CANTO  TRÊS

 

 

COM  BOM  SENSO  REPOUSO  EM  MEDIANIAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 253 e 381 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    253 – Com bom senso repouso em medianias

 

                                                    Com bom senso repouso em medianias

                                                    O justo meio termo procurando,

                                                    Entre contrários o equilíbrio quando

                                                    Todas as frentes querem mais-valias.

 

                                                    Entre as águas convulsas navegando,

                                                    Nos turbilhões procuro as fugidias

                                                    Correntes que contornam as esguias

                                                    Arestas que em mouchões vão espiando.

 

                                                    E vou remando pelas regras, normas,

                                                    Esgueiro-me em provérbios e anexins,

                                                    Na busca duma foz que não tem formas,

 

                                                    Onde suspeito o fim para meus fins.

                                                    É neste navegar quotidiano

                                                    Que as velas solto contra todo o engano.

 

 

254 – Atenção

 

Quando centras a atenção

No que tens, todo o Universo

Abunda de quanto é bom

E mais te dá no reverso.

 

Se te concentras, porém,

No que não tens, logo à frente

Vês que assim nunca ninguém

Vai ter o suficiente.

 

 

255 – Tido

 

Para ser tido por rico

Quantos zeros no cifrão?

Mil contos? Por tal me fico,

Mas por mês? Semana? Então?…

 

Porém, olho a multidão

Que dispõe de muito mais

E lá ver não vejo, não

Que de feliz dê sinais.

 

Ao invés, vejo quem tem

Dificuldade em pagar

As contas e que, porém,

Vive bem, é um feliz lar.

 

Ao poderem partilhar

Entre marido e mulher

São mais ricos, se calhar,

Do que quem muito tiver.

Se olharmos por nossos pais

Retribuindo um tudo-nada

Quanto nos deram, bem mais

Enricamos a jornada.

 

Ao dispormos duma tarde

A passear um amigo

Somos ricos sem alarde,

Mais que os ganhos que persigo.

 

Depois, com sinceridade,

Se nada tenho a esconder,

Serei rico de verdade,

Bem para além de quenquer.

 

 

256 – Padrão

 

Um padrão mínimo as leis

Garantem socialmente.

O civismo não podeis

Delas crer que se alimente:

 

O que nas leis se disponha

Não pode substituir

O que a pública vergonha

Melhor há-de prosseguir.

 

 

257 – Vermos

 

Vermos bem as coisas feitas

É só não nos importarmos

Com quem fica (dentre as seitas

E sem votos disputarmos)

Com o crédito do jeito

De quem as houvera feito,

 

Sem dar campo algum à inveja

Que nos mata, salvo seja.

 

 

258 – Sermões

 

Eu não dou conselhos, prego

Sermões, ensino, incomodo:

Abaixo, que não sou cego,

Com a lamechice e o rogo!

 

Quanta postura ilegítima!

Acabem com a lamúria,

Deixem de fazer de vítima,

Que apenas mais é uma injúria!

 

Hão-de haver-se com problemas:

Pais à bulha, fuga ao lar,

Alcoólicos dilemas,

Divórcios e o que calhar…

 

Para alguns isto é muleta,

Em vez de irem para a frente.

Outros, porém, para a meta

Nisto treinam pata  urgente:

 

Não se metem em sarilhos,

Florescem, falsos, na escola,

Cobram fuga aos empecilhos

Que o pé prendem que se atola.

 

Como podem pretender

Os mais que isto não acolhem

Convencer então quenquer

Das sérias pedras que os tolhem?

 

 

259 – Tráficos

 

Sempre alguns pais se intrometem

A livrar filhos de encrencas.

Como é que estes nos prometem

Coroar frontes de avencas,

 

Como irão ser responsáveis,

Se, para os livrar de apuros,

Há mil tráficos viáveis

De pagar sem custo ou juros?

 

Anda cada ferradura

Disfarçada em pai de gente

Que só um coice que perdura

Apura se é inteligente!

 

Alguns há que escrevem cartas

A mentir para encobrir

Listas de desaires fartas,

Erros que tolhem porvir.

 

Mesmo obrigações de casa

Chegam alguns a fazer…

- Como é que um filho acha a brasa

Com que seu lume acender?

 

 

260 – Pequeninos

 

De pequeninos devemos

Conviver com os efeitos

Dos actos que pratiquemos.

 

Descobrimos os preceitos

Dos erros que então faremos

E apanharemos os jeitos

 

Do melhor que nós queremos.

Moldaremos os perfis

De vontades ter viris.

 

 

261 – Outra

 

Quer uma coisa a cabeça

E quer outra o coração?

Primeiro em si de ambos meça

Qual terá melhor condão.

Só depois então prossiga

Aquilo a que a escolha obriga.

 

 

262 – Condena

 

Condena quem faz o mal,

Mais aquele que impedi-lo

Pode e nada faz por tal.

O indiferente é do estilo

 

De lavar as mãos de vez,

Quaisquer que sejam os actos.

E, como Pôncio Pilatos,

Todo o crime, outrem o fez.

 

O gesto que o impedia

Ficou-lhe sempre adiado:

Do crime então que ocorria

Este, acaso, é o mais culpado.

 

 

263 – Internos

 

Quem internos e genuínos

Não cultivar seus valores

Vai nos externos factores

Amparar-se peregrinos,

 

Como a aparência, o estadão,

Para bem ficar consigo.

Tudo o que podem, farão,

A caraça a pôr de abrigo,

 

Em vez de desenvolver

Crescimento pessoal,

O valor do próprio ser

Com pegada individual.

 

Portanto, tu próprio sê!

Com máscaras não iludas

O que a vida põe de pé

E que te requeira mudas.

 

Às difíceis conjunturas

Com toda a dureza enfrenta,

Encara o real que apuras,

Sê um adulto que se inventa!

 

 

264 – Via

 

Muita via percorrer

Ainda falta até tornar

Seguro que agressor ser

Contra si a bomba é usar.

 

Como os assaltos armados

Diminuiriam se o fogo

Explodira nos costados

Dos que o atearem logo!

 

E, se o facto de explodirem

Conhecimento geral

For de quantos transgredirem,

Do porvir que bom sinal!

 

 

265 – Pior

 

Negociar, persuadir

São o melhor instrumento.

Forçar ou ser violento

São o pior por onde ir.

 

A natural insolência

Dos homens é desdenhar

O que é bom para a pendência,

Mal fica quem não ousar

 

Os maus meios ao alcance.

- Para obrigar ao juízo,

Que o que os busca perca o lance

Será sempre o que é preciso.

 

 

266 – Desacordo

 

Se entre os pais há desacordo,

Que o filho não se aperceba,

Ou logo, de bordo em bordo,

Faz que dum e doutro beba.

 

Em extremo inteligente,

Quem é o fraco e quem é o forte

Descobre imediatamente

E seu lado quem suporte.

 

A chantagem afectiva

Irá gerir e agravar

O conflito que ele aviva

Até seus pais comandar.

 

A questão é decidida

Pelos pais e nunca à frente

Da criança dividida

Entre quem pune e consente.

 

Planear uma estratégia

Um ao outro se apoiando,

Esta é, pois, a norma régia

Sempre e não de vez em quando.

 

 

267 – Mantenham

 

Que os pais se mantenham calmos

Se o filho está provocando.

Se esta coisa de três palmos

Se atira ao chão barregando,

 

Todo o teatro então ignorem,

Afastem-se e longe fiquem

Até se acalmar: não corem

Nem paliativos apliquem.

 

Numa fase posterior

Reduzam a birra ao lixo

Que ela sempre é de supor:

"Andas no chão como um bicho?

 

 

Cuidado, que ainda te piso!"

Ou então: "Cantas tão bem!

Cantar bem é o que é preciso,

Mas quer juízo também!"

 

Não é para humilhação:

É ridicularizar

Ao limite a situação

Até o pateta acordar.

