CANTO  DOIS

 

 

EM  PROJECTOS  DE  INFINDAS  UTOPIAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 128 e 252 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    128 – Em projectos de infindas utopias

 

                                                    Em projectos de infindas utopias

                                                    Peregrinamos rumo ao Infinito,

                                                    Sempre acertando o passo em igual fito,

                                                    Desencontradas vão embora as vias.

 

                                                    E quando mais em mim tudo concito

                                                    Mais do sonho me encantam melodias,

                                                    Mais os dedos me tecem fantasias

                                                    Na peugada daquilo em que acredito.

 

                                                    Quanto mais claro um horizonte vejo

                                                    Mais eu descubro que é complementar

                                                    De sonho a meta que por fora almejo

 

                                                    E o que em meu imo acabo a saborear.

                                                    Todo o infinito, ao prolongar-me além,

                                                    Em meu mistério mergulhou também.

 

 

129 – Ponta

 

Trago na ponta dos dedos

Um segredo a libertar.

Se o agarro e perco os medos,

Se em redor o divulgar,

Tudo o mais então esquece:

- É que o milagre acontece!

 

 

130 – Íntegro

 

O íntegro faz o que faz

Porque é aquilo que é correcto,

Não porque é moda que apraz

Nem político prospecto.

 

De princípios uma vida

Em que se não sucumbir

Ao fácil que nos convida

Há-de à vitória atrair.

 

E leva-nos ao futuro

Sem requerer que as pegadas

Que ao retrovisor apuro

Tenham de ser vigiadas.

 

 

131 – Heróis

 

Os heróis são material

De que qualquer sonho é feito

E os monumentos, sinal

Deste invento à pedra afeito.

Sem alguma extravagância

Jamais o mar fora aberto

E o Parténon na infância

Morreria, mal desperto.

 

Os monumentos são luxo

E ao mesmo tempo poupança:

Do poder perene fluxo,

São do povo, ao fim, herança.

 

Que Terra mais maçadora

Sem Pirâmides, Veneza…

- E como partilha agora

O mundo inteiro a beleza!

 

 

132 – Mudar

 

Jovem revolucionário,

Quer mudar o mundo à força.

Depois, o destino é vário

E por proteger se esforça

 

Aquilo que descobriu

Que de bom havia já

No caudal vivo do rio

Do planeta que aqui está.

 

Com a idade muito mais

Compreenderemos, plenos,

Muito embora, triviais,

Estudemos até menos.

 

 

133 – Falta

 

Faz-nos falta ter direito

A um tempo em que não havia

Nem de acertar o preceito,

De ter razão a mania,

Nem mesmo o dever egresso

De verrumar o sucesso.

 

Faz-nos falta ter direito,

Durante uma vida inteira,

De andar de chupeta ao peito

Sonhando a freima leveira

E não esta que acelera

A cada esquina uma espera.

 

 

134 – Chamamento

 

Dedicado a um chamamento,

Encontro a finalidade

E um padrão para o que intento,

A vida é vida em verdade.

 

Se cuidar de resolver

Do mundo todo o problema,

Desisto sem ter sequer

Arregaçado um só tema.

 

Se me cingir ao trabalho

Concentrado numa causa,

Logro muito no que emalho,

Lanço os mais quando entro em pausa.

 

 

135 – Redor

 

Se me sentar silencioso,

No fim da tarde, ouço vozes

Em meu redor num gostoso:

"Lê-me, quero que me gozes!"

São os livros meus amigos

Desta minha biblioteca.

Em miúdo, sem abrigos

Nem sequer uma boneca,

 

Encostado numa ombreira,

Oiço minha mãe dizer:

"De distrair-te a maneira

Vai ser aprender a ler!"

 

Hoje à mão tenho o infinito…

- Nunca imaginei tal fito.

 

 

136 – Rio

 

Há um rio de humanidade

E, embora não saiba ainda

O que fica além da foz

Do rio que nos invade,

Começo a entender-lhe a vinda,

Nossas ânsias tomam voz.

 

A humanidade carrega

Toda a preocupação

Rezando em rio profundo

E já não fica tão cega,

Apostada na visão

De quanto o leito é fecundo.

 

Abarca no seu abraço

O rio toda esta gente

E lento a leva consigo.

É um rio de humano traço

Onde a angústia me consente

Que eu também encontre abrigo.

 

 

137 – Ânsia

 

Os teus pecados acabam

Por ser, em última análise,

Uma espécie de catálise:

Ânsia que não menoscabam

Doutro modo de viver.

Um modo de salvação,

Será demais pretender.

Mas o potencial que houver

De salvar em qualquer lado

Que nos fala ao coração

Tem a sede no pecado.

Siga embora o itinerário

Outro qualquer rumo vário.

 

 

138 – Bonecas

 

As bonecas rejeitadas

Que moram no coração,

Quando a noite é mais profunda,

Será que as portas fechadas,

Ao mover-se, arrombarão

E bailarão na rotunda

Que dispara os pesadelos

Por entre os sonhos mais belos?

 

As bonecas rejeitadas

Que moram no coração

São os duendes e as fadas

Que nos bailam ao serão,

Nas horas mal precatadas

Em que o rosto verga ao chão.

 

As bonecas rejeitadas

Que moram no coração…

 

 

139 – Violar

 

Não há porventura em nós,

A despeito da razão,

A contínua propensão,

Aquela secreta voz

 

Que leva a violar a lei

Só porque de lei se trata?

- Tanto vejo que me mata

Se além não for do que sei.

 

Ficar preso agora aqui

É viver o aqui agora

E morrer no que demora

Todo o além que não vivi.

 

 

140 – Furor

 

Como explode este furor!

Por que é que o furor faculta

De prazer um tal fulgor

Com toda a vivência inulta?

 

Há uma força misteriosa,

Cruel, oculta, disfarçada…

De explicações ela goza?

Redu-las por fim a nada,

 

E desafia os preceitos

Morais todos que tivermos:

Que é que atrás de meus conceitos

Me inviabiliza os ermos?

 

 

141 – Tempo

 

É a familiaridade

Que leva o tempo a voar

Na vida que então se evade.

Se em cada dia tentar

 

Uma pegada no ignoto,

Como é sempre nas crianças,

Os dias são o picoto

Da serra que nunca alcanças,

 

De novas longa cadeia

Que interminável se alteia.

 

Um olhar ao jamais visto

E em cada momento existo.

 

 

142 – Ninguém

 

Ninguém descobre o que faz,

Nem porque o fará também

E não sei mesmo se alguém,

Sem temer erro tenaz,

Ao dizer aquilo que é,

Exacto de tal dá fé.

 

- Somos o cego hesitante

Sem atrás nem adiante:

 

Onde levam as pegadas

No final destas jornadas?

 

 

143 – Lama

 

Caminhar rumo ao futuro

É levar lama nos pés,

A imundície do passado

Agarrada no monturo,

Inçando de lés a lés

Cada passo caminhado.

 

E jamais há raspadeira

Capaz de limpar a jeira.

 

 

144 – Toda

 

Da vida que tenho, gosto.

Quando a quis toda, porém,

De mim não gostava, aposto,

Já que a quis de mim refém.

 

Mas doravante que aceito

Que o tempo viaje em mim

Ele me abraçou ao peito,

Leva-me a ignoto confim.

 

Assim, levado na onda,

Não sou quem por mim responde,

Tenho quem por mim responda

Não sei quando nem sei onde.

 

 

145 – Repararas

 

Se repararas em mim

Nem que só fora um instante,

Fugias logo perante

O monstro que sou assim:

Contando histórias de estrelas

Para esconder-me atrás delas…

 

Quando nelas me confundes,

Eu te agradeço efusivo

Que de astros todo me inundes

Quando, ao fim, não há motivo.

 

 

146 – Onda

 

Não eras quem esperava…

Ando sempre a imaginar,

Ando sempre a confundir

Isto com o que é de vir

Numa onda que se cava

Da forma que lhe calhar.

 

Erro não é nem asneira:

É sempre doutra maneira…

 

- Neste erro em que recalcitro

Sou finito ao infinito.

