240 - Irreparável

 

Chega uma altura em que a vida

Aparece irreparável,

Tão sem conserto e medida,

Tão irremediável,

 

Que de repente nos apercebemos,

A sós,

De que trabalhar só poderemos

Para os que virão depois de nós.

 

A carreira se esfarela

Nas mãos ao envelhecer,

Paródia, na sequela,

 

Do sonho que a fizera acontecer.

É fatal cada qual ser um falhado:

Tudo termina e nada fica acabado.

 

 

1241 - Sucata

 

Quando prontos outra vez

A vida a viver ficamos,

Melhorando o que se fez,

Apagados nos finamos!

 

Se Deus fora deveras cavalheiro,

Houvera de deixar o homem viver

A vida duas vezes por inteiro,

Para após justiça então fazer.

 

Assim, não!

Põe-nos à experiência,

Falhamos e desata

 

De imediato a excomunhão

Da existência:

- Somos jogados logo na sucata!

 

 

1242 - Frustração

 

A frustração,

Quando lobrigamos que há-de ter um fim,

É um motivo de prazer ao alcance da mão

Que é preciso aprender a apreciar assim.

 

Ante uma mulher, a contenção

Torna no homem dela afim

Mais aguda a apreciação

Do sim.

 

A frustração excita,

Ilumina o movimento duma anca,

A curva dum seio que palpita…

 

A satisfação é manca:

Bailam-nos raparigas nos olhos

Quando o entusiasmo renasce dos escolhos.

 

 

1243 - Luta

 

Luta

É combate, contenda, estardalhaço,

É disputa.

E, ao mesmo tempo, é um abraço.

 

Como quando lutamos no espaço

Dum problema que se discuta:

É sempre escasso

O raio que traça a escuridão da gruta.

 

É preciso amar o problema,

Viver empenhado nele,

Para sentirmos na pele

 

O tema

- E então, finalmemte, nos armarmos

E com ele lutarmos.

 

 

1244 - Insuspeitados

 

Julgo conhecer a fundo o coração.

Por maior que seja a inteligência, porém,

Não pode perceber os elementos que ele tem

Na composição.

 

Insuspeitados permanecerão

Até que o momento que os mantém

Voláteis os transmude também

Num degrau qualquer de solidificação.

 

Durante quase o tempo todo

Aguardam o fenómeno que os isole,

De modo

 

Que do impalpável os descole.

E quem o coração pensou ler claro

Que dele nada entendeu verá não raro.

 

 

1245 - Hábito

 

De tal modo me habituara

A vê-lo junto de mim,

Que de repente discernia, em frenesim,

Do hábito a nova cara.

 

Até então o considerara

Aniquilador, suprimindo ao fim

Tanto a originalidade que, enfim,

Até uma percepção fingira rara.

 

Agora é uma terrível divindade

Tão incrustada em minha intimidade

Que, ao destacar-se e se afastar,

 

Este deus discreto me inflige tais tormentos

Que mais que quaisquer outros são violentos

E, de cruel, se mostra à morte similar.

 

 

1246 - Meios

 

Sinto os meios em meu poder

Quando apenas em pensamento

Modificável o futuro me aparecer,

De minha vontade pelo envolvimento.

 

Ao mesmo tempo, porém,

Lembro outras forças que não a minha

Que a determiná-lo se mantêm

E como contorná-lo ninguém adivinha:

 

Que importa haver já soado a hora,

Se aqui fico na demora,

Mexa o que mexer,

 

Se meu gesto é indiferente,

Se acabar sempre impotente

Perante o que vier a acontecer?

 

 

1247 - Criada

 

É a vida,

Pouco a pouco e caso a caso,

Que nos leva a descobrir que o que mais lida

Com o coração e o espírito, sempre em atraso,

 

Não nos é pelo pensamento

Ensinado,

Mas por poderes outros que a cada momento

O enquadram e ultrapassam, lado a lado.

 

Então a inteligência,

Destes ao dar conta da superioridade,

Abdica, em obediência,

Aceita converter-se em colaboradora,

Em criada sem vaidade…

- A crença experimental é que então nos demora.

 

 

1248 - Ferrete

 

Para configurar uma situação

desconhecida,

Recorre a imaginação

Ao familiar com que lida:

 

Por isso a não figura, não,

Pinta-a sempre distorcida.

A sensibilidade, então,

Mesmo a mais física da vida,

 

O ferrete do que for original

Recebe,

Tal do raio uma explosão.

 

E dele de tal

Modo se embebe

Que ela é que nos marca para sempre o chão.

 

 

1249 - Afastamento

 

Um golpe no coração

O afastamento produz.

A ferida traduz

A dor duma vida em punição.

 

A mulher que a saudade assim conduz

À exasperação,

Ou para rebrilhar de melhor luz

Ou fruir de melhor condição,

 

Tal golpe bem pode ela pretender evitá-lo

Jurando separar-se a bem.

Jamais logra tal regalo.

 

E quem

Ela afasta jamais ela o afastaria

Se bem ele vivera o amor que dela hauria.

 

 

1250 - Fugitiva

 

Se grande for o poder sobre um homem

Que uma mulher

Tiver,

Para que a liberdade lhe não tomem

 

Quando embora ir quiser,

Só fugindo. As fúrias dele se consomem:

As medidas que então se tomem

Em rainha fugitiva a irão enaltecer.