 

 

268 – Birras

 

As crianças fazem birras

Intermináveis de noite

E as birras tão mais acirras

Quão mais dês o que as acoite.

 

Tentam monopolizar

A companhia dos pais.

Se a ti junto os vais deitar

Só por não ouvi-las mais,

 

É uma cedência mui cara:

Igual truque as noites todas

Doravante se prepara,

Vão dominar pais e modas.

 

Bem melhor era contar

Uma história para a deita.

"Dorme, que eu vou trabalhar

Um pouco e, depois de feita

 

Minha tarefa, também

Irei deitar-me igualmente."

Uma explicação cai bem,

Diz a família presente,

 

Nada mau vai ocorrer

E reconforta quenquer.

 

 

269 – Marcos

 

Para as birras evitar

Importa disciplinar.

 

Dois marcos fundamentais

Em que é de ser rigoroso:

As refeições que tomais

E o momento do repouso.

 

Ambos são horas sagradas:

Comer a todo o momento

Leva às refeições goradas;

Não dormir leva ao tormento

 

De ninguém se sentir bem,

Às aulas sem rendimento…

E a vida inteira devém

Vida dum mundo embirrento.

 

Postas em ordem as guias,

Tudo o mais segue estas vias.

 

 

270 – Vocação

 

Que os pais nunca se demitam

De exercer autoridade.

Sua vocação admitam,

Dever de à posteridade

 

Lançar filhos educados.

Expliquem-lhes claramente

Regras e limites dados,

Ninguém tem tudo o que tente.

 

Então irão conseguir

Lidar com as frustrações,

Equilibrados devir

Sem mais birras nem senões.

 

 

271 – Olhos

 

Por vezes, na vida,

É melhor manter

Olhos bem abertos.

Noutras, a medida

Meio abertos ter

É que os porá certos.

 

E noutras ainda

É tê-los fechados,

Como que sonhando.

Questão sobrevinda

É que jogo aos dados

Saber como e quando.

 

 

272 – Cuide

 

Há quem cuide em construir

Muros e manter distâncias,

Quem aprenda a discernir

Linhas-raia para as ânsias:

 

"Até aqui vou dar de mim,

Mais não, não aguentarei!"

Lidar com a dor sem fim

É criar (norma de lei)

 

Barreiras sem mais trespasse.

É a forma de definir

Terreno onde a vida passe

Para o fim dela cumprir.

 

 

273 – Disciplina

 

Disciplina é tirania

Quando for sem liberdade.

Se a liberdade porfia

Sem disciplina, a mania

Traz o caos à cidade.

 

Na vida é de equilibrar

Cada qual em seu lugar.

 

 

274 – Compre

 

Compre sempre boa cama

Como um bom par de sapatos:

Se dentro dum não se acama,

Dentro doutra tece a trama

Por onde vingam seus actos.

 

 

275 – Insuportável

 

Se é preciso tolerar

Fora, noutrem, quanto em nós

Proibimos que tome ar,

A vida seria após

Insuportável penar.

 

 

276 – Repara

 

Repara resplandecente

No mundo inteiro em redor.

O segredo mora ausente

Onde improvável mais for.

O que não crer em magia

Jamais a encontra algum dia.

 

 

277 – Caminhos

 

"Todos os caminhos

Irão dar a Roma"

- Termos comezinhos

Que um homem retoma

Se se perdeu e não quer

Dar nunca o braço a torcer.

 

"Quem tem boca vai a Roma"

- É o que a mulher responde

Porque inquire e rumo toma

Sabendo então para onde.

 

 

278 – Contente

 

Contente de a ver ali

Por muito tempo não fiques.

Tempo não passa por ti:

Que imparável tu te apliques

 

Para que passes por ele!

Toma cuidado contigo,

Repara que tua pele

É teu derradeiro abrigo.

 

Contente de a ver ali,

Procura ser bem feliz,

Mas vê bem que por um triz

Não te apanhe o tempo a ti.

 

 

279 – Lugar

 

Quem vive preocupado

Com lugar de estacionar

Não pode ter reparado

No que em redor tem lugar.

Como pode ver além

Do túnel o que convém?…

 

 

280 – Escolha

 

Por quê tanta indecisão?

Porque nesta mão tens isto

E aquilo na outra mão.

Aperta-las, está visto,

E então nunca chega ao fim

A escolha entre o não e o sim.

 

 

281 – Fácil

 

Bem mais fácil é fugir

Dum passado doloroso

Do que enfrentar, a seguir,

Os problemas, desgostoso.

Mas ninguém pode apagar

O passado ao coração,

Está lá para ficar…

- Então que fazer, então?

 

A derradeira esperança

Para a verdadeira paz

É no pior que ele alcança

Enfrentá-lo e ser capaz

 

De ser perdoado, perdoar,

Reconciliar, corrigir…

- Mudo de tempo e lugar,

Vou ser eu, que estou a ir.

 

 

282 – Colinas

 

Nas cidades das colinas,

As longas horas na estrada

Dão o gosto de, às esquinas,

Ver paisagens deslumbradas.

 

Tal é meu custo a pagar

Por viver no que apelido

Duma região de Deus.

Compensará, se calhar:

Ao ver bem com que é que lido

Vejo territórios meus.

 

Já serão parte de mim

E da minha identidade:

Ganho meu sentido enfim

De pertença e qualidade.

 

Por vezes, olhar de artista,

De fotógrafo, poeta,

De forasteiro em revista

Requeiro para tal meta,

 

Para me mostrar o que há

Muito ando olhando sem ver.

Diverge a luz acolá?

Basta a me surpreender…

 

Depois de ver o lugar

Que é parte de minha vida

Com o amor com que o amar

Sempre dói a despedida.

 

Não só de Deus, também minha

Toda a terra se adivinha.

 

 

283 – Casa

 

Minha casa verdadeira

Será o momento presente.

É milagre ir de carreira

Sobre águas do mar dolente?

 

O milagre é caminhar

No planeta verde-azul.

Mora a paz de mim a par,

Basta que a mim me regule

 

Para aprender a alcançá-la

Em mim, nos outros, no mundo:

Sentir o que fundo cala,

De que, afinal, me fecundo.

 

Tenho apenas de trazer

Corpo, mente e coração

Para o presente que houver:

Não é fé, mas mera acção.

 

Então é que alcançarei

O que for revigorante,

Curativo em toda a grei:

A maravilha é o instante.

 

 

284 – Comida

 

Esta comida que tenho

É um dom do Universo inteiro,

Do céu, da terra, do empenho

Duro de tanto parceiro!

 

Vivamos de modo tal

Que seja merecedor

Da comida cada qual

Que lhe prove do sabor.

 

Transformemos a atitude

Desagradável que enguiça,

Negativa, sem virtude,

E mormente a de cobiça.

 

Comamos só uma comida

Que nos alimente e basta,

Fuja às doenças, prevenida,

De excesso e falta se afasta.

 

Esta comida aceitemos

Para pôr-nos a caminho

Do Amor com que nós sonhemos,

Do saber que aí adivinho.

 

 

285 – Naco

 

Comer um naco de pão

Ou uma colher de arroz

Em funda contemplação

É reparar logo após

Que cada bocado é um dom,

Vem de toda a Natureza.

- E é viver em profundeza.

 

 

286 – Rotulados

 

Mais que o eu e que o não-eu

Rotulados em conceitos,

Convém destes libertar-me.

Ter a doutrina de seu,

Com gestos a ela afeitos,

É nela ao fim amarrar-me.

 

Conceitos e teorias

Não são o mais importante.

O que aprendo do real,

Que lhe respondo, em que vias,

É o que pesa a cada instante.

O mais é loucura e mal.

 

 

287 – Olho

 

Se não olho para a vida,

Não posso ver o caminho.