 

 

147 – Condenar

 

De que serve este eu que sou

Se o condenar à prisão?

Sabê-lo é afirmar-lhe o voo

E vê-lo é dar-lhe razão.

 

Aquele que ignora que é,

Que ignore isto e o mais que seja,

Que despreze o que faz fé,

Amordace o ser que almeja.

 

No dia-a-dia animal

Quem a evidência de si

Teve um dia, matinal,

Como encurralar-se ali?

 

Este milagre de sermos,

Gratuito, como pagá-lo?

Demos-lhe nós o que dermos,

Fruamo-lo no regalo

 

Da oportunidade, enfim,

De o sermos até ao fim.

 

 

148 – Inverno

 

Na bela noite de Inverno

Venho à janela espreitar

As estrelas deste eterno

Campo escuro de luar.

 

O milagre de estar vivo,

Como me sinto tão eu!

Não, porém, um eu esquivo

Que sozinho aconteceu.

 

Há muitas partes de mim

Por aí, por muito lado:

Um filho a dormir, enfim,

Um marçano contratado,

 

Uma granja que ajudei

A arrotear, leira a leira…

Sou parte, descortinei,

Duma grandeza primeira

 

Que vai muito para além

De quem me for conhecido,

Alcança destes também

Quantos eles hão movido,

 

Vai daqui para o passado

E deste para o futuro…

- Não há raia em nenhum lado,

Algo infinito inauguro!

 

 

149 – Ter

 

Quero ter e segurar

Minha aparição de mim.

Logo a levo a se evolar,

Opaco de todo enfim:

Já não era aparecer,

Seria petrificar-se…

Fulminante no meu ser

A quero e que não se esgarce,

 

Para criar minha vida,

A reformular de vez.

Mas a muda empreendida

É de fora um entremez.

 

Ser fiel a uma certeza

Não é ver se me apetece,

Isto é uma falsa nobreza,

Teimosia que fenece.

 

 

Ser fiel e uma honradez

É hesitar em cada instante

À luz do raio que fez

Trilho, à noite, ao viandante.

 

 

150 – Devaneios

 

Os devaneios indicam

Do real a irrealidade,

Do imaginário se aplicam

A comprovar a verdade.

 

Do mundo a rocha é uma meta

Firmemente alicerçada

Em asas de borboleta,

Na magia duma fada.

 

A verdade verdadeira

Quanto mais firme na amostra

Mais vemos quanto é parceira

Do infindo que se entremostra.

 

 

151 – Actos

 

Nossos actos têm efeitos

Muito para além de nós,

Rios a rasgarem leitos

Com mil vendavais após.

 

Interligam o presente

Com o que vier no futuro,

E nada em mim me pressente

Qual o porvir que inauguro.

 

Tento o que me faz feliz

E de que não me arrependa

Daqui a uns anos, que o fiz

Por cuidadosa encomenda.

 

 

152 – Continuamos

 

Nós nunca, nunca morremos,

Continuamos a viver

No rosto que passaremos

A cada filho que houver.

 

Há muito de tua mãe

Que hoje respira por ti

E o gesto que finda além,

Não finda, prossegue aqui.

 

 

E as palavras que disseste

Não as levou, não, o vento,

Semeiam em terra agreste

Tudo o que hoje é nosso alento.

 

 

153 – Depois

 

E depois?… Não respondeu.

Sei lá bem se olhava a Lua

Ou algo que ninguém viu

Muito além do fim da rua!

 

Além da Lua, da estrela,

Além do céu, desta noite

Tão tranquila e paralela

Onde um sonho há que me acoite…

 

Sei lá porque de repente

A vontade de chorar

Entra no peito da gente

Só porque é noite e há luar!

 

Uma lágrima a reter,

Para a festa irei sair

Da noite que contiver

Este luar de além ir.

 

Sei que será sempre assim

Sem que eu tenha mão em mim.

 

 

154 – Novinho

 

Que bom poder estrear

Um ano novinho em folha

Quando em Janeiro há lugar

Sempre a uma nova escolha!

 

Que bom ter esta ilusão

De que choco a vida em ovo

E que a tendo em gestação

Tudo ao fim farei de novo!

 

Tal se fora vez primeira…

Ou tal como gostaríamos

De ter feito de carreira

Quando à vida nos abríamos.

 

Ano Novo, mas que festa

A da vida por haver

E não desta que não presta

Senão de tal prometer!

 

 

155 – Vibra

 

Algo em nós vibra no anseio

Por deixar-se arrebatar:

É a paixão, neste entremeio,

Que nos tira do lugar.

 

Livro escrito sem paixão

Mata o gosto da leitura,

Equipa arrastada ao chão

Já não joga e o jogo dura,

 

Vai queixar-se o fã de que eles

Andam jogando a dormir…

Recompensamos aqueles

Que este apetite, a seguir,

 

Alimentam a vibrar,

Músico, actor ou atleta:

Juntam milhões por nos dar

Da paixão toda a paleta.

 

 

156 – Repique

 

Comungar é um poderoso

Repique à contemplação.

Comemos e que é do gozo?

Bebemos satisfação?

 

A toda a hora ingerimos

Nossas ideias, projectos,

Preocupações que sentimos,

Ansiedades sem tectos…

 

Na verdade não comemos

O nosso pão e a bebida

Deveras jamais bebemos,

Distraídos na corrida.

 

Se me permito alcançar

O meu pão profundamente,

Renascerei logo a par,

Pão é vida nele, em ente.

 

Ao comê-lo, então, profundo

Toco o Sol, nuvens, a Terra,

Universo além me afundo

Muito além de paz e guerra.

 

Toco a vida, toco a vida

E toco o Reino de Deus,

Eucaristia vivida,

Fundida a terra e os céus.

 

 

157 – Mal

 

Seria mal desejá-la?

Para que é que nasce um homem

Se do desejo não fala?

Para querer, não, que o somem

 

Da vontade as alcavalas.

Para o poder, também não,

Que finda morto nas valas.

Para conhecer, dirão

 

Os que não olham o escuro…

- Se o desejo se calar

Como é que em mim inauguro

O que nunca tem lugar?

 

 

158 – Linguagem

 

A linguagem que resulta

De contemplar o infinito

A todos nos catapulta,

Da felicidade ao grito.

 

O inverso pode matar:

Se me dizem o cruel,

Quero-me é suicidar,

Findar ali meu tropel.

 

Quando alguém algo me diz

(Dádiva maravilhosa)

Que me tornará feliz,

A vida inteira é gostosa.

 

 

159 – Corpo

 

Crês que o corpo te pertence,

Fazes dele o que quiseres.

A lei apoia e convence

Individualista a seres.

 

O ensino da solidão,

Do não-eu na relação,

Diz que o corpo não é meu.

 

Pertencerá por igual

A qualquer meu ancestral,

Pai, avô que já morreu

 

E às gerações do porvir

E a qualquer ser que bulir.

 

 

Tudo, as árvores, montanhas,

Se reuniu para causar

Meu corpo aqui no lugar.

 

Como agradecer tamanhas

Ternuras senão cuidando

Bem deste corpo com que ando?

 

Da concha quando sair

Deste meu pequeno ser

Com tudo e todos vou ver

Que me interligo em devir.

 

Qualquer meu pequeno gesto

Prende a toda a humanidade

Como ao Universo inteiro.

Quando saudável me apresto

A ser por mim de verdade

Ao mistério me emparceiro.

 

 

160 – Suporta

 

Um amor suporta tudo,

Em tudo acredita, fiel,

E faz durar, sobretudo,

Tudo o que lhe aflore a pele.

 

Um amor não tem limites

E nunca finda um amor,

Renasce além dos palpites…

- Como o caruncha o bolor?

 

 

161 – Suprema

 

A suprema dimensão

Nada a ver tem com conceitos,

O real supremo não

Se discute além dos preitos,

 

Porque jamais o podemos:

Como um sumo de maçã

Concebemos de manhã

Se nós jamais o bebemos?

Só depois de haver bebido

Falar dele tem sentido.

 

Como descrever a um peixe

Como é a vida em terra seca,

Sem que respirar se deixe

Sem água, em paisagem peca?

