CANTO DOIS
EM PROJECTOS DE INFINDAS
UTOPIAS
Escolha aleatoriamente um número entre 128 e 252
inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem
particular para o seu dia de hoje.
128 – Em projectos de infindas utopias
Em projectos de infindas utopias
Peregrinamos rumo ao Infinito,
Sempre acertando o passo em igual fito,
Desencontradas vão embora as vias.
E quando mais em mim tudo concito
Mais do sonho me encantam melodias,
Mais os dedos me tecem fantasias
Na peugada daquilo em que acredito.
Quanto mais claro um horizonte vejo
Mais eu descubro que é complementar
De sonho a meta que por fora almejo
E o que em meu imo acabo a saborear.
Todo o infinito, ao prolongar-me além,
Em meu mistério mergulhou também.
129 – Ponta
Trago na ponta dos dedos
Um segredo a libertar.
Se o agarro e perco os medos,
Se em redor o divulgar,
Tudo o mais então esquece:
- É que o milagre acontece!
130 – Íntegro
O íntegro faz o que faz
Porque é aquilo que é correcto,
Não porque é moda que apraz
Nem político prospecto.
De princípios uma vida
Em que se não sucumbir
Ao fácil que nos convida
Há-de à vitória atrair.
E leva-nos ao futuro
Sem requerer que as pegadas
Que ao retrovisor apuro
Tenham de ser vigiadas.
131 – Heróis
Os heróis são material
De que qualquer sonho é feito
E os monumentos, sinal
Deste invento à pedra afeito.
Sem alguma extravagância
Jamais o mar fora aberto
E o Parténon na infância
Morreria, mal desperto.
Os monumentos são luxo
E ao mesmo tempo poupança:
Do poder perene fluxo,
São do povo, ao fim, herança.
Que Terra mais maçadora
Sem Pirâmides, Veneza…
- E como partilha agora
O mundo inteiro a beleza!
132 – Mudar
Jovem revolucionário,
Quer mudar o mundo à força.
Depois, o destino é vário
E por proteger se esforça
Aquilo que descobriu
Que de bom havia já
No caudal vivo do rio
Do planeta que aqui está.
Com a idade muito mais
Compreenderemos, plenos,
Muito embora, triviais,
Estudemos até menos.
133 – Falta
Faz-nos falta ter direito
A um tempo em que não havia
Nem de acertar o preceito,
De ter razão a mania,
Nem mesmo o dever egresso
De verrumar o sucesso.
Faz-nos falta ter direito,
Durante uma vida inteira,
De andar de chupeta ao peito
Sonhando a freima leveira
E não esta que acelera
A cada esquina uma espera.
134 – Chamamento
Dedicado a um chamamento,
Encontro a finalidade
E um padrão para o que intento,
A vida é vida em verdade.
Se cuidar de resolver
Do mundo todo o problema,
Desisto sem ter sequer
Arregaçado um só tema.
Se me cingir ao trabalho
Concentrado numa causa,
Logro muito no que emalho,
Lanço os mais quando entro em
pausa.
135 – Redor
Se me sentar silencioso,
No fim da tarde, ouço vozes
Em meu redor num gostoso:
"Lê-me, quero que me
gozes!"
São os livros meus amigos
Desta minha biblioteca.
Em miúdo, sem abrigos
Nem sequer uma boneca,
Encostado numa ombreira,
Oiço minha mãe dizer:
"De distrair-te a maneira
Vai ser aprender a ler!"
Hoje à mão tenho o infinito…
- Nunca imaginei tal fito.
136 – Rio
Há um rio de humanidade
E, embora não saiba ainda
O que fica além da foz
Do rio que nos invade,
Começo a entender-lhe a vinda,
Nossas ânsias tomam voz.
A humanidade carrega
Toda a preocupação
Rezando em rio profundo
E já não fica tão cega,
Apostada na visão
De quanto o leito é fecundo.
Abarca no seu abraço
O rio toda esta gente
E lento a leva consigo.
É um rio de humano traço
Onde a angústia me consente
Que eu também encontre abrigo.
137 – Ânsia
Os teus pecados acabam
Por ser, em última análise,
Uma espécie de catálise:
Ânsia que não menoscabam
Doutro modo de viver.
Um modo de salvação,
Será demais pretender.
Mas o potencial que houver
De salvar em qualquer lado
Que nos fala ao coração
Tem a sede no pecado.
Siga embora o itinerário
Outro qualquer rumo vário.
138 – Bonecas
As bonecas rejeitadas
Que moram no coração,
Quando a noite é mais profunda,
Será que as portas fechadas,
Ao mover-se, arrombarão
E bailarão na rotunda
Que dispara os pesadelos
Por entre os sonhos mais belos?
As bonecas rejeitadas
Que moram no coração
São os duendes e as fadas
Que nos bailam ao serão,
Nas horas mal precatadas
Em que o rosto verga ao chão.
As bonecas rejeitadas
Que moram no coração…
139 – Violar
Não há porventura em nós,
A despeito da razão,
A contínua propensão,
Aquela secreta voz
Que leva a violar a lei
Só porque de lei se trata?
- Tanto vejo que me mata
Se além não for do que sei.
Ficar preso agora aqui
É viver o aqui agora
E morrer no que demora
Todo o além que não vivi.
140 – Furor
Como explode este furor!
Por que é que o furor faculta
De prazer um tal fulgor
Com toda a vivência inulta?
Há uma força misteriosa,
Cruel, oculta, disfarçada…
De explicações ela goza?
Redu-las por fim a nada,
E desafia os preceitos
Morais todos que tivermos:
Que é que atrás de meus conceitos
Me inviabiliza os ermos?
141 – Tempo
É a familiaridade
Que leva o tempo a voar
Na vida que então se evade.
Se em cada dia tentar
Uma pegada no ignoto,
Como é sempre nas crianças,
Os dias são o picoto
Da serra que nunca alcanças,
De novas longa cadeia
Que interminável se alteia.
Um olhar ao jamais visto
E em cada momento existo.
142 – Ninguém
Ninguém descobre o que faz,
Nem porque o fará também
E não sei mesmo se alguém,
Sem temer erro tenaz,
Ao dizer aquilo que é,
Exacto de tal dá fé.
- Somos o cego hesitante
Sem atrás nem adiante:
Onde levam as pegadas
No final destas jornadas?
143 – Lama
Caminhar rumo ao futuro
É levar lama nos pés,
A imundície do passado
Agarrada no monturo,
Inçando de lés a lés
Cada passo caminhado.
E jamais há raspadeira
Capaz de limpar a jeira.
144 – Toda
Da vida que tenho, gosto.
Quando a quis toda, porém,
De mim não gostava, aposto,
Já que a quis de mim refém.
Mas doravante que aceito
Que o tempo viaje em mim
Ele me abraçou ao peito,
Leva-me a ignoto confim.
Assim, levado na onda,
Não sou quem por mim responde,
Tenho quem por mim responda
Não sei quando nem sei onde.
145 – Repararas
Se repararas em mim
Nem que só fora um instante,
Fugias logo perante
O monstro que sou assim:
Contando histórias de estrelas
Para esconder-me atrás delas…
Quando nelas me confundes,
Eu te agradeço efusivo
Que de astros todo me inundes
Quando, ao fim, não há motivo.
146 – Onda
Não eras quem esperava…
Ando sempre a imaginar,
Ando sempre a confundir
Isto com o que é de vir
Numa onda que se cava
Da forma que lhe calhar.
Erro não é nem asneira:
É sempre doutra maneira…
- Neste erro em que recalcitro
Sou finito ao infinito.
147 – Condenar
De que serve este eu que sou
Se o condenar à prisão?