Louvar um nome convida

A contentar-me, mesquinho,

 

Apenas com o louvor

De Jesus ou Maomé,

De Buda ou lá de quem for…

Ora, decerto não é

Isto com que aqui se lida

Praticar deles a vida.

 

 

288 – Gerando

 

O Cristo vivo é o amor

Gerando amor tempo além.

A Igreja, quando em alguém

Compreende com fervor,

Tolera e, afectuosa,

É bondosa com as gentes,

É que então de Jesus goza

Vivo em todos os presentes.

 

 

Os cristãos testemunhar

Devem Jesus com a vida

Mostrando aos demais que amar

É a vereda prosseguida.

 

Isto não é conseguido

Só com livros e sermões,

Tem de ser mesmo vivido

Ou tudo serão senões.

 

 

289 – Sentir-me

 

O sentir-me bem ou não

Vem de quanto em harmonia

Comigo estou, com o chão

Que me cerca dia a dia.

 

Não tem a ver com a idade.

Bem me sinto se o problema

Me atinge em tal quantidade

Que o vou lidar sem que o tema.

 

Se de menos, me aborrece;

Demais, vou perder controlo…

A linha não transparece

No fio que desenrolo.

 

Equilibro-me no arame

Que do nascimento à morte

Devo correr sem gravame,

Sem jamais tombar à sorte.

 

Entre andar aborrecido

E ficar descontrolado

Fio ténue bem medido

É o que busco em todo o lado.

 

 

290 – Certifica-te

 

Certifica-te, ao partir,

De que deixas neste mundo

Mais que roupas de vestir,

Uma casa grande, ao fundo,

Acções muitas de investir…

- Ficas pouco, pouco ficas,

Se é tudo a que te dedicas.

 

 

291 – Forno

 

Quando no forno puser,

As instruções ande a ler.

 

Quando, porém, apurar,

Siga o próprio paladar.

 

Isto, porém, na comida,

Como em tudo o mais na vida.

 

 

292 – Nunca

 

Nunca saias dum lugar

Onde te estás divertindo

Para por outro o trocar

Onde só creias, a par,

Que ali melhor vá surtindo.

 

 

293 – Tentar

 

Apenas tentar, às vezes,

É já mesmo uma vitória:

Quem não desiste, os reveses

Não lhe beliscam tal glória.

E até, quando tu perderes,

Vencerás ao te venceres.

 

 

294 – Motivos

 

Para acalmarmos um homem

É de obrigá-lo a falar:

Os motivos que o consomem

Esvair-se-ão no ar,

Pela palavra se escoa

A carga emotiva à toa.

- Ao fim, descansado e calmo,

Da borrasca, nem um palmo.

 

 

295 – Inimigo

 

Se amas o teu inimigo,

Deixas de inimigo ter:

Mais um que vive a sofrer,

A requerer teu abrigo.

 

Bem mais fácil praticá-lo

É do que o imaginamos

E em nada nos ajudamos,

Porém, ao não activá-lo.

 

Se alguém na margem ficar

Para a contrária atingir,

Ou a nado trata de ir

Ou de barco a navegar.

 

Não vai lá se reza apenas:

"Ó margem, chega-te aqui!"

Sem prática, orar, ali,

Ninguém ora em tais novenas.

 

Orar é reconverter

O modo de estar e ser.

 

 

296 – Preferências

 

Preferências pelos pobres,

Oprimidos, marginais,

Fará que de ricos sobres

E confundas os sinais.

 

É que o sofrimento, a dor,

Nunca discrimina assim:

Muito rico sofredor

Palmilha uma vida ruim.

 

Quem compreende deveras

Opta pelo sofrimento,

Faça ao pobre ele as esperas

Ou ponha o rico em tormento.

 

Quando este é nosso critério

É mera questão de facto

Mais pobres ver sob o império

Da dor sofrida acto em acto.

 

 

297 – Busca

 

A religiosidade

Cristã, judaica, budista,

Muçulmana, quer que invista

Na busca duma verdade,

 

Verdade acerca de nós,

De cada irmã, cada irmão,

Da comum situação,

Do que ata e desata os nós.

 

Ao olhar profundamente

Dentro de nós o mistério

Faço o trabalho mais sério

Que alguém pode ter em mente.

 

 

298 – Respeitar

 

Respeitar os ancestrais

De sangue e espirituais

 

Enraizados nos leva

A sentir, de leva em leva.

 

Se pudermos encontrar

Maneiras de apreciar,

 

De germinar, no final,

A herança espiritual

 

Evitaremos, por fim,

O tipo de alienação

Que anda a destruir, ruim,

Dos povos a coesão.

 

Voltaremos novamente

A ser um só, como um ente.

 

 

299 – Fé

 

Nossa fé tem de estar viva,

Nunca um rígido conjunto

Pode ser de quanto arquiva,

Crenças, noções que, por junto,

Acalmam, com meu apego,

Minhas ânsias de sossego.

 

A fé tem de evoluir

Toda a hora, cada dia,

E dar-nos paz para ir

Buscar o amor, a alegria

E, por fim, a liberdade

Que do acerto persuade.

 

Cuidam alguns que a oração

Ou meditar é da mente

E de nosso coração.

O que é, porém, mais urgente

É com o corpo rezar

A agir pelo mundo, a par.

 

 

 

300 – Vivendo

 

Não é deveras questão

Nem de haver renascimento,

Nem de reencarnação

Nem mesmo, a qualquer momento,

De aguardar ressurreição.

Vivendo conscientemente

Cada momento presente

Todo ele é renovação.

Ressuscitar para quê?

Poderei senti-Lo agora

Dentro em mim a tomar pé,

Buda, Jesus, Maomé,

Ao Deus que tanto demora.

É, deste lado de cá,

O germe do sempre-lá.

 

 

301 – Crente

 

O agricultor usa a alfaia

Para cultivar a terra.

O crente que a fé não traia

À meditação se aferra,

Cultivando a consciência.

A flor e o fruto germinam

Do solo de alma, evidência

Que, após, colheitas culminam.

 

O crente é o agricultor

Do espírito que lhe as lavras

Arroteia no suor

Dos actos e das palavras.

 

 

302 – Progredir

 

Progredir com a cultura

Mui tranquilo e corajoso,

Só com passado gostoso

E o que o porvir prefigura

 

Em equilíbrio seguro.

Tal harmonia atingida,

Tanto na morte me apuro

Quanto em mim apuro a vida.

 

 

303 – Desejo

 

Desejo de preservar

Um Estado secular

 

E liberdade de culto

Não é proibir, inulto,

 

Exprimir religião

Em pública dimensão.

 

Impor fé religiosa

É uma ameaça gravosa

 

À liberdade geral.

Duma fé qualquer sinal

 

 

Que alguém queira partilhar,

Sem outrem encurralar,

 

Ao invés, é a liberdade

Vivida pela cidade:

 

Aqui não há uma ameaça,

É um atilho que congraça.

 

 

304 – Interesse

 

O interesse nacional

É o que quero do político.

E qual é o meu principal?

O dum egoísta somítico

Ou tomo o mundo em geral

Como horizonte meu mítico?

 

Se for o meu bem mesquinho,

Mesmo o da minha família,

Imaturo me adivinho,

Entro com tudo em quezília,

 

Assim é que o narcisista

Acaba fora da lista.

 

 

305 – Hábitos

 

Se o mundo alma quiser ter

Há-de os hábitos mudar,

Tem de parar de correr,

De novo a se equilibrar.

 

Os problemas sociais

Quando desacelerar

A vida, logo os focais

Com outro ritmo e lugar.

 

Já menos eficiente,

Nada nos carris de agora,

Fenece a ideia vigente,

O funcional rei de outrora.

 

Mesmo à produtividade

Quem é que vai conferir

Aquela prioridade

Que os pés nos anda a ferir?

 

 

306 – Preferir

 

Preferir andar,

De carro em vez de ir

A qualquer lugar,

É bem decidir.