 

 

As coisas não são descritas

Por conceitos nem palavras,

Encontra-las se as concitas

Vivendo-as no acto que lavras.

 

Este acto que é o final lema

Não o teremos jamais

Quanto à dimensão suprema:

Restam-nos, pois, só sinais.

 

 

162 – Mistério

 

O dia de nossa morte

É o de nós continuarmos

Sob outras formas, à sorte,

Por de vez nos mergulharmos

 

No mistério do Universo,

Em seu imo incontroverso.

 

Com ele no itinerário

Seremos seu rumo vário.

 

Ver nossos antepassados

Na suprema dimensão

É tais rostos transmudados

Connosco ver que estarão.

 

Toco a mão, cara ou cabelo,

Olho a fundo onde é que findo

E ei-los dentro em mim, são elo

Em meu íntimo sorrindo.

 

 

163 – Agricultor

 

O agricultor que olha a terra

Inverno além pode ver

Dele a colheita a crescer,

Que as condições dela encerra:

 

Água, sementes, alfaias,

Fertilizantes, labor…

Falta apenas o calor

Para tudo entrar nas baias.

 

A colheita, pois, já existe,

Já lá está germinalmente.

É o que S. Francisco sente:

Com a amendoeira insiste

 

Para lhe falar de Deus

Em pleno gelo do Inverno.

Logo ela o esplendor superno

Abre das flores aos céus.

 

Não havia nela folhas,

Nem florira ou dera frutos,

E ele viu quanto não olhas:

- Toda a festa dos produtos.

 

 

164 – Atento

 

Quando vir apenas ondas,

As águas posso perder.

Mas, se atentar, minhas sondas

Nas águas irão poder

Vasculhar o que respondas.

Logo que formos capazes

De tocar águas deveras

Não mais importam as fases

De ir e vir de ondas, de esperas:

Nascimento e morte de ondas,

Efémeros são que escondas.

 

Já não mais teremos medo,

Nem sequer nos preocupa

Das ondas princípio e fim,

Se decorrem tarde ou cedo,

Cada qual que mar ocupa,

Se é bela ou assim-assim…

 

Serei capaz de largar

Estas ideias, pois trago-a,

Quando a morte ameaçar,

Perene, a raiz: a água.

 

 

165 – Orar

 

Orar como meditar

Leva a atingir a semente

Mais valiosa que alcançar

Dentro em mim, no abismo do ente.

 

O fundamento do ser

Anda em nós sempre a brilhar,

Germe original qualquer,

Piscando, a negacear.

 

As aflições como o medo,

Raiva, dúvida, ansiedade,

O esquecimento, o degredo,

Impedem a claridade.

 

Impedida a luz de entrar,

São as práticas do crente

Que vêm varrer o lar

Para o abrir ao sol mais quente.

 

Presente aquela energia,

Ocorre a transformação,

O Espírito se irradia

A partir do coração.

 

A compreensão, o amor,

A paz, a estabilidade,

São viáveis ao fulgor

De nossa nova entidade.

 

Deus está dentro de nós,

Somos já quanto não somos,

Mas o fio de retrós

Ata-nos até aos pomos.

 

Isto é ser um inter-ser,

Ir já sendo este não-eu,

O infinito a aparecer

No que em nós há já de céu.

 

 

166 – Rituais

 

Se me deixar apanhar

Por rituais, forma exterior,

Noções, e não praticar

Vida a sério com vigor,

 

Não encarno a tradição,

Dela o espírito não bebo.

Ergo um muro neste chão

Das águas que não recebo.

 

Não vejo o que os mais requerem,

O sofrimento das gentes:

Em vez de menos sofrerem

Torno-os bem mais padecentes.

 

As práticas limitadas,

Fundamentalistas, cegas,

Dogmáticas e fanadas

Murcham quem lhes cai nas pregas.

 

Teremos de nos lembrar

Uma e outra vez, constantes,

O inicial fito a visar

E os sábios nisto gigantes.

 

 

167 – Reino

 

O reino de Deus tocar

Com o corpo aqui e agora

Mais seguro é que esperar

Um futuro que demora.

 

Se me pendurar da ideia

De esperar pelo futuro

Poderei nem ver a cheia

De alegrias que hoje apuro.

 

Do futuro ao tomar conta,

O melhor, é ponto assente,

É tratar do que hoje o aponta,

Tomar conta é do presente.

 

 

168 – Ruínas

 

As ruínas desempenham

O papel de equilibrar

A construção da cultura

A que espíritos se atenham,

Com ânsias de renovar

O que o porvir lhes figura.

 

A ruína desconstrói

Lenta, com tempo, calma,

Aponta o que outrora foi,

Fala-nos, discreta, à alma.

 

Quando tudo anda febril

A construir o futuro

Urge um esforço viril

A proteger o monturo.

 

É que o passado até sofre

Obras de renovação

E assim nos roubam o cofre

Onde habita o coração.

 

 

169 – Memória

 

Livremo-nos das ruínas

E perderemos o rumo

Que de memória combinas.

Andaremos, em resumo,

 

Por aí desatrelados

Do passado, dos maiores,

E muito aflitos levados,

Incônscios, pelos rumores,

 

Para um futuro sem norte.

Perguntam por que razão

Anda o mundo como à sorte

E um valor procuro em vão,

Por que a família já não

Vive unida tal como antes,

Por que é que o ódio, a agressão,

Explodem hoje, constantes,

 

Os crimes e o vandalismo,

As marcas da decadência,

Nos cavam à frente o abismo

Da gratuita violência…

 

- Melhor era perguntar

Que fizemos das raízes,

Esta cultura ao criar

Alheia às próprias matrizes.

 

 

170 – Átrio

 

Meu átrio de eternidade,

No jardim escapo à vida

E ao tempo com que me invade.

É o rito que me convida,

 

Não a tarefa: é o lazer…

Pára o tempo ou, pelo menos,

Lento e lento anda a escorrer.

A beleza tem acenos

 

No jardim a contemplar,

Não há preocupações

Da freima a desempenhar.

A borboleta aos baldões,

 

A abelha de flor em flor,

São minha alma laborando

Incógnita, com amor,

Misteriosa, em gesto brando.

 

São meus minutos de mel:

Vivo aqui minha outra pele.

 

 

171 – Ansiedade

 

A ansiedade radical

Vai deixar de ser esquiva

Bem mais por ocasional

Vida significativa,

 

Que por busca de sentido.

O significado vem

De o interior ser colhido:

Alma que a vida contém,

 

 

O poder de fascinar,

De encanto encher cada lar

Por mero facto de ser

E de assim nos preencher.

 

 

172 – Poder

 

O inferior se revolta

Para poder ser igual

E o igual, para, na volta,

Poder ser superior:

- É ninguém ficar tal qual

Da inovação o motor.

 

 

173 – Fendas

 

De fendas a vida é cheia,

De portas e de janelas,

Onde o eterno nos ameia

Oculto por detrás delas.

 

Vislumbres de epifanias

Momentâneas, sensações

Raras de assombro e magias,

Em breves aparições.

 

Ligadas à natureza,

Espantam-nos de mil formas,

Resvés de cada devesa,

Plantas, penhascais sem normas.

 

Mas também o numinoso

Aparece em arte humana,

Nas obras que nos dão gozo

Do infindo que delas mana.

 

 

174 – Leva-me

 

Sentir-me uma criatura

Leva-me ao encantamento:

Será o reconhecimento

De que o mundo é uma lonjura.

 

Mais vasto infinitamente

E bem mais misterioso

Que o que teremos em mente

Se à ciência é que o entroso.

 

Dele me vem uma voz,

Música, acorde vocal,

Nele a atar-me com tais nós

Que jamais serei igual.

Ser criatura é humildade,

Que me extasie permite,

Que me assombre, se me invade

Das alquimias que incite.

 

Quando lhe andar receptivo,

O influxo revelador

Da vida transformador

É finalmente o que vivo.

 

 

175 – Raio

 

Faz-me um raio estremecer

E neste choque percebo

A beleza a acontecer:

- O numinoso recebo.

