CANTO QUATRO
FACTOS RETRATO, A FONTE
SÃO QUE BEBO
Escolha um número aleatório
entre 382 e 518 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como ua mensagem particular para o seu dia de hoje.
382 – Factos retrato, a fonte são que bebo
Factos retrato, a fonte são que bebo
No fértil manancial do dia-a-dia.
São marcos miliários pela via
Em que a lonjura leio onde me embebo.
A paisagem registo que anuncia
O vale fértil como o monte gebo,
O gesto limpo ou pegajoso ensebo
No azeite que transporta a almotolia,
Colo meus rótulos em cada esquina,
Escolho as pedras que pisar do chão,
No sentimento leio a que me inclina
E por mim dentro aponho o meu guião.
De afectos, pedras, laços me construo
E é neles que apoiado não recuo.
383 – Lojas
Corres lojas na avenida
Em demanda duma prenda.
Tostão a tostão, na lida,
Poupas custos, numa venda,
Dumas botas que ele sonha,
Dum anel que ela imagina…
Perdes a noite enfadonha
A querer traçar a sina
Só para que os olhos saltem
No espanto dum "é p'ra
mim?!"
Para que espantos não faltem
Deus também o fez assim.
Um pôr-de-sol de encantar,
De flores campo virente,
Sem palavras vão deixar
Quem os olhe de repente.
Não digas nada, ouve só
O murmúrio do Universo:
"Gostas mesmo, grão de pó?
Para ti fiz este verso!"
384 – Português
O português da saudade
Não gosta, quer é matá-la.
No fim das férias se evade
E, ao trabalho quando abala,
Revela: "matei-as
todas!"
- E a ternura mais sublime
Que gerou mil e uma bodas
Virou, nas palavras, crime!
385 – Primeiro
O primeiro aviador,
O primeiro homem no espaço,
O primeiro homem na Lua
- Vieram-se sobrepor
Num tempo igual, num abraço,
À esquina da mesma rua.
As vidas coincidiram,
Conhecemo-los a todos.
- Os avanços que eclodiram
De tão variegados modos
Num século mal corrido,
Tão depressa revolvido!
Pior é que nem deu tempo
De lhe medir o sentido:
Foi o maior contratempo.
Como há-de nosso porvir,
À medida que eclodir,
Por nós vir a ser medido?
386 – Borboleta
Bate as asas, borboleta,
Lá nas costas do Brasil,
Que um tornado tal completa
E, logo após, outros mil
Que pelo Texas além
Revelam, como convém,
Quanto tudo é uma cadeia
- E ninguém lhe escapa à teia!
387 – Caras
Dar de caras, muitas vezes,
Com uma oportunidade
É contemplar os reveses
E sem que haja qualquer safa
De quem olha de verdade
Uns joelhos de girafa.:
- De facto, daquela altura
Quem não vai sentir tontura?
Como não se precipita
No abismo que de lá fita?
388 – Reflexo
Reflexo do pôr-do-sol
Em cambiantes cor-de-rosa
Nos bulcões esfarrapados,
O menino põe no rol
Dos espantos uma glosa:
- O céu tem lábios pintados!
389 – Vergel
A vida é como um vergel
Recém-coberto de neve:
Seja o que for que me impele,
Deixarei, pesada ou leve,
Nítida em meio ao nevão,
Minha pegada no chão.
390 – Juventude
Temos juventude a mais:
Os que a já são pela idade,
Os que a querem ser demais
E os que aceitabilidade
Só terão com marcas tais.
- Depois vamo-nos queixar
De o mais já não ter lugar!
391 – Circo
Chega um circo à região,
Pinta um cartaz e anuncia:
Eis o que é divulgação
Feita ali no próprio dia.
Se depois um elefante
Pegar de cartaz às costas,
Se o passeia rua adiante,
São da promoção apostas.
Se o elefante pisar
Canteiros do presidente,
É publicidade a par
Do que narre toda a gente.
Se o presidente se rir
Da conjuntura e a comenta,
Relações públicas ir
Cultivando é o que isto inventa.
- Eis como a publicidade
Trepa, degrau a degrau,
E os pegos, quando os invade,
Nos assalta vau a vau.