 

Há um intervalo

Entre o enjoo da presença dela de há um instante

E a fúria de revê-la, agora que vai distante,

 

Que permite saltar o valo:

- A fuga desperta o amor do sono

E a rainha então de vez repõe no trono.

 

 

1251 - Ramificação

 

O sofrimento, ramificação

Dum choque moral imposto,

Muda a forma, muda o gosto,

Quando busco informação,

 

Lhe projecto um fogo posto,

Volatilizá-lo como bola de sabão,

Por metamorfoses quando em vão

Fazê-lo passar aposto.

 

Isto quer menos coragem

Do que arcar com a dor aberta,

Tão dura a noite a acoberta.

 

Que friagem

A da cama onde ir repor,

Sozinho, minha dor!

 

 

1252 - Canora

 

O nome daquela a quem amamos

Cantamos e recantamos, ave canora,

Quando felizes o rememoramos,

Após a despedida ido embora.

 

E, se o calamos,

Escrevemo-lo em nós, pela mente fora,

Até que na parede rabiscada nos quedamos

Em que tudo em nós devém sem mais demora.

 

Repetimo-lo a toda a hora

Em pensamento,

Enquanto estamos felizes,

 

E mil vezes mais ainda quando labora

Em nós como um tormento:

- Afinal da infelicidade moram também nele as raízes.

 

 

1253 - Plágio

 

O que chamo experiência

É apenas revelação

Dum traço de carácter sempre à mão,

Em evidência

 

Com tanto mais força e precisão

Quanto já uma vez dele a ocorrência

Espontânea gera a premência

Doutras mais que se lhe seguirão.

 

O plágio mais difícil de evitar

Por indivíduos e povos que persistem no erro

E o agravam como um avatar

 

É o plágio de quando me ensimesmo,

Quando prisioneiro em mim me encerro:

- É o plágio de mim mesmo.

 

 

1254 - Crisálida

 

A crisálida de ternuras e de dores

Invisíveis torna, para o amante,

Da criatura amada, instante a instante,

As metamorfoses piores.

 

A cara teve tempo de envelhecer-lhe diante,

De mudar de traços e de humores.

Porém, sob a capa dos amores,

Inescrutável fica sempre doravante.

 

O rosto neutro visto da primeira vez

Tão longe fica do que passa a ver

Quando ama e sofre e espera o mais premente,

 

Quanto fica o actual do primitivo, ao invés,

Para um espectador qualquer

Que o olhe indiferente.

 

 

1255 - Janela

 

Quem amamos vive tanto no passado,

É tanto o tempo que trilhámos juntos

Que inteiros não requeiro mais assuntos

Nem a mulher inteira impreterível a meu lado.

 

De que é a mesma quero apenas a certeza,

Quero-lhe a identidade,

Quem ama nisto vê bem mais verdade

Que na beleza.

 

Podem cavar-se as rugas

Ou o rosto definhar,

Que com ela anoiteces e madrugas,

 

Por mais convidativo que te seja outro lugar.

Apenas para estar junto dela,

Como quem, olhando o infinito, se senta a uma janela.

 

 

1256 - Remédio

 

O remédio adequado

Para o acontecimento infeliz

É uma resolução que me diz

Como contornar meu fado.

 

A reviravolta que houver dado

É que mudo o cariz

Do que, por um triz,

Quase me houvera afundado.

 

Interrompe o fluir das ideias

Que me atingem do passado

E mo prolongam nas veias,

 

Quebra-o, trocado

Pelo fluir inverso que me há-de vir

De fora e do porvir.

 

 

1257 - Propício

 

A demora,

O êxito ausente

A tentar a quem o tente,

Matam as alegrias de hora a hora.

 

A esperança é que revigora,

No evento propício que pressente,

A vida que nos mente

E apavora.

 

Murcha a alegria,

Recaímos no sofrimento

Quando a certeza da falha principia

 

A abalar duvidoso o fundamento:

O que à esperança não creditamos

Murcha-nos nas mãos ao murchar-lhe os ramos.

 

 

1258 - Criaturas

 

Em vão amamos as criaturas.

Quando no isolamento enfrentamos a dor de perdê-las,

Por nós da dor talhando a forma e as sequelas,

Tornamo-la suportável em todas as figuras.

 

Dor bem diferente daqueloutras mordeduras

Menos humanas, tão pouco nossas, que ao tê-las,

Tão estranhas e imprevistas procelas

Como um acidente mortal tas auguras:

 

O modo como soubemos

Que à amada não tornaremos a vê-la

(“Minha decisão é irrevogável!”),

 

Os venenos nos instila extremos.

O rompimento os pregos nos martela

Do calvário da fatalidade inevitável.

 

 

1259 - Lunarmente

 

vivemos em função do sonho

Muito mais do que imaginamos:

Quando impossível o carinho suponho

Com que lunarmente nos amámos,

 

À vida o valor que nela ponho

Súbito emurchece pelos ramos

 

E bem mais do que tristonho

Será o rosto que arvoramos.

 

Descobrimos que o interesse

E o medo de morrer

Do mundo não governam a sorte.

 

A recusar a riqueza há quem se enobrece

Por um amor perdido e nem sequer

Hesita em arriscar-se à morte.

 

 

1260 - Horizonte

 

Buscar a felicidade

Satisfazendo um desejo,

O horizonte é buscar que adiante vejo,

Em frente caminhando de monte em cidade.