 

Largar de navio

Em vez de avião,

Dar volta ao rossio,

Palmilhar o chão,

Em vez de tomar

A via mais curta,

A nos demorar,

Se tempo nos furta

Mais nos faz ganhar.

 

Conviver com estrangeiros,

Sejam os doutro país,

Sejam do bairro parceiros,

Enrica-nos a matriz.

 

Comer deles as comidas,

Não as nossas desgastadas,

Nos recantos as delidas

Marcas doutrem adoradas

 

Preservar tais quais as querem,

Sem pretendermos impor

Nosso costume e valor,

São os gestos que os não ferem

E as fontes de encantamento

Dão-nos em troca em aumento.

 

Uniformizar o globo

À maneira ocidental

Acaba por ser um roubo

E eu a vítima mortal.

 

Receio que no futuro,

Onde quer que a gente vá,

Encontrará (é o que auguro)

A nós tudo igual por lá.

 

 

307 – Deleito-me

 

Deleito-me com frequência

De vítima no papel.

E fora da residência

Procuro alguém doutra pele,

 

Doutra classe, doutra aldeia,

Qualifico-o de agressor.

O masoquismo, que ideia

Cuidar que é o gesto maior

 

Que realiza cada qual!

Todos temos de ao combate

Aderir, pois, por igual,

Antes que a sorte nos mate.

 

Contra tal, ser agressivo

É cada um se exprimir,

Deixar a marca de vivo,

Grande ou pequena, a fulgir.

Então sempre é positivo

Este agressivo existir.

 

Não lhe dar o que é devido

É o risco de provocar

A erupção do reprimido,

Fatal, tudo a incendiar.

 

As guerras e a violência

São à letra o fruto disto.

Se lhe presto reverência,

Curo-me: lanceto o quisto.

 

Em lugar do perigoso

Dá-me a vida o que é gostoso.

 

 

308 – Ceder

 

Às almas ceder espaço

Para a revelar-se virem

Cativa e corta o embaraço,

Ei-las então a existirem.

 

Uma ensina, outra inicia,

E, se andarmos à procura,

Efectua a terapia

Mal um sonho se inaugura.

 

Um sonho interpreta a vida

E a conversa tida então

As teorias com que lida

São o magma do vulcão.

 

Nós somos interpretados

Pelos sonhos que vão vindo,

Por doenças decifrados,

Mesmo o sofrimento advindo

 

Germina em nós mil ideias

E teorias às mancheias.

 

 

309 – Superar

 

Superar o narcisismo,

Terapia urgente e válida,

É largar de vez a pálida

Tara de tombar no abismo

 

De ser o centro do mundo,

Onde toda a actividade

Neurótica serve, em fundo,

A mera necessidade

 

De ocupar de vez o topo

Da hierarquia dos seres.

Se me furto a tal escopo

Abro o campo dos prazeres:

 

O mundo pode cantar,

Pode cantar mesmo então

E podemos desfrutar

Nós, por fim, de tal canção.

 

 

310 – Carro

 

Quando o carro já perdeu

Todo o poder de encantar,

Algo errado aconteceu

E a perda vai-me afectar.

 

Se não houver restaurantes

Nem lojas encantadoras,

Há deficiências gritantes

Neste lugar onde moras.

 

Se não há ruas de encanto

Onde é um prazer caminhar,

O terapeuta, entretanto,

É o momento de chamar.

 

Cuidamos tarefa nossa

Reparar o que quebrou.

Qualquer alma a cura endossa:

Busca sempre o que encantou.

 

A cidade não funciona?

Se é lugar de encantamento

Não é grave nem na zona

Cuidados quer o momento.

 

Pode água canalizada

Casa de encanto não ter,

Na cidade fascinada

Nem transporte mesmo haver,

 

Como alguém encantador

Pode andar desempregado

E não perderá valor

Se cai doente acamado…

 

O bom funcionamento

Não é o valor principal

Na vida a todo o momento

De alma impregnada total.

 

 

311 – Conto

 

Quando conto história antiga

Enfatizo a eficiência

Ou o encanto é que me liga?

Será limpeza, decência,

 

Que me leva em carripana

Deserto além à aventura?

Será conforto que emana

Da Antárctida ao que a procura?

 

E uma receita da avó

É de ternura e sabor

Ou copio-a porque só

De gordura olho o teor?

 

O que as almas satisfaz

É aquilo que é cativante,

O que encanto mais nos traz,

Não o que nos leva adiante.

 

Temos de saber travar

Para a vida saborear.

 

 

312 – Tantos

 

Com tantos livros à volta

Vemo-los como banais,

Do livro no livro à solta

Já não vislumbro os sinais.

 

Do que me computa os dias

E me regista os mistérios

Sei lá bem, nas livrarias,

Quais os termos e quão sérios!

 

Era preciso o secreto

Dum cubículo e dum tecto.

 

 

313 – Fim

 

Quando à ideia eu escapar

De que o fim de ler, reler,

É o de informações trocar,

Vou descobrir o poder

De encantar livros e cartas.

Da parafernália fartas

Que nos rodeia os escritos,

- Bibliotecas, livrarias,

Papéis e tipografias… -

Trocam as almas de fitos:

Qualquer dia toda a gente

Dirime então os conflitos,

Verá tudo diferente.

 

Duma página a magia

Acaba os mais a encantar

Como a mim me encanta um dia

A magia que haveria

Nas palavras que inventar

Um conto de fantasia.

 

Tenho à ideia de escapar

De que a informação é a via,

Para abrir a porta à fada

Que em livros semeie a estrada

De encantos que sonharia.

 

 

314 – Vazio

 

Quão mais vazio um lugar,

Mais presença espiritual.

Ao que é simples obrigar

Ninguém pode cada qual,

Mas podemos convidar

A descobrir a riqueza

Em quanto estiver à mão.

 

Ser simples não é pobreza,

É ser rico doutro chão,

É a plenitude que brota

Se paro de abarrotar

O mundo sem tomar nota,

Até não haver lugar.

 

Se sentir textura e cor

Não precisarei jamais

De seja lá do que for

Além duns poucos sinais.

 

 

315 – Perspectiva

 

Na perspectiva astrológica,

Podemos ver para além

De nós próprios o que tem

O mundo, na busca ilógica

 

De sinais que nos indiquem

Por onde ir e o que fazer,

As sugestões atender

Do mundo que se me apliquem,

 

De que faço parte plena,

Em vez de iniciar tudo

Na vontade em que me escudo,

Da consciência na cena.

 

Ética em vida encantada:

Aprofundar a moral

Aprendendo no bornal

Da natureza velada.

 

 

316 – Gesto

 

O gesto de receber

Importa tanto ao porvir

Como a tarefa a fazer,

As artes de construir.

 

Construímos a cultura,

Erigimos um futuro.

Ninguém hoje se inaugura

Num gesto passivo puro.

 

Quero a realização

E valorizo o fazer.

Não falo jamais de quão

Avancei no receber

 

O influxo da natureza

E do saber ancestral.

Tudo em nós ao fim despreza

A influência como um mal.

 

Não sendo recarregados,

Não somos mais naturais…

- Como ninguém foge aos fados,

Acordamos animais.

 

 

317 – Miúdos

 

Os miúdos vêem o anjo

Tão real como outro facto.

Que importa se os dentes ranjo

Sem lograr comigo o pacto?

 

Convencer-me da existência

Pela lógica, a razão,

Na busca duma evidência?

- Não preciso disto, não:

 

 

Num universo encantado

Ninguém cuida que a magia

Corra de andar obcecado

Por certezas que não via.

 

 

318 – Margem

 

O encantamento acontece

À margem, mui facilmente,

Entre gente que aparece

Tida em geral por refece,

Num acto surpreendente.

 

Não há, contudo, razão

De não ampliar a raia

Da vida mentida em vão,

Na actividade um travão

Lhe impondo, para que caia

 

Numa indolência de encanto

Que o encantamento quer.