392 – Doença
Sabe o médico a doença
De que alguém irá morrer
Mas não lhe lavra a sentença,
Sempre à espera, para ver…
É que a morte conviria
Só contá-la para alguém
Quando se encontrara a via
Para escapar-lhe também.
A morte é uma aberração
Perante a vida e tamanha
Que mesmo o crente diz não
À prenda que dela venha.
393 – Profetas
Os optimistas encaram
Os pessimistas tal sendo
Os profetas que mascaram
De desgraça o que vão vendo.
O pessimista compara
Os optimistas a um homem
Que do arranha-céus tombara:
Enquanto os metros se somem,
Grita a alguém que da janela
Vê com horror a desgraça:
"Por enquanto a vida é bela,
Até aqui nada se passa!"
- Esmagar-se um nada à frente
Poderá ser agradável
Se o trajecto descendente
For de vez inevitável?
394 – Ambas
Uma guerra que pudera
Destruir ambas as partes
A paz perpétua nos dera
À custa de malas-artes:
É o preço que dela emana
- Enterrar a espécie humana!
395 – Fé
Toda a fé, como um chacal,
Entre as tumbas se alimenta:
A esperança mais vital
Das dúvidas mortas, mal
As colhe, se reinventa.
- E eis como, ao fim, nos
aumenta.
396 – Colhe
Do político, o cientista
Colhe louvor, se apresenta
De matar gente a conquista
Que intérmina se acrescenta.
Apelos à contenção
Rejeitados logo irão.
Por ingénuos os vão ter,
Incompetentes, de resto.
Sempre os há-de transcender
O que requer tal apresto:
Criar armas é ciência,
Usá-las é doutra essência.
São como um adolescente
A quem um bólido ofertam
E a que ninguém acrescente
Regras, leis, com que o apertam,
Nem carta de condução:
Só quer pressa, na ilusão!
Perigos, quem diz perigos?
A voar, cabelo ao vento,
Isso é coisa de inimigos,
De inveja daquele invento!
- E então, na primeira esquina
Voará pela ravina.
397 – Coragem
A ideia dum presidente
Sem coragem para ir
Com um gesto derruir
O mundo inteiro, é evidente
Que é desmoralizadora
Para quaisquer militares…
- Tal é o gesto que demora
Toda a paz que conquistares.
398 – Lembrança
A lembrança pode ser
Evento enlouquecedor:
Escapa se a quero ter,
Abate-se com fragor
Se a quer esquecer quenquer.
Quando de voltas trocadas,
Memórias são punhaladas.
399 – Lago
Há no lago ondulação.
Chego à margem, com a mão
Dou palmadinhas nas águas
Para acalmá-las das mágoas.
Com tal, porém, só provoco
Mais ondas em quanto toco.
Assim é na minha vida
E mundo fora, em seguida:
- Às vezes, um remedeio
Agrava um erro só meio.
400 – Talento
Cada um de nós possui
Algum tipo de talento
Que pode desenvolver
Com treino com que evolui,
Como ao músculo que tento
Treinar um dia qualquer.
Quanto mais utilizarmos
Qualquer músculo fanado,
Tão mais forte é de o tornarmos,
Como ao talento implantado.
Nada nos vem desde a origem
Com tamanho de vertigem.
401 – Comprar
Afirmam que com dinheiro
Poderemos comprar tudo.
É mentira. Se me inteiro,
O que encontro, sobretudo,
É poder comprar comida,
Porém, jamais o apetite.
Remédios, sim, de seguida,
Mas a saúde isto omite.
Comprarei conhecimentos
Mas não a sabedoria.
De brilhar os condimentos,
Não a beleza em que cria.
Divertimentos, também,
Não, porém, uma alegria.
Relações quantas convêm,
Não amigos, se os queria.
E criados, certamente,
Mas jamais a lealdade.
O descanso é ponto assente,
Mas não a paz que me invade.
Com dinheiro posso obter
Em tudo o casco do bolo
Mas nem num caso sequer
Adquirirei o miolo.
402 – Liberdade
Sem liberdade a criança
Para explorar e falhar
Menos criativa dança,
Nem é persistente, a par.
Sem autonomia, todos
Ir-se-ão sempre comportar
Como crianças, nos modos,
No que é ser e no que é estar.
403 – Competente
Um médico competente,
Se incompetente se julga
Numa doença presente,
Outro médico promulga
Que o doente então consulte
Que aquela doença ausculte.