 

Quanto mais avança o desejo, na verdade,

Mais afasta o ensejo

De me alcançar o que almejo,

Perdido ao acaso pela imensidade.

 

A felicidade encontrada

Como a ausência de sofrimento,

Não é o desejo satisfeito de assentada,

 

É dele o aniquilamento.

Não busques mais um amor que te morreu:

Salvas-te apenas quando se extinguiu.

 

 

1261 - Laços

 

Os laços entre outrem e nós

São laços no pensamento:

Quando a memória se afrouxa, no momento,

Malgrado a ilusão, esgarçam-se os ilhós.

 

Por amor e amizade, pelo respeito que alimento,

Pelo dever de não ficarmos sós,

Uns aos outros nos enganamos após,

Mas sozinhos existimos: é fatal nosso tormento.

 

O homem é a criatura

Que sair de si jamais pode,

Apenas em si conhece outrem ausente.

 

Quem o contrário jura,

O contrário não lhe acode,

Mente!

 

 

1262 - Suborno

 

Ao nosso desejo conforme

Mudaremos tudo em torno

Quando conferimos o suborno

Em que a vida derivou enorme.

 

Não vislumbramos contorno

Fora daí que não deforme

Em monstruosidade disforme

Quanto da vida sonhámos adorno.

 

Porém,

O que se verifica e em que nem pensamos

É favorável também:

 

Não mudamos as coisas, nós é que mudamos.

E, de repente,

O que era insuportável devém indiferente.

 

 

1263 - Traços

 

Quando lemos um romance,

Dos traços de quem amamos

A heroína recamamos

Até que uma só de ambas se alcance.

 

Inútil, porém, é todo o lance:

Por muitos frutos que amadurem nos ramos

Dos personagens, os que tragamos

Não permitem que ninguém descanse.

 

Ao fechar o livro, silenciado o salmo,

Nosso amor não progrediu um palmo:

Aquele que amamos, de seguida,

 

Que no romance até nós viera,

Não passa, afinal, duma quimera,

Não gosta nada mais de nós na vida.

 

 

1264 - Carta

 

Uma carta

E o pouco que contém duma pessoa…

dão-nos as letras pensamento à toa,

Como um traço fisionómico no-lo acarta.

 

Na corola do rosto, porém, se apregoa

Muito diferente de quando dali se aparta:

De desgostos uma vida farta

É que esta divergência nela ecoa.

 

A carta diz tão pouco

Como um algarismo

Dos frutos por ele enumerados.

 

E eu sou o louco

Que cismo

Nos beijos que pelas letras me são dados.

 

 

1265 - Jaulas

 

As aulas más são as aulas

Que eles não querem ouvir:

Jaulas

Donde o que importa é fugir.

 

A culpa é deles, a culpa,

Se o que mais lhes apetece

Era estar na rua inculta,

Não na escola que os esquece?

 

Ser mesmo um bom professor

É adivinhar a maneira

De os tocar com tal ardor

Que esqueçam a aula inteira

Que lá fora era melhor:

- Aqui é que arde a fogueira!

 

 

1266 - Comédia

 

“Não gosto de ti” - direi,

Para que gostes de mim.

“Esqueço-te quando há muito te deixei”,

Para que procures mais assim.

 

Com “resolvi deixar-te!” prevenirei

Qualquer veleidade de pôr fim

Ao que doravante é nossa lei.

E, se afirmo: “é perigoso, enfim,

 

Tornar a ver-te”,

É para que a fome te desperte

De correr para meus braços.

 

Porém, ao invés, a repetida comédia

Quantas vezes desemboca na tragédia

Do fim dos laços!

 

 

1267 - Consumado

 

Erramos ao acreditar

Que o desejo consumado

Seja de ignorar,

Cumprido o fado.

 

É que, se, por azar,

Suspeitamos que não pode ser realizado,

Agarramo-lo, se calhar,

Por todo o lado.

 

Não vale a pena caçá-lo

Quando certos de atingi-lo;

Logo nos provoca abalo

 

Se, incerto, nos obriga a persegui-lo.

Quando atingido, porém, a incongruência

É que decepciona tanto quanto dele a ausência.

 

 

1268 - Rampa

 

No inteiro correr da vida

Nosso egoísmo olha em frente

As metas a que nos convida,

Sem reparar neste Eu que as sente.

 

O desejo que aos actos põe a brida,

Com eles condescendente,

A si não remonta na corrida,

Inconsciente,

 

Prefere agir a tomar conhecimento,

Crê vir no futuro a corrigir o presente

E, finalmente,

 

Abandona-se ao espreguiçamento:

Que bom deslizar na rampa lisa da imaginação,

Em vez de galgar a abrupta de aprender a lição!

 

 

1269 - Cemitério

 

Nosso castigo mais brutal

E mais justo,

Perante o esquecimento total,

Tranquilo, de cemitério vetusto,

 

Com que nos desprendemos no final

Daqueles a quem, sem qualquer custo,

Já não amamos, por nosso mal,

Exorcizado qualquer ancestral susto,

 

- Nosso castigo é que entrevemos

Tal esquecimento inevitável

Onde menos o quisemos:

 

Inexorável,

A pegada é já vinda

Em relação aos que amamos ainda.