Sabê-lo é afirmar-lhe o voo
E vê-lo é dar-lhe razão.
Aquele que ignora que é,
Que ignore isto e o mais que
seja,
Que despreze o que faz fé,
Amordace o ser que almeja.
No dia-a-dia animal
Quem a evidência de si
Teve um dia, matinal,
Como encurralar-se ali?
Este milagre de sermos,
Gratuito, como pagá-lo?
Demos-lhe nós o que dermos,
Fruamo-lo no regalo
Da oportunidade, enfim,
De o sermos até ao fim.
148 – Inverno
Na bela noite de Inverno
Venho à janela espreitar
As estrelas deste eterno
Campo escuro de luar.
O milagre de estar vivo,
Como me sinto tão eu!
Não, porém, um eu esquivo
Que sozinho aconteceu.
Há muitas partes de mim
Por aí, por muito lado:
Um filho a dormir, enfim,
Um marçano contratado,
Uma granja que ajudei
A arrotear, leira a leira…
Sou parte, descortinei,
Duma grandeza primeira
Que vai muito para além
De quem me for conhecido,
Alcança destes também
Quantos eles hão movido,
Vai daqui para o passado
E deste para o futuro…
- Não há raia em nenhum lado,
Algo infinito inauguro!
149 – Ter
Quero ter e segurar
Minha aparição de mim.
Logo a levo a se evolar,
Opaco de todo enfim:
Já não era aparecer,
Seria petrificar-se…
Fulminante no meu ser
A quero e que não se esgarce,
Para criar minha vida,
A reformular de vez.
Mas a muda empreendida
É de fora um entremez.
Ser fiel a uma certeza
Não é ver se me apetece,
Isto é uma falsa nobreza,
Teimosia que fenece.
Ser fiel e uma honradez
É hesitar em cada instante
À luz do raio que fez
Trilho, à noite, ao viandante.
150 – Devaneios
Os devaneios indicam
Do real a irrealidade,
Do imaginário se aplicam
A comprovar a verdade.
Do mundo a rocha é uma meta
Firmemente alicerçada
Em asas de borboleta,
Na magia duma fada.
A verdade verdadeira
Quanto mais firme na amostra
Mais vemos quanto é parceira
Do infindo que se entremostra.
151 – Actos
Nossos actos têm efeitos
Muito para além de nós,
Rios a rasgarem leitos
Com mil vendavais após.
Interligam o presente
Com o que vier no futuro,
E nada em mim me pressente
Qual o porvir que inauguro.
Tento o que me faz feliz
E de que não me arrependa
Daqui a uns anos, que o fiz
Por cuidadosa encomenda.
152 – Continuamos
Nós nunca, nunca morremos,
Continuamos a viver
No rosto que passaremos
A cada filho que houver.
Há muito de tua mãe
Que hoje respira por ti
E o gesto que finda além,
Não finda, prossegue aqui.
E as palavras que disseste
Não as levou, não, o vento,
Semeiam em terra agreste
Tudo o que hoje é nosso alento.
153 – Depois
E depois?… Não respondeu.
Sei lá bem se olhava a Lua
Ou algo que ninguém viu
Muito além do fim da rua!
Além da Lua, da estrela,
Além do céu, desta noite
Tão tranquila e paralela
Onde um sonho há que me acoite…
Sei lá porque de repente
A vontade de chorar
Entra no peito da gente
Só porque é noite e há luar!
Uma lágrima a reter,
Para a festa irei sair
Da noite que contiver
Este luar de além ir.
Sei que será sempre assim
Sem que eu tenha mão em mim.
154 – Novinho
Que bom poder estrear
Um ano novinho em folha
Quando em Janeiro há lugar
Sempre a uma nova escolha!
Que bom ter esta ilusão
De que choco a vida em ovo
E que a tendo em gestação
Tudo ao fim farei de novo!
Tal se fora vez primeira…
Ou tal como gostaríamos
De ter feito de carreira
Quando à vida nos abríamos.
Ano Novo, mas que festa
A da vida por haver
E não desta que não presta
Senão de tal prometer!
155 – Vibra
Algo em nós vibra no anseio
Por deixar-se arrebatar:
É a paixão, neste entremeio,
Que nos tira do lugar.
Livro escrito sem paixão
Mata o gosto da leitura,
Equipa arrastada ao chão
Já não joga e o jogo dura,
Vai queixar-se o fã de que eles
Andam jogando a dormir…
Recompensamos aqueles
Que este apetite, a seguir,
Alimentam a vibrar,
Músico, actor ou atleta:
Juntam milhões por nos dar
Da paixão toda a paleta.
156 – Repique
Comungar é um poderoso
Repique à contemplação.
Comemos e que é do gozo?
Bebemos satisfação?
A toda a hora ingerimos
Nossas ideias, projectos,
Preocupações que sentimos,
Ansiedades sem tectos…
Na verdade não comemos
O nosso pão e a bebida
Deveras jamais bebemos,
Distraídos na corrida.
Se me permito alcançar
O meu pão profundamente,
Renascerei logo a par,
Pão é vida nele, em ente.
Ao comê-lo, então, profundo
Toco o Sol, nuvens, a Terra,
Universo além me afundo
Muito além de paz e guerra.
Toco a vida, toco a vida
E toco o Reino de Deus,
Eucaristia vivida,
Fundida a terra e os céus.
157 – Mal
Seria mal desejá-la?
Para que é que nasce um homem
Se do desejo não fala?
Para querer, não, que o somem
Da vontade as alcavalas.
Para o poder, também não,
Que finda morto nas valas.
Para conhecer, dirão
Os que não olham o escuro…
- Se o desejo se calar
Como é que em mim inauguro
O que nunca tem lugar?
158 – Linguagem
A linguagem que resulta
De contemplar o infinito
A todos nos catapulta,
Da felicidade ao grito.
O inverso pode matar:
Se me dizem o cruel,
Quero-me é suicidar,
Findar ali meu tropel.
Quando alguém algo me diz
(Dádiva maravilhosa)
Que me tornará feliz,
A vida inteira é gostosa.
159 – Corpo
Crês que o corpo te pertence,
Fazes dele o que quiseres.
A lei apoia e convence
Individualista a seres.
O ensino da solidão,
Do não-eu na relação,
Diz que o corpo não é meu.
Pertencerá por igual
A qualquer meu ancestral,
Pai, avô que já morreu
E às gerações do porvir
E a qualquer ser que bulir.
Tudo, as árvores, montanhas,
Se reuniu para causar
Meu corpo aqui no lugar.
Como agradecer tamanhas
Ternuras senão cuidando
Bem deste corpo com que ando?
Da concha quando sair
Deste meu pequeno ser
Com tudo e todos vou ver
Que me interligo em devir.
Qualquer meu pequeno gesto
Prende a toda a humanidade
Como ao Universo inteiro.
Quando saudável me apresto
A ser por mim de verdade
Ao mistério me emparceiro.
160 – Suporta
Um amor suporta tudo,
Em tudo acredita, fiel,
E faz durar, sobretudo,
Tudo o que lhe aflore a pele.
Um amor não tem limites
E nunca finda um amor,
Renasce além dos palpites…
- Como o caruncha o bolor?
161 – Suprema
A suprema dimensão
Nada a ver tem com conceitos,
O real supremo não
Se discute além dos preitos,
Porque jamais o podemos:
Como um sumo de maçã
Concebemos de manhã
Se nós jamais o bebemos?
Só depois de haver bebido
Falar dele tem sentido.
Como descrever a um peixe
Como é a vida em terra seca,
Sem que respirar se deixe
Sem água, em paisagem peca?
As coisas não são descritas
Por conceitos nem palavras,
Encontra-las se as concitas
Vivendo-as no acto que lavras.