Um médico competente
Nem mesmo a si próprio mente.
404 – Optimista
O optimista sofre menos
Com os percalços da vida
Porque só sofre os percalços,
Não sofre com os acenos
Da eventual recaída
Em fados que ao fim são falsos.
Mantém a proximidade
Com o que é realidade.
Preocupa-se o pessimista
Com o pior a ocorrer,
Embora jamais ocorra,
Enquanto exulta o optimista
Do bom que há-de aparecer,
Embora em sonhos lhe morra.
O saldo do que é melhor
Corre sempre a seu favor.
405 – Princípios
"De seus princípios que é
feito?
Não o estou reconhecendo,
Ao radicalismo atreito,
De homem culto sem o jeito
Superior ao povo horrendo.
Todo o indivíduo que é culto
Deveria estar de acordo
Que com um fascista inulto,
Um nazi sempre insepulto,
Como um pedagogo o abordo,
Já que temos de envidar
Esforços a converter
Esta franja, a conquistar,
Ouvir mesmo, se calhar,
Em lugar de os combater."
- O todos os liberais
E social-democratas
Com argumentos que tais
Ao lobo abrem os portais
Com que a grei ao fim tu matas.
406 – Graus
Há vários graus de verdade
Em toda a religião:
Todas vêm da divindade,
Mesmo Deus buscado em vão.
A religião é imperfeita
Porque é sempre transmitida
Por homens, a raça eleita
Imperfeita toda a vida.
Todas são, pois, por igual,
(Se bem que numa me aferro)
Mistura de bem e mal,
Parte verdade, parte erro.
Há religiões diferentes.
São simplesmente caminhos
Que nos levam, entrementes,
Ao fim a sermos vizinhos.
407 – Baptizado
Foi baptizado em criança,
Não foi de própria vontade.
Então a fé que ele alcança
Não tem autenticidade.
Mesmo quando ele se esforça
Por rigoroso cumprir,
É mera de hábito força,
É fé de pronto a vestir.
Quando assim é o mundo inteiro,
Afinal, de que me abeiro?
408 – Mistério
Há um mistério irracional
No coração escondido
De qualquer um, por igual.
A razão diz que o prazer
Deverá ser prosseguido
Nas coisas belas que houver.
Porém, na realidade,
Vamos encontrar beleza
No que é feio de verdade,
A ponto de a fealdade
Ser que deveras se preza.
Este instinto basilar
Tem verdadeira alegria
Na depravação humana…
A que extremo vai chegar
Do coração a magia
Nesta insondável tisana!
409 – Nome
Dei nome a cada animal,
Deste modo os recriei
Pelo molde racional
Do que sou e que farei.
E deles me apoderei
Com jeito de imperador,
À minha pele os fixei,
Cosi-os em meu redor.
Imiscuído no destino
Deles e no meu também
O nosso equilíbrio afino
Como aos humanos convém.
Se me levanto os levanto,
Ao afundar-me os afundo,
Partilhamos riso e pranto:
- Todo o destino do mundo.
410 – Gestos
Quando alguém pensar em Deus,
Como o pensar nos conforma,
Vai ser Deus nos gestos seus
Tanto quanto o gera a norma.
Tanto quanto a criatura
O pode ser em figura.
411 – Mal
Ninguém pode dizer nada,
Nada mal acerca dele.
Todos, porém, na jornada,
Ao salvar a própria pele,
A outrem mal facilmente
Farão, quando convencidos
Que o mal assim fica ausente
Deles: acabam perdidos,
Uns dos outros vitimados,
Pouco importa que pecados
À inocência são urdidos.
412 – Degredo
Quem manda gente ao degredo
Engana-se quando pensa
Que vence um homem por medo.
Matá-lo pode a sentença,
Vencê-lo, contudo, não,
Que não há força que o vença
Se, afinal, tiver razão.
413 – Fiel
Ser fiel mas só por medo
É mais que por convicção:
Quem tem medo queda quedo,
As convicções mudarão.
Questão é a fidelidade
Que procuras de verdade:
- É só corpo ou coração?
414 – Adversidades
Adversidades, rosários de cartas
Enfiadas na linha do destino,
O sábio passa-as calmo e
clandestino.
Por tal serenidade é que o
apontas:
Nem gritos, nem protestos, nem
lamentos,
- A indiferença a nu dos
elementos.
