CORPO  DE  SONHO  E  MADRUGADA

 

CANTO  UM

 

 

CORPO  DE  SONHO  E  MADRUGADA  EMBEBO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1 e 127 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 – Programa

 

Corpo de sonho e madrugada embebo

Em projectos de infindas utopias.

Com bom senso repouso em medianias,

Factos retrato, a fonte são que bebo.

 

Do amor retomo os laços e as magias,

Projecto além minha cerviz de gebo,

Os pés me gruda do cotio o sebo,

Nas coisas findo me assentando os dias.

 

De novo colho a robustez dos laços,

Outro mundo de além me negaceia,

Às pedras findam presos os meus braços.

 

Em clássicas pegadas balanceia

Meu trilho a divergir sempre em meus passos

E acabo rindo alegre ao que me ameia.

 

 

                                                2 – Corpo de sonho e madrugada embebo

 

                                               Corpo de sonho e madrugada embebo

                                               Teu rosto ao ler de gestos e utopias,

                                               Da ternura ao calor, nas medianias

                                               Em que o quotidiano como e bebo.

 

                                               Nos laços que nos unem há magias

                                               Que o dom de endireitar têm o gebo,

                                               Os olhos limpam do rançoso sebo

                                               Que as rotinas espalham sobre os dias.

 

                                               Ao confraternizar atamos laços

                                               Na teia que nos prende e negaceia

                                               Da lonjura que mora além dos braços.

 

                                               Por entre luz e sombra balanceia

                                               O que vislumbro a me guiar os passos:

                                               Da fundura do abismo o amor ameia.

 

 

3 – Poder

 

Violência não é poder,

Força na agressividade

Não mora nunca sequer,

Domine embora a cidade.

 

Deveras quem for herói,

Por mais inacreditável,

É quem ousar quanto dói

Por ser com todos amável.

 

 

4 – Perdão

 

Todo o verdadeiro amor

É uma forma muito forte,

Muito forte de perdão.

Por sozinho me supor

Triste, triste como a morte,

Requeiro do amor a mão.

 

Porém, além disto espero

Que ele me vá perdoar

Estes óculos colados

A fita-cola de esmero

Mais os quilos que engordar

Este corpo de pecados.

 

Aguardo que veja além

Deste meu cabelo sujo,

Da gargalhada estridente,

Das migalhas que contém

O sofá da sala, cujo

Forro lhe foi hoje assente…

 

Aguardo que me perdoe

Que eu seja um mísero humano.

- E que apesar disto voe

Por mim até onde ecoe

Dos deuses o antigo arcano.

 

Que me reconheça aí

Onde de vez eu queria

Viver, por fim, algum dia

E onde jamais eu vivi.

 

 

5 – Querer

 

Se o ciúme é pretender

Manter sempre o que se tem

E a cobiça é querer ter

O que se não tem também,

 

Será inveja não querer

Que os outros tenham sequer.

 

Entre os três, a toda a hora

Vai-se-nos a vida embora.

 

 

6 – Avós

 

Os avós são caso aparte,

Aos netos dão segurança,

Continuidade, e, com arte,

Seu gesto lhes afiança

 

Que ao fim tudo acaba bem.

Os pais andam a apressá-los

E os avós, como convém,

Passam o tempo a acalmá-los:

 

Quem convive com avós

É sereno, mais tranquilo

E mais confiante após.

- Trata, pois, tu de segui-lo.

 

 

7 – Cão

 

O cão é um bom professor,

Dele o mundo inteiro é o lar,

O momento com vigor

Vive e quer-nos ter a par.

 

Os cães, incondicionais,

Amam-nos na vida vária,

Não do corpo por sinais

Nem pela conta bancária.

 

Quem nos dera, quem nos dera

Que o homem fora este cão

No porvir que nos espera,

Não o cão da tradição!

 

 

8 – Empatia

 

"Compreendo exactamente

O que sentes, vou prová-lo!"

- É uma empatia que mente,

Só para próprio regalo.

 

A verdadeira empatia

Ouve e presta companhia.

  

 

9 – Desligado

 

Quão mais ligados estamos

Mais desligado me sinto.

Da tecnologia os tramos

Não nos ligam, que o desminto,

 

Pois cada degrau que avança

Pelas comunicações

É um passo atrás onde entrança

Um vazio de ilusões:

 

Quanto mais nos persuade

A ocupar montanha e vale

Mais nos mata a intimidade

Do encontro interpessoal.

 

 

10 – Automático

 

O atendimento automático

É ter a conversa inteira

Deste modo sintomático:

Sem termos ninguém à beira

 

Nem contactar com ninguém.

A mãe deixa-me um recado,

Respondo igual eu também:

Nenhum sabe do outro lado.

 

É um inerte gravador

Que aqui é rei e senhor.

 

Depois sinto-me sozinho…

- Como é que o não adivinho

E busco a consolação

Bem mais num copo de vinho

Do que em ter outrem à mão?

 

 

11 – Apanho

 

Cada vez me apanho mais

Atrás da carta electrónica,

Para o que requer sinais

De voz viva e bem harmónica,

 

Ou a ver-me aliviado

De o gravador atendido

Ter o que o tempo ocupado

De falar me tem proibido.

 

Eis como tantos esforços

Para manter-me em contacto

Me deixam com os remorsos

De isolar-me, em seu impacto.

 

A indústria, se me encoraja,

Não ergue humanos canais,

Faz apenas que ao fim haja

Escolhos anti-sociais.

 

 

12 – Endeusar

 

Endeusar a juventude

Tira o dever de aprender

Com os velhos quanto pude.

E o direito a cometer

 

Erros nos rouba que apenas

Se admitem a quem ainda

Viveu pouco nas arenas

Que a vida traz, mal advinda.

 

Há-de importar aos mais novos

Retornar a quando os velhos

Com a idade mil renovos

Consagravam de conselhos.

 

A importância era uma coisa

Vinda da longevidade,

Das vidas em que repoisa

O arcano da qualidade.

 

 

13 – Partido

 

Os velhos cada vez mais

Viverão. Que bom seria

Se um bom partido tirais

Do que dali se anuncia!

 

Não é por eles que, avós,

Ao finar-se a luz do dia,

Irão deslaçando os nós.

 

Por eles, não, é por vós!

E é por nós, que principia

A esmorecer-nos a voz

Quando a raiz se emacia,

Plantas a que o sol atroz

Todo o solo cresta um dia.

 

 

14 – Pouco

 

Dar um pouco de atenção

A quem nos cruza a chorar

É gesto que faz lembrar

Que aqui não há solidão.

 

Não estamos sós no mundo,

Num mundo individualista.

É bom aumentar a lista

Do que o torne mais fecundo.

 

Mesmo o indefeso gatinho

Que afinal recolho em casa

Se calhar acende a brasa

Que algures nos dá carinho.

 

 

15 – Seis

 

É nos primeiros seis anos

Que a criança fundo aprende

Regras conviviais sem danos,

Comportamento que atende

 

Doutrem às expectativas,

Respeito pelos demais…

Se birrenta for, de esquivas,

Chantagista, em tremedais

 

Se afundará que depois

A impedem de controlar-se

Na escola, emprego, e os atóis

Levam-lhe o barco a afundar-se.

 

Relações interpessoais

Vindoiras, se andar afeita

Às vontades serem tais

Que qualquer lhe é satisfeita,

 

Tornam-na tão ditadora

Que ninguém mais a sustenta.

Devém tão da lei já fora

Que é presa por violenta.

 

 

16 – Hoje

 

Hoje em dia os pais trabalham

Cada vez mais, o que faz

Que o que mais querem mais falham:

Mais rico, menos capaz.

 

É uma questão de somenos

Que o pior gera dos sarilhos:

- Que tenham cada vez menos

Tempo de estar com os filhos.

  

 

17 – Filha

 

O que a filha lhe requer

É sentir-se apreciada.

Se nem lhe toca sequer,

Descobre-se abandonada

E arranja um modo qualquer

Para se fazer notada.

 

Maus tratos de solidão

Que é que lhe irão provocar?

