CORPO DE
SONHO E MADRUGADA
CORPO DE SONHO
E MADRUGADA EMBEBO
Escolha aleatoriamente
um número entre 1 e 127 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1 –
Programa
Corpo de sonho e madrugada embebo
Em projectos de infindas utopias.
Com bom senso repouso em medianias,
Factos retrato, a fonte são que bebo.
Do amor retomo os laços e as magias,
Projecto além minha cerviz de gebo,
Os pés me gruda do cotio o sebo,
Nas coisas findo me assentando os dias.
De novo colho a robustez dos laços,
Outro mundo de além me negaceia,
Às pedras findam presos os meus braços.
Em clássicas pegadas balanceia
Meu trilho a divergir sempre em meus passos
E acabo rindo alegre ao que me ameia.
2 – Corpo de sonho e madrugada embebo
Corpo de sonho e madrugada embebo
Teu rosto ao ler de gestos e utopias,
Da ternura ao calor, nas medianias
Em que o quotidiano como e bebo.
Nos laços que nos unem há magias
Que o dom de endireitar têm o gebo,
Os olhos limpam do rançoso sebo
Que as rotinas espalham sobre os dias.
Ao confraternizar atamos laços
Na teia que nos prende e negaceia
Da lonjura que mora além dos braços.
Por entre luz e sombra balanceia
O que vislumbro a me guiar os passos:
Da fundura do abismo o amor ameia.
3 – Poder
Violência não é poder,
Força na agressividade
Não mora nunca sequer,
Domine embora a cidade.
Deveras quem for herói,
Por mais inacreditável,
É quem ousar quanto dói
Por ser com todos amável.
4 – Perdão
Todo o verdadeiro amor
É uma forma muito forte,
Muito forte de perdão.
Por sozinho me supor
Triste, triste como a morte,
Requeiro do amor a mão.
Porém, além disto espero
Que ele me vá perdoar
Estes óculos colados
A fita-cola de esmero
Mais os quilos que engordar
Este corpo de pecados.
Aguardo que veja além
Deste meu cabelo sujo,
Da gargalhada estridente,
Das migalhas que contém
O sofá da sala, cujo
Forro lhe foi hoje assente…
Aguardo que me perdoe
Que eu seja um mísero humano.
- E que apesar disto voe
Por mim até onde ecoe
Dos deuses o antigo arcano.
Que me reconheça aí
Onde de vez eu queria
Viver, por fim, algum dia
E onde jamais eu vivi.
5 – Querer
Se o ciúme é pretender
Manter sempre o que se tem
E a cobiça é querer ter
O que se não tem também,
Será inveja não querer
Que os outros tenham sequer.
Entre os três, a toda a hora
Vai-se-nos a vida embora.
6 – Avós
Os avós são caso aparte,
Aos netos dão segurança,
Continuidade, e, com arte,
Seu gesto lhes afiança
Que ao fim tudo acaba bem.
Os pais andam a apressá-los
E os avós, como convém,
Passam o tempo a acalmá-los:
Quem convive com avós
É sereno, mais tranquilo
E mais confiante após.
- Trata, pois, tu de segui-lo.
7 – Cão
O cão é um bom professor,
Dele o mundo inteiro é o lar,
O momento com vigor
Vive e quer-nos ter a par.
Os cães, incondicionais,
Amam-nos na vida vária,
Não do corpo por sinais
Nem pela conta bancária.
Quem nos dera, quem nos dera
Que o homem fora este cão
No porvir que nos espera,
Não o cão da tradição!
8 – Empatia
"Compreendo exactamente
O que sentes, vou prová-lo!"
- É uma empatia que mente,
Só para próprio regalo.
A verdadeira empatia
Ouve e presta companhia.
9 – Desligado
Quão mais ligados estamos
Mais desligado me sinto.
Da tecnologia os tramos
Não nos ligam, que o desminto,
Pois cada degrau que avança
Pelas comunicações
É um passo atrás onde entrança
Um vazio de ilusões:
Quanto mais nos persuade
A ocupar montanha e vale
Mais nos mata a intimidade
Do encontro interpessoal.
10 – Automático
O atendimento automático
É ter a conversa inteira
Deste modo sintomático:
Sem termos ninguém à beira
Nem contactar com ninguém.
A mãe deixa-me um recado,
Respondo igual eu também:
Nenhum sabe do outro lado.
É um inerte gravador
Que aqui é rei e senhor.
Depois sinto-me sozinho…
- Como é que o não adivinho
E busco a consolação
Bem mais num copo de vinho
Do que em ter outrem à mão?
11 – Apanho
Cada vez me apanho mais
Atrás da carta electrónica,
Para o que requer sinais
De voz viva e bem harmónica,
Ou a ver-me aliviado
De o gravador atendido
Ter o que o tempo ocupado
De falar me tem proibido.
Eis como tantos esforços
Para manter-me em contacto
Me deixam com os remorsos
De isolar-me, em seu impacto.
A indústria, se me encoraja,
Não ergue humanos canais,
Faz apenas que ao fim haja
Escolhos anti-sociais.
12 – Endeusar
Endeusar a juventude
Tira o dever de aprender
Com os velhos quanto pude.
E o direito a cometer
Erros nos rouba que apenas
Se admitem a quem ainda
Viveu pouco nas arenas
Que a vida traz, mal advinda.
Há-de importar aos mais novos
Retornar a quando os velhos
Com a idade mil renovos
Consagravam de conselhos.
A importância era uma coisa
Vinda da longevidade,
Das vidas em que repoisa
O arcano da qualidade.
13 – Partido
Os velhos cada vez mais
Viverão. Que bom seria
Se um bom partido tirais
Do que dali se anuncia!
Não é por eles que, avós,
Ao finar-se a luz do dia,
Irão deslaçando os nós.
Por eles, não, é por vós!
E é por nós, que principia
A esmorecer-nos a voz
Quando a raiz se emacia,
Plantas a que o sol atroz
Todo o solo cresta um dia.
14 – Pouco
Dar um pouco de atenção
A quem nos cruza a chorar
É gesto que faz lembrar
Que aqui não há solidão.
Não estamos sós no mundo,
Num mundo individualista.
É bom aumentar a lista
Do que o torne mais fecundo.
Mesmo o indefeso gatinho
Que afinal recolho em casa
Se calhar acende a brasa
Que algures nos dá carinho.
15 – Seis
É nos primeiros seis anos
Que a criança fundo aprende
Regras conviviais sem danos,
Comportamento que atende
Doutrem às expectativas,
Respeito pelos demais…
Se birrenta for, de esquivas,
Chantagista, em tremedais
Se afundará que depois
A impedem de controlar-se
Na escola, emprego, e os atóis
Levam-lhe o barco a afundar-se.
Relações interpessoais
Vindoiras, se andar afeita
Às vontades serem tais
Que qualquer lhe é satisfeita,
Tornam-na tão ditadora
Que ninguém mais a sustenta.
Devém tão da lei já fora
Que é presa por violenta.
16 – Hoje
Hoje em dia os pais trabalham
Cada vez mais, o que faz
Que o que mais querem mais
falham:
Mais rico, menos capaz.
É uma questão de somenos
Que o pior gera dos sarilhos:
- Que tenham cada vez menos
Tempo de estar com os filhos.
17 – Filha
O que a filha lhe requer
É sentir-se apreciada.
Se nem lhe toca sequer,
Descobre-se abandonada
E arranja um modo qualquer
Para se fazer notada.
Maus tratos de solidão
Que é que lhe irão provocar?
Apenas embirração,
À procura dum lugar
Que ocupe no coração
De quem a pudera amar.