415 – Mesmo
As coisas do mesmo mundo
Saltam para se juntarem.
É o que o tornará fecundo
Antes de elas o castrarem.
Já nos mundos diferentes
Gerados em liberdade
Sempre os separam ingentes
Abismos de eternidade.
É para saltar os fossos
Que somos heróis e santos.
E por mais que haja colossos
Há eternas sombras nos cantos.
416 – Fácil
Quão mais fácil suportar
É o conhecido inimigo
Que tentar-se colocar
Dum incógnito ao abrigo!
Como prevenir o fado
No meio do inesperado?
417 – Espelho
Olho o espelho e eis alguém
Que me fita ali defronte.
Espreito os olhos que tem,
Que me estendem uma ponte.
É o outro que mora em mim,
Que deveras ignorava,
Que habita no meu confim,
Que sou eu e nem sonhava.
É o alarme do real,
Ser vivo que anda comigo,
Indiferente ao sinal
De ser de mim ao abrigo.
Aparição fulminante
De mim a mim mesmo ali,
Ente presente e distante,
Me anuncia o que esqueci.
Dá-me e furta-me este ensejo
De me agarrar que desejo.
418 – Ensina
Ninguém nos ensina nada,
O que se aprende que importa?
Funda, a sina destinada
Somo-la em cada pegada
Quando ela nos bate à porta.
Ensinar, neste entretanto,
É confirmar riso e pranto.
O cheiro da novidade
Só engana se nos invade.
419 – Lembro
Lembro às vezes o passado,
A tentar reconquistar-me.
Sei que nada explica nada,
Mas donde vem tanto gado
Silencioso, sem alarme,
Em doméstica manada,
Por mim fora, desde antanho,
Neste cortejo tamanho?
São pontos de referência,
Geodésicos marcos vivos
Nos mapas de minha ausência
Que me saltam dos arquivos.
Sabe-me bem relembrar,
Jorra a vida borda fora
Por bem longínquas paragens.
E eu dali a borbotar
Não tal quem a vive agora
Mas quem descobre as voragens
Em que lá mora submerso.
Sou a pura testemunha
Que o bebé beija no berço
E a fada má não se opunha.
420 – Música
Ai esta música ainda,
A do cântico sagrado,
Eco da avenida finda
Perdida aí nalgum lado!
Não ainda mas sempre
ouve
A melodia de antanho
Quem por bem das perdas houve
Que triar perdas e ganho.
O descrente é um auditor,
O crente não ouve, canta:
Quem a musa em si vai pôr,
Não ouve o que o mundo espanta.
421 – Rua
Rua estreita e distorcida
Não é do tempo ou silêncio
Duma geração perdida
Por eras de curso imenso.
É apenas meio comando
Aos reflexos que eu tiver,
Simplesmente um como e um quando
De pés, mãos ou nem sequer.
Acordar alma ao passado
Requer calma e mais cuidado
Não é correr simplesmente
Pegadas dum tempo ausente.
Mais isto as tem apagado
Do que as tem para o presente
Alguma vez evocado.
422 – Meus
Estas mãos, estes meus pés,
Os meus são e não são meus,
Sou-os a eles de vez
Mas deles recuso os véus.
Vivo-os, são o meu ente
E vejo-os também de fora,
De cima, como um ausente
Que um instante se demora.
E, neste distanciamento,
Deva-lhes o que lhes devo,
São tão alheio instrumento
Como o lápis com que escrevo.
423 – Factos
Factos que me estruturaram,
Gesto a gesto me erigiram,
Ainda minhas glebas aram,
Lançam puas que me firam.
Pelos caminhos desertos
Aguardam, montam ciladas,
Rebentam à esquina, certos
Como certas punhaladas.
Algo em mim será daqui,
Então eu serei também
Do pó de que me cobri
Eternamente refém.
424 – Fugaz
A vida é o fugaz instante,
Não cresce nem envelhece,
A irradiar adiante
E atrás, para quanto esquece.
O tempo não passa então
Por mim como um corredor,
Eu sou quem o tem à mão,
De mim parte ele em redor.
O tempo afinal sou eu
Sendo eu mesmo a me viver,
Vibrando neste escarcéu
Miraculoso de ser.
425 – Arrepender-me
Arrepender-me de quê?