 

Vislumbro algo que transcende

Este universo de dados,

Lógica de compra e vende,

Anseio doutros estados.

 

Viver com o numinoso

Que nos cerca mata a fome

Do místico, cujo gozo

É uma presença sem nome,

 

Percebida nos momentos

Dum êxtase visionário.

Não fora de mão eventos,

Antes de curso diário:

 

Poderemos ter vivências

De assombro e de encantamento

Nas diárias experiências

Em que me vivo e me invento.

 

 

176 – Moderno

 

O homem moderno talvez

Nem consiga avaliar

A intimidade que o fez

Com o mundo por se dar.

 

Tendemos a ver apenas

O duro da superfície,

O mais são coisas pequenas,

Quando não uma imundície.

 

Presumimos que só nós

Teremos vida interior.

Nossa relação após

Com o mundo é sem calor.

Se o mundo também tem alma,

Vida interior profunda,

O encanto que nos acalma

Desde logo nos inunda.

 

Percebendo a vida interna

Do mundo que nos rodeia

A emoção toca-nos terna

Da união que nos permeia.

 

 

177 – Sol

 

Admiro este Sol visível

Mais dele o pendor oculto:

Da ciência aquele é inquirível,

A este antes presto culto.

 

Há um lado da criação,

Das estrelas e planetas,

Que é do mistério um desvão,

Não de bruxas nem de seitas,

 

Microcosmo em paralelo

Que em mim resume o Universo:

Sou a Lua, o Setestrelo,

Nas qualidades que verso.

 

É neste jogo de espelhos

Que em mim a eterna criança

Encontra tesoiros velhos

Que a ciência nunca alcança.

 

 

178 – Esperar

 

Esperar encantamento

É uma nova astrologia

Fugida à superstição

E rumando em direcção

Da intimidade, um momento

De inteligente magia:

 

O íntimo da natureza,

Sensível, existencial,

Poético como uma reza,

Na vitrina de cristal

Do céu nocturno se espelha,

No todo e em cada centelha.

 

Podemos olhar tal céu

De vez tão intensamente

Que nos vemos, de repente,

A nós próprios lá sem véu.

 

 

179 – Comovente

 

É comovente encontrar

Tanta espiritualidade

Em plantas, pedras, na terra…

Esponsais é celebrar,

Uma fórmula que encerra

A derradeira verdade:

 

Unem-se neste himeneu

Toda a terra com o céu,

 

Reconciliando, em tal fito,

O finito e o infinito.

 

 

180 – Bela

 

Que bela a inutilidade,

Boa a falta de sentido!

Despir racionalidade,

O dinamismo renhido,

Toda a força com que intenta

A vontade rabugenta…

 

Como é bom soltar as asas

E voar pelos espaços,

Bem de longe a ver as casas

A que nem vislumbro os traços!

 

 

181 – Imaginário

 

Quando para o corpo olhamos

Estaremos a ver alma,

A menos que nós tenhamos

O imaginário de Talma

 

Perdido pelo caminho.

E quando sexo fazemos

É no corpo que adivinho

Os mistérios que entrevemos

 

Mais profundos vindos dela:

- Cintila ao longe uma estrela.

 

 

182 – Procuro

 

Que é que procuro, afinal?

E, afinal, que é que eu encontro?

Nada. A busca radical

É sempre a do desencontro.

 

 

Não busco nada, portanto.

Nunca encontro o que procuro

Mas o que encontro, entretanto,

Jamais antes mo auguro.

 

A vida é sempre um deserto,

Como uma ausência de tudo,

Nada busco, estou desperto

E às imensidões me grudo.

 

Então tudo principia

Num iniciático flanco

Como a luz que me alumia,

Como uma página em branco.

 

 

183 – Ânsia

 

Ânsia funda de deserto,

Esta vontade de nada,

Do vazio aqui bem perto,

Esta viagem sem estrada

 

Ao mais fundo de nós mesmos…

Por quê ir onde não resta

De arrogância nem a fresta,

De saúde nem enfermos,

Nem orgulho, nem saber,

Nada do que cremos ter?

 

Sozinhos ante o Absoluto,

Fundidos, porém de costas,

Eis a chave por que luto,

Para os enigmas respostas

Que jamais decifrarei.

Ali principia a vida,

Das coisas todas começo,

Útero que gera a grei.

Descoberta esta medida,

Tudo o mais é só tropeço,

Nem vale o que vislumbrei.

 

 

184 – Enquanto

 

Eu, enquanto me lembrar,

Estarei vivo deveras,

Indício certo dum lar

Que não disperso nas eras.

 

Estarei vivo e, vivendo,

Eu não deixarei morrer

Quem comigo andou correndo

Pelos caminhos que houver.

 

Uma certa eternidade

Eu então empresto a tudo:

Minha idade, mais que idade,

É o mundo inteiro que mudo.

 

 

185 – Nada

 

Nada é eterno ou adquirido,

Tudo é fugaz, passageiro.

A ilusão é de haver crido

Num horizonte certeiro,

 

Fechado e guardado à vista,

Que ignora ou finge ignorar

Toda a interminável lista

De camadas de explorar,

 

De horizontes sobrepostos

Para além deste imediato.

- Das profundas são propostos

Rostos do infinito em acto.

 

 

186 – Sofrimentos

 

Sinto-me paralisado

Com sofrimentos do mundo,

De quem me for mais chegado,

De querelas em que abundo.

 

Se me permitir o espaço

Diário de respirar

Então consigo enfrentar

Melhor este mundo baço.

 

Se o tempo recarregar

Nossas gastas baterias

Descobrimos energias

Para a lonjura alcançar,

 

Para a nós nos transmudarmos

Por qualquer gesto fecundo

E uma vez mais navegarmos

Rumo sempre a um novo mundo.

 

 

187 – Outra

 

Qualquer alma quer-se unir

Não só com outras pessoas

Mas com outra dimensão,

Quer como eterna a fulgir,

Quer como imortal vulcão,

Ou mística a cantar loas…

 

Anseia por um amante

Misterioso na neblina

Que mora, de instante a instante,

No parceiro a que se inclina

E todavia o supera

Como ao real a quimera.

 

Este mundo e nosso par

De carne e osso, de matéria,

Não são barreira a trepar,

São uma via sidérea

Para a espiritual esfera

De eterno que nos espera.

 

 

188 – Germinar

 

Quando o sexo tiver alma

Pode então germinar mundos:

A vitalidade calma

Que vem dos gestos fecundos,

 

Famílias, comunidades,

Obras de arte que arrebatam,

Laços fundos de amizades,

Nós que atam o que desatam…

 

Sem dimensão de mistério

O sexo não era humano,

Dele incompleto no império,

Infértil no vago plano.

 

Sexo cortado da vida

Existe onde? Nos prospectos?

- Nela presente, é medida

Do além dela em mil aspectos.

 

 

189 – Ninfa

 

A ninfa do sexo

Num acto amoroso

O parceiro humano

Com ele conexo

Torna misterioso,

Sombra atrás do pano.

 

Importa encontrar

Homem ou mulher

Que vão evocar

O Encoberto a haver

Para no-lo dar.

Qualquer alma busca

Dela o que o desejo

Lhe satisfará:

Nosso olhar ofusca,

Grudado sem pejo

Ao que ela for lá.

 

 

190 – Ritual

 

Todo o ritual do amor

Convida a deusa do sexo

A estar presente e se impor.

A afeição que der no amplexo

 

Que troco com um parceiro,

Os preliminares, visam

A ninfa a evocar no inteiro

Espírito que enfatizam.

 

Sem a presença da ninfa

O sexo devém mecânico,

Falta-lhe alma, falta linfa,

Principio a entrar em pânico.

 

Qualquer alma o temporal

Quer tratado como o eterno.

Se a dimensão vertical

Perder, eu perco o superno.

 

Se os sentimentos profundos,

A maior aspiração,

De lado ponho, infecundos

Meus pés se arrastam no chão.

 

Vai ficar alma de fora

E o sexo, por esta via,

Funcional, já nem demora,

É uma experiência vazia.

 

 

191 – Presente

 

Todo o amor é um ritual

Como as religiões do mundo.