 

 

1270 - Muro

 

Ela parece-me o muro interposto

Entre mim e o mundo,

Porque, no fundo,

Tudo me chega com o seu gosto,

 

Vaso fecundo

Donde recolho o mosto

Dos vinhos de quanto aposto

Que sem ela não seriam os gostos de que me inundo.

 

Revolta-me a prisão do vaso.

Porém, se me descaso,

Uma vez o vaso partido,

 

Já qualquer prova perde o gostoso sentido:

Que prazer ou que sabor

Teria a vida, morto o amor?

 

 

1271 - Viagens

 

Somos aquilo que à mão temos

E temos o que for presente:

As viagens que sonhemos,

Quanto nos roubam de verdade ausente!

 

Então, na distância em que as veremos,

Se de nós semente

Algumas as tivemos,

Jamais as temos doravante em mente.

 

Mas há vias em nós secretas de nelas reentrar.

Adormeço sem saudade

Por mas não lembrar,

 

Mas, ao acordar, a flotilha das recordações

das viagens jamais feitas me invade:

- E a chicotada enche-me o corpo de vergões!

 

 

1272 - Antanho

 

Os momentos de antanho

Não ficam imobilizados,

Guardam em nossa memória o tamanho

Dos movimentos acelerados

 

Que do futuro procuram tirar ganho.

Para o futuro arrastados,

Ao futuro tiraram o arreganho,

Transviado em mil e um passados.

 

E nós com ele transviados

Arrastando-nos também,

Feridos de dias por todos os lados,

 

Sangrando como a presas só convém,

Eis-nos ao fim meros trapos

De vidas feitas em farrapos.

 

 

1273 - Voluptuosidade

 

Aquela vida que me entediava,

Era, ao invés, deliciosa.

Em leves momentos se entrosa,

Na cavaqueira que se trava,

 

A voluptuosidade amorosa

De que, inteira, ela se grava.

E eu que nunca por tal dava,

Do cotio toldado na morna prosa.

 

Por isso tanto os procurara,

Aos momentos ignorados,

Suspeitoso de quanto eram coisa rara!

 

Hoje reparo que o gesto mais inocente

Pela vida tido entre gestos descuidados

Me conquistou, afinal, inteiramente.

 

 

1274 - Impressão

 

Uma faísca de amor

É fora de proporção

Com qualquer outra impressão,

Da vida embora a maior.

 

Há-de, porém, ser em vão,

Que entre as mais a tentaremos recompor,

No tumulto da rua, na barafunda, no estupor…

Da colina fronteira no balcão

 

Da lonjura, quando a cidade esmaeceu

Num amontoado confuso e discreto,

Da névoa debaixo do véu,

 

Aí, então é que, na solidão recolhida,

Podemos avaliar e medir, do chão ao tecto,

De sua catedral a flecha erguida.

 

 

1275 - Tédio

 

Imaginei tédio e pesar

Por não poder amar por aí fora.

Quanto me enganei compreendo agora,

Que de vez deixo escapar

 

A que definitiva cri meu par.

Ida embora,

O fulgor dela em mim demora

Apenas desde quando abandonou o lar.

 

Do alto descia tão gratuita até mim

Que lhe descurei o valor

E o cri inferior

 

Ao frenesim

Do que me proibia.

…E era a luz que ao fim perdia!

 

 

1276 - Lugar

 

É de o amor ser infinito

Ou é do egoísmo dele

Que quem amamos seja aquele

Em cujo perfil me fito

 

Para que ao fim se me revele

O mais vago em que acredito,

O menos objectivo que cito

Em tudo quanto me impele.

 

Ao sabor dos desejos e receios

O retoco continuamente,

De modo que entre nós não há entremeios.

 

É apenas o lugar imenso e vago

Em que a ternura, contente,

Exteriorizo e afago.

 

 

1277 - Gentileza

 

Quando falamos da gentileza

Duma mulher

Projectamos apenas o prazer

Que nos dá dela a beleza.

 

Como a criança ao dizer:

“Minha querida mesa”,

“Meu querido pudim-surpresa”,

“Minha querida coroa rosicler”…

 

Por isso, da mulher que o não engana

O homem não diz: “como é gentil!”

Nem dela se ufana,

 

Mas di-lo-á vezes mil,

Em todo o lado,

Daquela por quem for enganado!

 

 

1278 - Encanto

 

Ninguém pode comparar

O encanto duma pessoa

Com o de qualquer à toa

Que nos não diga, ao parar,

 

Que dentro de nós ecoa,

Tomou no peito lugar.

Erva tenra, se calhar,

Mas ante meus olhos boa,

 

Deitado em plena montanha,

Com tal ânsia

Me inebria seu perfume,

 

Que nela inteira me arrepanha

A distância

E me joga inerme à vertigem do cume!

 

 

1279 - Cadeias

 

À força de viver com ela

Já não posso desprender-me das cadeias

Que eu mesmo me forjei na sequela.

O hábito de associar as teias

 

Ao sentimento que com ela gozo a meias

Me leva a acreditar que ele vem dela,

Que no sangue que transcorre em minhas veias

Um outro coração se me revela,

 

Como o hábito de interligar

Dois fenómenos concomitantes

Sem qualquer identidade

 

Acaba, se calhar,

Na ilusão de que demonstram antes

Uma lei de causalidade.

 

 

1280 - Brigas

 

Se brigas com duas moças,

A que der o primeiro passo

Restitui-te a calma e remoças.

