DÉCIMO
PRIMEIRO CANTO
ATÉ QUEBRADA
QUASE SER CANTIGA
Escolha
aleatoriamente um número entre 1223 e 1323 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1223 - Até quebrada quase ser cantiga
Até quebrada quase ser cantiga
A poesia do soneto
Nos colmata o tecto
Onde quanto é vital se nos abriga.
Vou do sonho ao ser completo
E no poema mostro a liga,
Neste jogo de espelhos que me obriga
De mim a elaborar saber directo.
O prosaico dia a dia
Me apareceria
Transmudado em sonorosa
Melodia:
Eis como na beleza a dor podia
Ser afinal ainda o que se goza.
1224 - Caos
É o caos a tendência
Inelutável das coisas.
Do átomo à molécula a degenerescência
Inscreve-se nas loisas,
Como das galáxias aos planetas,
Da grandeza infinita à mais pequena…
E, se te inquietas,
Descobres que nada vale a pena:
Em vão tentas combatê-lo,
Dar ordem à desordem,
Um sentido ao que nenhum sentido tem,
Que aumenta o caos quanto aumenta teu
anelo,
Todos os campos a energia te mordem…
- Só que nas fímbrias a vida renasce
também!
1225 - Infelicidade
Não tem a infelicidade
Só rosto de fome e frio.
Também tem o da solidão que há-de
Gelar de vazio
Quem pertence a um mundo que desapareceu,
Que, incompreendido, a ninguém persuade.
De navalha a viver no fio
De não ter identidade,
Não reconhecido, é ridicularizado,
Perseguido, humilhado
No chão da vulgaridade.
Este gelo eterno
É que rasga de inferno
A carne e o sangue da infelicidade.
1226 - Desnutrição
De desnutrição géneros há dois:
A do corpo que vem de não comer,
A das almas que vem de não saber.
O crescimento vem de ambas depois.
Além
de comer,
É preciso saber
Também.
Já leste um livro vez alguma?
Não, que os livros são caros
E como um bife nenhum deles ressuma?
Os saberes resultam muito raros…
- Se não pagas o custo de crescer
Jamais, porém, poderás ser.
1227 - Intelectual
És um intelectual:
Não tens partidarismos
De fé, de paixão nem de moral.
Tens de identificar-te com todos os
abismos,
Tens de compreender tudo e todos por
igual.
E quem compreende lê os exorcismos
De modo universal,
Absolve e perdoa os cataclismos
De tudo e de todos.
Ora, quem tudo perdoa
Em nada crê.
Quaisquer que sejam os modos,
Por muito que o cinismo te não doa,
Já nem sequer em ti podes ter fé.
1228 - Estilhaço
Ninguém compreenderá uma dor de alma?
Se apanhar um estilhaço,
Perdem todos logo a calma:
“Depressa, um garote neste braço!”
Se uma perna embaraço
E a quebro na trave que ma empalma,
Nunca o gesso é escasso
E a dor me acalma.
Mas se tenho o coração esfrangalhado
E o desespero me tolhe tanto a boca
Que a não abro nem por um bocado,
Os outros não darão por nada.
E assim fico tolhido, em minha toca,
A doer sem saída nem entrada.
1229 - Soberba
Com a soberba dos esquemas presunçosos
Duma cultura racionalista da vaidade,
Com a ilusão de explicar tudo o que
invade,
Distraídos pela exigência de ter gozos,
Dos quais o que mais nos persuade
É de donos de nós ser os mais fogosos,
- Com tanta presunção, como morosos
São os regos em nós da fatuidade!
E não vemos como estamos à mercê
Duma lógica que nos é estranha
Invulneravelmente de pé.
O fado ou o destino nos amanha
E por mais que nos repugne seu mistério
Dele vivemos fatalmente sob o império.
1230 - Parapeito
No que aos homens diz respeito,
A dificuldade,
Quando surge a mulher no parapeito,
É conseguir, em continuidade,
Um comportamento ao jeito
De indivíduo da mesma identidade,
Afeito
À igualdade.
Quando há uma mulher por perto
Deixa o homem de ser pessoa,
Comporta-se como macho experto.
E de repente se escoa
Num desastrado deserto
A vida perdida à toa.
1231 - Infecundo
Nunca desprezes um novo
Que serve uma causa
Por causa do medo do renovo
Ou porque requeiras pausa.
É que servir um partido causa
Oportunidades em ovo,
Não é a quinta privada onde pausa,
Em uso próprio, qualquer política que
movo.
Se esta nos não vier servir
É porque a si própria serve e já não dá
Em troca aos outros nada com porvir.
Então já ninguém actua neste mundo
Nem fará deste mundo parte já:
É um mero espectador por inteiro
infecundo.
1232 - Mitos
Os nossos mitos são mitos
À sombra dos quais viver.
Decorativos meros fitos
Nem terão sequer.
A religião à vida há-de trazer
De beleza contributos benditos
Mas o que dum mito se quer
É a verdade que resgate os precitos,
Uma verdade usável,
Com que viver devenha viável.
Se um mito é certo, mais profundo
Devém com cada idade do mundo.
Do belo e do feliz não há busca directa:
- Busquemos a verdade e ela no-los dará,
discreta.
1233 - Tempos
Tempos houve em que toda a gente
Morava em aldeias.
Sentavam-se a mesas alinhadas em corrente,
Falavam às mancheias.
Se com o que te importa, premente,
A esposa ao lado não ateias,
Do outro lado um primo, contente,
Escutar-te-á inteiro, não a meias.
Hoje, quando é impossível falar à esposa,
Resta o isolamento.
O automóvel dividiu-nos, não nos entrosa,
Dispersa os amigos ao sabor do vento.
- Quando uma visita requer planificação,
Os companheiros esfumar-se-ão.
1234 - Armadilha
Se da humanidade a maior alegria
Fora o sexo,
Em grande armadilha nos meteria
O destino a tal conexo.
Nosso fim na terra seria mero anexo
De todas as espécies em porfia:
Ser o nexo
Com a geração que nos seguiria
E com a outra e a outra,
interminavelmente…
Joguetes do grande laboratório da
Natureza,
Como seríamos tão pequenamente!