Uma birra, uma chantagem,
São o reverso da imagem:
Tal a loucura da fome
Por alguém que em conta a tome.
18 – Recusa
Se crês não dever comprar
Algo que um filho te pede,
Trata então de lhe explicar
A recusa, o que to impede.
Ele após mais facilmente
Se resigna à frustração.
Do local fugir ausente
Por vergonha da sessão,
Caminho não é jamais,
Por mais que ele bata o pé,
Atroe em gritos, em ais…
Dele é uma vitória até:
Logra aborrecer os pais.
Educar mostra quem manda:
Qualquer inversão do lado,
Já que os pais são quem comanda,
A todos lhes mata o fado.
19 – Oposto
Oposto do amor
Não é ódio, não:
Ainda que em furor,
Já presta atenção.
Oposto deveras,
Negando a presença
A quaisquer esperas,
- Só a indiferença.
20 – Pior
Será ficar ignorada
O pior que acontecer
Pode sempre a uma mulher.
Depende ela, exagerada,
Das opiniões daqueles
Que a rodeiam, mesmo imbeles,
Dos olhares masculinos
De admiração, quando passa
Pela rua ou pela praça,
Dos elogios ladinos
De colegas e de amigos:
São vantagens, são abrigos.
Ao perpassar pela estrada
Repica um sino qualquer
Que um olhar tenta colher.
Será ficar ignorada
O pior que acontecer
Pode sempre a uma mulher.
21 – Parte
Na maior parte dos casos
A mulher é que levanta
Questões conjugais subtis.
O marido soma atrasos,
Evita falar de tanta
Questão que não tem perfis.
Não é crise conjugal:
Todos os casais felizes
Serão assim por igual
Com mais ou menos matizes.
22 – Discutem
Discutem muitos casais
Por um problema importante.
Quatro anos depois ou mais
É como ao primeiro instante.
Ao casar, todos herdamos
Mil insolúveis problemas.
Os outros nupciais ramos
Iguais foram noutros temas.
Isto não infelicita,
Porém, dum bom lar a dita.
23 – Reiteram
Setenta e cinco por cento
Dos casais que consideram
Que seu lar é uma desgraça,
Cinco anos após o intento,
Quando nele reiteram,
Constatam que tudo passa:
Trabalhadas as matrizes,
Doravante ei-los felizes.
24 – Diferenças
Amem vossas diferenças!
Ficando muito felizes
Um doutro com as sentenças
E as contrárias parecenças,
Enraízam mil raízes.
Tal vai ser o ponto forte
Que um lar une até à morte.
25 – Inícios
O casal desilusão
Sente quando se esboroa
Dos inícios a paixão,
Se o romantismo já não
Pelo quotidiano ecoa,
Se afloram as diferenças.
"Nas domésticas tarefas,
Nem ajuda nem sentenças,
E de nossas desavenças,
Que serão sempre às catrefas,
Ninguém pode dizer nada.
Sempre a ver televisão!
E então com a criançada
Não a quer ver educada,
Condescende até mais não!"
Tudo encara a divergência
Como problema em ruptura,
Quando, afinal, a ocorrência
É uma oportuna evidência
De enrijecer a estrutura.
Fortalece a conjugal
Tessitura de teu lar,
Não de quanto for igual,
Que não tem novo sinal,
Mas do que é complementar.
Os dois lados da montanha
É que a elevarão tamanha.
26 – Casais
Os casais fortalecidos
Sentem-se ao trabalhar juntos.
Frequentemente os assuntos
Acabarão resolvidos
Porque encontram soluções
Em que qualquer adivinho
Vê que de ambos as poções
Nenhum veria sozinho.
27 – Vínculos
Vossos vínculos mantenham!
É que os casais que resultam
Sempre em contactos avultam
Com a família, os amigos,
Comunidades que tenham.
Quaisquer laços são abrigos:
Venham os tufões que venham,
Não nos esbanjam os trigos
Nem as pragas nos insultam
Nas ceias que se desenham.
Vossos vínculos mantenham!
28 – Digno
Para os casais bem unidos
O casamento é sagrado
E digno de sacrifício.
Fé e querer são requeridos
Para qualquer mau bocado
Redundar em benefício,
Tornar as dificuldades
Em elementos de força.
Ainda mais nestas idades:
Por um lar ninguém se esforça,
Dum divórcio ninguém orça
A que montam as sequelas
Nos próprios e parentelas.
Os carreiros divididos
Nunca a um lar dão conjugado:
Para os casais bem unidos
O casamento é sagrado.
29 – Recordem
Recordem os bons momentos.
Se o casamento é abalado
Por conflitos e tormentos,
Um não é do outro admirado,
Reavivem os sentimentos
Positivos do passado.
Nalguma curva da estrada
Se ata o fio da meada
E vale a pena outra vez
Apostar por mais um mês.
- Quem sabe meses que tais
Não virão sempre outros mais?
30 – Laços
Quem tem laços sociais
E mais diversificados
Menos vai tender que os mais
A sintomas constipados.
Ou então são mais suaves,
Dentro da constipação,
E os dos mais serão mais graves:
- Tanto em nós pode a união!
Quanto mais só me adivinho
Mais da morte sou vizinho.
31 – Depende
O modo de envelhecer
Depende de ser capaz
Com jovens de terno ser
E, com velhos, compassivo,
Solidário com quem faz
A defesa do que é vivo,
Tolerante com os fracos
E com os fortes também…
- É que um dia, por feitiço,
Juntando todos os cacos
Que a vida inteira contém,
Terei sido tudo isso!
32 – Estrada
Pode um casamento dar
Voltas e reviravoltas,
Como uma estrada costeira,
Tortuosa, a revirar
Dunas mais areias soltas
Com o abismo sempre à beira.
Perdem-se alguns casamentos
Neste litoral rochoso,
Outros, porém, são eventos
Eternos no mar brumoso,
Que sempre a estrada costeira
Do abismo eterno se abeira.
33 – Afectos
Foi no poder dos afectos
Aquilo em que acreditei.
Ao relento é o que dá tectos,
Força do calor que achei
A arder em quaisquer projectos.
Calor da mão que me pega
Na minha e me põe a andar,
Do corpo que embala e nega
Os pesadelos do lar,
Ternura que vê e é cega…
É o que nunca me abandona.
Que importa que seja Deus,
Espuma da Terra à tona,
Mistério de mudos céus?
É o que nunca diz adeus
Nem depois da hora nona.
34 – Esposa
Uma esposa deve ser
Tal qual o ar para o marido.
Se o ar nos falta, é de ver
Quanto aperto se há vivido!
Porém, o ar é invisível
A qualquer olhar humano,
Não é um intruso, é miscível
A toda a vida, sem dano.
Quando uma mulher parece
Este ar que aspira quenquer
Todo o problema esmorece
Que houve entre homem e mulher.
35 – Poalha
Com o decorrer dos anos
Forma-se um rosto invisível
No casal, poalha de arcanos
Que dois sujeitos, sem danos,
Assemelha, imarcescível,
Quando se acumula neles
Vestindo-os de novas peles.
Então marido e mulher
Semelham quase irmãos ser.
36 – Colar
Um colar de volta inteira,
Com oiros de tradição,
É mais que jóia leveira,
É penhor de comunhão.
Comunhão com os de antanho
Que nos abriram as portas
Para fruirmos do ganho
Haurido em suas retortas.
Comunhão com os de agora
Que dos encantos partilham
Na festa que nos demora
Quando os laços maravilham.
Comunhão de mim contigo
Porque, ao dar-to, quanto amamos
Afinal é o que te digo:
Tudo em nós de amor são ramos.