Este acto que é o final lema
Não o teremos jamais
Quanto à dimensão suprema:
Restam-nos, pois, só sinais.
162 – Mistério
O dia de nossa morte
É o de nós continuarmos
Sob outras formas, à sorte,
Por de vez nos mergulharmos
No mistério do Universo,
Em seu imo incontroverso.
Com ele no itinerário
Seremos seu rumo vário.
Ver nossos antepassados
Na suprema dimensão
É tais rostos transmudados
Connosco ver que estarão.
Toco a mão, cara ou cabelo,
Olho a fundo onde é que findo
E ei-los dentro em mim, são elo
Em meu íntimo sorrindo.
163 – Agricultor
O agricultor que olha a terra
Inverno além pode ver
Dele a colheita a crescer,
Que as condições dela encerra:
Água, sementes, alfaias,
Fertilizantes, labor…
Falta apenas o calor
Para tudo entrar nas baias.
A colheita, pois, já existe,
Já lá está germinalmente.
É o que S. Francisco sente:
Com a amendoeira insiste
Para lhe falar de Deus
Em pleno gelo do Inverno.
Logo ela o esplendor superno
Abre das flores aos céus.
Não havia nela folhas,
Nem florira ou dera frutos,
E ele viu quanto não olhas:
- Toda a festa dos produtos.
164 – Atento
Quando vir apenas ondas,
As águas posso perder.
Mas, se atentar, minhas sondas
Nas águas irão poder
Vasculhar o que respondas.
Logo que formos capazes
De tocar águas deveras
Não mais importam as fases
De ir e vir de ondas, de esperas:
Nascimento e morte de ondas,
Efémeros são que escondas.
Já não mais teremos medo,
Nem sequer nos preocupa
Das ondas princípio e fim,
Se decorrem tarde ou cedo,
Cada qual que mar ocupa,
Se é bela ou assim-assim…
Serei capaz de largar
Estas ideias, pois trago-a,
Quando a morte ameaçar,
Perene, a raiz: a água.
165 – Orar
Orar como meditar
Leva a atingir a semente
Mais valiosa que alcançar
Dentro em mim, no abismo do ente.
O fundamento do ser
Anda em nós sempre a brilhar,
Germe original qualquer,
Piscando, a negacear.
As aflições como o medo,
Raiva, dúvida, ansiedade,
O esquecimento, o degredo,
Impedem a claridade.
Impedida a luz de entrar,
São as práticas do crente
Que vêm varrer o lar
Para o abrir ao sol mais quente.
Presente aquela energia,
Ocorre a transformação,
O Espírito se irradia
A partir do coração.
A compreensão, o amor,
A paz, a estabilidade,
São viáveis ao fulgor
De nossa nova entidade.
Deus está dentro de nós,
Somos já quanto não somos,
Mas o fio de retrós
Ata-nos até aos pomos.
Isto é ser um inter-ser,
Ir já sendo este não-eu,
O infinito a aparecer
No que em nós há já de céu.
166 – Rituais
Se me deixar apanhar
Por rituais, forma exterior,
Noções, e não praticar
Vida a sério com vigor,
Não encarno a tradição,
Dela o espírito não bebo.
Ergo um muro neste chão
Das águas que não recebo.
Não vejo o que os mais requerem,
O sofrimento das gentes:
Em vez de menos sofrerem
Torno-os bem mais padecentes.
As práticas limitadas,
Fundamentalistas, cegas,
Dogmáticas e fanadas
Murcham quem lhes cai nas pregas.
Teremos de nos lembrar
Uma e outra vez, constantes,
O inicial fito a visar
E os sábios nisto gigantes.
167 – Reino
O reino de Deus tocar
Com o corpo aqui e agora
Mais seguro é que esperar
Um futuro que demora.
Se me pendurar da ideia
De esperar pelo futuro
Poderei nem ver a cheia
De alegrias que hoje apuro.
Do futuro ao tomar conta,
O melhor, é ponto assente,
É tratar do que hoje o aponta,
Tomar conta é do presente.
168 – Ruínas
As ruínas desempenham
O papel de equilibrar
A construção da cultura
A que espíritos se atenham,
Com ânsias de renovar
O que o porvir lhes figura.
A ruína desconstrói
Lenta, com tempo, calma,
Aponta o que outrora foi,
Fala-nos, discreta, à alma.
Quando tudo anda febril
A construir o futuro
Urge um esforço viril
A proteger o monturo.
É que o passado até sofre
Obras de renovação
E assim nos roubam o cofre
Onde habita o coração.
169 – Memória
Livremo-nos das ruínas
E perderemos o rumo
Que de memória combinas.
Andaremos, em resumo,
Por aí desatrelados
Do passado, dos maiores,
E muito aflitos levados,
Incônscios, pelos rumores,
Para um futuro sem norte.
Perguntam por que razão
Anda o mundo como à sorte
E um valor procuro em vão,
Por que a família já não
Vive unida tal como antes,
Por que é que o ódio, a agressão,
Explodem hoje, constantes,
Os crimes e o vandalismo,
As marcas da decadência,
Nos cavam à frente o abismo
Da gratuita violência…
- Melhor era perguntar
Que fizemos das raízes,
Esta cultura ao criar
Alheia às próprias matrizes.
170 – Átrio
Meu átrio de eternidade,
No jardim escapo à vida
E ao tempo com que me invade.
É o rito que me convida,
Não a tarefa: é o lazer…
Pára o tempo ou, pelo menos,
Lento e lento anda a escorrer.
A beleza tem acenos
No jardim a contemplar,
Não há preocupações
Da freima a desempenhar.
A borboleta aos baldões,
A abelha de flor em flor,
São minha alma laborando
Incógnita, com amor,
Misteriosa, em gesto brando.
São meus minutos de mel:
Vivo aqui minha outra pele.
171 – Ansiedade
A ansiedade radical
Vai deixar de ser esquiva
Bem mais por ocasional
Vida significativa,
Que por busca de sentido.
O significado vem
De o interior ser colhido:
Alma que a vida contém,
O poder de fascinar,
De encanto encher cada lar
Por mero facto de ser
E de assim nos preencher.
172 – Poder
O inferior se revolta
Para poder ser igual
E o igual, para, na volta,
Poder ser superior:
- É ninguém ficar tal qual
Da inovação o motor.
173 – Fendas
De fendas a vida é cheia,
De portas e de janelas,
Onde o eterno nos ameia
Oculto por detrás delas.
Vislumbres de epifanias
Momentâneas, sensações
Raras de assombro e magias,
Em breves aparições.
Ligadas à natureza,
Espantam-nos de mil formas,
Resvés de cada devesa,
Plantas, penhascais sem normas.
Mas também o numinoso
Aparece em arte humana,
Nas obras que nos dão gozo
Do infindo que delas mana.
174 – Leva-me
Sentir-me uma criatura
Leva-me ao encantamento:
Será o reconhecimento
De que o mundo é uma lonjura.
Mais vasto infinitamente
E bem mais misterioso
Que o que teremos em mente
Se à ciência é que o entroso.
Dele me vem uma voz,
Música, acorde vocal,
Nele a atar-me com tais nós
Que jamais serei igual.
Ser criatura é humildade,
Que me extasie permite,
Que me assombre, se me invade
Das alquimias que incite.
Quando lhe andar receptivo,
O influxo revelador
Da vida transformador
É finalmente o que vivo.
175 – Raio
Faz-me um raio estremecer
E neste choque percebo
A beleza a acontecer:
- O numinoso recebo.
Vislumbro algo que transcende
Este universo de dados,
Lógica de compra e vende,
Anseio doutros estados.