Serei tal poeira ilimitada?
- Se alguém se preza,
Então recuse ser tão nada!
1235 - Interrogação
Pendular, o Universo oscila
Ou provém único duma explosão?
- É a questão
Intranquila.
Primeiro era um relógio o Universo,
Depois, uma espiral de biliões de
espirais,
Depois é de espaço curvo que converso,
Depois um balão que se expande indefinidamente
mais…
Quando chegarem ao fim,
Verão
Que o que encontram, assim,
No termo da investigação,
É que o Universo é, enfim,
Um ponto de interrogação.
1236 - Corda
Nascemos numa família,
Noutra morremos depois.
Da velhice na vigília
O homem tem laços e nós
Que da família não sabem
De que ainda se recorda,
Até que também acabem
Da vida roendo a corda.
Não podemos viver
Nossas vidas
Em companhia que nos grude
De outrora a quenquer, a quenquer
Que nas lidas
Amámos da perdida juventude.
1237 - Radical
O homem luta pela permanência,
Para vencer a morte.
Deus quer a evolução, à sorte,
Com seu fluxo, desperdício, excrescência…
Entra a criança,
No mundo, amada.
Parte de abalada,
Menos amada, e descansa.
Em fermentação
O tempo bastante,
Talvez atinjamos a produção
De algo excelente lá para diante.
Pelo que resulta deste sinal,
O Homem é conservador, Deus é radical.
1238 - Fatia
Se Deus qualquer de nós fora,
Jamais o mundo seria
Agora
Como Deus o fabricou um dia.
Mas, para ser capaz, por ora,
De viver minha fatia
De tempo sem ir-me embora,
Num sentido qualquer disto apostaria:
Tenho de tentar viver
Como se tudo fizera
Sentido, mesmo sem crer.
Queiramos ou não, a espera
É nesta cela encerrados
De Universo por todos os lados.
1239 - Fronteira
Um ateu varre o problema
Para o chão,
Por falta de paciência para o tema
Em questão.
O agnóstico deixa-o em cima da mesa
Mas recusa-se a tocá-lo,
Do labor eterna presa,
À espera dum intervalo.
O religioso continua
A trabalhar na interrogação,
Mesmo depois de saber que não há rua,
Que não é capaz, que não tem mão,
Que a fronteira é minha, é tua,
- Jamais nada nem ninguém lhe encontra
solução!
1240 - Irreparável
Chega uma altura em que a vida
Aparece irreparável,
Tão sem conserto e medida,
Tão irremediável,
Que de repente nos apercebemos,
A sós,
De que trabalhar só poderemos
Para os que virão depois de nós.
A carreira se esfarela
Nas mãos ao envelhecer,
Paródia, na sequela,
Do sonho que a fizera acontecer.
É fatal cada qual ser um falhado:
Tudo termina e nada fica acabado.
1241 - Sucata
Quando prontos outra vez
A vida a viver ficamos,
Melhorando o que se fez,
Apagados nos finamos!
Se Deus fora deveras cavalheiro,
Houvera de deixar o homem viver
A vida duas vezes por inteiro,
Para após justiça então fazer.
Assim, não!
Põe-nos à experiência,
Falhamos e desata
De imediato a excomunhão
Da existência:
- Somos jogados logo na sucata!
1242 - Frustração
A frustração,
Quando lobrigamos que há-de ter um fim,
É um motivo de prazer ao alcance da mão
Que é preciso aprender a apreciar assim.
Ante uma mulher, a contenção
Torna no homem dela afim
Mais aguda a apreciação
Do sim.
A frustração excita,
Ilumina o movimento duma anca,
A curva dum seio que palpita…
A satisfação é manca:
Bailam-nos raparigas nos olhos
Quando o entusiasmo renasce dos escolhos.
1243 - Luta
Luta
É combate, contenda, estardalhaço,
É disputa.
E, ao mesmo tempo, é um abraço.
Como quando lutamos no espaço
Dum problema que se discuta:
É sempre escasso
O raio que traça a escuridão da gruta.
É preciso amar o problema,
Viver empenhado nele,
Para sentirmos na pele
O tema
- E então, finalmemte, nos armarmos
E com ele lutarmos.
1244 - Insuspeitados
Julgo conhecer a fundo o coração.
Por maior que seja a inteligência, porém,
Não pode perceber os elementos que ele tem
Na composição.
Insuspeitados permanecerão
Até que o momento que os mantém
Voláteis os transmude também
Num degrau qualquer de solidificação.
Durante quase o tempo todo
Aguardam o fenómeno que os isole,
De modo
Que do impalpável os descole.
E quem o coração pensou ler claro
Que dele nada entendeu verá não raro.
1245 - Hábito
De tal modo me habituara
A vê-lo junto de mim,
Que de repente discernia, em frenesim,
Do hábito a nova cara.
Até então o considerara
Aniquilador, suprimindo ao fim
Tanto a originalidade que, enfim,
Até uma percepção fingira rara.
Agora é uma terrível divindade
Tão incrustada em minha intimidade
Que, ao destacar-se e se afastar,
Este deus discreto me inflige tais
tormentos
Que mais que quaisquer outros são
violentos
E, de cruel, se mostra à morte similar.
1246 - Meios
Sinto os meios em meu poder
Quando apenas em pensamento
Modificável o futuro me aparecer,
De minha vontade pelo envolvimento.
Ao mesmo tempo, porém,
Lembro outras forças que não a minha
Que a determiná-lo se mantêm
E como contorná-lo ninguém adivinha:
Que importa haver já soado a hora,
Se aqui fico na demora,
Mexa o que mexer,
Se meu gesto é indiferente,
Se acabar sempre impotente
Perante o que vier a acontecer?
1247 - Criada
É a vida,
Pouco a pouco e caso a caso,
Que nos leva a descobrir que o que mais
lida
Com o coração e o espírito, sempre em
atraso,
Não nos é pelo pensamento
Ensinado,
Mas por poderes outros que a cada momento
O enquadram e ultrapassam, lado a lado.