37 – Busca
Se andas em busca de amor,
Não leias então artigos
Sobre agarrar um parceiro,
Nem maquilhagem vás pôr,
Nem busques ao peso abrigos,
Tem teus quilos por inteiro.
Vive a vida, não te isoles,
Não te queixes do que tens,
Às compras nunca te imoles,
Que em demasia tens bens,
Frui da vida que tens já…
- O amor encontrar-te-á!
Se não na forma que almejas,
Contigo é, nem que o não vejas.
38 – Sexo
O sexo não é o amor,
Pode ser poema de afecto:
Rotina do casamento
A dissolver-se ao fulgor
Deste vislumbre discreto
Dum absoluto no tempo.
Tão rápido como o raio,
Um momento no Além caio,
Sou o Além por um momento.
Ao acordar do outro lado,
Do lado de cá desmaio:
- Suspeito que ando trocado…
39 – Embeleza
O amor é alegria,
Embeleza a vida,
Mesmo o dia-a-dia
Então nos convida,
Mesmo o que era triste
Se converte em gala.
Quando, porém, a vida não existe
Amor algum consegue embelezá-la.
40 – Pobre
Se deixar de ver teu rosto
Fica o mundo de repente
Tão pobre que este sol posto
É muito mais sol poente.
Como é que vou aguentar?
Será que aguentarei
Ou nem deverei pugnar,
Deixo-me ir onde nem sei?…
Sem teu rosto fico cego
Num abismo tão profundo
Que me afundo neste pego,
Nunca mais o mundo é mundo.
41 – Normalmente
Normalmente, para o homem,
O valor da relação
É do sexo que consomem
E do que prometerão.
Pode a mulher ser esperta,
Magnífica, interessante,
Para mimar sempre alerta
Desde as pantufas à estante,
Que ele corre doutra atrás
Que o arraste para a cama
E que outra coisa não faz,
Nem quer saber, nem proclama.
Quantos homens, de repente,
Depois da mulher de sonho,
Ficam da parvinha em frente
Sem verem como é enfadonho!
42 – Perde
Se um homem perde a potência,
Perde, acredita, o poder,
Não só perante a mulher,
Ante os mais, por excelência.
São arcaicos sentimentos
Duma memória apagada,
Tal se perdera argumentos
Por não cobrir a manada.
Virá por força um rival
Que as fêmeas vão preferir
E o impotente, afinal,
É o perdedor a seguir.
O que não tem nada a ver
Com ele mesmo, a esperteza,
A rapidez que tiver,
A força, nem a destreza…
E eu que sempre acreditei
Que um amor entre quem se ama
É o bastante e dita a lei
Sem mais enredar a trama!
Para um homem sempre o falo
Vem em primeiro lugar.
À mulher que importa o talo?
Da couve é que faz manjar.
Relações homem-mulher
Andam de óculos trocados:
Um homem perto vai ver,
Ela os longes mal sonhados.
Elas vêem o global
Que o caminho futurar,
Eles vêem menos mal
Este aqui particular.
A complementaridade
Poderia dar-nos sorte
E, ao invés, a realidade
É que a um amor leva à morte.
43 – Terras
As terras são como gente:
Os melhores de nós têm
Cantos sombrios na mente
Como às terras se consente
Becos que a luz mal retêm.
E nas relações humanas
Luz e sombra sempre irmanas.
44 – Velhos
Velhos amigos não é
Possível jamais fazê-los.
Após os pormos de pé
É possível é perdê-los.
E ao perdê-los nós também,
Mais do que pô-los aparte,
Ficamos, tal pedro-sem,
Sem de nós a melhor parte.
45 – Reciprocidade
Reciprocidade não
No-la garante a paixão,
Não há retorno directo
Do amor que darei, discreto.
O segredo mora aqui:
Não em amar com reserva
Depois do amor que perdi,
Mas em ser o que conserva
Capacidade de dar.
É que o amor terá tornas
Donde nunca se esperar.
Basta andar aberto às jornas,
Sempre disposto a aprender
Com as surpresas que houver.
46 – Diálogo
Bem mais difícil às vezes
É o diálogo com quem
Partilha nossos conveses
Que com os outros de além.
A maior parte sofreu
De mil e um mal entendidos,
Traído por quem é seu,
Que jamais lhe presta ouvidos.
Se os irmãos de tradição
Não logram compreender-se
Como comunicarão
Com o que nos mais se verse?
Um frutífero diálogo
Vive fundo a nossa via
E das dos mais o catálogo
Tão mais fundo o ouviria.
47 – Dom
Nosso dom mais precioso
Para aos outros ofertar
Não é dos bens nenhum gozo,
É nossa presença dar.
Quando contemplo profundo
E envolvo aqueles que eu amo,
De vida tanto os inundo
Que, sem mais dono nem amo,
Desabrocham como flores.
Ficar, pois, indisponível,
Venhas ou vás donde fores,
Não é dum amor credível,
Não é de amor verdadeiro.
Se este sofre, sofro inteiro.
E só porque sofro o abalo,
Já estou mesmo a aliviá-lo.
Quando estou deveras lá
Mostrando minha ternura
O Espírito Santo está
Em nós e nisto perdura.
A paz em redor emana,
Atingimos o Nirvana.
48 – Nó
Ao reunirmo-nos formamos
Um nó de comunidade.
Os confins do eu abramos,
Deste eu todo soledade,
Vamos unir-nos aos mais
Num grande corpo de amor
E compreensão finais.
Na fusão deste calor
Nós com os nossos irmãos
Somos um só dando as mãos.
No fundo só nos salvamos
Na comunhão que forjamos.
É sempre em comunidade
Que eu atinjo a eternidade:
Por dentro, em pressentimento,
Em corpo, quando eu a invento.
49 – Namorados
É dia dos namorados,
De atear à mecha o lume,
Nos trilhos de amor trilhados
A aspirar longo o perfume.
É dia dos namorados,
Dia de S. Valentim.
Ai, meu Deus, quantos cuidados,
Ao mos dar, tiras de mim!
50 – Relação
Uma relação sexual
Agradável deveria
Ter uma dose ideal
De humor e de fantasia:
Não é de fugir do olvido,
- É que é mesmo divertido!
51 – Falta
Falta de compreensão
É que gera o sofrimento.
Abre a porta da prisão
Quem doutrem acolhe o evento.
Compreensivo se não for,
Não irei aproveitar
A peça de mais valor
Que nos pode libertar.
Qualquer amor verdadeiro
Não é viável senão
Quando o mergulhar primeiro
No chão da compreensão.
Amar o inimigo como?
Só duma maneira o entendo:
Somando dele o que somo
Compreendendo, compreendendo.
Compreender porque é como é,
Como é que tal chega a ser,
Porque as coisas ele vê
Diversas do que uso ver.
Compreendê-lo o poder dá-me
De o aceitar, de o amar.
Ao amá-lo faz que o chame
Como um meu familiar.
Ao aceitá-lo me aceito,
Ao amá-lo amo-me a mim.
Assim é que deste jeito
Ao inimigo dou fim.
52 – Começar
Quando quero perdoar,
Quero começar de novo,
Da vida obrigar o ovo
Outra vez a germinar.
Tu, meu irmão ou irmã,
Fizeste-me mal outrora.
Todavia, sei agora,
Pode haver outro amanhã.
Foi porque estavas sofrendo
E assim não verias claro…
Raiva de ti não encaro
Em meus braços te entendendo.
Forçar-nos não poderemos
A perdoar a ninguém.
De compreender nos vem
A compaixão que doemos.