Da simplicidade o canto

De entulhos livro entretanto

Que a vida de hoje impuser.

 

Então o mundo escondido

Na actividade e objectos

Respira desoprimido

E revela, agradecido,

Que em seu reino há muitos tectos

 

E mostra como é um ser vivo

Que encanta, convidativo.

 

 

319 – Trabalho

 

Num mundo desencantado

O artista trabalha a estética

E visa fins expressivos,

Analíticos, por fado.

Num encantado, a poética

Mantém-lhe os aprestos vivos,

É aprendiz de feiticeiro,

Cria imagens de magia.

Qualquer um, vivendo inteiro,

Engenhoso, cada dia,

Vai encher então a vida

Da força do imaginário:

Fica a distância delida

Entre o eu e o mundo vário.

 

Quebrando assim meu enguiço

Toda a vida tem feitiço.

 

 

320 – Ouvi-los

 

Para os outros persuadir

Sempre ouvi-los é o melhor.

Um bisbilhoteiro ouvir,

Falar doutrem é supor

E um chato só fala dele…

 

Um conversador brilhante

Toca-te na própria pele,

Nunca te passa adiante,

Vai falar de ti apenas

E escuta a tua resposta:

- As reservas bem pequenas

Irão ser dele à proposta.

 

 

321 – Recusem

 

É fácil aos pais dizer:

- Recusem o sexo, filhos!

Mais difícil de entender

É o porquê de tais cadilhos.

 

E é muito simples, contudo:

Com menores sexo é crime;

O jovem é, sobretudo,

Sem constância a que se arrime,

 

O imaturo emocional;

O risco de gravidez

Sem condições será um mal:

E doenças são revés

 

Sexualmente transmissível…

Tudo explicar é importante:

Quando é tudo compreensível

Pode o jovem ir avante

 

Com facilidade mais

Pelo trilho conveniente,

Com escolhas racionais

Que a ele próprio apresente.

 

 

322 – Fixa

 

Qualquer livro de ficção

É uma fixa bicicleta

Para treinar a razão:

Não leva a nenhum lugar

Mas não tomba na valeta

E pode tonificar

Daquela forma discreta

Os músculos que teremos

Na razão em que apostemos.

 

 

323 – Sacralizamos

 

Sacralizamos o "Eu"

Como o "Tu" reconhecemos.

Que força de Prometeu

Importa que implementemos

Para não continuar

Qualquer "Nós" sempre a ignorar?

 

 

324 – Masoquismo

 

O sexo é prejudicado

Por masoquismo profundo

Que satisfaz-se, entortado,

Mondando desejo ao mundo.

 

É uma forma destrutiva

De renúncia mal aceite.

Em vez de empregar-se viva

Nas paixões, mal as suspeite,

 

Permitindo que a emoção

Siga um rumo natural

Pelo corpo e coração,

Generosa a dar-se real,

 

Antes de vez renuncia

Na vida a toda a alegria.

 

Obedece à autoridade

Qualquer com que deparar.

Ora, não são raridade

Muitas que irão condenar

 

Em nós anseio e prazer

Como um pecado qualquer.

 

Mondando desejo ao mundo,

No amor o sexo é infecundo.

 

 

325 – Coração

 

Há, no coração do sexo,

Uma afirmação de vida

Com o motivo conexo

Que a vivermos nos convida

 

Com optimismo, energia.

Em tal etapa, porém,

Isto prejudicaria

O medo que tenha alguém

 

De toda a vitalidade,

Ou de suspeitar na vida

De alguma incapacidade

Noutrem e em nós escondida.

 

Dizem-nos para implantar

Um limite para o eros,

Para nos não entregar

À paixão (são ventos meros…).

 

Se, porém, prestar ouvidos,

Com bem pouco autodomínio

Findarei em meus olvidos,

À custa de meu fascínio.

 

Fica o eros enterrado

Sem já mais paixão da vida,

Um desejo amordaçado,

Ardente chama escondida,

 

E a superfície dos dias,

Mecânica e controlada,

Triste e sem graça, vazias

Estende à volta as estradas.

 

 

326 – Casal

 

Será o sexo curativo

Quando o casal o exibir

Dum ao outro, íntimo e vivo.

Ajuda a restituir

 

A saúde a um casamento

Ao manter estimulado

O par, momento a momento,

Antes que haja estiolado.

 

Não é por causa do facto

De que isto, enfim, lhes agrade,

- É que os mantém em contacto

Com sua imortalidade.

 

 

327 – Terra

 

As almas encontram cura

Quando os homens e as mulheres

Colhem da terra a figura

Nas ideias, ideais:

- É que estes são os talheres

Apenas dos comensais.

 

 

328 – Toque

 

Toque é mágica palavra

A falar-nos de ternura.

No toque o mistério lavra,

O afago a magia apura.

 

Muscular relaxamento

Não basta para explicar

Todo este apaziguamento,

A alegria de tocar.

 

Desejar ser protegido,

Mimado, acariciado,

É de adulto com sentido

E não infantilizado.

 

Dar e receber ternura

É a melhor maturação

A que aspira quem perdura:

Recebe e dá coração.

 

 

329 – Fantasias

 

Fantasias sexuais

Criam uma nova vida

Sob novas formas reais

Em que vai ser prosseguida.

 

O motivo que as reprime

Não é consciência moral,

É o medo do que é sublime,

Desta fartura real

Da vida que tal se exprime

 

Que ameaça mesmo afogar

O incauto que se jogar,

Sem mais bóia a que se arrime,

Nos macaréus deste mar.

 

 

330 – Momentâneo

 

O amor e o sexo requerem

Momentâneo afastamento

Do ambiente onde estiverem,

Da moral que há no momento.

 

É semeado e floresce

O amor em jardim selado,

Alma é o que primeiro cresce,

A vida febril de lado.

 

 

Tender para o isolamento

No amor e sexo é bem mais

Por de alma ser o momento

Do que por constrangimento

De o mostrar ante os demais.

 

Pode, aliás, ser importante

Ter em segredo as lembranças,

O que for dito perante

Alguém, mesmo que garante

De todas as confianças.

 

Durante o namoro, o par

Guarda às vezes o que sente,

Que as almas querem lugar

Reservado e singular

Onde germine a semente.

 

Nesta caverna distante

Pode fermentar o amor,

Ou uma culpa hesitante,

Manipulação adiante,

- O sombrio do fulgor.

 

A caverna dos amantes

Tem de luz e sombra instantes,

 

Mas nela é que se cultiva

Tudo aquilo por que viva.

 

 

331 – Sexismo

 

O sexismo é intolerável

Num indivíduo e num grupo,

Mas tem a raiz provável

Na vida imoral que ocupo.

 

A atitude mais sexista

Não só difama a mulher

Desconsidera na lista

Quanta deusa em mundo houver.

 

É aquele estilo de vida

Dividido e limitado

Que rejeita sem medida

A deusa que me há tocado.

 

A igualdade da mulher

Não basta: a contemplação,

Dom duma deusa qualquer,

Reprimida, é compulsão.

 

Agora adoramos sonhos

Apenas e é uma sorte

Se pesadelos medonhos

Não nos evocam só morte.

 

 

332 – Exuberante

 

Nossa cultura requer

A exuberante bacante,

Nossa cabeça a pender

Para a entrega à vida hiante,

Em lugar de controlá-la

De mil conceitos na tala.

 

Teor de vida fluída

A intensificar o drama,

Mil personagens na vida

Onde o multiforme acama.

Vida inebriadamente

Com a consciência ausente,

 

Com meu ego a se afastar,

Para que a imaginação

Venha, enfim, a liderar

O aval dando e aceitação

Aos convites tão constantes

Que me fazem os instantes.

 

Só então sigo a intuição

A que inclina o coração.

 

 

333 – Deixar

 

Viver muito vivo o amor

É a vida ser sexual:

Deixar o corpo propor

Dos actos todo o estendal,

 

Dar às paixões e desejos

Em tudo quanto fazemos

O papel em mil ensejos

É o que importa que operemos.