Então a inteligência,
Destes ao dar conta da superioridade,
Abdica, em obediência,
Aceita converter-se em colaboradora,
Em criada sem vaidade…
- A crença experimental é que então nos
demora.
1248 - Ferrete
Para configurar uma situação
desconhecida,
Recorre a imaginação
Ao familiar com que lida:
Por isso a não figura, não,
Pinta-a sempre distorcida.
A sensibilidade, então,
Mesmo a mais física da vida,
O ferrete do que for original
Recebe,
Tal do raio uma explosão.
E dele de tal
Modo se embebe
Que ela é que nos marca para sempre o
chão.
1249 - Afastamento
Um golpe no coração
O afastamento produz.
A ferida traduz
A dor duma vida em punição.
A mulher que a saudade assim conduz
À exasperação,
Ou para rebrilhar de melhor luz
Ou fruir de melhor condição,
Tal golpe bem pode ela pretender evitá-lo
Jurando separar-se a bem.
Jamais logra tal regalo.
E quem
Ela afasta jamais ela o afastaria
Se bem ele vivera o amor que dela hauria.
1250 - Fugitiva
Se grande for o poder sobre um homem
Que uma mulher
Tiver,
Para que a liberdade lhe não tomem
Quando embora ir quiser,
Só fugindo. As fúrias dele se consomem:
As medidas que então se tomem
Em rainha fugitiva a irão enaltecer.
Há um intervalo
Entre o enjoo da presença dela de há um
instante
E a fúria de revê-la, agora que vai
distante,
Que permite saltar o valo:
- A fuga desperta o amor do sono
E a rainha então de vez repõe no trono.
1251 - Ramificação
O sofrimento, ramificação
Dum choque moral imposto,
Muda a forma, muda o gosto,
Quando busco informação,
Lhe projecto um fogo posto,
Volatilizá-lo como bola de sabão,
Por metamorfoses quando em vão
Fazê-lo passar aposto.
Isto quer menos coragem
Do que arcar com a dor aberta,
Tão dura a noite a acoberta.
Que friagem
A da cama onde ir repor,
Sozinho, minha dor!
1252 - Canora
O nome daquela a quem amamos
Cantamos e recantamos, ave canora,
Quando felizes o rememoramos,
Após a despedida ido embora.
E, se o calamos,
Escrevemo-lo em nós, pela mente fora,
Até que na parede rabiscada nos quedamos
Em que tudo em nós devém sem mais demora.
Repetimo-lo a toda a hora
Em pensamento,
Enquanto estamos felizes,
E mil vezes mais ainda quando labora
Em nós como um tormento:
- Afinal da infelicidade moram também nele
as raízes.
1253 - Plágio
O que chamo experiência
É apenas revelação
Dum traço de carácter sempre à mão,
Em evidência
Com tanto mais força e precisão
Quanto já uma vez dele a ocorrência
Espontânea gera a premência
Doutras mais que se lhe seguirão.
O plágio mais difícil de evitar
Por indivíduos e povos que persistem no
erro
E o agravam como um avatar
É o plágio de quando me ensimesmo,
Quando prisioneiro em mim me encerro:
- É o plágio de mim mesmo.
1254 - Crisálida
A crisálida de ternuras e de dores
Invisíveis torna, para o amante,
Da criatura amada, instante a instante,
As metamorfoses piores.
A cara teve tempo de envelhecer-lhe
diante,
De mudar de traços e de humores.
Porém, sob a capa dos amores,
Inescrutável fica sempre doravante.
O rosto neutro visto da primeira vez
Tão longe fica do que passa a ver
Quando ama e sofre e espera o mais
premente,
Quanto fica o actual do primitivo, ao
invés,
Para um espectador qualquer
Que o olhe indiferente.
1255 - Janela
Quem amamos vive tanto no passado,
É tanto o tempo que trilhámos juntos
Que inteiros não requeiro mais assuntos
Nem a mulher inteira impreterível a meu
lado.
De que é a mesma quero apenas a certeza,
Quero-lhe a identidade,
Quem ama nisto vê bem mais verdade
Que na beleza.
Podem cavar-se as rugas
Ou o rosto definhar,
Que com ela anoiteces e madrugas,
Por mais convidativo que te seja outro
lugar.
Apenas para estar junto dela,
Como quem, olhando o infinito, se senta a
uma janela.
1256 - Remédio
O remédio adequado
Para o acontecimento infeliz
É uma resolução que me diz
Como contornar meu fado.
A reviravolta que houver dado
É que mudo o cariz
Do que, por um triz,
Quase me houvera afundado.
Interrompe o fluir das ideias
Que me atingem do passado
E mo prolongam nas veias,
Quebra-o, trocado
Pelo fluir inverso que me há-de vir
De fora e do porvir.
1257 - Propício
A demora,
O êxito ausente
A tentar a quem o tente,
Matam as alegrias de hora a hora.
A esperança é que revigora,
No evento propício que pressente,
A vida que nos mente
E apavora.
Murcha a alegria,
Recaímos no sofrimento
Quando a certeza da falha principia
A abalar duvidoso o fundamento:
O que à esperança não creditamos
Murcha-nos nas mãos ao murchar-lhe os
ramos.
1258 - Criaturas
Em vão amamos as criaturas.
Quando no isolamento enfrentamos a dor de
perdê-las,
Por nós da dor talhando a forma e as
sequelas,
Tornamo-la suportável em todas as figuras.
Dor bem diferente daqueloutras mordeduras
Menos humanas, tão pouco nossas, que ao
tê-las,
Tão estranhas e imprevistas procelas
Como um acidente mortal tas auguras:
O modo como soubemos
Que à amada não tornaremos a vê-la
(“Minha decisão é irrevogável!”),
Os venenos nos instila extremos.
O rompimento os pregos nos martela
Do calvário da fatalidade inevitável.
1259 - Lunarmente
vivemos em função do sonho
Muito mais do que imaginamos:
Quando impossível o carinho suponho
Com que lunarmente nos amámos,
À vida o valor que nela ponho
Súbito emurchece pelos ramos
E bem mais do que tristonho
Será o rosto que arvoramos.