Viver com o numinoso
Que nos cerca mata a fome
Do místico, cujo gozo
É uma presença sem nome,
Percebida nos momentos
Dum êxtase visionário.
Não fora de mão eventos,
Antes de curso diário:
Poderemos ter vivências
De assombro e de encantamento
Nas diárias experiências
Em que me vivo e me invento.
176 – Moderno
O homem moderno talvez
Nem consiga avaliar
A intimidade que o fez
Com o mundo por se dar.
Tendemos a ver apenas
O duro da superfície,
O mais são coisas pequenas,
Quando não uma imundície.
Presumimos que só nós
Teremos vida interior.
Nossa relação após
Com o mundo é sem calor.
Se o mundo também tem alma,
Vida interior profunda,
O encanto que nos acalma
Desde logo nos inunda.
Percebendo a vida interna
Do mundo que nos rodeia
A emoção toca-nos terna
Da união que nos permeia.
177 – Sol
Admiro este Sol visível
Mais dele o pendor oculto:
Da ciência aquele é inquirível,
A este antes presto culto.
Há um lado da criação,
Das estrelas e planetas,
Que é do mistério um desvão,
Não de bruxas nem de seitas,
Microcosmo em paralelo
Que em mim resume o Universo:
Sou a Lua, o Setestrelo,
Nas qualidades que verso.
É neste jogo de espelhos
Que em mim a eterna criança
Encontra tesoiros velhos
Que a ciência nunca alcança.
178 – Esperar
Esperar encantamento
É uma nova astrologia
Fugida à superstição
E rumando em direcção
Da intimidade, um momento
De inteligente magia:
O íntimo da natureza,
Sensível, existencial,
Poético como uma reza,
Na vitrina de cristal
Do céu nocturno se espelha,
No todo e em cada centelha.
Podemos olhar tal céu
De vez tão intensamente
Que nos vemos, de repente,
A nós próprios lá sem véu.
179 – Comovente
É comovente encontrar
Tanta espiritualidade
Em plantas, pedras, na terra…
Esponsais é celebrar,
Uma fórmula que encerra
A derradeira verdade:
Unem-se neste himeneu
Toda a terra com o céu,
Reconciliando, em tal fito,
O finito e o infinito.
180 – Bela
Que bela a inutilidade,
Boa a falta de sentido!
Despir racionalidade,
O dinamismo renhido,
Toda a força com que intenta
A vontade rabugenta…
Como é bom soltar as asas
E voar pelos espaços,
Bem de longe a ver as casas
A que nem vislumbro os traços!
181 – Imaginário
Quando para o corpo olhamos
Estaremos a ver alma,
A menos que nós tenhamos
O imaginário de Talma
Perdido pelo caminho.
E quando sexo fazemos
É no corpo que adivinho
Os mistérios que entrevemos
Mais profundos vindos dela:
- Cintila ao longe uma estrela.
182 – Procuro
Que é que procuro, afinal?
E, afinal, que é que eu encontro?
Nada. A busca radical
É sempre a do desencontro.
Não busco nada, portanto.
Nunca encontro o que procuro
Mas o que encontro, entretanto,
Jamais antes mo auguro.
A vida é sempre um deserto,
Como uma ausência de tudo,
Nada busco, estou desperto
E às imensidões me grudo.
Então tudo principia
Num iniciático flanco
Como a luz que me alumia,
Como uma página em branco.
183 – Ânsia
Ânsia funda de deserto,
Esta vontade de nada,
Do vazio aqui bem perto,
Esta viagem sem estrada
Ao mais fundo de nós mesmos…
Por quê ir onde não resta
De arrogância nem a fresta,
De saúde nem enfermos,
Nem orgulho, nem saber,
Nada do que cremos ter?
Sozinhos ante o Absoluto,
Fundidos, porém de costas,
Eis a chave por que luto,
Para os enigmas respostas
Que jamais decifrarei.
Ali principia a vida,
Das coisas todas começo,
Útero que gera a grei.
Descoberta esta medida,
Tudo o mais é só tropeço,
Nem vale o que vislumbrei.
184 – Enquanto
Eu, enquanto me lembrar,
Estarei vivo deveras,
Indício certo dum lar
Que não disperso nas eras.
Estarei vivo e, vivendo,
Eu não deixarei morrer
Quem comigo andou correndo
Pelos caminhos que houver.
Uma certa eternidade
Eu então empresto a tudo:
Minha idade, mais que idade,
É o mundo inteiro que mudo.
185 – Nada
Nada é eterno ou adquirido,
Tudo é fugaz, passageiro.
A ilusão é de haver crido
Num horizonte certeiro,
Fechado e guardado à vista,
Que ignora ou finge ignorar
Toda a interminável lista
De camadas de explorar,
De horizontes sobrepostos
Para além deste imediato.
- Das profundas são propostos
Rostos do infinito em acto.
186 – Sofrimentos
Sinto-me paralisado
Com sofrimentos do mundo,
De quem me for mais chegado,
De querelas em que abundo.
Se me permitir o espaço
Diário de respirar
Então consigo enfrentar
Melhor este mundo baço.
Se o tempo recarregar
Nossas gastas baterias
Descobrimos energias
Para a lonjura alcançar,
Para a nós nos transmudarmos
Por qualquer gesto fecundo
E uma vez mais navegarmos
Rumo sempre a um novo mundo.
187 – Outra
Qualquer alma quer-se unir
Não só com outras pessoas
Mas com outra dimensão,
Quer como eterna a fulgir,
Quer como imortal vulcão,
Ou mística a cantar loas…
Anseia por um amante
Misterioso na neblina
Que mora, de instante a instante,
No parceiro a que se inclina
E todavia o supera
Como ao real a quimera.
Este mundo e nosso par
De carne e osso, de matéria,
Não são barreira a trepar,
São uma via sidérea
Para a espiritual esfera
De eterno que nos espera.
188 – Germinar
Quando o sexo tiver alma
Pode então germinar mundos:
A vitalidade calma
Que vem dos gestos fecundos,
Famílias, comunidades,
Obras de arte que arrebatam,
Laços fundos de amizades,
Nós que atam o que desatam…
Sem dimensão de mistério
O sexo não era humano,
Dele incompleto no império,
Infértil no vago plano.
Sexo cortado da vida
Existe onde? Nos prospectos?
- Nela presente, é medida
Do além dela em mil aspectos.
189 – Ninfa
A ninfa do sexo
Num acto amoroso
O parceiro humano
Com ele conexo
Torna misterioso,
Sombra atrás do pano.
Importa encontrar
Homem ou mulher
Que vão evocar
O Encoberto a haver
Para no-lo dar.
Qualquer alma busca
Dela o que o desejo
Lhe satisfará:
Nosso olhar ofusca,
Grudado sem pejo
Ao que ela for lá.
190 – Ritual
Todo o ritual do amor
Convida a deusa do sexo
A estar presente e se impor.
A afeição que der no amplexo
Que troco com um parceiro,
Os preliminares, visam
A ninfa a evocar no inteiro
Espírito que enfatizam.
Sem a presença da ninfa
O sexo devém mecânico,
Falta-lhe alma, falta linfa,
Principio a entrar em pânico.
Qualquer alma o temporal
Quer tratado como o eterno.
Se a dimensão vertical
Perder, eu perco o superno.
Se os sentimentos profundos,
A maior aspiração,
De lado ponho, infecundos
Meus pés se arrastam no chão.
Vai ficar alma de fora
E o sexo, por esta via,
Funcional, já nem demora,
É uma experiência vazia.
191 – Presente
Todo o amor é um ritual
Como as religiões do mundo.
Tenta, presente o fanal
Do espírito que, jucundo,
Leva nossa actividade,
Eficaz ser por magia.