Tenta, presente o fanal

Do espírito que, jucundo,

 

Leva nossa actividade,

Eficaz ser por magia.

Como a ritualidade,

Arte o sexo requeria,

 

Cuidado com pormenores,

Dedicação, fantasia,

Humildade nos humores,

Onde não se forçaria

Mas se requer a presença

Dum espírito, dum deus.

Jantar fora não dispensa

Esmero, perfumes, véus,

 

Íntima conversação,

Música ouvida em surdina…

Tudo para evocação,

No sexo, de aura divina.

 

Em pleno acto sexual

Poderemos ser levados

Por intuição, por igual,

A fantasiar traslados,

 

A escapar do mundo frio

Dos egos, do voluntário,

Para o transe que há no rio

Do sonho, do imaginário,

 

E o sexo, por um momento,

Rompe pelo firmamento.

 

 

192 – Erotismo

 

O erotismo não é sexo,

É físico-emocional,

Com todo o mundo conexo

Na ponte ali principal.

 

Sexo é traço de união

Sentido e compreendido

Por quem o não vive em vão,

Fundo lhe busca sentido.

 

Eros no sexo e  romance

É o magnetismo que unido

O Cosmos ao meu alcance

Mantém assim repartido

 

Em órbitas de planetas,

No ciclo das estações…

Busco no sexo outras metas

Que carnais satisfações.

 

Minha alma quer o eros todo:

Um mundo unido em redor,

Vida em todo e qualquer modo

Que puder tocar o amor.

 

 

193 – Vivência

 

A vivência sexual

A vez primeira supera

A inibição ancestral

Mais antiga, doutra era.

 

A primeira intimidade

Com determinado par

A reserva persuade

Entre ambos logo a findar,

 

A reserva que mantinha

O casal entre limites

E o contacto se adivinha

Finalmente de ambos quites.

 

A primeira experiência

De sexo, de novo jeito

Pode envolver a evidência

De quebrar qualquer preceito,

 

Superar expectativas:

A mútua cumplicidade

Mil alegrias esquivas

Captura com à-vontade.

 

Festivais religiosos

A culminar em orgias

São mais que rituais gozos,

- São romper de novos dias.

 

 

194 – Mitologia

 

Todo o corpo é mais que um mito

É a mitologia inteira,

Pois assim como concito

As lendas e os rituais

Das culturas ancestrais,

Colocando à minha beira

Todos os deuses guerreiros,

Ninfas dos bosques, riachos,

Espíritos do lugar,

Posso para o corpo olhar

E dos seios ver os cachos

Com os pâmpanos inteiros,

Os músculos protectores,

Cabeleiras sensuais,

Pés firmes, aventureiros,

Nádegas de mil pudores…

Todo o corpo são portais,

Diferindo subtilmente

Dum em um, frestas de sol

Para um mundo que se sente

De encantos, significados,

Num interminável rol.

O desejo e a fantasia

Assim intercombinados

São o que nos anuncia

Que alma é visível palavra

Que pelo corpo se lavra.

 

 

195 – Percebida

 

Todo o corpo é sempre uma alma

Dos sentidos percebida.

Em fala subtil e calma

Aos mistérios nos convida

Da pessoa e raça humana,

Que tudo dele dimana.

 

Os corpos na multidão,

As pequenas diferenças,

Deles a apresentação

Em fotos de arte, em sentenças

De mera publicidade…

O artista a tudo persuade,

 

Nunca deixa de pintar

O corpo em todos os tons

E estilos que adivinhar.

Ao espelho espreito os dons

E nas fotos de família

Como um segredo em vigília,

 

Como se o corpo escondera

Quem somos e quem seremos,

Aguardando, de era em era,

Que um dia nos revelemos.

 

 

196 – Beleza

 

A beleza original

Brilha em todo o corpo e rosto,

É a visão fundamental

De quem ama, de olhar posto,

 

É o que vêem nossos pais

Que os atrai à sedução.

- Desta beleza os fanais

São vida de alma em função.

 

 

197 – Foras

 

Olham para ti as gentes

Como se foras espelho

Em lugar de ser humano?

Contudo, não te apoquentes,

Aquilo a que te aconselho

É a que repares no engano:

 

Não se revêem em ti,

Vêem é tua magia,

A que em mais nada se via,

Dispersa no frenesi.

 

Do corpo idealização

Como espírito do sexo,

Ninfa, deus em ti verão,

O lado outro num amplexo

 

Tão manifesto, evidente,

Que a pessoa ultrapassada,

Doravante indiferente,

Nem sequer será notada.

 

 

198 – Manter

 

Nossa ninfa sexual

O cérebro, o coração,

Não vai manter em função.

Que é que importa? Não faz mal!

 

Manter não nos vai manter,

Dos longes feita fanal,

Mas faz a vida valer!

 

Por mais que disto eu arquive,

Não será nunca um senão,

Qualquer alma sobrevive:

Mato-lhe a fome de pão.

 

 

199 – Belo

 

Posso do corpo trepar

Para as almas, anjos, Deus,

Pelo belo que encontrar,

Porta aberta azul dos céus.

 

Posso ficar fascinado

Dos bandós de minha filha,

Enterneço-me um bocado

E não pára a maravilha.

 

Por ela amarei a vida

E nesta o que ao fim concito

É a beleza que convida

De mais Além, do Infinito…

 

Chego a Deus tão facilmente

Pela escada da beleza

- Só do cabelo virente

Que em minha filha se preza!…

 

 

200 – Embora

 

Todos poderão ser belos,

Embora apenas o amante

Possa vislumbrar apelos

No corpo, rosto ou cabelos

De quem ele amar constante.

 

Mas tal beleza é real,

Tem um papel importante

No sexo primordial,

É de Vénus o sinal

De ali andar actuante.

 

Atrai a imaturidade,

Não tanto da perfeição

Do que nos jovens agrade,

Mas da lacuna que invade

O que prometem e dão.

 

Entre o dado e o prometido

Namora o fruto proibido.

 

 

201 – Fascínio

 

O fascínio pelo falo

Não é apenas do poder,

Ele ilumina dum halo

Todo um mistério qualquer.

 

O pénis é tão comum,

É tão insignificante!

Mas que é que interesse algum

Desperta tão importante

 

E tão desproporcionado

Dele ao tamanho e função?

Órgão pequeno e fanado,

É o mito que é grande e tão

 

Pejado de fantasia

Que, ao buscar significados,

Dele as almas inebria

Pelos cumes elevados.

 

 

202 – Vagina

 

A vagina é um santuário

Onde o pénis o caminho

Encontra à felicidade

E a vida, em destino vário,

Chega, num jeito adivinho,

Descendo da eternidade.

 

 

203 – Compromissos

 

Pode a vida seduzir

Levando-nos a largar

Compromissos actuais:

O lugar onde me vir,

Um modo de organizar

Na vida quaisquer fanais,

Uma crença espiritual,

A política local…

 

A uma vida afrodisíaca

Que lhe importam os arranjos

Bem feitos e duradoiros?

Representa, genesíaca,

Mil atracções que há nos anjos

Quando à luz abrem tesoiros:

 

São ligações e paixões

A laborar indirectas,

Caras para o lado oposto.

O estranho destas lições

É que usam ser tão discretas

Que passam despercebidas.

 

Embora mal tenham rosto,

São o rio que há nas vidas

Nas funduras pressentidas.

 

 

204 – Períodos

 

Há períodos na vida,

No dia-a-dia momentos,

Em que a solidão convida,

Somos monges dos conventos.

 

Tão desligados do amor

Como do sexo de vez

Que só um foco tem fulgor,

Ausentes doutro entremez.

 

Não é um acto anti-social,

De rejeitar as pessoas,

É centração visceral

Em nós, sem gritos nem loas.

 

Pintores, naturalistas,

Absortos na sedução

De seu trabalho de artistas,

Buscam sempre tal desvão.

 

É deste jardim selado,

Deste bosque de eremita

Que o trilho vem segredado

Que a ser homens nos incita.

 

 

205 – Armadilha

 

Armadilha do amanhã:

Uma espécie de miragem

Que perseguem com afã

Enquanto vão na voragem.