Apenas embirração,

À procura dum lugar

Que ocupe no coração

De quem a pudera amar.

 

Uma birra, uma chantagem,

São o reverso da imagem:

 

Tal a loucura da fome

Por alguém que em conta a tome.

 

 

18 – Recusa

 

Se crês não dever comprar

Algo que um filho te pede,

Trata então de lhe explicar

A recusa, o que to impede.

 

Ele após mais facilmente

Se resigna à frustração.

Do local fugir ausente

Por vergonha da sessão,

 

Caminho não é jamais,

Por mais que ele bata o pé,

Atroe em gritos, em ais…

Dele é uma vitória até:

Logra aborrecer os pais.

 

Educar mostra quem manda:

Qualquer inversão do lado,

Já que os pais são quem comanda,

A todos lhes mata o fado.

 

 

19 – Oposto

 

Oposto do amor

Não é ódio, não:

Ainda que em furor,

Já presta atenção.

 

 

Oposto deveras,

Negando a presença

A quaisquer esperas,

- Só a indiferença.

 

 

20 – Pior

 

Será ficar ignorada

O pior que acontecer

Pode sempre a uma mulher.

 

Depende ela, exagerada,

Das opiniões daqueles

Que a rodeiam, mesmo imbeles,

 

Dos olhares masculinos

De admiração, quando passa

Pela rua ou pela praça,

 

Dos elogios ladinos

De colegas e de amigos:

São vantagens, são abrigos.

 

Ao perpassar pela estrada

Repica um sino qualquer

Que um olhar tenta colher.

 

Será ficar ignorada

O pior que acontecer

Pode sempre a uma mulher.

 

 

21 – Parte

 

Na maior parte dos casos

A mulher é que levanta

Questões conjugais subtis.

O marido soma atrasos,

Evita falar de tanta

Questão que não tem perfis.

 

Não é crise conjugal:

Todos os casais felizes

Serão assim por igual

Com mais ou menos matizes.

 

 

22 – Discutem

 

Discutem muitos casais

Por um problema importante.

Quatro anos depois ou mais

É como ao primeiro instante.

 

Ao casar, todos herdamos

Mil insolúveis problemas.

Os outros nupciais ramos

Iguais foram noutros temas.

 

Isto não infelicita,

Porém, dum bom lar a dita.

 

 

23 – Reiteram

 

Setenta e cinco por cento

Dos casais que consideram

Que seu lar é uma desgraça,

Cinco anos após o intento,

Quando nele reiteram,

Constatam que tudo passa:

 

Trabalhadas as matrizes,

Doravante ei-los felizes.

 

 

24 – Diferenças

 

Amem vossas diferenças!

Ficando muito felizes

Um doutro com as sentenças

E as contrárias parecenças,

Enraízam mil raízes.

Tal vai ser o ponto forte

Que um lar une até à morte.

 

 

25 – Inícios

 

O casal desilusão

Sente quando se esboroa

Dos inícios a paixão,

Se o romantismo já não

Pelo quotidiano ecoa,

 

Se afloram as diferenças.

"Nas domésticas tarefas,

Nem ajuda nem sentenças,

E de nossas desavenças,

Que serão sempre às catrefas,

 

Ninguém pode dizer nada.

Sempre a ver televisão!

E então com a criançada

Não a quer ver educada,

Condescende até mais não!"

 

Tudo encara a divergência

Como problema em ruptura,

Quando, afinal, a ocorrência

É uma oportuna evidência

De enrijecer a estrutura.

 

Fortalece a conjugal

Tessitura de teu lar,

Não de quanto for igual,

Que não tem novo sinal,

Mas do que é complementar.

 

Os dois lados da montanha

É que a elevarão tamanha.

 

 

26 – Casais

 

Os casais fortalecidos

Sentem-se ao trabalhar juntos.

Frequentemente os assuntos

Acabarão resolvidos

 

Porque encontram soluções

Em que qualquer adivinho

Vê que de ambos as poções

Nenhum veria sozinho.

 

 

27 – Vínculos

 

Vossos vínculos mantenham!

É que os casais que resultam

Sempre em contactos avultam

Com a família, os amigos,

Comunidades que tenham.

 

Quaisquer laços são abrigos:

Venham os tufões que venham,

Não nos esbanjam os trigos

Nem as pragas nos insultam

Nas ceias que se desenham.

Vossos vínculos mantenham!

 

 

28 – Digno

 

Para os casais bem unidos

O casamento é sagrado

E digno de sacrifício.

Fé e querer são requeridos

Para qualquer mau bocado

Redundar em benefício,

 

Tornar as dificuldades

Em elementos de força.

Ainda mais nestas idades:

Por um lar ninguém se esforça,

Dum divórcio ninguém orça

A que montam as sequelas

Nos próprios e parentelas.

 

Os carreiros divididos

Nunca a um lar dão conjugado:

Para os casais bem unidos

O casamento é sagrado.

 

 

29 – Recordem

 

Recordem os bons momentos.

Se o casamento é abalado

Por conflitos e tormentos,

Um não é do outro admirado,

Reavivem os sentimentos

Positivos do passado.

 

Nalguma curva da estrada

Se ata o fio da meada

E vale a pena outra vez

Apostar por mais um mês.

 

- Quem sabe meses que tais

Não virão sempre outros mais?

 

 

30 – Laços

 

Quem tem laços sociais

E mais diversificados

Menos vai tender que os mais

A sintomas constipados.

 

Ou então são mais suaves,

Dentro da constipação,

E os dos mais serão mais graves:

- Tanto em nós pode a união!

 

Quanto mais só me adivinho

Mais da morte sou vizinho.

 

 

31 – Depende

 

O modo de envelhecer

Depende de ser capaz

Com jovens de terno ser

E, com velhos, compassivo,

Solidário com quem faz

A defesa do que é vivo,

Tolerante com os fracos

E com os fortes também…

- É que um dia, por feitiço,

Juntando todos os cacos

Que a vida inteira contém,

Terei sido tudo isso!

 

 

32 – Estrada

 

Pode um casamento dar

Voltas e reviravoltas,

Como uma estrada costeira,

Tortuosa, a revirar

Dunas mais areias soltas

Com o abismo sempre à beira.

 

Perdem-se alguns casamentos

Neste litoral rochoso,

Outros, porém, são eventos

Eternos no mar brumoso,

Que sempre a estrada costeira

Do abismo eterno se abeira.

 

 

33 – Afectos

 

Foi no poder dos afectos

Aquilo em que acreditei.

Ao relento é o que dá tectos,

Força do calor que achei

A arder em quaisquer projectos.

 

Calor da mão que me pega

Na minha e me põe a andar,

Do corpo que embala e nega

Os pesadelos do lar,

Ternura que vê e é cega…

 

É o que nunca me abandona.

Que importa que seja Deus,

Espuma da Terra à tona,

Mistério de mudos céus?

É o que nunca diz adeus

Nem depois da hora nona.

 

 

34 – Esposa

 

Uma esposa deve ser

Tal qual o ar para o marido.

Se o ar nos falta, é de ver

Quanto aperto se há vivido!

 

Porém, o ar é invisível

A qualquer olhar humano,

Não é um intruso, é miscível

A toda a vida, sem dano.

 

Quando uma mulher parece

Este ar que aspira quenquer

Todo o problema esmorece

Que houve entre homem e mulher.

 

 

35 – Poalha

 

Com o decorrer dos anos

Forma-se um rosto invisível

No casal, poalha de arcanos

Que dois sujeitos, sem danos,

Assemelha, imarcescível,

Quando se acumula neles

Vestindo-os de novas peles.

 

Então marido e mulher

Semelham quase irmãos ser.

 

 

36 – Colar

 

Um colar de volta inteira,

Com oiros de tradição,

É mais que jóia leveira,

É penhor de comunhão.

 

Comunhão com os de antanho

Que nos abriram as portas

Para fruirmos do ganho

Haurido em suas retortas.

 

Comunhão com os de agora

Que dos encantos partilham

Na festa que nos demora

Quando os laços maravilham.