É cada dia um rebento
A germinar desde o pé
De minha árvore do tempo:
Não é possível, eu acho,
Sem ter árvore por baixo…
426 – Ricos
Os ricos são mais sovinas.
O pobre é quem dá valor,
Arredondando as esquinas
Da vida com o suor,
Ao que vales e ao que valho,
Que nele pesa o trabalho.
427 – Deitaram-se
Branco e negro, pobre e rico
Deitaram-se a noite atrás.
Não acordarão em paz:
Da morte os tolhe o fanico.
Por cinco minutos só
De calor dariam tudo,
Por dez minutos de pó
Da terra que lavro mudo.
Portanto, de que te queixas?
Se não gostas de algo, muda,
Ou muda-lhe as tuas deixas
De modo que ao fim te acuda.
Branco e negro, pobre e rico
Deitaram-se a noite atrás…
- Tens a sorte que te apraz
Se contigo aqui me fico.
428 – Pontos
Quatro pontos cardeais,
Norte, Sul, Oeste e Leste,
Tem o Ocidente de seu.
A China tem dois a mais:
Além dos quatro que leste,
Acrescenta a Terra e o Céu.
429 – Rapaz
Um rapaz tem o apetite
Dum cavalo de corrida
E a digestão que suscite
A um traga-espada a comida.
Tem duma bomba a energia,
Dum gato, a curiosidade,
Do tirano, a goela fria,
Mais fantasia que agrade.
Tímido como a violeta,
Brusco como uma armadilha,
O entusiasmo que o afecta
Embravece o que perfilha.
Quando opera alguma coisa
Parece que tem condão:
Cinco polegares poisa
E todos duma só mão!
430 – Programa
Num programa de TV
Ela busca a relação,
Prefere ele o que lhe dê
Mil aventuras de acção.
O miúdo é hiperactivo,
A rapariga, serena.
Ele o espaço molda ao vivo,
Ela na palavra engrena.
Não é, não, a educação,
Cultura, que os escalona:
Só moldam o que haja à mão,
- Diversa testosterona.
Sem a força pioneira,
Desregrada e vulnerável
Deste, é certo, a Terra inteira
Era calma, justa e fiável,
Mas decerto era também
Mais cinzenta e fastidiosa,
- Um lugar onde ninguém
Queria a vida que goza.
431 – Quebra
Dizemos algo indiscreto.
Imaginamos após
Repor a quebra do veto
Pedindo a outrem que seja
Mais discreto do que nós
Antes que mais mal se veja!
Um segredo acaba aqui,
Quando a porta lhe eu abri.
432 – Primavera
A Primavera bonita,
Dantes feia, lama, estrume,
Húmus que o podre concita,
Muita humildade presume.
Ajuda-me a compreender
De humilhante o que há na vida,
O que tombar me fizer
Na sarjeta fementida.
Poderá fertilizar
O solo no qual de novo
Algo houver de germinar
Com a marca do renovo.
433 – Escuro
Bem no escuro do cinema
Sou convidado a assistir
Mais que ao filme, antes ao poema
De nele entrar, deixar-me ir…
Ai quantas vezes, ai quantas,
Ao sair, nós nos sentimos,
Por uns momentos, às tantas,
Deveras o herói que vimos!
Poderemos esquecer
Bem rápido os pormenores
Que a emoção que se viver
Fulge em mil e um arredores.
434 – Valor
Valor dum homem deveras
Só uma família o conhece.
O triste e a dormir de esperas
No trem que não aparece,
O maçador do escritório,
O taciturno da empresa,
- O esteio nada ilusório
Pode ser de quem mais preza,
Acolhido com abraços
E as novidades do dia,
A dar conselhos, a espaços,
Num alfobre de alegria.
Não mais o senhor fulano
Mas o papá bem-querido,
Não o irrelevante do ano
Mas o sábio preferido,
Bem corajoso e capaz,
Paciente e muito afável…
- De respeitado e veraz,
Quem há mais incontornável?
435 – Poeta
O poeta, nos celeiros
Tem os invernos vazios,
Só nele cabem inteiros
Da vida e da morte os fios.
Correr a vida a cantar,
Além de vencer a morte,
É na vida acreditar
Nela se jogando à sorte.
436 – Rezava
Rezava quando batia
A qualquer porta de acaso.