 

Na realidade se irão

Afundando nas carreiras

E afazeres, dispersão

Que dura vidas inteiras.

 

Depois desta correria

O que mais lhes importou,

Adiado sempre um dia,

- É a terra a que nunca vou.

 

 

206 – Inebriante

 

Todo o sexo é um ritual,

Não um acto animalesco,

Inebriante e cordial

Licor num belo arabesco.

Qual mera necessidade

De a espécie não ter idade!

 

O êxtase é o que requeremos,

A beleza, a graça, a forma

São o sexo que visemos.

De seu potencial a norma

É a da espiritualidade

Com que por dentro nos grade.

 

 

207 – Erótica

 

Potencialmente de vela

Em toda a vida que houver,

Arte erótica revela

A beleza e o prazer.

 

Inspira a levar a sério

Desejos e aspirações,

A procurar refrigério

De estímulos-aguilhões.

 

Neles então toda a vida

Se torna convidativa.

 

 

208 – Diária

 

Toda a espiritualidade

É imanente e transcendente:

A vida diária invade,

Natural ou dependente

Das leiras que o homem grade

E se afasta tanto mais

Da vivência mais comum

Das vidas individuais

Rumo à fronteira onde algum

Mundo de além dê sinais.

Pela espiritualidade

Os povos meditam, rezam,

Lêem, viajam e a deidade

Buscam nos mestres que prezam,

E dedicam-se, idealistas,

A um valor fora das vistas.

 

Vida espiritual a sério

É imanência e transcendência,

A santidade é o mistério

Dentro em nós por excelência

E do mundo, no limite

Onde algo além me palpite.

 

 

209 – Diálogo

 

No que às almas se refere,

O diálogo interior,

As conversas com amigos,

As leituras com sabor,

Modelos que se prefere,

Da moral são os postigos:

Luz que por eles entrar

No-la acaba a ensinar.

 

Quando aqueles que eu admiro

São presos por convicções,

A moral a que eu adiro

É que é posta nas prisões.

São mestres que a injúria alcança,

Os agentes da mudança.

 

 

Levam deles as consciências

Aos actos mais corajosos,

Educam mundividências,

Geram mundos mais gostosos.

Bons alunos há que ser

Tais aulas a não perder.

 

 

210 – Aceitar

 

Se aceitar a alma do sexo,

Desejos e fantasias

Nem sempre literalmente

Devem ser interpretados,

Antes devirão o anexo

Que mora nas poesias,

Nestas imagens que em frente

Mundos mostram ignorados.

 

Fantasias sexuais

Serão válidas então,

Já que então farão sentido.

Nenhum desejo jamais

Veremos, pois, neste chão,

Alguma vez reprimido:

Ao ser em conta levado,

Fica em breve alimentado,

Reajustado e discutido.

 

Ao falar sobre os desejos,

Os conflitos que provocam,

Às almas vou dando ensejos,

Todos nelas desembocam.

 

O sexual desejo obrigo

A fazer dele a leitura

Como a um cantar de amigo,

Todo o oculto então depura.

Acolho as indicações

Tecidas de implicações

E eis que, num jeito adivinho,

Dobro a curva do caminho.

 

 

211 – Parece

 

Todo o nosso casamento

Parece uma união humana

E no fundo o que apresento

É a polaridade insana,

A tensão que assim me irmana,

Afinal, a toda a vida:

Somos a bandeira erguida

Duma alegria profunda

E da frustração total.

O que o lar então fecunda

É tudo, que a tudo é igual.

E quanto mais me transmudo

Mais acabo irmão de tudo.

 

 

212 – Sexo

 

O sexo nunca perfeito

Terá de ter de actuar

Nem de haurido ser dum jeito,

Dum modo particular.

 

Pois enquanto ele ocupar

Uma posição central

Num casamento, num lar,

Faz o labor radical

De entre os mundos mediar:

Dum lado as questões da vida,

Do outro as questões eternas.

 

Com o cotio hoje lida,

Logo as cumeeiras supernas

Dos significados busca,

Do que busca o coração.

Ora suave, ora brusca,

Dele, enfim, nos molda a mão.

 

 

213 – Adultos

 

Os adultos facilmente

Perdem graça, encantamento,

Nas crianças elemento

Perenemente presente.

 

Numa falha de energia

O adulto reclamará

Por não poder desde já

Ter a vida que queria,

 

Mas a criança, encantada,

Fará tudo à luz da vela.

E a decepção será dela

Quando a energia é chegada.

 

Vai tentar ainda fingir,

Apagando a luz do tecto,

Por trás do mundo concreto

Que anda uma vela a fulgir.

 

 

214 – Estranha

 

A estranha vitalidade

Que se nos mostra no sexo

Pode-nos fazer sentir

Em plena corporeidade

Que tudo afinal tem nexo,

Que a vida rasga o porvir,

Que é mui significativa,

Por isso o sexo atraente

É o que no fundo motiva

As metas de toda a gente.

 

E aquela vitalidade

É que implica o seu humor,

Por que a comédia é que invade

As barreiras que mantêm

A vida sem ter fulgor,

Limitada ao que a retém.

 

Deveras o sexo importa

Que seja bem divertido,

Na alegria discutido

Com tudo a que nos exorta.

 

Sexualidade vital

Manterá junto o casal,

Já que nas vidas diárias

Semeará o optimismo

De que precisam sumárias

Para além saltar o abismo.

 

Vence delas qualquer ânsia,

Enche-as, em vez, de abundância.

 

 

215 – Escrevo

 

Escrevo triste, sozinho,

E creio que a minha voz,

Um murmúrio tão mesquinho,

Encarnará todos vós,

 

Milhões de vozes à fome

De se dizerem, submissas

Ao destino que as consome,

Barco inútil sem adriças,

 

Paciência quotidiana,

Esperança sem vestígios…

- Sou a vossa voz profana

A invadir sacros fastígios.

 

 

216 – Imaginei-me

 

Imaginei-me liberto

Para sempre desta rua,

Da padaria aqui perto,

Do Bobi que ladra à Lua,

 

Do meu director da escola

Que a dirige, resmungão,

Das turmas a que me imola

A fome de amor e pão…

 

De repente o mar do sul

Tem ilhas de descoberta,

O chá do sonho no bule

Rechina à janela aberta:

 

Então seria o repouso,

Arte por fim atingida,

Cumprir-me no que nem ouso,

Ser eu em toda a medida…

 

Mas sinto que terei pena,

O pão quente sabe bem,

O luar ainda me acena

À despedida também:

 

Tudo faz parte de mim!

Se os abandono, a saudade

Neles me fica, por fim,

Nunca parto de verdade,

 

Era quase meia morte

Que por minha mão me dava.

E, depois, qual era a sorte,

Qual o porto a que aportava?

 

Todos temos um patrão,

Visível ou invisível.

O meu dirige, mandão,

Justo, porém, e sofrível.

 

Noutrem será uma vaidade,

Ânsia de maior riqueza,

Triunfo, imortalidade,

Mais um palmo de grandeza…

 

Meu patrão de carne e osso

É, afinal, bem mais tratável

Nas horas com que não posso

Que o sonho mais inefável.

 

 

217 – Explorado

 

Um explorado é o que eu sou,

Na vida todos o somos.

Vale menos se aqui vou

Sugado em todos os pomos

Pelo que me contratou

 

Do que se for por vaidade,

Pela glória ou o despeito,

Pela inveja que me invade,

O ínvio que tomo a peito,

Qualquer outra insanidade?…

 

Há mesmo os que Deus explora

Como fermento fecundo,

Profetas, santos de agora

Na vacuidade do mundo…

- Alguém quer que vão embora?

 

 

218 – Rua

 

Na mesma rua da vida

Moras, arte, num lugar

Diferente, na medida

Em que a vida aliviar

Nos vens sem nos sopesar

Da vida o pesar ingente.

 

De viver não alivias,

Mas alivias a vida,

És o vizinho da frente

Que vejo todos os dias

Mas não entra em minha lida

Nem à festa me convida.

Monótona como as horas,

És das coisas o sentido,

De mistérios és demoras,

O trilho donde hei saído.