Todo o tipo de perdão
É fruto da consciência:
Ficar atento, à evidência
Transmuda do outro o aleijão.
Ao ver porque outrem me dói
Natural brota o perdão,
Então vem a remissão:
- Meu irmão, tudo já foi!
53 – Tempo
Do tempo a utilização
Melhor é ser generoso,
Ficando presente então
Aos outros em puro gozo.
Hoje em dia a trabalhar
Tendemos em demasia
Mesmo se não há lugar
Do dinheiro à falta um dia.
No labor nos refugiamos
Para evitar o confronto
Com as mágoas que choramos,
Do imo as tensões, ponto a ponto.
Exprimimos nosso amor
Pelos outros, o cuidado,
Trabalhando com ardor,
Às galés tal condenado.
Porém, se tempo não temos
Para aqueles a que amamos,
Se indisponíveis nos vemos,
Como amá-los confessamos?
54 – Deveras
Um amor deveras quer
Tempo de contemplação,
Tempo de reconhecer
Outrem cá presente, à mão.
"Sei, amor, que estás aí
E fico feliz contigo"
- Isto jamais o vivi
Se livrar-me não consigo
Quer de preocupações,
Quer de meus esquecimentos.
Presente nas solidões,
Só com presentes eventos.
Sem estar aqui e agora,
Tudo devém inviável.
Tempo para quem se adora
É que provará, fiável,
Um amor que é verdadeiro,
Generoso, a dar-se inteiro.
55 – Corpo
O corpo tem regiões
Que de ninguém querem toque
Nem mesmo aproximações,
Sequer, acaso, um remoque.
A não ser de quem amamos,
Que me respeite e eu respeito,
Em quem então confiamos
Por nos ter fundo no peito.
Quando somos abordados
Sem cuidado ou casualmente,
Da ternura sem traslados,
Sentimo-nos, de repente,
Magoados, maltratados,
Em corpo e alma de gente.
Com cuidados extremados
Quem me aborde, é diferente.
Quem dá comunhão profunda,
Vero amor e compromisso,
É que seguro me inunda,
Ateia o lume ao chamiço.
Não é o sexo ocasional
Tão descrito como amor.
O amor é fundo, total,
Corpo-alma num só penhor.
56 – Relação
Na relação sexual
É o respeito o mais que importa,
Deve ser como um ritual,
Contemplação que conforta,
Carinho, de amor sinal.
Desejo não é o amor:
Sem das almas comunhão
O prazer pode ser dor
E criar a divisão,
O fosso ao fim é maior.
Em vez do amor, alimento
Antes muito sofrimento.
57 – Consigo
O amor é mui responsável,
Consigo traz o cuidado,
Envolve a vontade amável,
O gosto de ser bem dado,
Compreender de raiz
E tornar outrem feliz.
Num amor que é verdadeiro
A felicidade real
Não é tema interesseiro
Nem questão individual:
Se não é feliz quem amo,
Não sou feliz em meu ramo.
Felicidade deveras
Requer acalmia e paz
No coração das esperas,
No corpo que tudo faz.
Excitação ou paixão
Contêm perturbação.
O vero amor é um caminho
De aprendizagem em acto
Que apurará no cadinho
De paz e harmonia o pacto.
Esta é que é a felicidade
Que a quem ama ao fim invade.
58 – Querem
Almas querem amizades
Como os corpos, alimentos.
O teu labor persuades
A gerar encantamentos,
Basta a relação amiga.
Na fábrica ou no escritório
A boa conversa abriga
Companheirismo notório,
Fantasia, brincadeira
Que à companhia convida,
Uns dos outros sempre à beira,
Alma gerando na lida.
Quando isto não acontece
Ficamos inanimados
E cada qual mais parece
Dum maquinismo os rodados.
59 – Música
É a música uma arte nobre
Necessária à vida humana,
As almas alimenta quando emana,
Sem raias, nem rico e pobre.
Com os outros é partilha,
Gera o rosto radioso
De quem num coro canta a
maravilha
Que da vida o sabor torna
gostoso.
Música estude a criança,
Toque um qualquer instrumento,
Cante ou desenhe uma dança:
- Já ninguém é violento!
Forja um elo de união,
Recria a comunidade
Em que, de irmão em irmão,
Nos vemos Humanidade.
60 – Questão
Questão de autenticidade
Neste mundo relevante
É a duma necessidade
De tradição que se implante
E duma comunidade
Livres da coerção de crenças
E de dogmas, por igual,
Onde não haja sentenças
A condenar cada qual.
Teólogos não sectários
Que leiam tradições, fé,
Nos ajudem, libertários,
A encontrar onde ter pé,
A comunhão que não seja
Nem literal nem dogmática,
Onde além da letra eu veja
Todo o céu que há na gramática,
É tudo quanto procuro.
- Mas como saltar o muro?
61 – Procuro
Eu não procuro poder,
Meu ego fortalecer
Duma forma narcisista,
Mas sim a força que exista
Ao viver sintonizado
Com o mundo aqui ao lado.
Se nós pensarmos que somos
Os únicos criativos
Neste mundo mineral,
Vegetal e animal,
Todo pejado de pomos,
De mil mortos, de mil vivos,
Sinto a perda de poder,
O que é humano não prospera
Em tal egoísmo de ser,
Todo o equilíbrio se altera.
É que o mundo nos sustenta,
Oferta um norte e um apoio,
Pretende, a quem se apresenta,
Dar à fome dele o moio
De trigo que o acalenta:
- E a vida em comum se inventa!
62 – Primeiro
Primeiro fácil parece.
Coração puxa a cabeça,
Vontade que nos aquece
Nem nas dúvidas tropeça
Nem nos medos arrefece:
Ser feliz é que interessa.
Depois a cabeça trava
O coração desmedido,
A pequena pedra encrava
Do movimento o sentido,
Já num sufoco entalava
O imo dantes repartido.
Largar nadas que derrotam
Para atingir mais além
É a via de que se dotam
Os que ao fim se querem bem.
Além há cumplicidade
De infindáveis cambiantes:
- Buscá-la-ão de verdade
Os que se querem amantes.
63 – Reconheço
Reconheço que as viagens
São propícias ao amor,
Como a lonjura também:
Jamais comprei as passagens
Solitário sem supor
Quanto o retorno convém.
À tentação de ir além
Vem a angústia contrapor
O lar de que sou refém.
Não há nenhum viajante
Solitário no caminho
Que não sonhe lá adiante
Que alguém o aguarda adivinho.
64 – Memória
Memória, escola da vida,
Única vera defesa
Contra a traição desferida,
O abandono que despreza.
Tudo pode ser traído,
Abandonado no lixo,
Menos o registo haurido
Da memória pelo nicho.
Mais fiel do que um amigo,
Mais longa do que uma vida,
É a verdade que consigo
Maior em qualquer medida.
Que pena então que a memória
Seja para grande parte
Um cemitério sem glória,
Lixo abandonado aparte,
Onde sem honra ali jazem
Os que deixaram de amar!
Que é que deles próprios fazem
Se aos mais tiram o lugar?
65 – Ninfas
Os parceiros sexuais
São ninfas, mais do que humanos.
Homem e mulher são tais
Que inspiram enormes planos
Da fantasia, emoção:
Cremos que abraçando o amor
Nos corpos se poderão
Nossos limites transpor,
Um nível de realidade
Além se atingindo então.
Almas de sexualidade
Doutro mundo nos virão
Irredutíveis a partes
Do que é uma pessoa humana.
Sexo com alma tem artes
Duma comunhão que emana
Doutro plano da existência.
É a maior motivação
Para a busca de excelência
Dele na louca atracção.