A outra prende-te ao laço

 

Daquilo que nunca possas

Dominar em teu abraço:

E das correntes mais grossas

Te apaixona em breve espaço.

 

Para me ligar em definitivo

À primeira,

Além de recolher consolo vivo,

 

Urge de vez que desapareça a derradeira.

Apagada a severidade desta

Outro amor pode então gerar a festa.

 

 

1281 - Demência

 

Quanta vez,

Para descobrir que estamos amando,

Para nos apaixonarmos talvez,

Só quando

 

A separação nos vier ferrando!

Com que rapidez

A imaginação a mando

Tapa dum amor cortês

 

A falha que sem tal me repelira!

A inteligência,

Não logrando apanhar o coração,

 

Delira

E nada, nesta demência,

De mim já resta em função.

 

 

1282 - Empresa

 

Enquanto a empresa é impossível, adiamos, adiamos…

A facilidade e a atracção aparente

Apenas a imaginação as sente,

Truncada a vida dos galhos e dos ramos.

 

A ideia de morrer que delineamos

É porventura mais cruel que a morte presente,

Porém menos, evidentemente,

Que pensar na morte de quem amámos:

 

Engolfar-se a terna criatura

Sem um remoinho sequer restar nas águas,

Para sempre excluída

 

Da vida…

- Ah! Quem já não dura

Corrói bem mais que a corrosão das mágoas.

 

 

1283 - Rosto

 

De erro a causa maior se afigura,

Com uma criatura na relação,

Ser nosso bom coração

Demais amar tal criatura.

 

Por um sorriso, um olhar, um gesto de mão

Amamos com um toque de loucura

E o tempo de espera, do que cura,

É de o ente amado entalhar como um formão.

 

Mais tarde, do cotio ao conviver,

a realidade cruel

Continua a impedir-nos de ver

Por trás da máscara de papel:

Não lhe tiro o carácter e os sonhos que a movem,

Nem lhe tiro o rosto de quando era jovem.

 

 

1284 - Campanha

 

Para a guerra ser estranha,

Inopinada,

Importa ser arrancada

Às obsessões de campanha,

 

esquecer duma assentada

Que se perde ou que se ganha,

- E do marisco na apanha

Em paz despender a madrugada.

 

Quando tudo fica igual

À paz,

Então é que na brancura do areal

 

O monstro se destaca, voraz:

Só então pode a guerra ser deveras vista,

Antes, não, enquanto for a única que exista.

 

 

1285 - Luta

 

Na história dum amor

E da luta contra o esquecimento

Ocupa o sonho u lugar ainda maior

Que da vigília o alimento.

 

O sonho ao tempo recusa divisor,

Elimina as transições de cada momento,

Dilui contrastes, é harmonizador,

Desfaz, elemento a elemento,

 

O consolo tecido durante o dia.

Reserva-me à noite o encontro

Com aquela que finalmente esqueceria,

 

Não fora este permanente recontro

Contra as forças da memória derrotada,

E assim, cada manhã, renasce ela em mim como a alvorada.

 

 

1286 - Biblioteca

 

Um dia antigo em nós depositado

Permanece

Na biblioteca, exemplar que se esquece,

Por ninguém consultado.

Porém, remontado

À superfície se aparece,

Todo o perdido significado

De novo acontece.

 

Nossos eus são

Edificados

Por sobreposição

 

De sucessivos estados.

Da montanha, ao invés, porém, da estratificação,

As camadas antigas em nós afloram por todos os lados. 

 

 

1287 - Espiritual

 

Quente e húmido da prensa recente,

O jornal

É um pão espiritual,

Ao nevoeiro madrugador alvorecente.

 

Distribuem-no as criadas, ao sinal,

Pelos patrões, junto ao café com leite quente.

Pão miraculoso, multiplicável, permanente,

A um tempo um e um milhão, imaterial.

 

Sempre o mesmo para cada um

Permanece,

Penetrando inumerável e comum

 

Das moradas em toda a messe.

Uno e múltiplo a uma só vez,

É quase deus, por isso o crês!

 

 

1288 - Fruidor

 

A maior parte da beleza

Reside no espírito do fruidor.

É o pecado original que se despreza:

Da criação artística o valor

 

Provém da mesa

Do consumidor.

Deusa colectiva que se lesa,

Se ao membro mutilado do autor

 

Nos restringimos,

Só inteira se realiza e consuma

Da multidão nos socalcos e arrimos.

 

Ora, a multidão, mesmo de escol,

Não tem toque artístico que assuma,

É de vulgaridades mero rol.

 

 

1289 - Óptica

 

A distracção visibiliza o esquecimento

E o tempo o traz gradualmente.

Com tal muda, momento a momento,

O tempo que o apaga, complacente.

 

No tempo há erros de óptica, igualmente

Aos que no espaço iludem o elemento

Presente,

Tornando-o num engano que alimento.

 

O sentimento da distância,

Ali contraída,

Aqui distendida,

 

No tempo o regula minha ânsia.

E de quão perto ou longe estou

Sempre ela me enganou.

 

 

1290 - Recomposição

 

Como a recomposição de tecidos numa ferida,

Uma grande dor de antigamente,

Corpo estranho e agressivo, é surpreendente

Quando dela nada mais há na nossa vida.