 

Pela racionalidade

No mundo proeminente

Não é correr de verdade,

É um dom dar-me de presente.

 

Não é apenas literal,

É um amor inteligente,

Adequado a cada qual

E acolhido socialmente.

  

 

334 – Menos

 

Qualquer desenvolvimento

É menos certo, informado,

Que tudo o que nele invento.

Tem um destino fadado

 

À ignorância, estupidez,

Não à minha inteligência.

Tenho de aprender de vez

A permitir a evidência

 

De que nele a sensação

Sempre obscureça a razão.

 

O meu desenvolvimento

É ser cómico e mundano

Mais e mais cada momento.

Saúde em que não me engano

 

Com o corpo é ter contacto

E enfim ser determinado

Pelo prazer por um pacto

Em que ao fim sou eu mandado.

 

Minha derradeira lei:

- No fundo, não mandarei…

 

 

335 – Vale

 

Vale a recomendação

De me não preocupar

Em demasia com sexo,

Pode ser uma obsessão:

 

O sexo anda-nos a par,

Com tudo e todos conexo.

 

Estabelecer limites

Não tem, porém, de ser feito

Da repressão por palpites,

Por defesa psicológica,

Por desviado trejeito

De feitura demagógica.

 

Um ego pode, engenhoso,

Delimitar o erotismo

Sem dele perder o gozo

Nem descambar neste abismo

De sempre andar desconfiado,

Não vá o sexo ser pecado.

  

 

336 – Cambiantes

 

O espírito em nós respeita

A princípios como a factos.

Alma às cambiantes é atreita,

Com as imagens tem pactos,

Busca nas artes caminhos

De implicações adivinhos.

 

Um casado pode ser

Deveras tentado a um caso.

Descobre, afinal, que quer

É à liberdade dar azo,

Sem que obrigatoriamente

O sexo extra experimente.

 

Mas pode, por outro lado,

Interpretar o desejo

Como o convite acabado

De pôr fim sem qualquer pejo

À relação opressiva

Que lhe proíbe que viva.

 

Pode tempo ser preciso

A separar moralismo

Da decisão com aviso

Das paixões em que me abismo.

 

 

337 – Desejos

 

Se os desejos tomo a peito,

Não, porém, literalmente,

Serei guiado a preceito

À vida tranquilamente,

 

Às vezes bem criativa,

Mas sem da luta o complexo

Que tanto em nós se cultiva

Entre moralismo e sexo.

 

Quando eros não é inimigo,

O moralismo ao fim há-de

Poder mudar-se  no abrigo

Que é sempre a moralidade.

 

 

338 – Fontes

 

Qualquer alma não é apenas

Emoção e fantasia,

Tem as próprias fontes plenas

De introspecção e valores

E a que mais se pronuncia

É a consciência que fores.

O lado espiritual

Serão princípios, ideias.

 

O de alma é sentimental,

De empatia, compaixão,

E tem do remorso as teias

E o apelo da emoção.

 

Entre eros e consciência

Diálogo íntimo se trava:

Um instiga com premência

Sexualmente a ir avante,

O outro avalia o que achava

Daquilo que tem diante.

 

É do equilíbrio entre os dois

Que me encontro ou não depois.

  

 

339 – Velho

 

Quão mais velho, mais consciente

Do valor das intuições.

Vê-las-ei mas sigo em frente

E perco as ocasiões.

É, afinal, quando as persigo

Que encontro porto de abrigo.

 

Minha vida melhorou,

Da atenção que lhes prestei,

E quanto em mim despontou

Dantes nem o suspeitei.

 

Como as sexuais fantasias

Em grande número vêm

E seguem múltiplas vias,

A consciência que se tem

A separá-las ajuda

E a confusão logo muda.

 

Entre a mente e o coração

Faz-se a ponte de união,

 

Fico logo mais leveiro

Quão mais vou ficando inteiro.

 

 

340 – Melhorar

 

Melhorar a vida erótica

Não é de técnicas novas,

De electrónicas ajudas

Ou mecânica robótica.

Precisamos é de mudas

Nas maneiras e nas provas,

Naquilo que imaginamos

Na vida que, enfim, nos damos:

Viver como narcisista,

Visando realizar

As fantasias em vista,

Ou generoso se dar,

Com um coração aberto

E imaginário desperto?

 

Amor, imaginação

Andam juntos e, em geral,

Geram deveras visão

Que deveras é moral.

 

Criam sensibilidade

Que vai dar ao sexo vida,

Vêem com urbanidade

A que limites convida

Os que andam nele envolvidos

Sem freio de reprimidos.

 

É sempre neste equilíbrio

Que serei eu sem ludíbrio.

 

 

341 – Cuidando

 

Cuidando que o casamento

É um mero pacto de vida,

Muitos casais tal intento

Enfrentam com má medida.

 

Fundamente perturbados,

Ficarão surpreendidos

Ao ver de quantos cuidados

Precisarão os feridos

 

Neste campo de trabalho

Em que as almas, numa arena,

Dobram a dureza ao malho

Da provação que entre em cena.

 

Viram então as comédias

Muitas vezes em tragédias.

 

Bom era que prevenidos

Foram antes de envolvidos!

 

 

342 – Ambição

 

Aos de ambição motivados,

De desregrado trabalho

E de prazer apertados,

O que lhes sai no baralho

Dos instintos genesíacos

São mais ataques cardíacos.

 

Não é o empenho em cumprir

Objectivos que conduz

À doença que os punir,

É ser hostil que o produz:

Num diagnóstico clínico,

Ser mal-humorado e cínico.

 

Se o stresse é tão grande em si

Que desatou a implicar

Com todos que encontra aí,

Melhor é se perguntar:

Vale a pena ter o ataque

Por mor do que dali saque?

 

 

343 – Connosco

 

É connosco satisfeitos

Que teremos de viver,

Mas nossa vida tem jeitos

De depender dos trejeitos

Que de nós outrem fizer.

É urgente a equilibração

Então entre o sim e o não.

 

 

344 – Altamente

 

Podemos imaginar

O sexo nesta medida:

Como uma parte da vida

Altamente refinada

E assim capaz de mudar

Tudo o mais, duma assentada,

Com dele a graça, o poder.

 

Neste sentido é que o sexo

O elemento acaba a ser

Dentro em nós mais importante,

Da vida inteira no amplexo:

Muda tudo dele em diante.

 

Se libertar de ansiedade

A nossa sexualidade,

Tudo em vida pode ser

Agradável criação.

Se grosseiro a mantiver,

Sofre a vida o afloramento

Deste perpétuo aleijão:

Falta-lhe refinamento,

Vai-me arrastar pelo chão.

 

 

345 – Abandonar-nos

 

Às éticas laborais

Ao abandonar-nos presos,

Devotos exagerados

De mentes conceptuais,

Terminaremos ilesos

Num mundo em todos os lados

Funcionando em pleno e bem,

No qual, contudo, ninguém

Há-de gostar de viver.

Como negligenciar

Pudemos de tantos modos

Nosso eros como qualquer

Dos mil jeitos que há de amar,

De fruir do sexo os bodos?

 

Felizmente ainda haverá

Gentes e comunidades,

Culturas acaso já,

Em que as sexualidades

Não se limitam às meras

Físicas da medicina

Nem à psíquica união

Em que ninguém é deveras,

Antes tudo ali se inclina

A dar ao cosmos o chão

De carne e sangue, de sexo,

Para lhe fruir do amplexo.

 

Era simples permitir

Que o sexo deste Universo

Fora visto a reflorir,

Apreciá-lo no mundo,

Em lugar de vê-lo adverso,

De o rejeitar como imundo.