66 – Afagares
Cada vez que de teu par
Afagares os cabelos,
Exausta dele nos braços
Tua fadiga tombar,
Teus filhos ligam os elos,
Enchem em branco os espaços:
- A mensagem compreendida
É que o melhor que há no sexo
É uma relação vivida
Com o reforço conexo
Da ternura no casal
Como na família inteira.
…Digam embora, ao final,
Somente "ah!", muito à
ligeira.
67 – Algo
Algo no fundo de mim
Um gosto de eternidade
Procura sentir, enfim,
Um alívio que me invade,
Momentâneo seja embora,
Do tempo em marcha imparável.
O eterno jamais vigora
Na lista do inadiável.
Mas as almas satisfeitas
Não ficam do que é mundano.
Mesmo ao tempo e espaço afeitas,
Procuram fugir do engano,
Correm da vida agitada,
Das difíceis relações,
Da produtividade armada
Libertam-se de pressões,
De horários e de negócios,
Buscam na contemplação,
No tempo livre, nos ócios,
Frestas de libertação…
E o sexo, neste contexto,
Reintroduz a magia,
Escreve o esplendor do texto
Onde o sonho já morria.
68 – Apetite
O apetite sexual
Convida as almas do mundo
Pela beleza vital
Dos bosques em que é fecundo,
Pelas plantas, pelas flores…
Mantém-nos ele ligados
Das raízes aos rumores,
À natureza grudados
Mais profunda que nos toca.
O sexo alimenta a fonte
Que nos dá vida e provoca
Da vida todo o horizonte.
69 – Covinhas
Olhos, covinhas no rosto,
Testas, ombros ou bochechas,
- Tudo ateia o fogo posto
No sonho, quando o não fechas.
E devém uma obsessão,
Ao recordar, discutir,
Fotografar, desenhar
Um qualquer pormenor chão
Por que me deixo iludir
Daquela a quem eu amar.
70 – Indício
Belo que a vida melhora
Não implica ser bonito:
Um indício vago aflora
E a ninfa atinge seu fito.
Pode um rosto deformado
Ter a voz angelical,
Se esta nos houver tocado,
Muda o rosto de sinal.
Não corresponder alguém
De alguém ao perfil do belo
Que importa, se a cara tem
Dele o inefável apelo?
A beleza me enfeitiça.
A cosmética ou estética
Pouco entram dela na liça,
Que o que me enliça é a poética.
É mágica e tal magia
Serve à sexualidade:
Ao prazer nos inicia
E ao desejo de unidade.
Quando todos formos Um,
Há lá mais prazer algum!
71 – Ritos
Ritos de preservação
Poderão ser importantes
Para o sexo e a relação.
Serão incapacitantes
Todas as dificuldades
De permanecer intacto
No amor, nas intimidades,
Mais se é consumado facto.
No sexo como no amor
Todos tentam ansiosos
Preservar o que se for,
Um pé atrás, cuidadosos,
Ou impondo seus limites,
Ou mesmo não se entregando.
Neste jogo de palpites
É que os laços vão singrando.
72 – Presente
Por que é que a pornografia
Tão presente é na cultura?
Só do espírito ser via
Onde a religião se apura
É andar desprezando a vida
Sensual à nossa frente,
- Sempre em busca da medida,
Do saber que é mais recente…
Precisamos ir mais fundo
Na vida familiar,
No que o corpo quer do mundo,
No comum dia vulgar,
Ou a sexualidade
Continua a pressionar
Com tal emotividade
Que, em vez de o complementar,
Se opõe ao significado,
Ameaça a tranquilidade,
Não vai dar-me o delicado
Rio de paz que me agrade.
73 – Buscar
Às vezes a busca de alma
É buscar vida comum,
Retirar prazer da calma
Tarefa de dia algum,
Manter boa vizinhança,
Filhos, tal como um trabalho
Que os réditos nos alcança
Da vida para o baralho,
Ter o sexo habitual
Com a pessoa que amamos…
O interesse inusual
Por inabarcáveis ramos
Tende a ser ambicioso
E desumanizador:
Do espírito terá o gozo,
De alma é pobre e sem valor.
74 – Típico
Típico é o casal moderno
Desejar as coisas certas:
Comunicar bem e terno,
Metas próprias ter despertas,
Prosseguir as vocações
E criar os próprios filhos
Sadios e sem lesões,
Curá-los, mal há sarilhos…
Mas também é bom que aprenda
O casal dele a se rir;
No prazer a ver a prenda
De apreciar e fruir,
Simplesmente e sem sentido,
Acaso um pouco idiota;
Saborear o humor vivido
Dos filhos que a vida adopta;
E brincar com as maneiras
Sobre o sexo de falar
Deles, embora parceiras
Insociáveis, se calhar…
- A vida então distendida
Entre o projecto e a surpresa
É que há-de encontrar medida
Para o que nela se preza.
75 – Firmes
Firmes afirmando a vida,
Da natura apaixonados
Como dos eus com a lida,
Podemos ser inspirados
A mil actos empreender
Para o mundo proteger
Mais aqueles que o habitam.
Muitos a comunidade
E a família nos concitam
A defender, dedicados,
Não por vã moralidade
Mas por amor empenhados.
Muito idealista preso,
Opositor consciente,
Civil desobediente,
Sendo luminar aceso
Há-de ser mal entendido
E condenado, perdido,
Pela fé dos moralistas.
Mas a generosidade
Ética deles transcende
A insossa moralidade
Das normas que houver nas listas.
- E é o que a vida nos defende.
76 – Realça
Realça o celibato o eros
Em outras áreas da vida.
Gostos sexuais não são meros,
Já que os sublima e convida
A menos literais formas:
O amor à comunidade,
O prazer da natureza,
Do trabalho, até das normas…
Se do sexo a qualidade,
O desejo da beleza
Gozar, corpo, intimidade,
Um orgasmo metafórico
Andam presentes em zonas
Mui variadas da vida.
Tais áreas vivo-as eufórico,
Devêm a sério donas
Dum erotismo em seguida
E que é deveras real,
Não simbólico sinal.
Satisfeito noutro nível,
O desejo sexual
Aumenta o prazer gerível
E diminui a pressão
Que sobre nossos parceiros
A brusca satisfação
Acaba neles usando
Por períodos inteiros
Que às vezes são já desmando.
Então paz, não atoleiro,
Partilha um vero parceiro.
77 – Depois
Só depois de muita noite,
De muito dia de amor,
O fantasma que se acoite
Há muito tempo em torpor
Brota de repente à luz.
E pouco a pouco devimos
Completos no que seduz,
Quando connosco adquirimos
A familiaridade
Com os eus de cada idade.
Afinal de mim parceiro,
Vou lento sendo eu inteiro.
78 – Cansam
Mesmo quando dois casados
Cansam da vida em comum,
Desavindos, angustiados,
Podem não ter modo algum
De, enfim, dar por terminados
Casamento e lar nenhum,
Já que estes muito mais são
Que as ideias e experiências
Combinadas, mão a mão,
Deles nas próprias vivências.
Tem o casamento então
Dele a própria realidade,
Centelha de divindade
A emanar forte poder.
Pareça embora ele ser
Individual criação,
Já ninguém nele tem mão,
Persiste contra quenquer,
Apesar do que quiser,
Qualquer que seja a intenção.
79 – Difícil
É difícil ter bom sexo
Com um coração vazio
Ou um lar empobrecido,
Não do dinheiro conexo,
Antes da vida abundante
Do espírito, sem ter brio
Que evocado e prosseguido
Pode ser a cada instante
Em lar pobre como em rico.
Como ser gratificante
Sem de águas tais um salpico?