 

A criatura foi noutra convertida,

A dor antecedente

Outrem foi que pôs doente,

Do actual ente não sofrida.

 

No deslumbramento da reconversão,

A dor anterior é dor alheia,

Falamos do que a sofreu com compaixão,

 

Não a sentimos nem nos negaceia.

O pesadelo que à noite ensombrou o céu,

De manhã nem nos lembra que ocorreu.

 

 

1291 - Veneno

 

Os indivíduos que vivem num estado

Desejam outro melhor.

Só o antevendo no desejo, nem vão supor

Que a primeira condição para havê-lo alcançado

 

É com aqueloutro romper e se lhe opor:

O morfinómano quer ver-se curado

Contanto que em dose cada vez maior

De morfina não seja privado;

 

Como o religioso, o artista viciado em vida social

Sonha com a solidão,

desde que do vício o não prive por igual.

 

Somos o doente que quer a cura

Mas pelos meios que a doença manterão,

Tal o gozo que o veneno nos apura!

 

 

1292 - Monumento

 

Tal como à distância o monumento principal

Sobressai da cidade vislumbrada

E na aproximação se perde, afinal,

Nos becos, vielas e casinhotos da estrada,

 

Mas quando enfim o vemos tal e qual,

Lhe medimos a frontaria alçada,

Confirmamos que o tamanho é mesmo igual

Ao que a lonjura presumira da fachada,

 

Assim o resto são as linhas de defesa

Que qualquer ser levanta à invasão

Dum estranho que o pode tornar presa

 

E que urge atravessar, desvão a desvão,

Com todo o sofrimento de quem preza,

Até por fim lhe chegar ao coração.

 

 

1293 - Despedida

 

O fim duma existência anterior

É sentido como morte verdadeira,

Um amor

Na despedida derradeira.

 

Porém, o narcisismo não fenece

Por concretização que haja deveras

Do sonho que nos aquece

Nas esperas.

 

Todo ele há-de falhar

Para que um outro possa, enfim, surgir.

O lugar

 

Que em mim ocupa o porvir,

É o desta morte que de vez convida

De mim a ressurgir com outra vida.

 

 

1294 - Relicários

 

É a família fonte e centro

Duma espiritualidade.

Dentro

São as fotos da saudade,

Relicários, tradições,

A homenagear os já desaparecidos

Nos baldões

De tempos idos.

 

Reuniões de família,

Visitas, contar de histórias,

Duma doença a vigília,

Acumulam as memórias

Que dentro nos acalentam

A alma inteira que alimentam.

 

 

1295 - Pistola

 

O sangue dos demais os consolida,

A estes homens que alguém torna heróis,

Cuja pistola se mostrou depois

Única companheira ser da vida.

 

Uniforme: uma moldura

De botões doirados.

É de heróis uma postura

Ou é de criados?

 

Perder ou não perder uma fachada

É o único problema e dos mais vis

Que é comum aos heróis e aos imbecis

Quando se pavoneiam de longada.

 

Matar longe é o progresso que haveria,

- Hoje é matar mas já sem pontaria!

 

 

1296 - Quisto

 

Como não tinha compreendido,

Eu não tinha visto:

O vício trazemo-lo escondido

E a virtude, como um quisto,

 

Como o génio que insisto,

De invisível, que não é nem tem sentido.

Até que o haja visto

E seja o muro demolido.

 

Os olhos não abrem olhos,

Os olhos só se abrirão

Quando saltar os escolhos

A razão.

 

Um erro desmascarado

Dá-nos mais um sentido no tablado.

 

 

1297 - Enfermos

 

Muitas vezes, o futuro

Habita em nós sem o sabermos.

Auguro-

-Lhe os termos

 

E inauguro-o.

De nossos pensamentos enfermos

Seguro,

Mentem as palavras sem querermos.

 

Por entre as palavras mentirosas,

Lenta dos factos discorre a procissão,

As curvas rasgando pedregosas

De nosso chão.

 

Curioso é que seja nosso engano

Que às vestes lhe oferta todo o pano.

 

 

1298 - Alta

 

O que é deveras estranho

Em qualquer alta sociedade

É que toda a individualidade

Dela é um ser muito tacanho.

 

Tão insignificantes de tamanho,

Tão ocos e de tanta alarvidade,

Que é que pode, na verdade,

Justificar-lhes o ganho?

 

Medem seus pares

Pelo critério mais disparatado:

O da amabilidade, ser ou não ser acolhido.

 

Eis os efeitos singulares:

Cada qual estima os mais, se convidado;

Detesta-os, se excluído.

 

 

1299 - Falhas

 

Uma memória sem falhas

Não é muito poderosa

Para estudar, vitoriosa,

Da memória os trilhos e as calhas.

 

Se à noite jamais trabalhas

E o sono é a manta de que goza

A morte em que te enterras, silenciosa,

Até que a manhã mostre o que valhas,

 

Decerto não são grandes descobertas

Nem sequer pequenas observações

Que, quando despertas,

 

Acerca do sono te propões:

Um pouco de insónia é que traria

À escuridão a luz que te alumia.

 

 

1300 - Aristocrática

 

A linguagem muda ou falada da aristocrática amabilidade,

Feliz por o bálsamo derramar

Sobre o sentimento de inferioridade

Daqueles sobre quem vai ter lugar,

 

Nunca, porém, vai ao ponto de o dissipar,

De restabelecer a igualdade,

Pois neste caso iria deixar

Para o teatro de haver necessidade.