 

Era um pouco de lazer

E menos exploração;

Respeito à natura haver;

Tempo na laboração

Para livre respirar;

Espaço de espreguiçar

Como um animal qualquer;

Acaso algum abandono

Do meramente sadio,

Conveniente do alimento;

A casa à imagem do dono,

Imaginosa e com brio;

Uns jardins em seguimento;

Uns velhos prédios mantidos,

Puro gozo dos sentidos…

 

- Tudo, em todo e qualquer lado,

Tudo é sexo que reparto

Directamente ligado

Ao que acontece no quarto.

 

 

346 – Meio

 

Tudo me faz tanta pena,

Sendo, aliás, indiferente…

Como a gente é tão pequena

No meio do mundo ingente!

 

Tanto faz sim como não,

Parar, estar de partida:

Vim para aqui sem razão

Como, aliás, tudo na vida.

 

Fico tão incomodado

E, afinal, qual é o cuidado?

 

 

347 – Consciência

 

Em mim foi sempre menor

O vigor da sensação

Que da consciência o vigor

Com que a tenho sempre à mão.

 

Sempre me doeu bem mais

A consciência de ir doendo

Do que a dor doeu jamais

De que consciência vou tendo.

 

A vida das emoções

Às salas do pensamento

Se mudou: dele aos balcões

Vivo mais conhecimento.

 

E, quando alberga a emoção,

O pensamento se torna

Bem mais exigente então.

Dele ali recebo a jorna

 

Na maneira como sinto,

Muito mais quotidiana,

Mais epidérmica a pinto,

Que em carne viva me dana.

 

Criei-me abismo pensando,

Eco em mim multiplicado,

Fui-me lento aprofundando,

Dor de eterno parto adiado.

  

 

348 – Vencer

 

Conformar-me é submeter-me

E vencer é conformar-me:

Ser vencido logo em germe.

Por isso toda a vitória,

Só por requerer que eu me arme,

É grosseria, vanglória.

 

Perde sempre o vencedor

Vantagens do desalento

Com o presente, ao lhe impor

Que à luta vá, corra ao vento,

E que a  vitória lhe deu.

 

Fica muito satisfeito

E satisfeito é o sandeu

Que no fundo, pelo jeito,

Já de raiz se conforma,

Não tem mente vencedora.

Vence apenas quem, por norma,

Não atinge, fica fora.

 

Apenas quem desanima

Forte há-de vir sempre, forte,

Quem abdicar ante a sina,

Quem já nem ligar à morte.

 

O Império supremo

É o do imperador

Que abdicar no extremo

Da vida que for

Tida por normal,

Dos outros, dos mais,

Em quem o sinal

Dos cumes reais

Nem pesa as tramóias

Do fardo das jóias.

 

Liberto de tudo,

O mundo põe mudo.

 

 

349 – Salgueiro

 

Salgueiro que verga

Ao sopro do vento,

Por muito que se erga,

Não quebra ao tormento.

 

Um rígido galho

Contra o vento em luta,

De inflectir-se falho,

Quebra na disputa.

 

 

350 – Saúde

 

Se tua saúde é de oiro,

Cuida bem de teu tesoiro.

 

 

351 – Modos

 

Há dois modos de estudar

As voláteis borboletas:

Com a rede i-las caçar

E depois inspeccionar,

Em cadáver, que detectas;

Ou sentar silencioso

Num jardim a observar

O bailado gracioso

Entre as flores do lugar.

 

Escolha que dita a sorte:

- Sabes da vida ou da morte?

 

 

352 – Longe

 

Bem longe da multidão,

Mas que beleza de ideia!

Lembra-me a grande evasão,

O isolamento com veia,

 

Lembra-me o espaço vital,

Fuga para a quietude,

Férias de tempo estival

Com as quais quenquer se ilude…

 

Quando, ao cabo de onze meses

No bulício da cidade

Não se aguentam mais reveses,

- Quero a ilusão: persuade.

 

 

353 – Problemas

 

Os problemas resolvidos

Podem ser com sofrimento

Ou antes serenidade.

Depende de si: gemidos

É o que quer cada momento

Ou antes paz de verdade?

 

 

354 – Pessoas

 

Pessoas… Quem vale a pena?

Por quê toda a correria?

Há que viver dia a dia,

Que a vida é muito pequena?

 

Estariam bem melhor

Mortas, não passam de esterco.

Quando cada à guerra for

Do bom senso aí me acerco?

 

Muitos nem voltam sequer.

E os mais são mais ponderados?

De modo nenhum, quenquer

Mais dentes traz acerados.

 

No fundo são carniceiros.

Se a vida dá para o torto,

Uivam, lobos, e os cordeiros

Já cada qual ficou morto.

 

 

355 – Questão

 

Se não puder dar-te um sim,

Vou além para ajudar.

Por que terei de matar

Homens por quem nunca vim

 

E que jamais conhecemos,

Para conseguir a tal

Côdea de pão mais frugal?

É a questão que nunca vemos.

 

Matar é mais importante

Que quem é que pagará

Ou quanto é que custará,

Nisto aqui passo adiante:

 

"Ir agora me ralar

Só por um custo qualquer!

- Estou cá para viver

E não para calcular…"

 

 

356 – Vivem

 

Vivem os homens a sós,

Uns com outros sem falar,

Porque inventam dominós

Da morte demais a par.

 

É um autómato hoje a morte

Que anda a reger-nos o mundo

Dum activismo sem norte

Que tudo torna infecundo.

 

A morte é silenciosa,

Jamais ela terá boca,

Nem exprime o que descosa,

Nenhum som lhe sai da toca.

 

Também algo é numinosa:

Depois da vida vivida,

Quem sim disse nela goza

Da resposta merecida.

 

Pode-lhe abrir bem os braços

E nenhum medo sentir,

É o abraço dos abraços

No Universo a se fundir.

 

 

357 – Consolar-me

 

Consolar-me deste exílio,

Do exílio da eternidade,

Do desterro sem auxílio

Que desceuzado degrade…

 

Procuro e, portanto, escrevo

E escrevo do que escrever,

Criar de criar o enlevo,

Deus de Deus a acontecer.

 

É sombra, evidentemente,

Mas já o ausente presente..

Mas ausente, ai, mas ausente…

 

 

358 – Estado

 

Sou contra o estado do mundo

Mas não por ser moralista,

Porque quero rir, jucundo,

Quero rir sem fim à vista.

 

A barrigada de riso

Não é Deus, não é, decerto,

Mas rir de perder o siso

Rirei se O quiser mais perto.

 

A minha meta na vida

É chegar perto de Deus:

É tomar minha medida,

- Meus tornar os campos meus.

 

 

359 – Padre

 

Padre cristão que anda a ler

Versículos do Corão

Que sentido anda a viver

De apostolado em acção?

Deveras pode ajudar

Alguns destes muçulmanos

A lograrem apurar

A fé deles sem enganos.

 

Um padre destes, decerto

É um dos padres melhores,

Que procura no deserto

Quem procura outros alvores.

 

 

360 – Mudo-lhe

 

Se quero que o homem mude,

Então mudo-lhe a estrutura,

Todo o quadro social.

Isto, porém, nos ilude:

Mudado o que o configura

Fica ele tal e qual.

 

Mudam regimes, países,

E mesmo é o homem que dizes:

 

Chegado o escravo ao poder,

Se mantém alma de escravo,

Nova escravatura quer

Implantar, de cenho bravo.

 

Urge então mudar o homem

Para alterar estruturas.

Nesta fé tudo consomem

Da igreja as almas mais puras.

 

No fim é a desilusão:

Perpetuaram, reforçaram

A prévia dominação.

Pior é que a caucionaram,

 

Auxiliando-a a reinar

Sobre almas, corpos e mentes.

Se as duas vias mudar,

Com ambas interagentes,

Então algo é de esperar,

No alvor mais eficientes.

 

 

361 – Mergulho

 

Agir moderadamente

Vem da radicalidade.