Descobrimos que o interesse
E o medo de morrer
Do mundo não governam a sorte.
A recusar a riqueza há quem se enobrece
Por um amor perdido e nem sequer
Hesita em arriscar-se à morte.
1260 - Horizonte
Buscar a felicidade
Satisfazendo um desejo,
O horizonte é buscar que adiante vejo,
Em frente caminhando de monte em cidade.
Quanto mais avança o desejo, na verdade,
Mais afasta o ensejo
De me alcançar o que almejo,
Perdido ao acaso pela imensidade.
A felicidade encontrada
Como a ausência de sofrimento,
Não é o desejo satisfeito de assentada,
É dele o aniquilamento.
Não busques mais um amor que te morreu:
Salvas-te apenas quando se extinguiu.
1261 - Laços
Os laços entre outrem e nós
São laços no pensamento:
Quando a memória se afrouxa, no momento,
Malgrado a ilusão, esgarçam-se os ilhós.
Por amor e amizade, pelo respeito que
alimento,
Pelo dever de não ficarmos sós,
Uns aos outros nos enganamos após,
Mas sozinhos existimos: é fatal nosso
tormento.
O homem é a criatura
Que sair de si jamais pode,
Apenas em si conhece outrem ausente.
Quem o contrário jura,
O contrário não lhe acode,
Mente!
1262 - Suborno
Ao nosso desejo conforme
Mudaremos tudo em torno
Quando conferimos o suborno
Em que a vida derivou enorme.
Não vislumbramos contorno
Fora daí que não deforme
Em monstruosidade disforme
Quanto da vida sonhámos adorno.
Porém,
O que se verifica e em que nem pensamos
É favorável também:
Não mudamos as coisas, nós é que mudamos.
E, de repente,
O que era insuportável devém indiferente.
1263 - Traços
Quando lemos um romance,
Dos traços de quem amamos
A heroína recamamos
Até que uma só de ambas se alcance.
Inútil, porém, é todo o lance:
Por muitos frutos que amadurem nos ramos
Dos personagens, os que tragamos
Não permitem que ninguém descanse.
Ao fechar o livro, silenciado o salmo,
Nosso amor não progrediu um palmo:
Aquele que amamos, de seguida,
Que no romance até nós viera,
Não passa, afinal, duma quimera,
Não gosta nada mais de nós na vida.
1264 - Carta
Uma carta
E o pouco que contém duma pessoa…
dão-nos as letras pensamento à toa,
Como um traço fisionómico no-lo acarta.
Na corola do rosto, porém, se apregoa
Muito diferente de quando dali se aparta:
De desgostos uma vida farta
É que esta divergência nela ecoa.
A carta diz tão pouco
Como um algarismo
Dos frutos por ele enumerados.
E eu sou o louco
Que cismo
Nos beijos que pelas letras me são dados.
1265 - Jaulas
As aulas más são as aulas
Que eles não querem ouvir:
Jaulas
Donde o que importa é fugir.
A culpa é deles, a culpa,
Se o que mais lhes apetece
Era estar na rua inculta,
Não na escola que os esquece?
Ser mesmo um bom professor
É adivinhar a maneira
De os tocar com tal ardor
Que esqueçam a aula inteira
Que lá fora era melhor:
- Aqui é que arde a fogueira!
1266 - Comédia
“Não gosto de ti” - direi,
Para que gostes de mim.
“Esqueço-te quando há muito te deixei”,
Para que procures mais assim.
Com “resolvi deixar-te!” prevenirei
Qualquer veleidade de pôr fim
Ao que doravante é nossa lei.
E, se afirmo: “é perigoso, enfim,
Tornar a ver-te”,
É para que a fome te desperte
De correr para meus braços.
Porém, ao invés, a repetida comédia
Quantas vezes desemboca na tragédia
Do fim dos laços!
1267 - Consumado
Erramos ao acreditar
Que o desejo consumado
Seja de ignorar,
Cumprido o fado.
É que, se, por azar,
Suspeitamos que não pode ser realizado,
Agarramo-lo, se calhar,
Por todo o lado.
Não vale a pena caçá-lo
Quando certos de atingi-lo;
Logo nos provoca abalo
Se, incerto, nos obriga a persegui-lo.
Quando atingido, porém, a incongruência
É que decepciona tanto quanto dele a
ausência.
1268 - Rampa
No inteiro correr da vida
Nosso egoísmo olha em frente
As metas a que nos convida,
Sem reparar neste Eu que as sente.
O desejo que aos actos põe a brida,
Com eles condescendente,
A si não remonta na corrida,
Inconsciente,
Prefere agir a tomar conhecimento,
Crê vir no futuro a corrigir o presente
E, finalmente,
Abandona-se ao espreguiçamento:
Que bom deslizar na rampa lisa da
imaginação,
Em vez de galgar a abrupta de aprender a
lição!
1269 - Cemitério
Nosso castigo mais brutal
E mais justo,
Perante o esquecimento total,
Tranquilo, de cemitério vetusto,
Com que nos desprendemos no final
Daqueles a quem, sem qualquer custo,
Já não amamos, por nosso mal,
Exorcizado qualquer ancestral susto,
- Nosso castigo é que entrevemos
Tal esquecimento inevitável
Onde menos o quisemos:
Inexorável,
A pegada é já vinda
Em relação aos que amamos ainda.
1270 - Muro
Ela parece-me o muro interposto
Entre mim e o mundo,
Porque, no fundo,
Tudo me chega com o seu gosto,
Vaso fecundo
Donde recolho o mosto
Dos vinhos de quanto aposto
Que sem ela não seriam os gostos de que me
inundo.
Revolta-me a prisão do vaso.
Porém, se me descaso,
Uma vez o vaso partido,
Já qualquer prova perde o gostoso sentido:
Que prazer ou que sabor
Teria a vida, morto o amor?
1271 - Viagens
Somos aquilo que à mão temos
E temos o que for presente:
As viagens que sonhemos,
Quanto nos roubam de verdade ausente!
Então, na distância em que as veremos,
Se de nós semente
Algumas as tivemos,
Jamais as temos doravante em mente.