 

Comunhão de mim contigo

Porque, ao dar-to, quanto amamos

Afinal é o que te digo:

Tudo em nós de amor são ramos.

 

 

37 – Busca

 

Se andas em busca de amor,

Não leias então artigos

Sobre agarrar um parceiro,

Nem maquilhagem vás pôr,

Nem busques ao peso abrigos,

Tem teus quilos por inteiro.

Vive a vida, não te isoles,

Não te queixes do que tens,

Às compras nunca te imoles,

Que em demasia tens bens,

Frui da vida que tens já…

 

- O amor encontrar-te-á!

Se não na forma que almejas,

Contigo é, nem que o não vejas.

 

 

38 – Sexo

 

O sexo não é o amor,

Pode ser poema de afecto:

Rotina do casamento

A dissolver-se ao fulgor

Deste vislumbre discreto

Dum absoluto no tempo.

 

Tão rápido como o raio,

Um momento no Além caio,

Sou o Além por um momento.

Ao acordar do outro lado,

Do lado de cá desmaio:

- Suspeito que ando trocado…

 

 

39 – Embeleza

 

O amor é alegria,

Embeleza a vida,

Mesmo o dia-a-dia

Então nos convida,

Mesmo o que era triste

Se converte em gala.

 

Quando, porém, a vida não existe

Amor algum consegue embelezá-la.

 

 

40 – Pobre

 

Se deixar de ver teu rosto

Fica o mundo de repente

Tão pobre que este sol posto

É muito mais sol poente.

 

Como é que vou aguentar?

Será que aguentarei

Ou nem deverei pugnar,

Deixo-me ir onde nem sei?…

 

Sem teu rosto fico cego

Num abismo tão profundo

Que me afundo neste pego,

Nunca mais o mundo é mundo.

 

 

41 – Normalmente

 

Normalmente, para o homem,

O valor da relação

É do sexo que consomem

E do que prometerão.

 

Pode a mulher ser esperta,

Magnífica, interessante,

Para mimar sempre alerta

Desde as pantufas à estante,

 

Que ele corre doutra atrás

Que o arraste para a cama

E que outra coisa não faz,

Nem quer saber, nem proclama.

 

Quantos homens, de repente,

Depois da mulher de sonho,

Ficam da parvinha em frente

Sem verem como é enfadonho!

 

 

42 – Perde

 

Se um homem perde a potência,

Perde, acredita, o poder,

Não só perante a mulher,

Ante os mais, por excelência.

 

São arcaicos sentimentos

Duma memória apagada,

Tal se perdera argumentos

Por não cobrir a manada.

 

Virá por força um rival

Que as fêmeas vão preferir

E o impotente, afinal,

É o perdedor a seguir.

 

O que não tem nada a ver

Com ele mesmo, a esperteza,

A rapidez que tiver,

A força, nem a destreza…

 

E eu que sempre acreditei

Que um amor entre quem se ama

É o bastante e dita a lei

Sem mais enredar a trama!

 

Para um homem sempre o falo

Vem em primeiro lugar.

À mulher que importa o talo?

Da couve é que faz manjar.

 

Relações homem-mulher

Andam de óculos trocados:

Um homem perto vai ver,

Ela os longes mal sonhados.

 

Elas vêem o global

Que o caminho futurar,

Eles vêem menos mal

Este aqui particular.

 

A complementaridade

Poderia dar-nos sorte

E, ao invés, a realidade

É que a um amor leva à morte.

 

 

43 – Terras

 

As terras são como gente:

Os melhores de nós têm

Cantos sombrios na mente

Como às terras se consente

Becos que a luz mal retêm.

E nas relações humanas

Luz e sombra sempre irmanas.

 

 

44 – Velhos

 

Velhos amigos não é

Possível jamais fazê-los.

Após os pormos de pé

É possível é perdê-los.

 

E ao perdê-los nós também,

Mais do que pô-los aparte,

Ficamos, tal pedro-sem,

Sem de nós a melhor parte.

 

 

45 – Reciprocidade

 

Reciprocidade não

No-la garante a paixão,

 

Não há retorno directo

Do amor que darei, discreto.

 

O segredo mora aqui:

Não em amar com reserva

Depois do amor que perdi,

Mas em ser o que conserva

Capacidade de dar.

É que o amor terá tornas

Donde nunca se esperar.

Basta andar aberto às jornas,

 

Sempre disposto a aprender

Com as surpresas que houver.

 

 

46 – Diálogo

 

Bem mais difícil às vezes

É o diálogo com quem

Partilha nossos conveses

Que com os outros de além.

 

A maior parte sofreu

De mil e um mal entendidos,

Traído por quem é seu,

Que jamais lhe presta ouvidos.

 

Se os irmãos de tradição

Não logram compreender-se

Como comunicarão

Com o que nos mais se verse?

 

Um frutífero diálogo

Vive fundo a nossa via

E das dos mais o catálogo

Tão mais fundo o ouviria.

 

 

47 – Dom

 

Nosso dom mais precioso

Para aos outros ofertar

Não é dos bens nenhum gozo,

É nossa presença dar.

 

Quando contemplo profundo

E envolvo aqueles que eu amo,

De vida tanto os inundo

Que, sem mais dono nem amo,

 

Desabrocham como flores.

Ficar, pois, indisponível,

Venhas ou vás donde fores,

Não é dum amor credível,

 

Não é de amor verdadeiro.

Se este sofre, sofro inteiro.

 

E só porque sofro o abalo,

Já estou mesmo a aliviá-lo.

 

Quando estou deveras lá

Mostrando minha ternura

O Espírito Santo está

Em nós e nisto perdura.

 

A paz em redor emana,

Atingimos o Nirvana.

 

 

48 – Nó

 

Ao reunirmo-nos formamos

Um nó de comunidade.

Os confins do eu abramos,

Deste eu todo soledade,

 

Vamos unir-nos aos mais

Num grande corpo de amor

E compreensão finais.

Na fusão deste calor

 

Nós com os nossos irmãos

Somos um só dando as mãos.

 

No fundo só nos salvamos

Na comunhão que forjamos.

 

É sempre em comunidade

Que eu atinjo a eternidade:

 

Por dentro, em pressentimento,

Em corpo, quando eu a invento.

 

 

49 – Namorados

 

É dia dos namorados,

De atear à mecha o lume,

Nos trilhos de amor trilhados

A aspirar longo o perfume.

 

É dia dos namorados,

Dia de S. Valentim.

Ai, meu Deus, quantos cuidados,

Ao mos dar, tiras de mim!

 

 

50 – Relação

 

Uma relação sexual

Agradável deveria

Ter uma dose ideal

De humor e de fantasia:

Não é de fugir do olvido,

- É que é mesmo divertido!

  

 

51 – Falta

 

Falta de compreensão

É que gera o sofrimento.

Abre a porta da prisão

Quem doutrem acolhe o evento.

 

Compreensivo se não for,

Não irei aproveitar

A peça de mais valor

Que nos pode libertar.

 

Qualquer amor verdadeiro

Não é viável senão

Quando o mergulhar primeiro

No chão da compreensão.

 

Amar o inimigo como?

Só duma maneira o entendo:

Somando dele o que somo

Compreendendo, compreendendo.

 

Compreender porque é como é,

Como é que tal chega a ser,

Porque as coisas ele vê

Diversas do que uso ver.

 

Compreendê-lo o poder dá-me

De o aceitar, de o amar.

Ao amá-lo faz que o chame

Como um meu familiar.

 

Ao aceitá-lo me aceito,

Ao amá-lo amo-me a mim.

Assim é que deste jeito

Ao inimigo dou fim.

 

 

52 – Começar

 

Quando quero perdoar,

Quero começar de novo,

Da vida obrigar o ovo

Outra vez a germinar.

 

Tu, meu irmão ou irmã,

Fizeste-me mal outrora.

Todavia, sei agora,

Pode haver outro amanhã.

 

Foi porque estavas sofrendo

E assim não verias claro…

Raiva de ti não encaro

Em meus braços te entendendo.