 

Aos enigmas que existirem,

Se se puser a questão,

É que, por mais que te virem,

Não encontras solução.

 

 

219 – Palmo

 

Palmo a palmo conquistei

O íntimo que nasceu meu,

Metro a metro reclamei

O paúl que apodreceu,

Nulo, em baixo de meus pés.

Pari meu ser infinito,

A ferros, de cada vez,

Atabafando meu grito.

E o melhor de mim que é dado

É de mim ter-me arrancado.

 

 

220 – Suma

 

De minha alma ante a suma realidade,

O que for útil, exterior, me sabe

A frívolo e trivial. Grandiosidade

Pura e superna só nos sonhos cabe:

Quanto mais vivos e frequentes mais,

Tanto mais para mim serão reais.

 

 

221 – Refúgio

 

Um refúgio são meus sonhos,

Estúpido guarda-chuva

Contra os raios mais medonhos

Que em mim assentam a luva.

 

Sou inerte, pobrezinho,

Falho de gestos e de actos.

Quão mais por mim amarinho

Mais dos atalhos os factos

Mostram que vidas inteiras

Vão dar de angústia a clareiras.

 

 

222 – Aventura

 

Uma aventura, hoje em dia,

É descobrir o caminho

De retorno a uma acalmia,

Ao silêncio que adivinho

Há uns mil anos atrás,

- De que hoje não sou capaz.

 

Às vezes, maior progresso

Não é avanço mas regresso…

 

 

223 – Ler

 

Ao ler, aprendemos tudo

E, lendo doutras maneiras,

Lavramos por novas leiras

Mundos outros por miúdo.

 

Há quem leve a vida a ler

Sem ir além da leitura.

Preso à página segura

Nunca chega a compreender

Que a palavra é a pedra posta

A atravessar a corrente

Do rio que, pela encosta,

A margem nos rouba em frente.

 

Anda ali para chegarmos

À margem outra que importa,

Uma ou muitas que contarmos,

Que a cada qual, sua porta.

 

Cada pessoa que lê

É dela a própria viagem

E a margem em que se vê

Ruma à sua personagem.

 

 

224 – Qualquer

 

Bíblia, Tora ou Alcorão,

Qualquer outra tradição,

Irá tudo bem enquanto

Tais eventos flutuarem

Como nuvens inocentes

De homens na imaginação,

Forem aquele recanto

De os sonhos se cultivarem

Vindos de mil e um videntes.

 

Em dogmas petrificadas,

Duras a pesar na terra,

São nefastas aras santas

De vendilhões frequentadas

Do Templo que se nos ferra

Da rota em todas as plantas,

Dele com os matadoiros

De toda a casta de vítimas,

Pátios de lapidações.

Isto é que torna legítimas

Quaisquer das caças aos moiros

Das infiéis confissões.

 

Já sonhos se não cultivam,

Antes matam os que os vivam.

 

 

225 – Vida

 

É toda a vida uma estrada

Que não vai a parte alguma.

Viandantes de jornada

Cruzam connosco na bruma,

 

Cada qual mais ignorante

Do fim que o conduz adiante.

 

Num abrir e fechar de olhos

Se escapam no mar de escolhos.

 

Outros, porém, ao contrário,

Largos trechos do caminho

Nos acompanham gregário

E, em súbito desalinho,

 

Em qualquer curva da estrada

Se evolarão sem mais nada

 

Como sombras de fantasmas.

Pouco importa se te pasmas…

 

Ninguém logra compreender

Por que é que se nos impõem,

Fantasias de quenquer,

No coração por que doem,

 

Antes de mostrar o que eram:

Sombras de fumo, morreram…

 

Talvez eles, por seu lado,

Pensem o mesmo de nós,

Se há lugar ao cogitado

Em meras nuvens de pós.

 

Tudo é da ordem do sonho

No mais que de mim disponho,

 

Mera fantasmagoria…

- É a vida do dia-a-dia.

 

 

226 – Digerido

 

A maneira de um livro compreender

É que da vida me desaparece,

É mastigado vivo, se merece,

Digerido e englobado no meu ser,

 

No modo de pensar e proceder

Tal como carne e sangue que me aquece.

E, por efeito que não esmorece,

Vai dali novo espírito nascer

Na potencialidade tão fecundo

Que acabará remodelando o mundo.

 

 

227 – Medo

 

Não me faz medo a desordem,

Nem me iludo a meu respeito

Nem da morte os ais me mordem,

Nem sequer a tomo a peito.

O meu terreno de caça

Preferido é o labirinto:

Mais a confusão me enlaça,

Melhor me oriento e sinto.

 

É que as probabilidades

Ali vão todas em ovo

E entre as singularidades

Pode erguer-se um mundo novo.

 

 

228 – Paralelismo

 

O paralelismo humano

Da transcendência divina

É da criação o arcano

Nos modos todos que assina,

 

Das obras de arte ao invento,

Do amor à revolução…

Nenhum criador pode, isento,

Negar Deus do coração.

 

Ou sente dele a presença

Ou, se não, Deus está lá:

Algo novo pede avença

Na história e na vida que há.

 

Artes e revolução

Têm mais de transcendência

Que de escolas precisão:

São doutro mundo a aparência,

Quase mesmo a aparição.

 

 

229 – Ideia

 

Toda a ideia tem um rosto

Que é portador da verdade

Que o transcende, fogo posto

A incendiar a cidade.

 

Há uma viva relação

Entre homens e natureza,

Obras de arte que ambos são

Onde nos fere a beleza.

 

Natureza, arte divina

Com a sua linguagem:

O rosto do dia ensina

De Alguém esculpindo a imagem,

 

O rosto nu da manhã

É sempre teofania,

Jasmim na brisa louçã

A perfumar breve o dia.

 

Arte humana ensina a ler

Os sinais na criação,

Deus por trás a se esconder,

Espreitando na alusão.

 

Vivo num mundo encantado

Onde as coisas dos sentidos

Termos dum livro sagrado

São, murmurando aos ouvidos.

 

Linguagem em que Deus fala,

Da aparência à aparição,

Permuta que tudo abala,

Mensagem-decifração,

 

Nela a vida não é mais

A do sujeito que podo

Da videira dos demais,

Ela é já vida do todo.

 

 

230 – Efeitos

 

Não foi para libertar

O homem de seus pecados

Que Cristo veio pregar,

Mas também dos resultados.

 

São eles: prostituição,

Racismo, falta de estradas,

A marginalização,

Campinas expropriadas

 

E mil e um outros senões.

Cada homem é uma imagem

Do criador, tu supões,

Mas se através dele é que agem

 

Tais efeitos pervertidos,

De actuar perde o direito,

De decidir dos sentidos,

De levar a vida a peito…

 

Tal homem não é já imagem

Dum Deus criador: emana

Desrespeito, na triagem,

Por Deus na imagem humana.

 

 

231 – História

 

A história é a do vencedor,

A fazer crer que o projecto

Triunfou por ser melhor,

Fatal como quanto é recto.

 

Da história o determinismo,

Mera justificação,

É ideologia em que crismo

Factos que afinal não são.

 

A vera história começa

Quando formos reviver

Os projectos, peça a peça,

Ao, por fim, compreender

 

Que a vitória é contingente.

Não há rígido trajecto:

Os possíveis são em frente,

Atrás é o destino feito.

 

Porvir não é descoberta,

Doravante é uma invenção

De que temos sempre aberta

Porta na imaginação.

 

 

232 – Perfeição

 

Do pagão o homem-perfeito

A perfeição era que há.

O do cristão toma a peito

Perfeição que não há cá.

Perfeito budista é o jeito

De mostrar a perfeição

De não haver desde já

Homem algum neste chão.

 

E não há contradição:

Qualquer via singular

É das mais complementar.

 

Muito há quem não veja isto.

- É o longe que não conquisto.

 

 

233 – Pecados

 

Ensinam-nos o infinito

A meter em proibições:

Pecados veniais de atrito

E mortais aos turbilhões…

 

- Depois, das teias absurdas

Não te livras que assim urdas.