Como a ritualidade,
Arte o sexo requeria,
Cuidado com pormenores,
Dedicação, fantasia,
Humildade nos humores,
Onde não se forçaria
Mas se requer a presença
Dum espírito, dum deus.
Jantar fora não dispensa
Esmero, perfumes, véus,
Íntima conversação,
Música ouvida em surdina…
Tudo para evocação,
No sexo, de aura divina.
Em pleno acto sexual
Poderemos ser levados
Por intuição, por igual,
A fantasiar traslados,
A escapar do mundo frio
Dos egos, do voluntário,
Para o transe que há no rio
Do sonho, do imaginário,
E o sexo, por um momento,
Rompe pelo firmamento.
192 – Erotismo
O erotismo não é sexo,
É físico-emocional,
Com todo o mundo conexo
Na ponte ali principal.
Sexo é traço de união
Sentido e compreendido
Por quem o não vive em vão,
Fundo lhe busca sentido.
Eros no sexo e romance
É o magnetismo que unido
O Cosmos ao meu alcance
Mantém assim repartido
Em órbitas de planetas,
No ciclo das estações…
Busco no sexo outras metas
Que carnais satisfações.
Minha alma quer o eros todo:
Um mundo unido em redor,
Vida em todo e qualquer modo
Que puder tocar o amor.
193 – Vivência
A vivência sexual
A vez primeira supera
A inibição ancestral
Mais antiga, doutra era.
A primeira intimidade
Com determinado par
A reserva persuade
Entre ambos logo a findar,
A reserva que mantinha
O casal entre limites
E o contacto se adivinha
Finalmente de ambos quites.
A primeira experiência
De sexo, de novo jeito
Pode envolver a evidência
De quebrar qualquer preceito,
Superar expectativas:
A mútua cumplicidade
Mil alegrias esquivas
Captura com à-vontade.
Festivais religiosos
A culminar em orgias
São mais que rituais gozos,
- São romper de novos dias.
194 – Mitologia
Todo o corpo é mais que um mito
É a mitologia inteira,
Pois assim como concito
As lendas e os rituais
Das culturas ancestrais,
Colocando à minha beira
Todos os deuses guerreiros,
Ninfas dos bosques, riachos,
Espíritos do lugar,
Posso para o corpo olhar
E dos seios ver os cachos
Com os pâmpanos inteiros,
Os músculos protectores,
Cabeleiras sensuais,
Pés firmes, aventureiros,
Nádegas de mil pudores…
Todo o corpo são portais,
Diferindo subtilmente
Dum em um, frestas de sol
Para um mundo que se sente
De encantos, significados,
Num interminável rol.
O desejo e a fantasia
Assim intercombinados
São o que nos anuncia
Que alma é visível palavra
Que pelo corpo se lavra.
195 – Percebida
Todo o corpo é sempre uma alma
Dos sentidos percebida.
Em fala subtil e calma
Aos mistérios nos convida
Da pessoa e raça humana,
Que tudo dele dimana.
Os corpos na multidão,
As pequenas diferenças,
Deles a apresentação
Em fotos de arte, em sentenças
De mera publicidade…
O artista a tudo persuade,
Nunca deixa de pintar
O corpo em todos os tons
E estilos que adivinhar.
Ao espelho espreito os dons
E nas fotos de família
Como um segredo em vigília,
Como se o corpo escondera
Quem somos e quem seremos,
Aguardando, de era em era,
Que um dia nos revelemos.
196 – Beleza
A beleza original
Brilha em todo o corpo e rosto,
É a visão fundamental
De quem ama, de olhar posto,
É o que vêem nossos pais
Que os atrai à sedução.
- Desta beleza os fanais
São vida de alma em função.
197 – Foras
Olham para ti as gentes
Como se foras espelho
Em lugar de ser humano?
Contudo, não te apoquentes,
Aquilo a que te aconselho
É a que repares no engano:
Não se revêem em ti,
Vêem é tua magia,
A que em mais nada se via,
Dispersa no frenesi.
Do corpo idealização
Como espírito do sexo,
Ninfa, deus em ti verão,
O lado outro num amplexo
Tão manifesto, evidente,
Que a pessoa ultrapassada,
Doravante indiferente,
Nem sequer será notada.
198 – Manter
Nossa ninfa sexual
O cérebro, o coração,
Não vai manter em função.
Que é que importa? Não faz mal!
Manter não nos vai manter,
Dos longes feita fanal,
Mas faz a vida valer!
Por mais que disto eu arquive,
Não será nunca um senão,
Qualquer alma sobrevive:
Mato-lhe a fome de pão.
199 – Belo
Posso do corpo trepar
Para as almas, anjos, Deus,
Pelo belo que encontrar,
Porta aberta azul dos céus.
Posso ficar fascinado
Dos bandós de minha filha,
Enterneço-me um bocado
E não pára a maravilha.
Por ela amarei a vida
E nesta o que ao fim concito
É a beleza que convida
De mais Além, do Infinito…
Chego a Deus tão facilmente
Pela escada da beleza
- Só do cabelo virente
Que em minha filha se preza!…
200 – Embora
Todos poderão ser belos,
Embora apenas o amante
Possa vislumbrar apelos
No corpo, rosto ou cabelos
De quem ele amar constante.
Mas tal beleza é real,
Tem um papel importante
No sexo primordial,
É de Vénus o sinal
De ali andar actuante.
Atrai a imaturidade,
Não tanto da perfeição
Do que nos jovens agrade,
Mas da lacuna que invade
O que prometem e dão.
Entre o dado e o prometido
Namora o fruto proibido.
201 – Fascínio
O fascínio pelo falo
Não é apenas do poder,
Ele ilumina dum halo
Todo um mistério qualquer.
O pénis é tão comum,
É tão insignificante!
Mas que é que interesse algum
Desperta tão importante
E tão desproporcionado
Dele ao tamanho e função?
Órgão pequeno e fanado,
É o mito que é grande e tão
Pejado de fantasia
Que, ao buscar significados,
Dele as almas inebria
Pelos cumes elevados.
202 – Vagina
A vagina é um santuário
Onde o pénis o caminho
Encontra à felicidade
E a vida, em destino vário,
Chega, num jeito adivinho,
Descendo da eternidade.
203 – Compromissos
Pode a vida seduzir
Levando-nos a largar
Compromissos actuais:
O lugar onde me vir,
Um modo de organizar
Na vida quaisquer fanais,
Uma crença espiritual,
A política local…
A uma vida afrodisíaca
Que lhe importam os arranjos
Bem feitos e duradoiros?
Representa, genesíaca,
Mil atracções que há nos anjos
Quando à luz abrem tesoiros:
São ligações e paixões
A laborar indirectas,
Caras para o lado oposto.
O estranho destas lições
É que usam ser tão discretas
Que passam despercebidas.
Embora mal tenham rosto,
São o rio que há nas vidas
Nas funduras pressentidas.
204 – Períodos
Há períodos na vida,
No dia-a-dia momentos,
Em que a solidão convida,
Somos monges dos conventos.
Tão desligados do amor
Como do sexo de vez
Que só um foco tem fulgor,
Ausentes doutro entremez.
Não é um acto anti-social,
De rejeitar as pessoas,
É centração visceral
Em nós, sem gritos nem loas.
Pintores, naturalistas,
Absortos na sedução
De seu trabalho de artistas,
Buscam sempre tal desvão.
É deste jardim selado,
Deste bosque de eremita
Que o trilho vem segredado
Que a ser homens nos incita.
205 – Armadilha
Armadilha do amanhã:
Uma espécie de miragem
Que perseguem com afã
Enquanto vão na voragem.