 

Dizem-se iguais para serem amados,

admirados na função,

Mas jamais para serem acreditados:

 

Respeitarmos que é uma ficção,

Dizem eles que é sermos educados;

Crer que é real é má educação.

 

 

1301 - Cubo

 

A gente-bem facilmente imagina

Os livros como um cubo

Cujo lado tem a sina

De abrir-se e sugar, feito tubo,

 

Para dentro, cada personagem a que se inclina

O autor por cuja escrita subo:

Ele vai recolhendo, esquina a esquina,

Pessoas como as ervas que derrubo.

 

São, claro, pessoas de pouca monta,

Não aborreceriam vistas de passagem.

Ler um livro é tal reverso ter em conta.

 

Porém, o melhor, pelo seguro,

A evitar inesperados sobressaltos da mensagem,

É limitar-se ao autor que de morto é já maduro.

 

 

1302 - Pertenças

 

À distância, as diferenças

Sociais

Ou individuais

Baseiam-se num fundo igual de pertenças,

 

Em uniformidades epocais.

A semelhança das roupas faz que venças

Das fronteiras as sentenças,

Que tudo no fim são comuns sinais.

 

Ocupa o espírito da época bem mais

Lugar do que a casta.

A esta, o que lhe basta

 

É o amor-próprio do interessado.

O resto em que acreditais

É apenas imaginado.

 

 

1303 - Tolos

 

É verdade

Que ajuda mais

Alguma qualidade

Para suportar os defeitos dos demais

 

Do que contribui, nos tremedais,

Para a soledade

De que sofre quem jamais

Lhes cultiva a necedade.

 

Um homem de grande talento

Prestará menos atenção

À tolice doutrem em cada evento

 

Do que, por falta de miolos,

O farão

Os tolos.

 

 

1304 - Novidade

 

Têm os homens a faculdade

De crer

Que uma circunstância nova é deveras novo ser,

É outra coisa, a Novidade!

 

Permite-lhes a ingenuidade

De adoptar um erro qualquer,

Político, artístico, sem ver

Que os mesmos são que tomaram por verdade

 

Há dez anos,

A propósito doutra escola

De que já condenaram os enganos.

 

De novo se lhes o incenso imola

Incapazes que somos, antes que o véu se esgarce,

De os reconhecermos sob o novo disfarce.

 

 

1305 - Cobardes

 

Na política e na sociedade

As vítimas são tão cobardes

Que de piedade

Não provocam sedimentos nem alardes.

 

Se não ardes,

Como é que há-de

Aquecer o coração que pelas tardes,

Te busca em vão na soledade?

 

Das vítimas quando o sinal

É um mero contratempo

De misérias e de ascos,

 

Não podemos querer mal

Por muito tempo

Aos carrascos.

 

 

1306 - Partido

 

Na verdade sempre uma má razão

Descobrimos posteriormente

Que nossos adversários tinham em mente

Para serem do partido que são,

 

A qual não

É nunca dependente

Do que pode haver de justo, justamente

No partido em questão.

 

E os que pensam como nós

É que a inteligência os obriga,

Se a moral não lhes der voz.

 

Porém, se a inteligência com tal briga,

Então

É sempre porque os move a rectidão!

 

 

1307 - Encobrimento

 

O pior encobrimento

É o do espírito culpado.

O conhecimento

Que tem do pecado

 

Impede-o de ver como em geral é ignorado,

Como da mentira o inteiro acabamento

Seria facilmente por outrem acatado

A todo o momento.

 

Não vai perceber

Como em palavras inocentes

Principiarão

 

Para quenquer

Os degraus inconscientes

De sua própria confissão.

 

 

1308 - Dores

 

As grandes dores

Impõem um regime.

A doença é o mais sublime

Dos doutores.

 

Ao médico em que estime

A bondade, o saber dos pormenores,

Prometo os actos mais cumpridores

Sem que às promessas me arrime.

 

Limito-me a prometer.

Ao sofrimento, porém,

Quem

 

Deixará de obedecer?

Ninguém.

- É um médico a valer!

 

 

1309 - Auditor

 

“Não fatigues o auditor!”

- Diz o pretenso

Bom senso.

Ignora o artista criador

 

Que um público gera tenso,

Da atenção dominador

Até o mais alto fulgor,

Desabrochando no imenso.

 

Quem boceja de fadiga

Dum artigo a que não liga,

Vai correr ao fim do mundo

Das artes ao ver o fundo.

 

E as lutas entre as escolas

São a vida a que te imolas.

 

 

1310 - Ciúme

 

A dúvida do ciúme

É a dúvida doentia

Que se alimenta ao perfume

Da fantasia.

 

E basta para a acalmar

Não a força duma prova

Mas apenas o falar

Dum amor que se renova.

 

Então o mais fementido

Devém logo um convertido,

Como lhe convém.

 

Quando mesmo continua

Qualquer dantes falcatrua,

O ciúme se contém.

 

 

1311 - Totalidade

 

A felicidade

Nunca a podemos gozar

Na totalidade.

É sempre mui devagar

 

Que a Humanidade

Logra ultrapassar

A idade

De outrem disto inculpar,

 

Em lugar

De ler dentro a imperfeição:

É naquele que a sente,

 

Não naquele que a quer dar,

Que da promessa a traição

Nos mente.