Mas há vias em nós secretas de nelas
reentrar.
Adormeço sem saudade
Por mas não lembrar,
Mas, ao acordar, a flotilha das recordações
das viagens jamais feitas me invade:
- E a chicotada enche-me o corpo de
vergões!
1272 - Antanho
Os momentos de antanho
Não ficam imobilizados,
Guardam em nossa memória o tamanho
Dos movimentos acelerados
Que do futuro procuram tirar ganho.
Para o futuro arrastados,
Ao futuro tiraram o arreganho,
Transviado em mil e um passados.
E nós com ele transviados
Arrastando-nos também,
Feridos de dias por todos os lados,
Sangrando como a presas só convém,
Eis-nos ao fim meros trapos
De vidas feitas em farrapos.
1273 - Voluptuosidade
Aquela vida que me entediava,
Era, ao invés, deliciosa.
Em leves momentos se entrosa,
Na cavaqueira que se trava,
A voluptuosidade amorosa
De que, inteira, ela se grava.
E eu que nunca por tal dava,
Do cotio toldado na morna prosa.
Por isso tanto os procurara,
Aos momentos ignorados,
Suspeitoso de quanto eram coisa rara!
Hoje reparo que o gesto mais inocente
Pela vida tido entre gestos descuidados
Me conquistou, afinal, inteiramente.
1274 - Impressão
Uma faísca de amor
É fora de proporção
Com qualquer outra impressão,
Da vida embora a maior.
Há-de, porém, ser em vão,
Que entre as mais a tentaremos recompor,
No tumulto da rua, na barafunda, no
estupor…
Da colina fronteira no balcão
Da lonjura, quando a cidade esmaeceu
Num amontoado confuso e discreto,
Da névoa debaixo do véu,
Aí, então é que, na solidão recolhida,
Podemos avaliar e medir, do chão ao tecto,
De sua catedral a flecha erguida.
1275 - Tédio
Imaginei tédio e pesar
Por não poder amar por aí fora.
Quanto me enganei compreendo agora,
Que de vez deixo escapar
A que definitiva cri meu par.
Ida embora,
O fulgor dela em mim demora
Apenas desde quando abandonou o lar.
Do alto descia tão gratuita até mim
Que lhe descurei o valor
E o cri inferior
Ao frenesim
Do que me proibia.
…E era a luz que ao fim perdia!
1276 - Lugar
É de o amor ser infinito
Ou é do egoísmo dele
Que quem amamos seja aquele
Em cujo perfil me fito
Para que ao fim se me revele
O mais vago em que acredito,
O menos objectivo que cito
Em tudo quanto me impele.
Ao sabor dos desejos e receios
O retoco continuamente,
De modo que entre nós não há entremeios.
É apenas o lugar imenso e vago
Em que a ternura, contente,
Exteriorizo e afago.
1277 - Gentileza
Quando falamos da gentileza
Duma mulher
Projectamos apenas o prazer
Que nos dá dela a beleza.
Como a criança ao dizer:
“Minha querida mesa”,
“Meu querido pudim-surpresa”,
“Minha querida coroa rosicler”…
Por isso, da mulher que o não engana
O homem não diz: “como é gentil!”
Nem dela se ufana,
Mas di-lo-á vezes mil,
Em todo o lado,
Daquela por quem for enganado!
1278 - Encanto
Ninguém pode comparar
O encanto duma pessoa
Com o de qualquer à toa
Que nos não diga, ao parar,
Que dentro de nós ecoa,
Tomou no peito lugar.
Erva tenra, se calhar,
Mas ante meus olhos boa,
Deitado em plena montanha,
Com tal ânsia
Me inebria seu perfume,
Que nela inteira me arrepanha
A distância
E me joga inerme à vertigem do cume!
1279 - Cadeias
À força de viver com ela
Já não posso desprender-me das cadeias
Que eu mesmo me forjei na sequela.
O hábito de associar as teias
Ao sentimento que com ela gozo a meias
Me leva a acreditar que ele vem dela,
Que no sangue que transcorre em minhas
veias
Um outro coração se me revela,
Como o hábito de interligar
Dois fenómenos concomitantes
Sem qualquer identidade
Acaba, se calhar,
Na ilusão de que demonstram antes
Uma lei de causalidade.
1280 - Brigas
Se brigas com duas moças,
A que der o primeiro passo
Restitui-te a calma e remoças.
A outra prende-te ao laço
Daquilo que nunca possas
Dominar em teu abraço:
E das correntes mais grossas
Te apaixona em breve espaço.
Para me ligar em definitivo
À primeira,
Além de recolher consolo vivo,
Urge de vez que desapareça a derradeira.
Apagada a severidade desta
Outro amor pode então gerar a festa.
1281 - Demência
Quanta vez,
Para descobrir que estamos amando,
Para nos apaixonarmos talvez,
Só quando
A separação nos vier ferrando!
Com que rapidez
A imaginação a mando
Tapa dum amor cortês
A falha que sem tal me repelira!
A inteligência,
Não logrando apanhar o coração,
Delira
E nada, nesta demência,
De mim já resta em função.
1282 - Empresa
Enquanto a empresa é impossível, adiamos,
adiamos…
A facilidade e a atracção aparente
Apenas a imaginação as sente,
Truncada a vida dos galhos e dos ramos.
A ideia de morrer que delineamos
É porventura mais cruel que a morte
presente,
Porém menos, evidentemente,
Que pensar na morte de quem amámos:
Engolfar-se a terna criatura
Sem um remoinho sequer restar nas águas,
Para sempre excluída
Da vida…
- Ah! Quem já não dura
Corrói bem mais que a corrosão das mágoas.
1283 - Rosto
De erro a causa maior se afigura,
Com uma criatura na relação,
Ser nosso bom coração
Demais amar tal criatura.
Por um sorriso, um olhar, um gesto de mão
Amamos com um toque de loucura
E o tempo de espera, do que cura,
É de o ente amado entalhar como um formão.
Mais tarde, do cotio ao conviver,
a realidade cruel
Continua a impedir-nos de ver
Por trás da máscara de papel:
Não lhe tiro o carácter e os sonhos que a
movem,
Nem lhe tiro o rosto de quando era jovem.