Na realidade se irão
Afundando nas carreiras
E afazeres, dispersão
Que dura vidas inteiras.
Depois desta correria
O que mais lhes importou,
Adiado sempre um dia,
- É a terra a que nunca vou.
206 – Inebriante
Todo o sexo é um ritual,
Não um acto animalesco,
Inebriante e cordial
Licor num belo arabesco.
Qual mera necessidade
De a espécie não ter idade!
O êxtase é o que requeremos,
A beleza, a graça, a forma
São o sexo que visemos.
De seu potencial a norma
É a da espiritualidade
Com que por dentro nos grade.
207 – Erótica
Potencialmente de vela
Em toda a vida que houver,
Arte erótica revela
A beleza e o prazer.
Inspira a levar a sério
Desejos e aspirações,
A procurar refrigério
De estímulos-aguilhões.
Neles então toda a vida
Se torna convidativa.
208 – Diária
Toda a espiritualidade
É imanente e transcendente:
A vida diária invade,
Natural ou dependente
Das leiras que o homem grade
E se afasta tanto mais
Da vivência mais comum
Das vidas individuais
Rumo à fronteira onde algum
Mundo de além dê sinais.
Pela espiritualidade
Os povos meditam, rezam,
Lêem, viajam e a deidade
Buscam nos mestres que prezam,
E dedicam-se, idealistas,
A um valor fora das vistas.
Vida espiritual a sério
É imanência e transcendência,
A santidade é o mistério
Dentro em nós por excelência
E do mundo, no limite
Onde algo além me palpite.
209 – Diálogo
No que às almas se refere,
O diálogo interior,
As conversas com amigos,
As leituras com sabor,
Modelos que se prefere,
Da moral são os postigos:
Luz que por eles entrar
No-la acaba a ensinar.
Quando aqueles que eu admiro
São presos por convicções,
A moral a que eu adiro
É que é posta nas prisões.
São mestres que a injúria
alcança,
Os agentes da mudança.
Levam deles as consciências
Aos actos mais corajosos,
Educam mundividências,
Geram mundos mais gostosos.
Bons alunos há que ser
Tais aulas a não perder.
210 – Aceitar
Se aceitar a alma do sexo,
Desejos e fantasias
Nem sempre literalmente
Devem ser interpretados,
Antes devirão o anexo
Que mora nas poesias,
Nestas imagens que em frente
Mundos mostram ignorados.
Fantasias sexuais
Serão válidas então,
Já que então farão sentido.
Nenhum desejo jamais
Veremos, pois, neste chão,
Alguma vez reprimido:
Ao ser em conta levado,
Fica em breve alimentado,
Reajustado e discutido.
Ao falar sobre os desejos,
Os conflitos que provocam,
Às almas vou dando ensejos,
Todos nelas desembocam.
O sexual desejo obrigo
A fazer dele a leitura
Como a um cantar de amigo,
Todo o oculto então depura.
Acolho as indicações
Tecidas de implicações
E eis que, num jeito adivinho,
Dobro a curva do caminho.
211 – Parece
Todo o nosso casamento
Parece uma união humana
E no fundo o que apresento
É a polaridade insana,
A tensão que assim me irmana,
Afinal, a toda a vida:
Somos a bandeira erguida
Duma alegria profunda
E da frustração total.
O que o lar então fecunda
É tudo, que a tudo é igual.
E quanto mais me transmudo
Mais acabo irmão de tudo.
212 – Sexo
O sexo nunca perfeito
Terá de ter de actuar
Nem de haurido ser dum jeito,
Dum modo particular.
Pois enquanto ele ocupar
Uma posição central
Num casamento, num lar,
Faz o labor radical
De entre os mundos mediar:
Dum lado as questões da vida,
Do outro as questões eternas.
Com o cotio hoje lida,
Logo as cumeeiras supernas
Dos significados busca,
Do que busca o coração.
Ora suave, ora brusca,
Dele, enfim, nos molda a mão.
213 – Adultos
Os adultos facilmente
Perdem graça, encantamento,
Nas crianças elemento
Perenemente presente.
Numa falha de energia
O adulto reclamará
Por não poder desde já
Ter a vida que queria,
Mas a criança, encantada,
Fará tudo à luz da vela.
E a decepção será dela
Quando a energia é chegada.
Vai tentar ainda fingir,
Apagando a luz do tecto,
Por trás do mundo concreto
Que anda uma vela a fulgir.
214 – Estranha
A estranha vitalidade
Que se nos mostra no sexo
Pode-nos fazer sentir
Em plena corporeidade
Que tudo afinal tem nexo,
Que a vida rasga o porvir,
Que é mui significativa,
Por isso o sexo atraente
É o que no fundo motiva
As metas de toda a gente.
E aquela vitalidade
É que implica o seu humor,
Por que a comédia é que invade
As barreiras que mantêm
A vida sem ter fulgor,
Limitada ao que a retém.
Deveras o sexo importa
Que seja bem divertido,
Na alegria discutido
Com tudo a que nos exorta.
Sexualidade vital
Manterá junto o casal,
Já que nas vidas diárias
Semeará o optimismo
De que precisam sumárias
Para além saltar o abismo.
Vence delas qualquer ânsia,
Enche-as, em vez, de abundância.
215 – Escrevo
Escrevo triste, sozinho,
E creio que a minha voz,
Um murmúrio tão mesquinho,
Encarnará todos vós,
Milhões de vozes à fome
De se dizerem, submissas
Ao destino que as consome,
Barco inútil sem adriças,
Paciência quotidiana,
Esperança sem vestígios…
- Sou a vossa voz profana
A invadir sacros fastígios.
216 – Imaginei-me
Imaginei-me liberto
Para sempre desta rua,
Da padaria aqui perto,
Do Bobi que ladra à Lua,
Do meu director da escola
Que a dirige, resmungão,
Das turmas a que me imola
A fome de amor e pão…
De repente o mar do sul
Tem ilhas de descoberta,
O chá do sonho no bule
Rechina à janela aberta:
Então seria o repouso,
Arte por fim atingida,
Cumprir-me no que nem ouso,
Ser eu em toda a medida…
Mas sinto que terei pena,
O pão quente sabe bem,
O luar ainda me acena
À despedida também:
Tudo faz parte de mim!
Se os abandono, a saudade
Neles me fica, por fim,
Nunca parto de verdade,
Era quase meia morte
Que por minha mão me dava.
E, depois, qual era a sorte,
Qual o porto a que aportava?
Todos temos um patrão,
Visível ou invisível.
O meu dirige, mandão,
Justo, porém, e sofrível.
Noutrem será uma vaidade,
Ânsia de maior riqueza,
Triunfo, imortalidade,
Mais um palmo de grandeza…
Meu patrão de carne e osso
É, afinal, bem mais tratável
Nas horas com que não posso
Que o sonho mais inefável.
217 – Explorado
Um explorado é o que eu sou,
Na vida todos o somos.
Vale menos se aqui vou
Sugado em todos os pomos
Pelo que me contratou
Do que se for por vaidade,
Pela glória ou o despeito,
Pela inveja que me invade,
O ínvio que tomo a peito,
Qualquer outra insanidade?…
Há mesmo os que Deus explora
Como fermento fecundo,
Profetas, santos de agora
Na vacuidade do mundo…
- Alguém quer que vão embora?
218 – Rua
Na mesma rua da vida
Moras, arte, num lugar
Diferente, na medida
Em que a vida aliviar
Nos vens sem nos sopesar
Da vida o pesar ingente.
De viver não alivias,
Mas alivias a vida,
És o vizinho da frente
Que vejo todos os dias
Mas não entra em minha lida
Nem à festa me convida.
Monótona como as horas,
És das coisas o sentido,
De mistérios és demoras,
O trilho donde hei saído.