Forçar-nos não poderemos

A perdoar a ninguém.

De compreender nos vem

A compaixão que doemos.

 

Todo o tipo de perdão

É fruto da consciência:

Ficar atento, à evidência

Transmuda do outro o aleijão.

 

Ao ver porque outrem me dói

Natural brota o perdão,

Então vem a remissão:

- Meu irmão, tudo já foi!

 

 

53 – Tempo

 

Do tempo a utilização

Melhor é ser generoso,

Ficando presente então

Aos outros em puro gozo.

 

Hoje em dia a trabalhar

Tendemos em demasia

Mesmo se não há lugar

Do dinheiro à falta um dia.

 

No labor nos refugiamos

Para evitar o confronto

Com as mágoas que choramos,

Do imo as tensões, ponto a ponto.

 

Exprimimos nosso amor

Pelos outros, o cuidado,

Trabalhando com ardor,

Às galés tal condenado.

 

Porém, se tempo não temos

Para aqueles a que amamos,

Se indisponíveis nos vemos,

Como amá-los confessamos?

 

 

54 – Deveras

 

Um amor deveras quer

Tempo de contemplação,

Tempo de reconhecer

Outrem cá presente, à mão.

 

"Sei, amor, que estás aí

E fico feliz contigo"

- Isto jamais o vivi

Se livrar-me não consigo

 

Quer de preocupações,

Quer de meus esquecimentos.

Presente nas solidões,

Só com presentes eventos.

 

Sem estar aqui e agora,

Tudo devém inviável.

Tempo para quem se adora

É que provará, fiável,

 

Um amor que é verdadeiro,

Generoso, a dar-se inteiro.

 

 

55 – Corpo

 

O corpo tem regiões

Que de ninguém querem toque

Nem mesmo aproximações,

Sequer, acaso, um remoque.

 

A não ser de quem amamos,

Que me respeite e eu respeito,

Em quem então confiamos

Por nos ter fundo no peito.

 

Quando somos abordados

Sem cuidado ou casualmente,

Da ternura sem traslados,

Sentimo-nos, de repente,

 

Magoados, maltratados,

Em corpo e alma de gente.

Com cuidados extremados

Quem me aborde, é diferente.

 

Quem dá comunhão profunda,

Vero amor e compromisso,

É que seguro me inunda,

Ateia o lume ao chamiço.

 

Não é o sexo ocasional

Tão descrito como amor.

O amor é fundo, total,

Corpo-alma num só penhor.

 

 

56 – Relação

 

Na relação sexual

É o respeito o mais que importa,

Deve ser como um ritual,

Contemplação que conforta,

Carinho, de amor sinal.

Desejo não é o amor:

Sem das almas comunhão

O prazer pode ser dor

E criar a divisão,

O fosso ao fim é maior.

 

Em vez do amor, alimento

Antes muito sofrimento.

 

 

57 – Consigo

 

O amor é mui responsável,

Consigo traz o cuidado,

Envolve a vontade amável,

O gosto de ser bem dado,

Compreender de raiz

E tornar outrem feliz.

 

Num amor que é verdadeiro

A felicidade real

Não é tema interesseiro

Nem questão individual:

Se não é feliz quem amo,

Não sou feliz em meu ramo.

 

Felicidade deveras

Requer acalmia e paz

No coração das esperas,

No corpo que tudo faz.

Excitação ou paixão

Contêm perturbação.

 

O vero amor é um caminho

De aprendizagem em acto

Que apurará no cadinho

De paz e harmonia o pacto.

Esta é que é a felicidade

Que a quem ama ao fim invade.

 

 

58 – Querem

 

Almas querem amizades

Como os corpos, alimentos.

O teu labor persuades

A gerar encantamentos,

 

Basta a relação amiga.

Na fábrica ou no escritório

A boa conversa abriga

Companheirismo notório,

Fantasia, brincadeira

Que à companhia convida,

Uns dos outros sempre à beira,

Alma gerando na lida.

 

Quando isto não acontece

Ficamos inanimados

E cada qual mais parece

Dum maquinismo os rodados.

 

 

59 – Música

 

É a música uma arte nobre

Necessária à vida humana,

As almas alimenta quando emana,

Sem raias, nem rico e pobre.

 

Com os outros é partilha,

Gera o rosto radioso

De quem num coro canta a maravilha

Que da vida o sabor torna gostoso.

 

Música estude a criança,

Toque um qualquer instrumento,

Cante ou desenhe uma dança:

- Já ninguém é violento!

 

Forja um elo de união,

Recria a comunidade

Em que, de irmão em irmão,

Nos vemos Humanidade.

 

 

60 – Questão

 

Questão de autenticidade

Neste mundo relevante

É a duma necessidade

De tradição que se implante

E duma comunidade

Livres da coerção de crenças

E de dogmas, por igual,

Onde não haja sentenças

A condenar cada qual.

 

Teólogos não sectários

Que leiam tradições, fé,

Nos ajudem, libertários,

A encontrar onde ter pé,

 

A comunhão que não seja

Nem literal nem dogmática,

Onde além da letra eu veja

Todo o céu que há na gramática,

 

É tudo quanto procuro.

- Mas como saltar o muro?

 

 

61 – Procuro

 

Eu não procuro poder,

Meu ego fortalecer

 

Duma forma narcisista,

Mas sim a força que exista

 

Ao viver sintonizado

Com o mundo aqui ao lado.

 

Se nós pensarmos que somos

Os únicos criativos

Neste mundo mineral,

Vegetal e animal,

Todo pejado de pomos,

De mil mortos, de mil vivos,

Sinto a perda de poder,

O que é humano não prospera

Em tal egoísmo de ser,

Todo o equilíbrio se altera.

 

É que o mundo nos sustenta,

Oferta um norte e um apoio,

Pretende, a quem se apresenta,

Dar à fome dele o moio

De trigo que o acalenta:

 

- E a vida em comum se inventa!

 

 

62 – Primeiro

 

Primeiro fácil parece.

Coração puxa a cabeça,

Vontade que nos aquece

Nem nas dúvidas tropeça

Nem nos medos arrefece:

Ser feliz é que interessa.

 

Depois a cabeça trava

O coração desmedido,

A pequena pedra encrava

Do movimento o sentido,

Já num sufoco entalava

O imo dantes repartido.

 

Largar nadas que derrotam

Para atingir mais além

É a via de que se dotam

Os que ao fim se querem bem.

 

Além há cumplicidade

De infindáveis cambiantes:

- Buscá-la-ão de verdade

Os que se querem amantes.

 

 

63 – Reconheço

 

Reconheço que as viagens

São propícias ao amor,

Como a lonjura também:

Jamais comprei as passagens

Solitário sem supor

Quanto o retorno convém.

 

À tentação de ir além

Vem a angústia contrapor

O lar de que sou refém.

 

Não há nenhum viajante

Solitário no caminho

Que não sonhe lá adiante

Que alguém o aguarda adivinho.

 

 

64 – Memória

 

Memória, escola da vida,

Única vera defesa

Contra a traição desferida,

O abandono que despreza.

 

Tudo pode ser traído,

Abandonado no lixo,

Menos o registo haurido

Da memória pelo nicho.

 

Mais fiel do que um amigo,

Mais longa do que uma vida,

É a verdade que consigo

Maior em qualquer medida.

 

Que pena então que a memória

Seja para grande parte

Um cemitério sem glória,

Lixo abandonado aparte,

 

Onde sem honra ali jazem

Os que deixaram de amar!

Que é que deles próprios fazem

Se aos mais tiram o lugar?

 

 

65 – Ninfas

 

Os parceiros sexuais

São ninfas, mais do que humanos.

Homem e mulher são tais

Que inspiram enormes planos

 

Da fantasia, emoção:

Cremos que abraçando o amor

Nos corpos se poderão

Nossos limites transpor,

 

Um nível de realidade

Além se atingindo então.

Almas  de sexualidade

Doutro mundo nos virão

Irredutíveis a partes

Do que é uma pessoa humana.