Ao crer eu convictamente,

Mergulho profundamente:

Modero-me a actividade,

Que a verdade é relativa

Quão mais com ela conviva.

Quem não está bem seguro

Daquilo que afinal quer

É que na acção devém duro

Tapando a nudez que houver.

 

 

362 – Milionário

 

O milionário não temas,

Não crê que a posteridade

Dele aprecie os poemas:

Nunca os escreve, em verdade.

 

Como o caixeiro de praça

Que o futuro se deleite

Não crê no quadro que abraça

Só no sonho onde se deite.

 

Como um rei ou presidente,

Nenhum vai ser recordado

Por um romance que invente,

Nunca escrito em nenhum lado.

 

Aquilo que tu deixares

É que marca onde passares.

 

 

363 – Cravo

 

Perde o exército uma guerra

Por mor dum cravo que falta,

Quando o comandante salta,

Na pata onde a égua aterra.

 

Nenhum pormenor

Pode ser tomado

Como pré-marcado

De ínfimo teor.

 

Parece insignificante

E, ao não ser verificado,

Compromete logo adiante

Tudo o que se houver tentado:

 

No dia-a-dia, um país

Como uma vida em família,

Perdem sempre, por um triz,

Do que escapou à vigília.

 

 

364 – Estratego

 

Sou o estratego sombrio

Que, perdidas as batalhas,

Traça, de fio a pavio,

Para que não haja falhas,

No papel, gozando o esquema,

A retirada final,

Com o pormenor por lema,

Saboreando o que é fatal,

- Traça-a, sem qualquer dilema,

De véspera e mal acate

Cada vindoiro combate.

 

 

365 – Conta

 

Tu verás mas não reparas,

Reparas mas não observas.

Mesmo se bates de caras,

Darás conta com reservas.

 

O teu erro capital

É teorizar sem dados.

Distorces qualquer sinal,

Quando são desajustados,

 

Para, ao fim, os adaptar

À teoria já feita.

- Em lugar de i-la ajustar,

Aos factos tendo-a sujeita.

 

 

366 – Grades

 

Quem na pátria permanece,

Bem real ou figurada,

Talvez nunca chegue a nada,

Nas grades de que se esquece.

 

É que é preciso escavar

Pelo terreno ignorado,

Que o comum a todo o lado

Vai-se apenas revelar

Do nómada à nua vista

Que, por sem tribo, o conquista.

 

 

367 – Pensamento

 

Pensamento elevação

Pode ter sem elegância.

Perderá, na proporção,

Sobre outrem qualquer acção.

A força pejada de ânsia

Sem destreza que desperte

É impotente massa inerte:

Incapaz, morre na infância,

Sem que para nada alerte.

 

 

368 – Bêbado

 

Se um homem só escreve bem

Quando bêbado ficar,

Embebedar-se convém.

Se é fígado o que o retém,

Que é que ele lhe há-de importar?

Fígado morre também

Na hora de se finar.

Mas poema que escrever,

Afinal, pode durar

Sempre enquanto mundo houver.

 

 

369 – Cela

 

Se a vida nos não oferta

Mais que a cela da prisão,

Tal como se fora aberta

Ornamentemos-lhe o chão,

 

Mais não seja, com as sombras

De nossos sonhos despertos,

Virentes ecos de alfombras

A espalhar-se nos desertos.

 

Vamos esculpir sentido

Pela parada bruteza

Dos muros que hajam prendido

O fumo lá da Beleza.

 

 

370 – Mister

 

Tem qualquer mister problemas

E o problema das escolhas

É escolher entre teus lemas

Que problemas lá recolhas.

 

É que o lema duma vida

É de o problema escolher

Que a toda a vida convida

Por gostar de o resolver.

 

 

371 – Pedra

 

A vida me joga,

Pedra pelo ar.

E a pedra que voga

Ouço-a comentar:

 

"Aqui vou mexendo!"

Nada, ao fundo, actuamos:

Em tudo vou sendo

Voz de ignotos amos.

 

Faço teatro e neste mimo

Sob o sol, sob as estrelas,

De o saber não desanimo:

Mal despidas as farpelas,

 

Do teatro aberta a porta,

Se no além há vida, vivo,

Se não, serei coisa morta.

E nada do que cultivo

Na comédia a tal importa.

 

 

372 – Mede

 

Quem nos mede sem medida,

Nos mata mesmo sem ser?

Será que o tempo tem vida,

Será que existe sequer?

 

Sinto-o como uma pessoa

Implacável e maldita

E quero dormir à toa.

Que desdita, que desdita!

 

Nele não há porta aberta,

Que importa ficar alerta?

 

 

373 – Tédio

 

O tédio não é aborrido

Por nada ter que fazer.

Bem mais fundo ele é sentido

Por nada a pena valer.

 

Então, ao nada valer,

Não há por onde fugir:

Quanto mais há que fazer

Maior o tédio a sentir.

 

 

374 – Frasco

 

Enche o frasco de calhaus,

A seguir, põe-lhe gravilha,

De areia lhe atulha os vaus,

Rega, no fim, a vasilha.

 

- Isto é o tempo. Que provamos?

- Que, qualquer que seja a agenda,

Sempre a lá caber forçamos

Algo mais, por encomenda.

 

- Não, o que isto nos ensina

É que, se não colocamos,

Primeiro, o que mais combina,

As pedras grandes, findamos

 

Por não poder colocá-las

Depois, ao voltar atrás.

Quais são elas, as das galas

Do melhor que a vida traz?

 

São o marido, a mulher,

Nossos filhos, os amigos,

Os sonhos que alguém tiver

E da saúde os abrigos.

 

Ponham-nos sempre primeiro,

Que o resto então encontrar,

Depois do lugar cimeiro,

Há-de sempre o seu lugar.

 

 

375 – Mentiroso

 

Mentiroso bem treinado

Crêem que logra enganar.

O mais experimentado,

Muitas vezes, em lugar,

Apenas a si consegue

Enganar no que prossegue.

 

Àquele que toda a vida

Da verdade foi convicto

É que a mentira, em seguida,

Já que ali nada foi ficto,

Uma vez posta em função,

Tem rápida aceitação.

 

 

376 – Conquista

 

Só com autodisciplina

Se conquista a liberdade.

Numa tigela que inclina

Água deite a que lhe agrade

E então poderá bebê-la.

Inteira se escoaria

Sem da vasilha a parcela.

É tigela a disciplina

Que assegura cada dia,

No-lo guarda na lei dela.

Só depois a liberdade

É beber dela à vontade.

  

 

377 – Rocha

 

Na rocha do coração

Grava o bem que receberes,

Grava na areia do chão

O mal que doutrem houveres.

 

Quem isto fizer, condiz

Com quem acaba feliz.

 

 

378 – Movem

 

Frequentemente as empresas

Que movem as engrenagens

Do mundo, em suas devesas,

Executam-nas triagens

De inúmeras mãos pequenas

Que as têm de efectivar.

Aos grandes nunca dão penas,

Que sempre andarão a olhar

Atentos a outros lados.

E acabam por ter à mão

Sempre os melhores bocados,

Queira ou não queira a razão.

 

 

379 – Começar

 

Começar é pretensão

Excessivamente grande,

Qualquer que seja a moção,

Quenquer que seja que mande.

 

Em todos os grandes feitos

Pequeníssimo papel

Assenta do herói nos peitos,

Tudo o mais não provém dele.

 

Nos ombros doutrem apoia

Os pés nulos de gigante

E assim é que dele a jóia

Refulge mais adiante.

 

 

380 – Palavra

 

De quanta palavra um homem

Precisa para passar

Aos actos que enfim o movem!

É mesmo de lamentar,

Pois depois, de impaciente,

A Humanidade é doente…

 

 

381 – Emociona

 

O que eu descubro sozinho

Emociona como um cântico,

O doutrem, alheio vinho,

É um cantar meio engasgado:

É como entre o amor romântico

E um casamento arranjado.