Aos enigmas que existirem,
Se se puser a questão,
É que, por mais que te virem,
Não encontras solução.
219 – Palmo
Palmo a palmo conquistei
O íntimo que nasceu meu,
Metro a metro reclamei
O paúl que apodreceu,
Nulo, em baixo de meus pés.
Pari meu ser infinito,
A ferros, de cada vez,
Atabafando meu grito.
E o melhor de mim que é dado
É de mim ter-me arrancado.
220 – Suma
De minha alma ante a suma
realidade,
O que for útil, exterior, me sabe
A frívolo e trivial.
Grandiosidade
Pura e superna só nos sonhos
cabe:
Quanto mais vivos e frequentes
mais,
Tanto mais para mim serão reais.
221 – Refúgio
Um refúgio são meus sonhos,
Estúpido guarda-chuva
Contra os raios mais medonhos
Que em mim assentam a luva.
Sou inerte, pobrezinho,
Falho de gestos e de actos.
Quão mais por mim amarinho
Mais dos atalhos os factos
Mostram que vidas inteiras
Vão dar de angústia a clareiras.
222 – Aventura
Uma aventura, hoje em dia,
É descobrir o caminho
De retorno a uma acalmia,
Ao silêncio que adivinho
Há uns mil anos atrás,
- De que hoje não sou capaz.
Às vezes, maior progresso
Não é avanço mas regresso…
223 – Ler
Ao ler, aprendemos tudo
E, lendo doutras maneiras,
Lavramos por novas leiras
Mundos outros por miúdo.
Há quem leve a vida a ler
Sem ir além da leitura.
Preso à página segura
Nunca chega a compreender
Que a palavra é a pedra posta
A atravessar a corrente
Do rio que, pela encosta,
A margem nos rouba em frente.
Anda ali para chegarmos
À margem outra que importa,
Uma ou muitas que contarmos,
Que a cada qual, sua porta.
Cada pessoa que lê
É dela a própria viagem
E a margem em que se vê
Ruma à sua personagem.
224 – Qualquer
Bíblia, Tora ou Alcorão,
Qualquer outra tradição,
Irá tudo bem enquanto
Tais eventos flutuarem
Como nuvens inocentes
De homens na imaginação,
Forem aquele recanto
De os sonhos se cultivarem
Vindos de mil e um videntes.
Em dogmas petrificadas,
Duras a pesar na terra,
São nefastas aras santas
De vendilhões frequentadas
Do Templo que se nos ferra
Da rota em todas as plantas,
Dele com os matadoiros
De toda a casta de vítimas,
Pátios de lapidações.
Isto é que torna legítimas
Quaisquer das caças aos moiros
Das infiéis confissões.
Já sonhos se não cultivam,
Antes matam os que os vivam.
225 – Vida
É toda a vida uma estrada
Que não vai a parte alguma.
Viandantes de jornada
Cruzam connosco na bruma,
Cada qual mais ignorante
Do fim que o conduz adiante.
Num abrir e fechar de olhos
Se escapam no mar de escolhos.
Outros, porém, ao contrário,
Largos trechos do caminho
Nos acompanham gregário
E, em súbito desalinho,
Em qualquer curva da estrada
Se evolarão sem mais nada
Como sombras de fantasmas.
Pouco importa se te pasmas…
Ninguém logra compreender
Por que é que se nos impõem,
Fantasias de quenquer,
No coração por que doem,
Antes de mostrar o que eram:
Sombras de fumo, morreram…
Talvez eles, por seu lado,
Pensem o mesmo de nós,
Se há lugar ao cogitado
Em meras nuvens de pós.
Tudo é da ordem do sonho
No mais que de mim disponho,
Mera fantasmagoria…
- É a vida do dia-a-dia.
226 – Digerido
A maneira de um livro compreender
É que da vida me desaparece,
É mastigado vivo, se merece,
Digerido e englobado no meu ser,
No modo de pensar e proceder
Tal como carne e sangue que me
aquece.
E, por efeito que não esmorece,
Vai dali novo espírito nascer
Na potencialidade tão fecundo
Que acabará remodelando o mundo.
227 – Medo
Não me faz medo a desordem,
Nem me iludo a meu respeito
Nem da morte os ais me mordem,
Nem sequer a tomo a peito.
O meu terreno de caça
Preferido é o labirinto:
Mais a confusão me enlaça,
Melhor me oriento e sinto.
É que as probabilidades
Ali vão todas em ovo
E entre as singularidades
Pode erguer-se um mundo novo.
228 – Paralelismo
O paralelismo humano
Da transcendência divina
É da criação o arcano
Nos modos todos que assina,
Das obras de arte ao invento,
Do amor à revolução…
Nenhum criador pode, isento,
Negar Deus do coração.
Ou sente dele a presença
Ou, se não, Deus está lá:
Algo novo pede avença
Na história e na vida que há.
Artes e revolução
Têm mais de transcendência
Que de escolas precisão:
São doutro mundo a aparência,
Quase mesmo a aparição.
229 – Ideia
Toda a ideia tem um rosto
Que é portador da verdade
Que o transcende, fogo posto
A incendiar a cidade.
Há uma viva relação
Entre homens e natureza,
Obras de arte que ambos são
Onde nos fere a beleza.
Natureza, arte divina
Com a sua linguagem:
O rosto do dia ensina
De Alguém esculpindo a imagem,
O rosto nu da manhã
É sempre teofania,
Jasmim na brisa louçã
A perfumar breve o dia.
Arte humana ensina a ler
Os sinais na criação,
Deus por trás a se esconder,
Espreitando na alusão.
Vivo num mundo encantado
Onde as coisas dos sentidos
Termos dum livro sagrado
São, murmurando aos ouvidos.
Linguagem em que Deus fala,
Da aparência à aparição,
Permuta que tudo abala,
Mensagem-decifração,
Nela a vida não é mais
A do sujeito que podo
Da videira dos demais,
Ela é já vida do todo.
230 – Efeitos
Não foi para libertar
O homem de seus pecados
Que Cristo veio pregar,
Mas também dos resultados.
São eles: prostituição,
Racismo, falta de estradas,
A marginalização,
Campinas expropriadas
E mil e um outros senões.
Cada homem é uma imagem
Do criador, tu supões,
Mas se através dele é que agem
Tais efeitos pervertidos,
De actuar perde o direito,
De decidir dos sentidos,
De levar a vida a peito…
Tal homem não é já imagem
Dum Deus criador: emana
Desrespeito, na triagem,
Por Deus na imagem humana.
231 – História
A história é a do vencedor,
A fazer crer que o projecto
Triunfou por ser melhor,
Fatal como quanto é recto.
Da história o determinismo,
Mera justificação,
É ideologia em que crismo
Factos que afinal não são.
A vera história começa
Quando formos reviver
Os projectos, peça a peça,
Ao, por fim, compreender
Que a vitória é contingente.
Não há rígido trajecto:
Os possíveis são em frente,
Atrás é o destino feito.
Porvir não é descoberta,
Doravante é uma invenção
De que temos sempre aberta
Porta na imaginação.
232 – Perfeição
Do pagão o homem-perfeito
A perfeição era que há.
O do cristão toma a peito
Perfeição que não há cá.
Perfeito budista é o jeito
De mostrar a perfeição
De não haver desde já
Homem algum neste chão.
E não há contradição:
Qualquer via singular
É das mais complementar.
Muito há quem não veja isto.
- É o longe que não conquisto.
233 – Pecados
Ensinam-nos o infinito
A meter em proibições:
Pecados veniais de atrito
E mortais aos turbilhões…
- Depois, das teias absurdas
Não te livras que assim urdas.