Sexo com alma tem artes

Duma comunhão que emana

 

Doutro plano da existência.

É a maior motivação

Para a busca de excelência

Dele na louca atracção.

 

 

66 – Afagares

 

Cada vez que de teu par

Afagares os cabelos,

Exausta dele nos braços

Tua fadiga tombar,

 

Teus filhos ligam os elos,

Enchem em branco os espaços:

 

- A mensagem compreendida

É que o melhor que há no sexo

É uma relação vivida

Com o reforço conexo

Da ternura no casal

Como na família inteira.

 

…Digam embora, ao final,

Somente "ah!", muito à ligeira.

 

 

67 – Algo

 

Algo no fundo de mim

Um gosto de eternidade

Procura sentir, enfim,

Um alívio que me invade,

 

Momentâneo seja embora,

Do tempo em marcha imparável.

O eterno jamais vigora

Na lista do inadiável.

 

Mas as almas satisfeitas

Não ficam do que é  mundano.

Mesmo ao tempo e espaço afeitas,

Procuram fugir do engano,

 

Correm da vida agitada,

Das difíceis relações,

Da produtividade armada

Libertam-se de pressões,

 

De horários e de negócios,

Buscam na contemplação,

No tempo livre, nos ócios,

Frestas de libertação…

 

E o sexo, neste contexto,

Reintroduz a magia,

Escreve o esplendor do texto

Onde o sonho já morria.

 

 

68 – Apetite

 

O apetite sexual

Convida as almas do mundo

Pela beleza vital

Dos bosques em que é fecundo,

 

Pelas plantas, pelas flores…

Mantém-nos ele ligados

Das raízes aos rumores,

À natureza grudados

 

Mais profunda que nos toca.

O sexo alimenta a fonte

Que nos dá vida e provoca

Da vida todo o horizonte.

 

 

69 – Covinhas

 

Olhos, covinhas no rosto,

Testas, ombros ou bochechas,

- Tudo ateia o fogo posto

No sonho, quando o não fechas.

 

E devém uma obsessão,

Ao recordar, discutir,

Fotografar, desenhar

Um qualquer pormenor chão

Por que me deixo iludir

Daquela a quem eu amar.

  

 

70 – Indício

 

Belo que a vida melhora

Não implica ser bonito:

Um indício vago aflora

E a ninfa atinge seu fito.

 

Pode um rosto deformado

Ter a voz angelical,

Se esta nos houver tocado,

Muda o rosto de sinal.

 

Não corresponder alguém

De alguém ao perfil do belo

Que importa, se a cara tem

Dele o inefável apelo?

 

A beleza me enfeitiça.

A cosmética ou estética

Pouco entram dela na liça,

Que o que me enliça é a poética.

 

É mágica e tal magia

Serve à sexualidade:

Ao prazer nos inicia

E ao desejo de unidade.

 

Quando todos formos Um,

Há lá mais prazer algum!

 

 

71 – Ritos

 

Ritos de preservação

Poderão ser importantes

Para o sexo e a relação.

Serão incapacitantes

 

Todas as dificuldades

De permanecer intacto

No amor, nas intimidades,

Mais se é consumado facto.

 

No sexo como no amor

Todos tentam ansiosos

Preservar o que se for,

Um pé atrás, cuidadosos,

 

Ou impondo seus limites,

Ou mesmo não se entregando.

Neste jogo de palpites

É que os laços vão singrando.

  

 

72 – Presente

 

Por que é que a pornografia

Tão presente é na cultura?

Só do espírito ser via

Onde a religião se apura

 

É andar desprezando a vida

Sensual à nossa frente,

- Sempre em busca da medida,

Do saber que é mais recente…

 

Precisamos ir mais fundo

Na vida familiar,

No que o corpo quer do mundo,

No comum dia vulgar,

 

Ou a sexualidade

Continua a pressionar

Com tal emotividade

Que, em vez de o complementar,

 

Se opõe ao significado,

Ameaça a tranquilidade,

Não vai dar-me o delicado

Rio de paz que me agrade.

 

 

73 – Buscar

 

Às vezes a busca de alma

É buscar vida comum,

Retirar prazer da calma

Tarefa de dia algum,

 

Manter boa vizinhança,

Filhos, tal como um trabalho

Que os réditos nos alcança

Da vida para o baralho,

 

Ter o sexo habitual

Com a pessoa que amamos…

O interesse inusual

Por inabarcáveis ramos

 

Tende a ser ambicioso

E desumanizador:

Do espírito terá o gozo,

De alma é pobre e sem valor.

 

 

74 – Típico

 

Típico é o casal moderno

Desejar as coisas certas:

Comunicar bem e terno,

Metas próprias ter despertas,

 

Prosseguir as vocações

E criar os próprios filhos

Sadios e sem lesões,

Curá-los, mal há sarilhos…

 

Mas também é bom que aprenda

O casal dele a se rir;

No prazer a ver a prenda

De apreciar e fruir,

 

Simplesmente e sem sentido,

Acaso um pouco idiota;

Saborear o humor vivido

Dos filhos que a vida adopta;

 

E brincar com as maneiras

Sobre o sexo de falar

Deles, embora parceiras

Insociáveis, se calhar…

 

- A vida então distendida

Entre o projecto e a surpresa

É que há-de encontrar medida

Para o que nela se preza.

 

 

75 – Firmes

 

Firmes afirmando a vida,

Da natura apaixonados

Como dos eus com a lida,

Podemos ser inspirados

A mil actos empreender

Para o mundo proteger

Mais aqueles que o habitam.

 

Muitos a comunidade

E a família nos concitam

A defender, dedicados,

Não por vã moralidade

Mas por amor empenhados.

 

Muito idealista preso,

Opositor consciente,

Civil desobediente,

Sendo luminar aceso

 

Há-de ser mal entendido

E condenado, perdido,

 

Pela fé dos moralistas.

Mas a generosidade

Ética deles transcende

A insossa moralidade

Das normas que houver nas listas.

- E é o que a vida nos defende.

 

 

76 – Realça

 

Realça o celibato o eros

Em outras áreas da vida.

Gostos sexuais não são meros,

Já que os sublima e convida

A menos literais formas:

O amor à comunidade,

O prazer da natureza,

Do trabalho, até das normas…

Se do sexo a qualidade,

O desejo da beleza

Gozar, corpo, intimidade,

Um orgasmo metafórico

Andam presentes em zonas

Mui variadas da vida.

Tais áreas vivo-as eufórico,

Devêm a sério donas

Dum erotismo em seguida

E que é deveras real,

Não simbólico sinal.

 

Satisfeito noutro nível,

O desejo sexual

Aumenta o prazer gerível

E diminui a pressão

Que sobre nossos parceiros

A brusca satisfação

Acaba neles usando

Por períodos inteiros

Que às vezes são já desmando.

 

Então paz, não atoleiro,

Partilha um vero parceiro.

 

 

77 – Depois

 

Só depois de muita noite,

De muito dia de amor,

O fantasma que se acoite

Há muito tempo em torpor

Brota de repente à luz.

E pouco a pouco devimos

Completos no que seduz,

Quando connosco adquirimos

A familiaridade

Com os eus de cada idade.

 

Afinal de mim parceiro,

Vou lento sendo eu inteiro.

 

 

78 – Cansam

 

Mesmo quando dois casados

Cansam da vida em comum,

Desavindos, angustiados,

Podem não ter modo algum

De, enfim, dar por terminados

Casamento e lar nenhum,

Já que estes muito mais são

Que as ideias e experiências

Combinadas, mão a mão,

Deles nas próprias vivências.

 

Tem o casamento então

Dele a própria realidade,

Centelha de divindade

A emanar forte poder.

Pareça embora ele ser

Individual criação,

Já ninguém nele tem mão,

Persiste contra quenquer,

Apesar do que quiser,

Qualquer que seja a intenção.

 

 

79 – Difícil

 

É difícil ter bom sexo

Com um coração vazio

Ou um lar empobrecido,

Não do dinheiro conexo,

Antes da vida abundante

Do espírito, sem ter brio

Que evocado e prosseguido

Pode ser a cada instante

Em lar pobre como em rico.