 

 

234 – Longe

 

Viajar é viajar

E o longe há-de sempre estar

 

Sempre onde lá sempre esteve:

Em parte nenhuma, em greve,

 

E muitas graças a Deus

Perdido algures nos céus.

 

A demanda milenária

Traz o melhor em si, vária,

 

Do que há nas revoluções:

Busca futuro aos sacões,

 

Futurante, futurível,

E nada mais é exequível.

 

Se o porvir não existir,

Resta a paisagem a vir

 

Inédita, variada,

De espectáculo pasmada.

 

- É pouco? Mas já compensa

E não requer mais licença.

 

 

235 – Barco

 

Um barco de navegar

Por navegar anda morto,

Sem, afinal, reparar

Que quer é chegar a um porto.

 

E aqui vamos navegando

Sem uma ideia do cais

Onde acolher-nos nem quando,

Basta-nos seguir fanais.

 

A navegar, navegar,

Nesta imitação de vida,

Nem há como perguntar…

- E a vida quem não a olvida?

 

 

236 – Ampliamos

 

Quando ampliamos um homem,

Maior agressividade,

Sexo e força nos consomem,

- É um bruto o que nos invade.

 

Ampliamos a mulher,

Mais maternal, delicada,

Sensível aparecer

Nos vai em toda a jornada:

- Vemos Deus aparecer.

 

 

237 – Velhice

 

A velhice chega quando

Nos apercebemos bem

De que de maravilhoso

Já mais nada nos advém,

Prestes a ocorrer na esquina

Da vida que nos destina.

 

Tal mui cedo a uns vai dando,

Matando do sonho o gozo.

A outros, nunca, no brando

Tempo a correr saboroso:

- E nem séculos de vida

São velhice decaída!

 

 

238 – Livre

 

O prazer de adquirir o que é inútil,

O sabor dos caminhos enganados…

Que belo um acto espúrio, um acto fútil

Que desmente os intuitos procurados!

 

Ah! Ser livre perante qualquer fito

Balançando nas ondas do infinito!…

 

 

239 – Sonhadas

 

As vidas sonhadas têm

Apenas lado de cá.

Não se vê, não lhes convém

Lado que não ande lá.

 

Não se pode andar à roda,

Espiar-lhes perspectivas.

É que o mal da vida toda

São as pegadas cativas,

 

Que as podemos ir olhando

Ali de todas as bandas.

O sonho só tem o brando

Lado que anda em minhas andas.

 

Dele os amores são puros

Feitos de várzeas e calmas,

Tão seguros de inseguros

Como são as nossas almas.

 

 

240 – Exterior

 

O mundo exterior existe

Como num palco um actor:

Está lá tal qual persiste,

Não é jamais o que for.

 

Depois do palco, lá fora,

Quando então é mesmo a sério,

Já nenhum de nós lá mora,

Lá do lado do mistério.

 

Tal é, pois, a nossa sina,

A de viver na plateia.

O sonho é que bem se inclina

De vez a romper a teia.

 

 

241 – Bulir

 

Foi sempre fazer um gesto,

Para o meu sentir das coisas,

Um mui perturbado apresto,

Um desdobrar por mil loisas

Todo este mundo exterior.

Mexer-me dá-me a impressão

De bulir com o teor

Das estrelas e dos céus,

De alterar coisas no chão

De territórios não meus.

 

 

242 – Poente

 

Poente é poente alhures,

Não é neste nono andar

Da cidade de nenhures

Que nele posso cuidar.

 

Posso é pensar no infinito:

Infindo com viela em baixo

Mas com estrelas que fito

No fim onde nunca encaixo.

 

E neste acabar de tarde,

Da janela nas alturas,

Insatisfeito em mim arde

O meu jamais de ternuras.

 

 

243 – Real

 

No sonho, não existir

É o que há de mais doloroso.

Quando dele mais eu gozo,

Mais caminho a me iludir.

 

No real não tem lugar:

- Ninguém pode ao fim sonhar.

 

 

244 – Alguém

 

Eu sonho e, por trás do sonho

Onde anda minha atenção,

Sonha alguém de que disponho

Mas que nunca tenho à mão.

 

Talvez eu não seja mais

Do que um sonho desse alguém

Que não existe jamais

E existe, afinal, também.

 

 

245 – Belo

 

O mais belo de viver

É sempre o misterioso.

Não é uma emoção qualquer

Pois, mais que o que nos dá gozo,

 

Ela é o berço de embalar

Da ciência verdadeira.

Quem já não se interrogar,

Quem de lá se não abeira

 

E já se nem maravilha,

Vogando no mar sem porto,

Pior que náufrago em ilha,

É como se fora um morto.

 

 

246 – Vulgo

 

É tido por competente

No Parlamento, em riqueza,

Na notícia que ele invente,

Em algo que o vulgo preza?

 

Um medíocre há-de ser,

Tem o espírito entre antolhos:

O dinheiro que ele quer,

Da política os abrolhos…

 

São pedantes ordinários

Com quem não falas de nada

Que ao correr de teus fadários

Gostes de abordar na estrada.

 

Têm uma inteligência

Que é dos fundos duma vasa,

De imundícies pestilência

Que quaisquer pulmões abrasa.

 

Encontrar alguém que tenha

Espaço no pensamento,

Que raridade tamanha

Dentro de tal elemento!

 

Como da mente tacanha

Colho a rajada do largo

Que à beira-mar nos apanha

E o mundo nos põe a cargo?

 

 

247 – Todavia

 

Ouvir música ou falar,

Que é que iremos escolher?

A música, ao se gravar,

É para um tempo qualquer.

 

Todavia, ao conversar,

O momento, se o perder,

Pode não mais ter lugar,

Não há mais porvir sequer.

 

É que, de facto, o futuro

Vem dos laços que inauguro

 

E é pela conversa e gesto

Que para o porvir me apresto.

 

 

248 – Vazio

 

A literatura é um refúgio

A todo aquele a quem falta

Para não ser infeliz.

Ao vazio sobrepuje-o

Com a fantasia em alta

De altos sonhos no país:

Cavalgue no Rocinante,

Cavaleiro desgraçado,

Indo por La Mancha adiante,

Ou cavalgue o mar cavado

Atrás da baleia branca,

Ou seja a barata tonta

Que o impede de ir à banca

A escrita a de vez ter pronta…

Tudo são modos astutos

Para nos desagravar,

Ao menos alguns minutos,

De imposições duma vida

Muito injusta e parcelar

Que a iguais sermos nos convida

Quando o que visa quenquer

É muitos, é tudo ser.

 

 

249 – Cometem

 

Cometem algumas gentes

O mesmo erro duas vezes.

Outros, mais inteligentes,

Novos erros e reveses

Descobrem a cometer

- E é o mundo novo a fazer!

 

 

250 – Fim

 

Desesperar desespera

Quem o fim vir evidente

Mas sempre como a quimera

Que nunca terá presente.

 

A quem não vir, pois duvida,

É sensatez acatar

A necessidade havida,

Quando o rosário findar

 

Doutras possibilidades

Que foram avaliadas,

Mesmo quando tais verdades

De insensatez vão cotadas

 

Por aqueles que se agarram

A qualquer falsa esperança.

- Mas porvir é dos que amarram

A ponta que ainda se alcança.

 

 

251 – Coragem

 

À coragem sem renome

Ninguém lhe canta a proeza

Na derradeira defesa

Da casa que se consome.

 

Não é menos valorosa

Por não ser glorificada.

É mesmo mais generosa:

- Gratuita entrega, gostosa,

Aos vindoiros limpa a estrada.

 

 

252 – Praga

 

Coisas que os homens começam

Serão sempre tal e qual:

Na Primavera tropeçam,

Numa geada invernal,

Numa praga de Verão,

Degeneram da promessa

Que um dia foram, em vão.

 

Somente a semente não

Se frustra assim à cabeça.

 

Enterrar-se-á na poeira,

Escondida em podridão,

Para retornar fagueira

Em tempo, lugar, maneira

Que nenhuns esperarão.

 

Dos homens é assim que os feitos,

Nunca ao prazo andando afeitos,

A nós sobreviverão.