Como ter gozo durante
Se ante e após com nada fico?
80 – Lágrimas
As lágrimas me escorriam,
Não por ele, preparado
Para o fim e o que trariam
As surpresas do outro lado.
A chorar força-me o fado
Da inevitabilidade
Da morte dum delicado,
Dum bom homem de verdade.
Minha dor é por perdê-lo
Como por, gracioso e fino,
Acolher em paz (que belo!)
O que lhe impõe o destino.
81 – Sentido
Que sentido para a vida?
Talvez o sentido passe
Por dar aos filhos, vivida,
A memória que os enlace,
De que possam orgulhar-se.
Passar na terra em ausência,
Sem ao menos um disfarce,
É pô-los sem referência.
Se, ao invés, lhes for presente,
Então num filho um sentido
Desabrochará, virente,
A dar rumo ao que é vivido.
82 – Mundo
Este mundo nos obriga
Às metas do que queremos
E ao mesmo tempo nos liga
Uns aos outros, que teremos
De conciliar ideias
E projectos, tudo a meias.
Apenas quando os consensos
São inviáveis devemos
Escolher pelos mais densos
Caminhos que então julguemos
Que vão direitos deveras
E avançar sem mais esperas.
Mesmo contra a maioria,
Contra a opinião de todos,
Se acredito em minha via,
Nela aposto com meus modos.
É, porém, fundamental
Saber criar em geral,
Movimentos em conjunto
E gerir bem tal assunto.
Do diálogo entre os dois
Vem o equilíbrio depois.
83 – Luto
O luto não é doença
Do corpo que curaria
Acaso com sedativos.
É de alma, requer que a vença
Paciência, amor e ousadia
De carinhos sensitivos.
Uma ausência não se cura,
Já que o vazio perdura.
Apenas, como à ferida,
O tempo repõe a vida.
84 - Nenhum
Nenhum outro tem de ser
Nenhum retrato de mim.
Qualquer outro o outro há-de ter
Aceite outro até ao fim.
O ímpeto dominador
Convém que em mim dominara
Abstendo-me de me impor
A quem não tem minha cara.
No martelo e no cinzel
De pegar vou-me impedir,
Não vá meu rosto a granel
No dos outros esculpir!
85 – Amizade
Uma amizade suporta
As mudas inevitáveis
Que pautarão toda a vida.
Não é jamais destruída,
Antes mesmo acaso a exorta
De emoções mal confiáveis
O alto e o baixo com que lida.
Frequentemente os amigos
Se encontram a conversar
E conferem os perigos
E os apelos que andam no ar,
De que andar entretecida
De bom e mau toda a vida.
A ligação duradoira
É que as almas vai nutrir
E constantemente encoira
As arcas do que há-de vir.
86 – Epicurista
A epicurista abordagem
É estilo de vida activo
Em que de tudo a voragem
Sigo enquanto prazer vivo:
Cultivo amizades
Ou escrevo cartas,
Em privacidades
Íntimas e fartas
Levo os familiares
A todos os lares,
Canto, toco e pinto,
Preparo acepipes,
Ouço os bons palpites,
Contribuo e sinto
O que então me invade:
A comunidade.
E no sexo epicurista
Cultivo a vida sensual,
Como arte o terei em vista,
Dou ao par prazer igual,
Vivo de amor e afeição,
Tranquilo e sem ambição,
Tenho noites, manhãs, dias
Comuns e de parcerias
Em que tudo, por sinal,
É actividade sexual.
87 – Exprimir
Exprimir amor, desejo,
A paixão pelo meu par,
São os modos rituais
De acolher as principais
Ofertas que em redor vejo
Que a vida traz, singular.
Quando com nossos parceiros
Se dança a dança do sexo,
A natureza profunda
Das coisas tudo fecunda,
E a consciência disto inteiros
Os laços ata no amplexo.
O sexo devém a fonte
Donde jorra toda a vida.
Personificando o amor,
Contribuo com vigor
Para o erótico horizonte
Com que tudo coincida.
Reflecte o sexo os contornos,
Movimentos, qualidades,
Sensações da vida diária.
E nesta infusão gregária
Celebro-o, por meus adornos,
De arte com virtualidades.
88 – Gozo
Todo o sexo epicurista
Nele mesmo é valioso,
Não quer justificação
E nada mais tem em vista,
Vale o gozo porque gozo
Sem ter mais continuação.
Não tem de gerar bebés
Como não tem de evitá-los.
Perfeito emocionalmente
Não tem de ser, ao invés.
E o correcto, nos abalos,
Sabemos lá quem o sente!
Nem sequer tem de ajudar
Ou não relacionamentos.
Pode nele algum ciúme,
Raiva, humor vir-se a implantar.
De paixão, nalguns momentos,
Ou de amizade tem gume.
Com base em satisfação,
Não tem mesmo nada a ver
Com ferir outra pessoa
De emocional aguilhão
Nem no físico sequer,
Que não age nunca à toa.
Não é manipulador,
Nem egoísta ou abusivo,
Mas também não é perfeito.
É mesmo o momento-mor
À imperfeição alusivo
Aquilo a que presta preito.
Todo o prazer moderado
Como um estilo de vida
Elimina uma agressão
Que, frequente em muito lado,
Sempre acaba reprimida,
Presa em sexual pulsão.
Não validando o prazer,
Visa o sexo outro objectivo
De que então não o esvazio,
Acabando, ao fim, por ser
Comportamento agressivo
Que jamais escapa ao frio.
89 – Cuidados
Os cuidados que requerem
Os meus electrodomésticos,
Meu piano, a biblioteca,
São como animais domésticos
Cujos apelos me ferem
Culpado como quem peca.
Nem sempre a propriedade
É a palavra adequada
Ao laço que mais agrade
Entre coisas e pessoas:
Há naquelas a jornada
Das críticas e das loas.
Somos delas companheiros
E tanto elas nos possuem
Como nós as possuímos.
Pesam na cidade inteiros
Os amores de que fruem
Coisas-pessoas que vimos:
Prédios, estradas e pontes,
Parques, palácios e casas
À existência social
Dão corpo, dão-lhe horizontes,
Como amantes os aprazas
Em relação sexual.
Se o físico mundo virmos
Como mundo inanimado,
De mecânicas funções,
Pela vida fora ao irmos
Vai ficar dela arredado
O entalhe dos corações.
Dispomo-nos a passar
Dos dias a grande parte
Num ambiente sem amar,
Assexuado e sem arte.
Mas se as horas de trabalho
De nossos dias não são
Das ninfas do sexo um galho,
Do espírito meu refrão,
Como posso, de repente,
Fora de qualquer contexto,
O acto sexual crer premente
Sem vislumbrar-lhe pretexto?
Como posso separar
O sexo de toda a vida
E depois dele esperar
Que dê sabor e guarida?
90 – Corpo
Num corpo a vida se estende
Às muitas coisas criadas
Pelos trabalhos dum homem.
Quem cuida o corpo defende
Coisas lindas, bem talhadas,
Ao meio ambiente moldadas,
Mantidas contra os que as somem.
Em nossa cultura,
O lixo demais,
Grafítis, barulho,
Ninguém deles cura,
Ruas são locais
Onde sofro o engulho
De mil barrocais,
Pontes destruídas
Já não ligam vidas…
É a desatenção
Que ao corpo revelam,
Têm relação
Ao sexo que não
Amam, antes gelam.
Em ambos os domínios esta
incompetência
É de amarmos o corpo uma
incapacidade
Como amamos da mente qualquer
excelência.