234 – Longe
Viajar é viajar
E o longe há-de sempre estar
Sempre onde lá sempre esteve:
Em parte nenhuma, em greve,
E muitas graças a Deus
Perdido algures nos céus.
A demanda milenária
Traz o melhor em si, vária,
Do que há nas revoluções:
Busca futuro aos sacões,
Futurante, futurível,
E nada mais é exequível.
Se o porvir não existir,
Resta a paisagem a vir
Inédita, variada,
De espectáculo pasmada.
- É pouco? Mas já compensa
E não requer mais licença.
235 – Barco
Um barco de navegar
Por navegar anda morto,
Sem, afinal, reparar
Que quer é chegar a um porto.
E aqui vamos navegando
Sem uma ideia do cais
Onde acolher-nos nem quando,
Basta-nos seguir fanais.
A navegar, navegar,
Nesta imitação de vida,
Nem há como perguntar…
- E a vida quem não a olvida?
236 – Ampliamos
Quando ampliamos um homem,
Maior agressividade,
Sexo e força nos consomem,
- É um bruto o que nos invade.
Ampliamos a mulher,
Mais maternal, delicada,
Sensível aparecer
Nos vai em toda a jornada:
- Vemos Deus aparecer.
237 – Velhice
A velhice chega quando
Nos apercebemos bem
De que de maravilhoso
Já mais nada nos advém,
Prestes a ocorrer na esquina
Da vida que nos destina.
Tal mui cedo a uns vai dando,
Matando do sonho o gozo.
A outros, nunca, no brando
Tempo a correr saboroso:
- E nem séculos de vida
São velhice decaída!
238 – Livre
O prazer de adquirir o que é
inútil,
O sabor dos caminhos enganados…
Que belo um acto espúrio, um acto
fútil
Que desmente os intuitos
procurados!
Ah! Ser livre perante qualquer
fito
Balançando nas ondas do
infinito!…
239 – Sonhadas
As vidas sonhadas têm
Apenas lado de cá.
Não se vê, não lhes convém
Lado que não ande lá.
Não se pode andar à roda,
Espiar-lhes perspectivas.
É que o mal da vida toda
São as pegadas cativas,
Que as podemos ir olhando
Ali de todas as bandas.
O sonho só tem o brando
Lado que anda em minhas andas.
Dele os amores são puros
Feitos de várzeas e calmas,
Tão seguros de inseguros
Como são as nossas almas.
240 – Exterior
O mundo exterior existe
Como num palco um actor:
Está lá tal qual persiste,
Não é jamais o que for.
Depois do palco, lá fora,
Quando então é mesmo a sério,
Já nenhum de nós lá mora,
Lá do lado do mistério.
Tal é, pois, a nossa sina,
A de viver na plateia.
O sonho é que bem se inclina
De vez a romper a teia.
241 – Bulir
Foi sempre fazer um gesto,
Para o meu sentir das coisas,
Um mui perturbado apresto,
Um desdobrar por mil loisas
Todo este mundo exterior.
Mexer-me dá-me a impressão
De bulir com o teor
Das estrelas e dos céus,
De alterar coisas no chão
De territórios não meus.
242 – Poente
Poente é poente alhures,
Não é neste nono andar
Da cidade de nenhures
Que nele posso cuidar.
Posso é pensar no infinito:
Infindo com viela em baixo
Mas com estrelas que fito
No fim onde nunca encaixo.
E neste acabar de tarde,
Da janela nas alturas,
Insatisfeito em mim arde
O meu jamais de ternuras.
243 – Real
No sonho, não existir
É o que há de mais doloroso.
Quando dele mais eu gozo,
Mais caminho a me iludir.
No real não tem lugar:
- Ninguém pode ao fim sonhar.
244 – Alguém
Eu sonho e, por trás do sonho
Onde anda minha atenção,
Sonha alguém de que disponho
Mas que nunca tenho à mão.
Talvez eu não seja mais
Do que um sonho desse alguém
Que não existe jamais
E existe, afinal, também.
245 – Belo
O mais belo de viver
É sempre o misterioso.
Não é uma emoção qualquer
Pois, mais que o que nos dá gozo,
Ela é o berço de embalar
Da ciência verdadeira.
Quem já não se interrogar,
Quem de lá se não abeira
E já se nem maravilha,
Vogando no mar sem porto,
Pior que náufrago em ilha,
É como se fora um morto.
246 – Vulgo
É tido por competente
No Parlamento, em riqueza,
Na notícia que ele invente,
Em algo que o vulgo preza?
Um medíocre há-de ser,
Tem o espírito entre antolhos:
O dinheiro que ele quer,
Da política os abrolhos…
São pedantes ordinários
Com quem não falas de nada
Que ao correr de teus fadários
Gostes de abordar na estrada.
Têm uma inteligência
Que é dos fundos duma vasa,
De imundícies pestilência
Que quaisquer pulmões abrasa.
Encontrar alguém que tenha
Espaço no pensamento,
Que raridade tamanha
Dentro de tal elemento!
Como da mente tacanha
Colho a rajada do largo
Que à beira-mar nos apanha
E o mundo nos põe a cargo?
247 – Todavia
Ouvir música ou falar,
Que é que iremos escolher?
A música, ao se gravar,
É para um tempo qualquer.
Todavia, ao conversar,
O momento, se o perder,
Pode não mais ter lugar,
Não há mais porvir sequer.
É que, de facto, o futuro
Vem dos laços que inauguro
E é pela conversa e gesto
Que para o porvir me apresto.
248 – Vazio
A literatura é um refúgio
A todo aquele a quem falta
Para não ser infeliz.
Ao vazio sobrepuje-o
Com a fantasia em alta
De altos sonhos no país:
Cavalgue no Rocinante,
Cavaleiro desgraçado,
Indo por La Mancha adiante,
Ou cavalgue o mar cavado
Atrás da baleia branca,
Ou seja a barata tonta
Que o impede de ir à banca
A escrita a de vez ter pronta…
Tudo são modos astutos
Para nos desagravar,
Ao menos alguns minutos,
De imposições duma vida
Muito injusta e parcelar
Que a iguais sermos nos convida
Quando o que visa quenquer
É muitos, é tudo ser.
249 – Cometem
Cometem algumas gentes
O mesmo erro duas vezes.
Outros, mais inteligentes,
Novos erros e reveses
Descobrem a cometer
- E é o mundo novo a fazer!
250 – Fim
Desesperar desespera
Quem o fim vir evidente
Mas sempre como a quimera
Que nunca terá presente.
A quem não vir, pois duvida,
É sensatez acatar
A necessidade havida,
Quando o rosário findar
Doutras possibilidades
Que foram avaliadas,
Mesmo quando tais verdades
De insensatez vão cotadas
Por aqueles que se agarram
A qualquer falsa esperança.
- Mas porvir é dos que amarram
A ponta que ainda se alcança.
251 – Coragem
À coragem sem renome
Ninguém lhe canta a proeza
Na derradeira defesa
Da casa que se consome.
Não é menos valorosa
Por não ser glorificada.
É mesmo mais generosa:
- Gratuita entrega, gostosa,
Aos vindoiros limpa a estrada.
252 – Praga
Coisas que os homens começam
Serão sempre tal e qual:
Na Primavera tropeçam,
Numa geada invernal,
Numa praga de Verão,
Degeneram da promessa
Que um dia foram, em vão.
Somente a semente não
Se frustra assim à cabeça.
Enterrar-se-á na poeira,
Escondida em podridão,
Para retornar fagueira
Em tempo, lugar, maneira
Que nenhuns esperarão.
Dos homens é assim que os feitos,
Nunca ao prazo andando afeitos,
A nós sobreviverão.