1284 - Campanha
Para a guerra ser estranha,
Inopinada,
Importa ser arrancada
Às obsessões de campanha,
esquecer duma assentada
Que se perde ou que se ganha,
- E do marisco na apanha
Em paz despender a madrugada.
Quando tudo fica igual
À paz,
Então é que na brancura do areal
O monstro se destaca, voraz:
Só então pode a guerra ser deveras vista,
Antes, não, enquanto for a única que
exista.
1285 - Luta
Na história dum amor
E da luta contra o esquecimento
Ocupa o sonho u lugar ainda maior
Que da vigília o alimento.
O sonho ao tempo recusa divisor,
Elimina as transições de cada momento,
Dilui contrastes, é harmonizador,
Desfaz, elemento a elemento,
O consolo tecido durante o dia.
Reserva-me à noite o encontro
Com aquela que finalmente esqueceria,
Não fora este permanente recontro
Contra as forças da memória derrotada,
E assim, cada manhã, renasce ela em mim
como a alvorada.
1286 - Biblioteca
Um dia antigo em nós depositado
Permanece
Na biblioteca, exemplar que se esquece,
Por ninguém consultado.
Porém, remontado
À superfície se aparece,
Todo o perdido significado
De novo acontece.
Nossos eus são
Edificados
Por sobreposição
De sucessivos estados.
Da montanha, ao invés, porém, da
estratificação,
As camadas antigas em nós afloram por
todos os lados.
1287 - Espiritual
Quente e húmido da prensa recente,
O jornal
É um pão espiritual,
Ao nevoeiro madrugador alvorecente.
Distribuem-no as criadas, ao sinal,
Pelos patrões, junto ao café com leite
quente.
Pão miraculoso, multiplicável, permanente,
A um tempo um e um milhão, imaterial.
Sempre o mesmo para cada um
Permanece,
Penetrando inumerável e comum
Das moradas em toda a messe.
Uno e múltiplo a uma só vez,
É quase deus, por isso o crês!
1288 - Fruidor
A maior parte da beleza
Reside no espírito do fruidor.
É o pecado original que se despreza:
Da criação artística o valor
Provém da mesa
Do consumidor.
Deusa colectiva que se lesa,
Se ao membro mutilado do autor
Nos restringimos,
Só inteira se realiza e consuma
Da multidão nos socalcos e arrimos.
Ora, a multidão, mesmo de escol,
Não tem toque artístico que assuma,
É de vulgaridades mero rol.
1289 - Óptica
A distracção visibiliza o esquecimento
E o tempo o traz gradualmente.
Com tal muda, momento a momento,
O tempo que o apaga, complacente.
No tempo há erros de óptica, igualmente
Aos que no espaço iludem o elemento
Presente,
Tornando-o num engano que alimento.
O sentimento da distância,
Ali contraída,
Aqui distendida,
No tempo o regula minha ânsia.
E de quão perto ou longe estou
Sempre ela me enganou.
1290 - Recomposição
Como a recomposição de tecidos numa
ferida,
Uma grande dor de antigamente,
Corpo estranho e agressivo, é
surpreendente
Quando dela nada mais há na nossa vida.
A criatura foi noutra convertida,
A dor antecedente
Outrem foi que pôs doente,
Do actual ente não sofrida.
No deslumbramento da reconversão,
A dor anterior é dor alheia,
Falamos do que a sofreu com compaixão,
Não a sentimos nem nos negaceia.
O pesadelo que à noite ensombrou o céu,
De manhã nem nos lembra que ocorreu.
1291 - Veneno
Os indivíduos que vivem num estado
Desejam outro melhor.
Só o antevendo no desejo, nem vão supor
Que a primeira condição para havê-lo
alcançado
É com aqueloutro romper e se lhe opor:
O morfinómano quer ver-se curado
Contanto que em dose cada vez maior
De morfina não seja privado;
Como o religioso, o artista viciado em
vida social
Sonha com a solidão,
desde que do vício o não prive por igual.
Somos o doente que quer a cura
Mas pelos meios que a doença manterão,
Tal o gozo que o veneno nos apura!
1292 - Monumento
Tal como à distância o monumento principal
Sobressai da cidade vislumbrada
E na aproximação se perde, afinal,
Nos becos, vielas e casinhotos da estrada,
Mas quando enfim o vemos tal e qual,
Lhe medimos a frontaria alçada,
Confirmamos que o tamanho é mesmo igual
Ao que a lonjura presumira da fachada,
Assim o resto são as linhas de defesa
Que qualquer ser levanta à invasão
Dum estranho que o pode tornar presa
E que urge atravessar, desvão a desvão,
Com todo o sofrimento de quem preza,
Até por fim lhe chegar ao coração.
1293 - Despedida
O fim duma existência anterior
É sentido como morte verdadeira,
Um amor
Na despedida derradeira.
Porém, o narcisismo não fenece
Por concretização que haja deveras
Do sonho que nos aquece
Nas esperas.
Todo ele há-de falhar
Para que um outro possa, enfim, surgir.
O lugar
Que em mim ocupa o porvir,
É o desta morte que de vez convida
De mim a ressurgir com outra vida.
1294 - Relicários
É a família fonte e centro
Duma espiritualidade.
Dentro
São as fotos da saudade,
Relicários, tradições,
A homenagear os já desaparecidos
Nos baldões
De tempos idos.
Reuniões de família,
Visitas, contar de histórias,
Duma doença a vigília,
Acumulam as memórias
Que dentro nos acalentam
A alma inteira que alimentam.
1295 - Pistola
O sangue dos demais os consolida,
A estes homens que alguém torna heróis,
Cuja pistola se mostrou depois
Única companheira ser da vida.
Uniforme: uma moldura
De botões doirados.
É de heróis uma postura
Ou é de criados?
Perder ou não perder uma fachada
É o único problema e dos mais vis
Que é comum aos heróis e aos imbecis
Quando se pavoneiam de longada.
Matar longe é o progresso que haveria,
- Hoje é matar mas já sem pontaria!