De investigar reflecte esta
prioridade
Aquilo que é invisível, sem dar
atenção
Ao visível que, enfim, é sempre o
nosso chão.
É possível a paixão,
Apreciar a beleza,
O sensual da natureza,
Da matéria tida à mão.
Podemos fazer voltar
Velhos modos de criar
Um mundo que adornaremos
E no qual então vivemos
De vínculo restaurado
Entre nós e as coisas todas
Que sempre nos hão cercado
Preparadas para as bodas.
91 – Invejo
Invejo a todos o não serem eu.
De todos os impossíveis
Sempre este me pareceu
O maior dos que forem invivíveis.
Então mais me constituiu
Ânsia minha quotidiana,
Desespero de horas tristes.
Como quem se não engana:
É que, afinal, tu existes
E como um Tu me resistes,
A ferir-me, uma pragana
Nas costas a arranhar, branda,
O viandante que não anda.
92 – Destruí-me
Destruí-me ao compreender,
Já que é me esquecer de amar.
Mas que amar ou odiar
Se nem notícia tiver
Do que em conta hei-de tomar?
Eis a verdade e a mentira:
A solidão me desola,
A companhia me oprime.
O pensar em mim delira,
Doutrem a presença o imola
Quando dentro se me imprime.
Sonho-lhe então a presença
Em distracção radical,
Mas da análise a sentença
Já nem lhe encontra sinal.
- Do que a ambiguidade vença
Não encontro chave real.
93 – Náusea
Da humanidade vulgar
A náusea física tenho,
Única que, afinal, há.
Capricho em a aprofundar,
À náusea que em mim mantenho:
Como se há-de provocar
O vómito que haja cá,
A aliviar-me do cenho
O ríctus de vomitar?
Vomito a vulgaridade
Mas sou corpo de delito,
Já que o vómito me invade:
De mim como me vomito?
94 – Diverge
Quão mais diverge de mim
Mais alguém real parece,
Que menos depende ao fim
Do subjectivo refece.
Por tal meu estudo atento,
Constante, é da humanidade
Vulgar que repugno, isento,
De que disto o que me agrade.
Amo-a tanto quanto a odeio.
Porque detesto senti-la,
Gosto de vê-la em recreio
Pelos recantos da vila.
A paisagem admirável
Como um quadro toca o peito
Mas, por norma inabordável,
É incómoda como leito.
95 – Preste
Pouco importa que a criança
Nunca a ti te preste ouvidos.
Repara no que ela alcança
Além dos termos medidos,
Toma cuidado, ela parte
De andar sempre a observar-te:
O que na criança meças
É o que faças e aconteças.
96 – Duvidar
Duvidar não é perder
Nem de vez ficar perdido,
Nem de escolha incapaz ser,
Indeciso e dividido.
Dá um pouco mais de trabalho
Do que isto de ter certezas,
Implica ver o que valho
No rol de minhas devesas.
Hipóteses diferentes
Requererá ponderar,
Alternativas vigentes
Doutro modo sopesar,
Ouvir os pontos de vista
Dum terceiro a ter em conta,
Acolhê-los, ver se exista
De verdade qualquer ponta…
Enriquece em simultâneo,
Dá-nos maior consciência
Do falível sucedâneo
Que era em nós uma evidência.
97 – Trate
Não veja o comportamento
Dum homem com a mulher
Que ele amará de momento.
Ao invés, trate de ver
Como é que ele se comporta
Com a mulher que deixou:
Se ele a escorraça da porta
Ou respeita o que sonhou.
É da lotaria o selo
Da taluda e do singelo.
98 – Creio
Creio bem que tudo é justo,
Tudo foi determinado.
Minha casa é o mundo inteiro:
Estou em casa sem custo,
Moro mesmo em todo o lado,
Não há muro a mim fronteiro.
Não há linha divisória,
Jamais houve. Eu a inventei
Num jogo de má memória
E depois pu-la na lei.
Caminho lento na rua
Por onde o mundo caminha
E sofrer uma dor nua
Que quem não mostra adivinha.
Quando paro, se me encosto
A um candeeiro de pé,
É um amigo que dá gosto,
O ferro nem vejo até,
É criação duma mente,
Tem um feitio, é dobrado,
Formado por mãos de gente,
De hálito humano soprado.
Quase parece falar-me,
Passo a mão, é mesmo humano,
Dá mesmo um grito de alarme
Quando o lesam por engano.
O mundo, no que é visível,
No âmago de seu pendor,
É, dum modo bem tangível,
Um mapa do nosso amor.
99 – Mulher
Revela a mulher amada
Um outro lado da vida:
O semblante do absoluto.
Teofania ignorada,
Mostra que a Terra entendida
Doutrem é sempre produto.
Nela algo devém sinal,
Sentido, poema e fanal.
- Levanto ali rumo aos céus
E toco a pele de Deus.
100 – Desilusão
À desilusão três modos
Há de alguém se contrapor
E será num dentre todos
Que tua escolha irás pôr.
Dar um tiro na cabeça,
Ou retirar-se da lide,
Ou cidadão, como peça,
Intervir no que convide.
Dar aquilo que pudermos,
(Não salvar a humanidade)
Da terceira via termos
São do que ali persuade.
Pode ser apaixonada
Da paixão pelo concreto,
Não da ideia abstractizada,
A via que nos dá o tecto.
101 – Conseguiste
Não conseguiste uma ponte
Hoje ainda a teus vizinhos?
É uma questão de horizonte.
Não tereis de andar sozinhos
Pois, se, a partir de amanhã,
Já não houver nenhum fosso
A separar-nos no afã,
Já nenhuma ponte endosso,
Não há dela precisão.
Amanhã já ninguém foge
Doutrem, preso à solidão:
- E amanhã começa hoje!
102 – Espelho
Toda a vida é um grande jogo
E a maneira de o ganhar
É ser bom, com desafogo,
Sempre e para quem calhar.
Para o espelho quando olhemos
Há que gostar do que vemos.
103 – Pertenço
Pertenço a uma geração
Que perdeu todo o respeito
Pelo passado papão
Pelas próprias mãos desfeito,
Que toda a crença, esperança
Pelo futuro esvaiu
No gesto que não alcança
O sonho que se traiu.
Vivemos este presente
Com fome que nos abrasa
Na gana quase demente
De quem não tem outra casa.
104 – Alto
Quão mais alto um homem for
De mais tem de se privar.
No cume será o lugar
Duma solidão se pôr.
Quanto mais perfeito,
Tanto mais completo.
Quando alguém atinge o tecto,
Afinal doutrem que é feito?
Dentro dele, bem no fundo,
Tudo liga a todo o mundo;
O mundo é que lhe não liga:
- É a solidão que o fustiga.
105 – Gero
Gero personalidade
Sem incluir nada alheio,
Nem dum outro que me invade,
Nem de impor-me, de ordens cheio,
- Só de os mais ser de verdade,
Incarnando-os com enleio
Até à saciedade.
Da merenda este recheio
É a minha autenticidade.
106 – Humildade
A humildade uma lamúria
Não é, dádiva serena
Dum amor, quando a penúria
Da solidão mais ordena.
Apenas quem muito amar
Humilde poderá ser,
Que o despeito, se brotar,
Ante o amor vai-se esconder.
Então, sim, é que a humildade
Irá ter força e constância:
Somos humildes, o que há-de
Aos outros dar a substância.
Na comunidade entramos
Como uma ínfima parcela
Da razão porque vivamos,
- Homens seguindo uma estrela.
107 – Gratidão
A gratidão nos revela
A plenitude da vida:
Devém festa a refeição,
O estranho é amigo que apela,
A casa, um lar que convida…
- É um milagre a gratidão.