Como ser gratificante

Sem de águas tais um salpico?

Como ter gozo durante

Se ante e após com nada fico?

 

 

80 – Lágrimas

 

As lágrimas me escorriam,

Não por ele, preparado

Para o fim e o que trariam

As surpresas do outro lado.

 

A chorar força-me o fado

Da inevitabilidade

Da morte dum delicado,

Dum bom homem de verdade.

 

Minha dor é por perdê-lo

Como por, gracioso e fino,

Acolher em paz (que belo!)

O que lhe impõe o destino.

 

 

81 – Sentido

 

Que sentido para a vida?

Talvez o sentido passe

Por dar aos filhos, vivida,

A memória que os enlace,

 

De que possam orgulhar-se.

Passar na terra em ausência,

Sem ao menos um disfarce,

É pô-los sem referência.

 

Se, ao invés, lhes for presente,

Então num filho um sentido

Desabrochará, virente,

A dar rumo ao que é vivido.

 

 

82 – Mundo

 

Este mundo nos obriga

Às metas do que queremos

E ao mesmo tempo nos liga

Uns aos outros, que teremos

De conciliar ideias

E projectos, tudo a meias.

 

Apenas quando os consensos

São inviáveis devemos

Escolher pelos mais densos

Caminhos que então julguemos

Que vão direitos deveras

E avançar sem mais esperas.

 

Mesmo contra a maioria,

Contra a opinião de todos,

Se acredito em minha via,

Nela aposto com meus modos.

É, porém, fundamental

Saber criar em geral,

 

Movimentos em conjunto

E gerir bem tal assunto.

 

Do diálogo entre os dois

Vem o equilíbrio depois.

 

 

83 – Luto

 

O luto não é doença

Do corpo que curaria

Acaso com sedativos.

É de alma, requer que a vença

Paciência, amor e ousadia

De carinhos sensitivos.

 

Uma ausência não se cura,

Já que o vazio perdura.

 

Apenas, como à ferida,

O tempo repõe a vida.

 

 

84 - Nenhum

 

Nenhum outro tem de ser

Nenhum retrato de mim.

Qualquer outro o outro há-de ter

Aceite outro até ao fim.

 

O ímpeto dominador

Convém que em mim dominara

Abstendo-me de me impor

A quem não tem minha cara.

 

No martelo e no cinzel

De pegar vou-me impedir,

Não vá meu rosto a granel

No dos outros esculpir!

 

 

85 – Amizade

 

Uma amizade suporta

As mudas inevitáveis

Que pautarão toda a vida.

Não é jamais destruída,

Antes mesmo acaso a exorta

De emoções mal confiáveis

O alto e o baixo com que lida.

Frequentemente os amigos

Se encontram a conversar

E conferem os perigos

E os apelos que andam no ar,

De que andar entretecida

De bom e mau toda a vida.

A ligação duradoira

É que as almas vai nutrir

E constantemente encoira

As arcas do que há-de vir.

 

 

86 – Epicurista

 

A epicurista abordagem

É estilo de vida activo

Em que de tudo a voragem

Sigo enquanto prazer vivo:

 

Cultivo amizades

Ou escrevo cartas,

Em privacidades

Íntimas e fartas

Levo os familiares

A todos os lares,

Canto, toco e pinto,

Preparo acepipes,

Ouço os bons palpites,

Contribuo e sinto

O que então me invade:

A comunidade.

 

E no sexo epicurista

Cultivo a vida sensual,

Como arte o terei em vista,

Dou ao par prazer igual,

Vivo de amor e afeição,

Tranquilo e sem ambição,

Tenho noites, manhãs, dias

Comuns e de parcerias

Em que tudo, por sinal,

É actividade sexual.

 

 

87 – Exprimir

 

Exprimir amor, desejo,

A paixão pelo meu par,

São os modos rituais

De acolher as principais

Ofertas que em redor vejo

Que a vida traz, singular.

 

Quando com nossos parceiros

Se dança a dança do sexo,

A natureza profunda

Das coisas tudo fecunda,

E a consciência disto inteiros

Os laços ata no amplexo.

 

O sexo devém a fonte

Donde jorra toda a vida.

Personificando o amor,

Contribuo com vigor

Para o erótico horizonte

Com que tudo coincida.

 

Reflecte o sexo os contornos,

Movimentos, qualidades,

Sensações da vida diária.

E nesta infusão gregária

Celebro-o, por meus adornos,

De arte com virtualidades.

 

 

88 – Gozo

 

Todo o sexo epicurista

Nele mesmo é valioso,

Não quer justificação

E nada mais tem em vista,

Vale o gozo porque gozo

Sem ter mais continuação.

 

Não tem de gerar bebés

Como não tem de evitá-los.

Perfeito emocionalmente

Não tem de ser, ao invés.

E o correcto, nos abalos,

Sabemos lá quem o sente!

 

Nem sequer tem de ajudar

Ou não relacionamentos.

Pode nele algum ciúme,

Raiva, humor vir-se a implantar.

De paixão, nalguns momentos,

Ou de amizade tem gume.

 

Com base em satisfação,

Não tem mesmo nada a ver

Com ferir outra pessoa

De emocional aguilhão

Nem no físico sequer,

Que não age nunca à toa.

 

Não é manipulador,

Nem egoísta ou abusivo,

Mas também não é perfeito.

É mesmo o momento-mor

À imperfeição alusivo

Aquilo a que presta preito.

 

Todo o prazer moderado

Como um estilo de vida

Elimina uma agressão

Que, frequente em muito lado,

Sempre acaba reprimida,

Presa em sexual pulsão.

 

Não validando o prazer,

Visa o sexo outro objectivo

De que então não o esvazio,

Acabando, ao fim, por ser

Comportamento agressivo

Que jamais escapa ao frio.

 

 

89 – Cuidados

 

Os cuidados que requerem

Os meus electrodomésticos,

Meu piano, a biblioteca,

São como animais domésticos

Cujos apelos me ferem

Culpado como quem peca.

 

Nem sempre a propriedade

É a palavra adequada

Ao laço que mais agrade

Entre coisas e pessoas:

Há naquelas a jornada

Das críticas e das loas.

 

Somos delas companheiros

E tanto elas nos possuem

Como nós as possuímos.

Pesam na cidade inteiros

Os amores de que fruem

Coisas-pessoas que vimos:

 

Prédios, estradas e pontes,

Parques, palácios e casas

À existência social

Dão corpo, dão-lhe horizontes,

Como amantes os aprazas

Em relação sexual.

 

Se o físico mundo virmos

Como mundo inanimado,

De mecânicas funções,

Pela vida fora ao irmos

Vai ficar dela arredado

O entalhe dos corações.

 

Dispomo-nos a passar

Dos dias a grande parte

Num ambiente sem amar,

Assexuado e sem arte.

 

Mas se as horas de trabalho

De nossos dias não são

Das ninfas do sexo um galho,

Do espírito meu refrão,

 

Como posso, de repente,

Fora de qualquer contexto,

O acto sexual crer premente

Sem vislumbrar-lhe pretexto?

 

Como posso separar

O sexo de toda a vida

E depois dele esperar

Que dê sabor e guarida?

 

 

90 – Corpo

 

Num corpo a vida se estende

Às muitas coisas criadas

Pelos trabalhos dum homem.

Quem cuida o corpo defende

Coisas lindas, bem talhadas,

Ao meio ambiente moldadas,

Mantidas contra os que as somem.

 

Em nossa cultura,

O lixo demais,

Grafítis, barulho,

Ninguém deles cura,

Ruas são locais

Onde sofro o engulho

De mil barrocais,

Pontes destruídas

Já não ligam vidas…

 

É a desatenção

Que ao corpo revelam,

Têm relação

Ao sexo que não

Amam, antes gelam.

 

Em ambos os domínios esta incompetência

É de amarmos o corpo uma incapacidade

Como amamos da mente qualquer excelência.