1296 - Quisto
Como não tinha compreendido,
Eu não tinha visto:
O vício trazemo-lo escondido
E a virtude, como um quisto,
Como o génio que insisto,
De invisível, que não é nem tem sentido.
Até que o haja visto
E seja o muro demolido.
Os olhos não abrem olhos,
Os olhos só se abrirão
Quando saltar os escolhos
A razão.
Um erro desmascarado
Dá-nos mais um sentido no tablado.
1297 - Enfermos
Muitas vezes, o futuro
Habita em nós sem o sabermos.
Auguro-
-Lhe os termos
E inauguro-o.
De nossos pensamentos enfermos
Seguro,
Mentem as palavras sem querermos.
Por entre as palavras mentirosas,
Lenta dos factos discorre a procissão,
As curvas rasgando pedregosas
De nosso chão.
Curioso é que seja nosso engano
Que às vestes lhe oferta todo o pano.
1298 - Alta
O que é deveras estranho
Em qualquer alta sociedade
É que toda a individualidade
Dela é um ser muito tacanho.
Tão insignificantes de tamanho,
Tão ocos e de tanta alarvidade,
Que é que pode, na verdade,
Justificar-lhes o ganho?
Medem seus pares
Pelo critério mais disparatado:
O da amabilidade, ser ou não ser acolhido.
Eis os efeitos singulares:
Cada qual estima os mais, se convidado;
Detesta-os, se excluído.
1299 - Falhas
Uma memória sem falhas
Não é muito poderosa
Para estudar, vitoriosa,
Da memória os trilhos e as calhas.
Se à noite jamais trabalhas
E o sono é a manta de que goza
A morte em que te enterras, silenciosa,
Até que a manhã mostre o que valhas,
Decerto não são grandes descobertas
Nem sequer pequenas observações
Que, quando despertas,
Acerca do sono te propões:
Um pouco de insónia é que traria
À escuridão a luz que te alumia.
1300 - Aristocrática
A linguagem muda ou falada da
aristocrática amabilidade,
Feliz por o bálsamo derramar
Sobre o sentimento de inferioridade
Daqueles sobre quem vai ter lugar,
Nunca, porém, vai ao ponto de o dissipar,
De restabelecer a igualdade,
Pois neste caso iria deixar
Para o teatro de haver necessidade.
Dizem-se iguais para serem amados,
admirados na função,
Mas jamais para serem acreditados:
Respeitarmos que é uma ficção,
Dizem eles que é sermos educados;
Crer que é real é má educação.
1301 - Cubo
A gente-bem facilmente imagina
Os livros como um cubo
Cujo lado tem a sina
De abrir-se e sugar, feito tubo,
Para dentro, cada personagem a que se
inclina
O autor por cuja escrita subo:
Ele vai recolhendo, esquina a esquina,
Pessoas como as ervas que derrubo.
São, claro, pessoas de pouca monta,
Não aborreceriam vistas de passagem.
Ler um livro é tal reverso ter em conta.
Porém, o melhor, pelo seguro,
A evitar inesperados sobressaltos da
mensagem,
É limitar-se ao autor que de morto é já
maduro.
1302 - Pertenças
À distância, as diferenças
Sociais
Ou individuais
Baseiam-se num fundo igual de pertenças,
Em uniformidades epocais.
A semelhança das roupas faz que venças
Das fronteiras as sentenças,
Que tudo no fim são comuns sinais.
Ocupa o espírito da época bem mais
Lugar do que a casta.
A esta, o que lhe basta
É o amor-próprio do interessado.
O resto em que acreditais
É apenas imaginado.
1303 - Tolos
É verdade
Que ajuda mais
Alguma qualidade
Para suportar os defeitos dos demais
Do que contribui, nos tremedais,
Para a soledade
De que sofre quem jamais
Lhes cultiva a necedade.
Um homem de grande talento
Prestará menos atenção
À tolice doutrem em cada evento
Do que, por falta de miolos,
O farão
Os tolos.
1304 - Novidade
Têm os homens a faculdade
De crer
Que uma circunstância nova é deveras novo ser,
É outra coisa, a Novidade!
Permite-lhes a ingenuidade
De adoptar um erro qualquer,
Político, artístico, sem ver
Que os mesmos são que tomaram por verdade
Há dez anos,
A propósito doutra escola
De que já condenaram os enganos.
De novo se lhes o incenso imola
Incapazes que somos, antes que o véu se
esgarce,
De os reconhecermos sob o novo disfarce.
1305 - Cobardes
Na política e na sociedade
As vítimas são tão cobardes
Que de piedade
Não provocam sedimentos nem alardes.
Se não ardes,
Como é que há-de
Aquecer o coração que pelas tardes,
Te busca em vão na soledade?
Das vítimas quando o sinal
É um mero contratempo
De misérias e de ascos,
Não podemos querer mal
Por muito tempo
Aos carrascos.
1306 - Partido
Na verdade sempre uma má razão
Descobrimos posteriormente
Que nossos adversários tinham em mente
Para serem do partido que são,
A qual não
É nunca dependente
Do que pode haver de justo, justamente
No partido em questão.
E os que pensam como nós
É que a inteligência os obriga,
Se a moral não lhes der voz.
Porém, se a inteligência com tal briga,
Então
É sempre porque os move a rectidão!
1307 - Encobrimento
O pior encobrimento
É o do espírito culpado.
O conhecimento
Que tem do pecado
Impede-o de ver como em geral é ignorado,
Como da mentira o inteiro acabamento
Seria facilmente por outrem acatado
A todo o momento.
Não vai perceber
Como em palavras inocentes
Principiarão
Para quenquer
Os degraus inconscientes
De sua própria confissão.
1308 - Dores
As grandes dores
Impõem um regime.
A doença é o mais sublime
Dos doutores.
Ao médico em que estime
A bondade, o saber dos pormenores,
Prometo os actos mais cumpridores
Sem que às promessas me arrime.
Limito-me a prometer.
Ao sofrimento, porém,
Quem
Deixará de obedecer?
Ninguém.
- É um médico a valer!
1309 - Auditor
“Não fatigues o auditor!”