108 – Rosa
Esta rosa em minha mão,
Duma roseira cortada,
Ao pô-la em teu coração,
Nova roseira lhe é dada.
E quando abres num sorriso
E teu beijo a rir flutua,
Sei lá que rosa diviso:
- É planta ou gente a que é tua?
Há quem goste dum jardim,
O melhor a mim me alcança:
- Cultivas a vida em mim,
Quanta abelha por mim dança!
109 – Amor
O amor? O amor, certamente.
Fogo e chamas por um ano,
A arder tudo fugazmente,
Depois cinzas por cinquenta…
E só escapa ao desengano
Quem ao borralho se esquenta:
Nesta quentura soprada
Foge à velhice nevada.
Só então dedos de ternura
Eternizam a frescura.
110 – Respeita
No que respeita às crianças
O dever duma família,
Muito amor, muita vigília
É lhes dar, nas contradanças
De horas incondicionais
Com surpresas bem reais.
Aos bebés pré-requisitos
Ante a prenda de nascer
Não devem se impor, que os fitos
São de uma família haver.
Doutro modo, o preconceito
Deixa vago o altar do preito.
111 – Eternidade
Ódio, dor, como tragédia
Sempre serão passageiros.
Uma vida de amor nédia,
De mil dádivas, esteiros
Rasga tempo além, sem fim,
- Eis a eternidade em mim.
112 – Dói
Quando a cabeça dói, dói-me o
Universo.
Nítida mais do que a moral é a
dor
Física, mas reflecte no reverso
Tragédias mais do que era de
supor.
Carreia uma impaciência e
desespero
De tudo, sem limites nas
sequelas:
Como é de tudo, não exclui um
mero
Planeta nem nenhuma das estrelas.
Doendo-me a cabeça, amigos meus,
No fundo o que me dói é mesmo
Deus.
113 – Aprender
Podemos e deveremos
Aprender com toda a gente.
Muito barco encontra os remos
Na mão do mais indolente,
Muita seriedade advém
De charlatães e bandidos,
Filosofias, também
De estúpidos iludidos,
Lições de firmeza e lei
Vêm acaso dos de acaso…
- Tudo em tudo encontro e sei,
Desde que atento e no prazo.
114 – Pai
O pai que encoraja o filho
A trilhar trilho que é seu
De certeza que esqueceu
As pegadas que em tal trilho
Antigamente imprimiu.
Se não desata o cadilho,
É um filho que ao fim perdeu.
115 – Presentes
Já não tenho nem me lembro
Dos presentes de Natal
À chaminé, em Dezembro,
Criança que fui igual
Doutro lar a qualquer membro.
Mas acarinho e comigo
Trago as lições duma vida
Que me deram, ao abrigo
Duma infância distendida,
O familiar e o amigo.
Velhos da comunidade,
Os meus pais, os meus irmãos,
Com responsabilidade,
Afectuosos, dando as mãos,
Deram-me, em contos, verdade.
Possam as recordações
Dar-me a força de deixar
De comprar tudo aos montões,
À infância o presente a dar
Que partilhe corações:
Tempo com o adulto atento
A recontar mil magias,
Saborear o momento,
A retransmitir as vias
Que de vidas são fermento.
116 – Dona
Dona de casa é não só
Labor não remunerado,
Cozinhar, limpar o pó,
Suor demais explorado.
É também um contributo,
Subtil mais que respirares,
E que é o discreto produto
Do que o amor traz aos lares.
Não é labor de maçada
Este que ela aqui fizer,
Mesmo de suor cansada,
Porque o amor é prazer.
E é crucial, pelo menos,
A um ou outro elemento,
Acaso a todos, que acenos
De amor os fecunda o vento.
Uma orelha sempre atenta,
A palmadinha nas costas…
Que vale isto e o mais que
inventa?
- A crianças, tudo, apostas?
117 – Custos
Se em lugar de três reis magos
Eles foram três rainhas,
Os custos que foram pagos
Pegavam outras gavinhas.
Pediam informação,
Chegado a tempo teriam
E o parto ajudado então
Por mãos delas haveriam.
Teriam limpado o estábulo,
Confeccionado comida…
Resultava outro retábulo
No presépio, de seguida.
Úteis levariam prendas
E haveria paz na terra:
O curral, entre as vivendas,
Era um lar – findou a guerra.
118 – Grande
O grande homem não é grande
Por aquilo que produz
Mas muito mais pela luz
Que projecta para além
Do canto a que se reduz
O território onde mande.
O grande homem não provém
Disto de ter alma grande,
Mas de ser alma de quem
Aquele que se exaurir
Acaba por se ir nutrir.
119 – Voar
Somos anjos, somos anjos,
Contudo, duma só asa.
Para ir ao som dos banjos
É preciso o que nos casa:
- Temos de nos abraçar
Uns aos outros p'ra voar!
120 – Folha
À folha não olhe tanto
Que oblitere que ela é parte
De árvore, a qual, entretanto,
Na floresta se reparte.
Pois da cabal consciência
Da existência da floresta
É que me vem a evidência
De eu ser do mundo que resta.
Isto é que mantém unido
Da humanidade o tecido.
121 – Família
São a família as crianças:
Nos filhos cruzam-se os filhos
Que nós fomos noutras franças,
De nossos pais os atilhos
E os pais que sonhámos ter
Mais os que tentamos ser…
As crianças são resumo
Da nossa falha e do aprumo.
122 – Revela
Em nada mais claramente
Se nos revela um senhor
Que na desavença assente
Que lhe divide em redor
Todos quantos se lhe opõem:
É sempre um senhor das trevas
Cujas patas em ti põem
As cangas que ao lombo levas.
123 – Marés
Todas as marés do mundo
Nada obriga a dominarmos,
Mas apenas a ajudarmos
Os anos em que, fecundo,
Lavramos o itinerário,
Mondando as ervas daninhas
Do campo que é nosso herbário,
Cultivando hortas maninhas…
Que quem viva então depois
Terra limpa venha a ter
Para amanhar com seus bois.
O tempo que então vier
E que ele vem encontrar
Não nos irá, pois, caber
A nós lhe determinar.
É livre, por sua vez,
De o lavrar com dele a rês.
124 – Surpresa
Há muito quem previamente
Goste de saber da ementa,
Mas quem prepara um presente
Secreto quer o que inventa,
Que a surpresa dá mais força
Às palavras de louvor
E os laços então reforça
A todo o tipo de amor.
125 – Perder
Se tudo fica em perigo,
Alguém tem de prescindir
E perder, perdendo o abrigo,
Para que outrem, no porvir,
Possa de vez conservá-lo
E fruir dele o regalo.
Não é justo? Não é justo,
Mas tem o fado este custo.
E há sempre nele um sentido:
O do amor que for vivido.
126 – Louco
O amor não é louco, não,
Sabe mui bem o que faz,
Jamais age sem razão,
Mesmo que escondida atrás
Nos fique de vez a nós.
Somos nós que loucos somos,
Que insistimos em ter voz,
Compreender nos propomos
(Sem reparar no aleijão)
Um amor com a razão.
127 – Artista
Um artista quando atinge
A plena felicidade
Com o carro que não finge,
O namoro que lhe agrade,
Então morre um bocadinho
Nas artes de que é cadinho.
Quando curou a ferida
Deixou de ter que dizer:
A criação que é nascida
É da ferida que houver.
O feliz perde o carisma,
Já com mundo outro não cisma.
Falta, porém, plenitude,
A ferida derradeira
Que a novo dia se grude
A sonhar outra maneira:
E eis que do gume no fio
Dói fatal o desafio.