De investigar reflecte esta prioridade

 

Aquilo que é invisível, sem dar atenção

Ao visível que, enfim, é sempre o nosso chão.

 

É possível a paixão,

Apreciar a beleza,

O sensual da natureza,

Da matéria tida à mão.

 

Podemos fazer voltar

Velhos modos de criar

Um mundo que adornaremos

E no qual então vivemos

De vínculo restaurado

Entre nós e as coisas todas

Que sempre nos hão cercado

Preparadas para as bodas.

 

 

91 – Invejo

 

Invejo a todos o não serem eu.

De todos os impossíveis

Sempre este me pareceu

O maior dos que forem invivíveis.

Então mais me constituiu

Ânsia minha quotidiana,

Desespero de horas tristes.

Como quem se não engana:

É que, afinal, tu existes

E como um Tu me resistes,

A ferir-me, uma pragana

Nas costas a arranhar, branda,

O viandante que não anda.

 

 

92 – Destruí-me

 

Destruí-me ao compreender,

Já que é me esquecer de amar.

Mas que amar ou odiar

Se nem notícia tiver

Do que em conta hei-de tomar?

 

Eis a verdade e a mentira:

A solidão me desola,

A companhia me oprime.

O pensar em mim delira,

Doutrem a presença o imola

Quando dentro se me imprime.

Sonho-lhe então a presença

Em distracção radical,

Mas da análise a sentença

Já nem lhe encontra sinal.

 

- Do que a ambiguidade vença

Não encontro chave real.

 

 

93 – Náusea

 

Da humanidade vulgar

A náusea física tenho,

Única que, afinal, há.

Capricho em a aprofundar,

À náusea que em mim mantenho:

Como se há-de provocar

O vómito que haja cá,

A aliviar-me do cenho

O ríctus de vomitar?

Vomito a vulgaridade

Mas sou corpo de delito,

Já que o vómito me invade:

De mim como me vomito?

 

 

94 – Diverge

 

Quão mais diverge de mim

Mais alguém real parece,

Que menos depende ao fim

Do subjectivo refece.

 

Por tal meu estudo atento,

Constante, é da humanidade

Vulgar que repugno, isento,

De que disto o que me agrade.

 

Amo-a tanto quanto a odeio.

Porque detesto senti-la,

Gosto de vê-la em recreio

Pelos recantos da vila.

 

A paisagem admirável

Como um quadro toca o peito

Mas, por norma inabordável,

É incómoda como leito.

 

 

95 – Preste

 

Pouco importa que a criança

Nunca a ti te preste ouvidos.

Repara no que ela alcança

Além dos termos medidos,

 

Toma cuidado, ela parte

De andar sempre a observar-te:

 

O que na criança meças

É o que faças e aconteças.

 

 

96 – Duvidar

 

Duvidar não é perder

Nem de vez ficar perdido,

Nem de escolha incapaz ser,

Indeciso e dividido.

 

Dá um pouco mais de trabalho

Do que isto de ter certezas,

Implica ver o que valho

No rol de minhas devesas.

 

Hipóteses diferentes

Requererá ponderar,

Alternativas vigentes

Doutro modo sopesar,

 

 

Ouvir os pontos de vista

Dum terceiro a ter em conta,

Acolhê-los, ver se exista

De verdade qualquer ponta…

 

Enriquece em simultâneo,

Dá-nos maior consciência

Do falível sucedâneo

Que era em nós uma evidência.

 

 

97 – Trate

 

Não veja o comportamento

Dum homem com a mulher

Que ele amará de momento.

Ao invés, trate de ver

 

Como é que ele se comporta

Com a mulher que deixou:

Se ele a escorraça da porta

Ou respeita o que sonhou.

 

É da lotaria o selo

Da taluda e do singelo.

 

 

98 – Creio

 

Creio bem que tudo é justo,

Tudo foi determinado.

Minha casa é o mundo inteiro:

Estou em casa sem custo,

Moro mesmo em todo o lado,

Não há muro a mim fronteiro.

 

Não há linha divisória,

Jamais houve. Eu a inventei

Num jogo de má memória

E depois pu-la na lei.

 

Caminho lento na rua

Por onde o mundo caminha

E sofrer uma dor nua

Que quem não mostra adivinha.

 

Quando paro, se me encosto

A um candeeiro de pé,

É um amigo que dá gosto,

O ferro nem vejo até,

 

É criação duma mente,

Tem um feitio, é dobrado,

Formado por mãos de gente,

De hálito humano soprado.

 

Quase parece falar-me,

Passo a mão, é mesmo humano,

Dá mesmo um grito de alarme

Quando o lesam por engano.

 

O mundo, no que é visível,

No âmago de seu pendor,

É, dum modo bem tangível,

Um mapa do nosso amor.

 

 

99 – Mulher

 

Revela a mulher amada

Um outro lado da vida:

O semblante do absoluto.

Teofania ignorada,

Mostra que a Terra entendida

Doutrem é sempre produto.

Nela algo devém sinal,

Sentido, poema e fanal.

 

- Levanto ali rumo aos céus

E toco a pele de Deus.

 

 

100 – Desilusão

 

À desilusão três modos

Há de alguém se contrapor

E será num dentre todos

Que tua escolha irás pôr.

 

Dar um tiro na cabeça,

Ou retirar-se da lide,

Ou cidadão, como peça,

Intervir no que convide.

 

Dar aquilo que pudermos,

(Não salvar a humanidade)

Da terceira via termos

São do que ali persuade.

 

Pode ser apaixonada

Da paixão pelo concreto,

Não da ideia abstractizada,

A via que nos dá o tecto.

 

 

101 – Conseguiste

 

Não conseguiste uma ponte

Hoje ainda a teus vizinhos?

É uma questão de horizonte.

Não tereis de andar sozinhos

 

Pois, se, a partir de amanhã,

Já não houver nenhum fosso

A separar-nos no afã,

Já nenhuma ponte endosso,

 

Não há dela precisão.

Amanhã já ninguém foge

Doutrem, preso à solidão:

- E amanhã começa hoje!

 

 

102 – Espelho

 

Toda a vida é um grande jogo

E a maneira de o ganhar

É ser bom, com desafogo,

Sempre e para quem calhar.

Para o espelho quando olhemos

Há que gostar do que vemos.

 

 

103 – Pertenço

 

Pertenço a uma geração

Que perdeu todo o respeito

Pelo passado papão

Pelas próprias mãos desfeito,

 

Que toda a crença, esperança

Pelo futuro esvaiu

No gesto que não alcança

O sonho que se traiu.

 

Vivemos este presente

Com fome que nos abrasa

Na gana quase demente

De quem não tem outra casa.

 

 

104 – Alto

 

Quão mais alto um homem for

De mais tem de se privar.

No cume será o lugar

Duma solidão se pôr.

 

Quanto mais perfeito,

Tanto mais completo.

Quando alguém atinge o tecto,

Afinal doutrem que é feito?

 

 

Dentro dele, bem no fundo,

Tudo liga a todo o mundo;

O mundo é que lhe não liga:

- É a solidão que o fustiga.

 

 

105 – Gero

 

Gero personalidade

Sem incluir nada alheio,

Nem dum outro que me invade,

Nem de impor-me, de ordens cheio,

- Só de os mais ser de verdade,

Incarnando-os com enleio

Até à saciedade.

Da merenda este recheio

É a minha autenticidade.

 

 

106 – Humildade

 

A humildade uma lamúria

Não é, dádiva serena

Dum amor, quando a penúria

Da solidão mais ordena.

 

Apenas quem muito amar

Humilde poderá ser,

Que o despeito, se brotar,

Ante o amor vai-se esconder.

 

Então, sim, é que a humildade

Irá ter força e constância:

Somos humildes, o que há-de

Aos outros dar a substância.

 

Na comunidade entramos

Como uma ínfima parcela

Da razão porque vivamos,

- Homens seguindo uma estrela.

 

 

107 – Gratidão

 

A gratidão nos revela

A plenitude da vida:

Devém festa a refeição,

O estranho é amigo que apela,

A casa, um lar que convida…

- É um milagre a gratidão.