 

 

1312 - Agrado

 

Embora cada qual

Falsamente do agrado

Fale

De ser amado,

 

É lei geral

Que o ser desenganado

Que nos ama sem por igual

De nós ser amado,

 

Ao invés

de nos ser

Agradável,

 

Será, por sua vez,

Mais que qualquer,

Insuportável.

 

 

1313 - Mudar

 

Os seres não param de mudar,

Relativamente a nós,

De ser e de lugar,

De valores, de metas e de voz.

 

Na marcha eterna do mundo, devagar,

Consideramo-los imóveis e sós,

No instante curto demais dum olhar

Para surpreendermos o desatar dos nós.

 

Basta escolher, porém, na memória

Duas imagens em momentos diferentes,

Que logo vemos a escória

Do que cremos jóias permanentes.

 

E a diferença mede a deslocação

Que em relação a nós operarão.

 

 

1314 - Boato

 

O boato,

Quer me tenha por objecto,

Num desagradável pacto,

Quer sobre outrem monte o tecto,

 

Dando-me um ignoto facto,

tem sempre um valor discreto

No psicológico impacto

Com que me abala, secreto.

 

Impede-me de adormecer

Sobre a fictícia visão

Do que, julgo, as coisas são

E uma aparência vai ser.

 

Troca-me as voltas ao engano,

Mostra-me o avesso do pano.

 

 

1315 - Esboroado

 

Não será morte o que existe

Entre nós e as mulheres

Por quem o amor já não subsiste,

Esboroado entre os anos e os talheres?

 

Encontramo-las passados anos,

Tal se já não foram deste mundo:

A morte do amor tornou enganos

Os devaneios no trilho mais fecundo.

 

O facto de o amor já não existir

Transforma em mortos

Aquelas que elas foram outrora

E aquele que fui, antes de vir

Aportar nos novos portos

Em que vivo aqui morto de hora a hora.

 

 

1316 - Novidade

 

No indivíduo ou na sociedade,

Culpada ou não culpada,

A novidade

Apenas causa horrores

Enquanto não assimilada,

Rodeada de elementos tranquilizadores.

 

A partir de então,

Familiar,

Torna-se chão

A caminhar.

 

No fastio

Duma vida deserta,

É o desafio

Da descoberta.

 

 

1317 - Símbolo

 

Ao símbolo sacrificar

A realidade que simboliza

Do fanático é o lugar

E a divisa.

 

As catedrais deverão ser adoradas

Até que, para as preservar,

Fora imperativo renegar

As verdades por elas proclamadas.

 

Não sacrifiques os homens a pedras

Cuja beleza provém

Das verdades humanas que contêm

E com que medras.

 

As pedras jamais terão

De tal nenhuma precisão.

 

 

1318 - Pobre

 

Como, pobre, invejo o rico

Que contempla as catedrais!

Entretanto aqui me fico

Na Lisboa dos sinais

 

E nunca a vê-la me aplico

Como os que longe demais

Aqui tomam o salpico

Da cultura destes sais.

 

A vida quotidiana

Dificulta situar

Objectos de nossos sonhos.

 

É o dia-a-dia que empana

O brilho que houver no ar

E nos cega olhos medonhos.

 

 

1319 - Paraíso

 

Os poetas em vão tentaram

Fazer reinar no paraíso

O ar mais puro que vislumbraram,

Preciso.

 

Se o já não houveram respirado

Como poderiam aquela sensação

Ter dado

De tão funda renovação?

 

É a memória

Que doira os juízos

Acerca dos tempos idos.

 

Este é o mistério da glória:

Os verdadeiros paraísos

São os paraísos perdidos.

 

 

1320 - Decifração

 

Difícil decifração?

Maior a profundidade

Com que os olhos me lerão

A verdade.

 

Verdade que a inteligência

Directamente apreende

Num mundo só de evidência

É a que menos compreende.

 

Às que a vida comunica

Sem nós querermos sequer

É que, profundas, se aplica

 

O fatal de quanto houver.

Na verdade que me cala

É que o mistério me fala.

 

 

1321 - Dedada

 

A boa acção proclamada

É de moral inferior

À dedada

De qualquer dedo menor

 

Que pura e simplesmente

Se deu

A toda a gente

Que o requereu.

 

Uma acção que nada diz

E tudo faz

Tem a verdade do silêncio:

 

São rotas primaveris

Para quem da vida corra atrás:

Vence e convence-o.

 

 

1322 - Espectador

 

Até no momento

Desinteressado

Em que espectador me sento

De lado

 

A embeber-me de natureza,

De comunidade, de amor,

Da beleza

De que nas artes vou dispor,

É dupla toda a impressão:

Envolta em parte pelo objecto,

Noutra parte ecos serão

 

Que em mim encontram o tecto

De repercussão.

- Que é que, afinal, é concreto?

 

 

1323 - Semente

 

Como a semente reserva

O alimento da vindoira planta,

Assim a vida me conserva,

Cibo do porvir que em mim se implanta.

 

Como a semente há-de morrer

quando a planta estiver desenvolvida

E terá vivido para ela sem saber,

- Assim a minha vida.

 

É toda a vida e não é

Uma vocação.

Não, enquanto de tal não dou fé.

 

Sim, porém, no sentido

De que alegrias, tristezas e toda a recordação,

São a sementeira do que houver vivido.