- Diz o pretenso
Bom senso.
Ignora o artista criador
Que um público gera tenso,
Da atenção dominador
Até o mais alto fulgor,
Desabrochando no imenso.
Quem boceja de fadiga
Dum artigo a que não liga,
Vai correr ao fim do mundo
Das artes ao ver o fundo.
E as lutas entre as escolas
São a vida a que te imolas.
1310 - Ciúme
A dúvida do ciúme
É a dúvida doentia
Que se alimenta ao perfume
Da fantasia.
E basta para a acalmar
Não a força duma prova
Mas apenas o falar
Dum amor que se renova.
Então o mais fementido
Devém logo um convertido,
Como lhe convém.
Quando mesmo continua
Qualquer dantes falcatrua,
O ciúme se contém.
1311 - Totalidade
A felicidade
Nunca a podemos gozar
Na totalidade.
É sempre mui devagar
Que a Humanidade
Logra ultrapassar
A idade
De outrem disto inculpar,
Em lugar
De ler dentro a imperfeição:
É naquele que a sente,
Não naquele que a quer dar,
Que da promessa a traição
Nos mente.
1312 - Agrado
Embora cada qual
Falsamente do agrado
Fale
De ser amado,
É lei geral
Que o ser desenganado
Que nos ama sem por igual
De nós ser amado,
Ao invés
de nos ser
Agradável,
Será, por sua vez,
Mais que qualquer,
Insuportável.
1313 - Mudar
Os seres não param de mudar,
Relativamente a nós,
De ser e de lugar,
De valores, de metas e de voz.
Na marcha eterna do mundo, devagar,
Consideramo-los imóveis e sós,
No instante curto demais dum olhar
Para surpreendermos o desatar dos nós.
Basta escolher, porém, na memória
Duas imagens em momentos diferentes,
Que logo vemos a escória
Do que cremos jóias permanentes.
E a diferença mede a deslocação
Que em relação a nós operarão.
1314 - Boato
O boato,
Quer me tenha por objecto,
Num desagradável pacto,
Quer sobre outrem monte o tecto,
Dando-me um ignoto facto,
tem sempre um valor discreto
No psicológico impacto
Com que me abala, secreto.
Impede-me de adormecer
Sobre a fictícia visão
Do que, julgo, as coisas são
E uma aparência vai ser.
Troca-me as voltas ao engano,
Mostra-me o avesso do pano.
1315 - Esboroado
Não será morte o que existe
Entre nós e as mulheres
Por quem o amor já não subsiste,
Esboroado entre os anos e os talheres?
Encontramo-las passados anos,
Tal se já não foram deste mundo:
A morte do amor tornou enganos
Os devaneios no trilho mais fecundo.
O facto de o amor já não existir
Transforma em mortos
Aquelas que elas foram outrora
E aquele que fui, antes de vir
Aportar nos novos portos
Em que vivo aqui morto de hora a hora.
1316 - Novidade
No indivíduo ou na sociedade,
Culpada ou não culpada,
A novidade
Apenas causa horrores
Enquanto não assimilada,
Rodeada de elementos tranquilizadores.
A partir de então,
Familiar,
Torna-se chão
A caminhar.
No fastio
Duma vida deserta,
É o desafio
Da descoberta.
1317 - Símbolo
Ao símbolo sacrificar
A realidade que simboliza
Do fanático é o lugar
E a divisa.
As catedrais deverão ser adoradas
Até que, para as preservar,
Fora imperativo renegar
As verdades por elas proclamadas.
Não sacrifiques os homens a pedras
Cuja beleza provém
Das verdades humanas que contêm
E com que medras.
As pedras jamais terão
De tal nenhuma precisão.
1318 - Pobre
Como, pobre, invejo o rico
Que contempla as catedrais!
Entretanto aqui me fico
Na Lisboa dos sinais
E nunca a vê-la me aplico
Como os que longe demais
Aqui tomam o salpico
Da cultura destes sais.
A vida quotidiana
Dificulta situar
Objectos de nossos sonhos.
É o dia-a-dia que empana
O brilho que houver no ar
E nos cega olhos medonhos.
1319 - Paraíso
Os poetas em vão tentaram
Fazer reinar no paraíso
O ar mais puro que vislumbraram,
Preciso.
Se o já não houveram respirado
Como poderiam aquela sensação
Ter dado
De tão funda renovação?
É a memória
Que doira os juízos
Acerca dos tempos idos.
Este é o mistério da glória:
Os verdadeiros paraísos
São os paraísos perdidos.
1320 - Decifração
Difícil decifração?
Maior a profundidade
Com que os olhos me lerão
A verdade.
Verdade que a inteligência
Directamente apreende
Num mundo só de evidência
É a que menos compreende.
Às que a vida comunica
Sem nós querermos sequer
É que, profundas, se aplica
O fatal de quanto houver.
Na verdade que me cala
É que o mistério me fala.
1321 - Dedada
A boa acção proclamada
É de moral inferior
À dedada
De qualquer dedo menor
Que pura e simplesmente
Se deu
A toda a gente
Que o requereu.
Uma acção que nada diz
E tudo faz
Tem a verdade do silêncio:
São rotas primaveris
Para quem da vida corra atrás:
Vence e convence-o.
1322 - Espectador
Até no momento
Desinteressado
Em que espectador me sento
De lado
A embeber-me de natureza,
De comunidade, de amor,
Da beleza
De que nas artes vou dispor,
É dupla toda a impressão:
Envolta em parte pelo objecto,
Noutra parte ecos serão
Que em mim encontram o tecto
De repercussão.
- Que é que, afinal, é concreto?
1323 - Semente
Como a semente reserva
O alimento da vindoira planta,
Assim a vida me conserva,
Cibo do porvir que em mim se implanta.
Como a semente há-de morrer
quando a planta estiver desenvolvida
E terá vivido para ela sem saber,
- Assim a minha vida.
É toda a vida e não é
Uma vocação.
Não, enquanto de tal não dou fé.
Sim, porém, no sentido
De que alegrias, tristezas e toda a
recordação,
São a sementeira do que houver vivido.