 

 

108 – Rosa

 

Esta rosa em minha mão,

Duma roseira cortada,

Ao pô-la em teu coração,

Nova roseira lhe é dada.

 

E quando abres num sorriso

E teu beijo a rir flutua,

Sei lá que rosa diviso:

- É planta ou gente a que é tua?

 

Há quem goste dum jardim,

O melhor a mim me alcança:

- Cultivas a vida em mim,

Quanta abelha por mim dança!

 

 

109 – Amor

 

O amor? O amor, certamente.

Fogo e chamas por um ano,

A arder tudo fugazmente,

Depois cinzas por cinquenta…

E só escapa ao desengano

Quem ao borralho se esquenta:

Nesta quentura soprada

Foge à velhice nevada.

Só então dedos de ternura

Eternizam a frescura.

 

 

110 – Respeita

 

No que respeita às crianças

O dever duma família,

Muito amor, muita vigília

É lhes dar, nas contradanças

De horas incondicionais

Com surpresas bem reais.

 

Aos bebés pré-requisitos

Ante a prenda de nascer

Não devem se impor, que os fitos

São de uma família haver.

Doutro modo, o preconceito

Deixa vago o altar do preito.

 

 

111 – Eternidade

 

Ódio, dor, como tragédia

Sempre serão passageiros.

Uma vida de amor nédia,

De mil dádivas, esteiros

Rasga tempo além, sem fim,

- Eis a eternidade em mim.

 

 

112 – Dói

 

Quando a cabeça dói, dói-me o Universo.

Nítida mais do que a moral é a dor

Física, mas reflecte no reverso

Tragédias mais do que era de supor.

 

Carreia uma impaciência e desespero

De tudo, sem limites nas sequelas:

Como é de tudo, não exclui um mero

Planeta nem nenhuma das estrelas.

 

Doendo-me a cabeça, amigos meus,

No fundo o que me dói é mesmo Deus.

 

 

113 – Aprender

 

Podemos e deveremos

Aprender com toda a gente.

Muito barco encontra os remos

Na mão do mais indolente,

 

Muita seriedade advém

De charlatães e bandidos,

Filosofias, também

De estúpidos iludidos,

 

Lições de firmeza e lei

Vêm acaso dos de acaso…

- Tudo em tudo encontro e sei,

Desde que atento e no prazo.

 

 

114 – Pai

 

O pai que encoraja o filho

A trilhar trilho que é seu

De certeza que esqueceu

As pegadas que em tal trilho

Antigamente imprimiu.

Se não desata o cadilho,

É um filho que ao fim perdeu.

 

 

115 – Presentes

 

Já não tenho nem me lembro

Dos presentes de Natal

À chaminé, em Dezembro,

Criança que fui igual

Doutro lar a qualquer membro.

 

Mas acarinho e comigo

Trago as lições duma vida

Que me deram, ao abrigo

Duma infância distendida,

O familiar e o amigo.

 

Velhos da comunidade,

Os meus pais, os meus irmãos,

Com responsabilidade,

Afectuosos, dando as mãos,

Deram-me, em contos, verdade.

 

Possam as recordações

Dar-me a força de deixar

De comprar tudo aos montões,

À infância o presente a dar

Que partilhe corações:

 

Tempo com o adulto atento

A recontar mil magias,

Saborear o momento,

A retransmitir as vias

Que de vidas são fermento.

 

 

116 – Dona

 

Dona de casa é não só

Labor não remunerado,

Cozinhar, limpar o pó,

Suor demais explorado.

 

É também um contributo,

Subtil mais que respirares,

E que é o discreto produto

Do que o amor traz aos lares.

 

Não é labor de maçada

Este que ela aqui fizer,

Mesmo de suor cansada,

Porque o amor é prazer.

 

E é crucial, pelo menos,

A um ou outro elemento,

Acaso a todos, que acenos

De amor os fecunda o vento.

 

Uma orelha sempre atenta,

A palmadinha nas costas…

Que vale isto e o mais que inventa?

- A crianças, tudo, apostas?

 

 

117 – Custos

 

Se em lugar de três reis magos

Eles foram três rainhas,

Os custos que foram pagos

Pegavam outras gavinhas.

 

Pediam informação,

Chegado a tempo teriam

E o parto ajudado então

Por mãos delas haveriam.

 

Teriam limpado o estábulo,

Confeccionado comida…

Resultava outro retábulo

No presépio, de seguida.

 

Úteis levariam prendas

E haveria paz na terra:

O curral, entre as vivendas,

Era um lar – findou a guerra.

 

 

118 – Grande

 

O grande homem não é grande

Por aquilo que produz

Mas muito mais pela luz

Que projecta para além

Do canto a que se reduz

O território onde mande.

O grande homem não provém

Disto de ter alma grande,

Mas de ser alma de quem

Aquele que se exaurir

Acaba por se ir nutrir.

 

 

119 – Voar

 

Somos anjos, somos anjos,

Contudo, duma só asa.

Para ir ao som dos banjos

É preciso o que nos casa:

- Temos de nos abraçar

Uns aos outros p'ra voar!

 

 

120 – Folha

 

À folha não olhe tanto

Que oblitere que ela é parte

De árvore, a qual, entretanto,

Na floresta se reparte.

 

Pois da cabal consciência

Da existência da floresta

É que me vem a evidência

De eu ser do mundo que resta.

Isto é que mantém unido

Da humanidade o tecido.

 

 

121 – Família

 

São a família as crianças:

Nos filhos cruzam-se os filhos

Que nós fomos noutras franças,

De nossos pais os atilhos

E os pais que sonhámos ter

Mais os que tentamos ser…

 

As crianças são resumo

Da nossa falha e do aprumo.

 

 

122 – Revela

 

Em nada mais claramente

Se nos revela um senhor

Que na desavença assente

Que lhe divide em redor

 

Todos quantos se lhe opõem:

É sempre um senhor das trevas

Cujas patas em ti põem

As cangas que ao lombo levas.

 

 

123 – Marés

 

Todas as marés do mundo

Nada obriga a dominarmos,

Mas apenas a ajudarmos

Os anos em que, fecundo,

 

Lavramos o itinerário,

Mondando as ervas daninhas

Do campo que é nosso herbário,

Cultivando hortas maninhas…

 

Que quem viva então depois

Terra limpa venha a ter

Para amanhar com seus bois.

O tempo que então vier

 

E que ele vem encontrar

Não nos irá, pois, caber

A nós lhe determinar.

É livre, por sua vez,

De o lavrar com dele a rês.

  

 

124 – Surpresa

 

Há muito quem previamente

Goste de saber da ementa,

Mas quem prepara um presente

Secreto quer o que inventa,

 

Que a surpresa dá mais força

Às palavras de louvor

E os laços então reforça

A todo o tipo de amor.

 

 

125 – Perder

 

Se tudo fica em perigo,

Alguém tem de prescindir

E perder, perdendo o abrigo,

Para que outrem, no porvir,

Possa de vez conservá-lo

E fruir dele o regalo.

 

Não é justo? Não é justo,

Mas tem o fado este custo.

 

E há sempre nele um sentido:

O do amor que for vivido.

 

 

126 – Louco

 

O amor não é louco, não,

Sabe mui bem o que faz,

Jamais age sem razão,

Mesmo que escondida atrás

 

Nos fique de vez a nós.

Somos nós que loucos somos,

Que insistimos em ter voz,

Compreender nos propomos

(Sem reparar no aleijão)

Um amor com a razão.

 

 

127 – Artista

 

Um artista quando atinge

A plena felicidade

Com o carro que não finge,

O namoro que lhe agrade,

Então morre um bocadinho

Nas artes de que é cadinho.

 

Quando curou a ferida

Deixou de ter que dizer:

A criação que é nascida

É da ferida que houver.

O feliz perde o carisma,

Já com mundo outro não cisma.

 

Falta, porém, plenitude,

A ferida derradeira

Que a novo dia se grude

A sonhar outra maneira:

E eis que do gume no fio

Dói fatal o desafio.