Se, porém, na reza cria,
Outro mote vem ao caso:
Não rebenta o pé de malva
Ao cantar salve-rainhas,
A boa acção é que salva,
Não há no céu ladainhas.
437 – Vivo
Quando um padre não revive
O vivo da tradição
Como à nova geração
Transmite o que quer que avive?
Símbolos exteriores
Apenas vai breve usar,
Vagas formas em lugar
Do sangue que há nos valores.
A vida destes ausente,
Só dogmas e rituais
Descorados e banais,
Rigidez que tudo mente,
Ficarão bem opressivos.
Sem ver o que o mundo quer,
Intolerantes, quenquer
Vê que já não estão vivos.
Que admira que a juventude
Se alheie de quem a ilude?
438 – Vemos
Ao meditarmos e orarmos
Vemos que onda é feita de água,
Que a história, feita de mágoa,
É de paz, ao bem visarmos.
Viver no mundo das ondas
É nas águas já tocarmos;
Se nas ondas nos ficarmos,
Sofreremos, mas, se sondas
Que uma onda é apenas água
Terás o maior alívio.
É só retirar do oblívio
A matriz, pondo-a na frágua.
439 – Candeia
Se a candeia andar acesa
Desato a ver dentro em mim
E em redor, com mais justeza,
A fundura até ao fim.
É importante olhar a sério
Das coisas toda a inconstância,
Do não-eu este mistério
Por que anseio na ignorância.
Não são nada negativo
A inconstância e o não-eu,
São a ponte do que vivo
Ao real que me fugiu.
Não nos causam nossa dor,
Dói-nos é a desilusão
Ao permanente supor
O que, instável, tomba ao chão,
Ao crer que vai ter um eu
O que um eu jamais terá.
Instável quanto ocorreu,
Muda de lá para cá,
Não tem uma identidade
Permanente com que conte.
Vazio, o não-eu invade
Dum falso eu o horizonte.
Ele é apenas inter-ser,
Tudo é feito do demais,
Nada vai prevalecer
Dos outros sem dar sinais.
Tudo é interpenetração,
Que tudo o mais contém tudo,
Interdependentes são
Os entes a que me grudo.
Cada qual depende então
De tudo para existir.
Inter-existir: desvão
De mim para o mais ao ir.
440 – Cinzel
Nas mãos certas, um tractor
Era um cinzel de escultor,
Mais vulgarmente, porém,
É uma fúria que contém.
Quanto mais sofisticados
Na técnica nos tornamos
Mais ficamos isolados
Da condição que incarnamos.
A nossa espontaneidade,
Cara não civilizada,
Se a perdemos de verdade
Na natureza domada,
O que então domar queremos
É nosso próprio desejo,
Medos selvagens que temos,
Sem de os ver lhe dar ensejo.
Agarramo-nos ansiosos
À matriz civilizada,
Tal se fora, de assentada,
Perder-se por entre os gozos.
De repente reparamos
Que de nós nos desatámos.
Perdido nosso interior,
Somos então só furor.
441 – Dose
A dose de narcisismo
Do esforço de nos mantermos
Civilizados, o abismo
Nos cava de justos sermos.
Ficamos apaixonados
Pelas nossas criações
E acabamos enciumados
Das belas imposições
Com que a natureza nos brinda.
Amamos vangloriar-nos
De inventos e mais ainda
Da descoberta adornar-nos.
Ignoramos sentimentos
De respeito e reverência
Da natura por eventos
De criativa evidência.
A bazófia prometeica
Do político, empresário,
Contrasta com a proteica
Humildade do fadário
Dos sábios de antigamente:
Eles nunca ignorariam,
Não, que inelutavelmente
Do cosmo as leis nos moviam.
442 – Escapo
Escapo à comum vivência
Numa história bem contada,
Tempo e lugar, de assentada,
Mudam logo de evidência,
Ligo-me a gente que não
É mais que imaginação.
A atenção pode prender
De tal maneira que acaso
Nem o meu trabalho aprazo
Nem o meu sono irei ter.
O feitiço tanto encanta
Que o cotio nem preocupa
E o que nele então se implanta
E todo o sangue lhe chupa
É minha alma a ser servida
Com a magia da vida.
443 – Automóvel
Automóvel é estatuto
Como económico nível,
Objecto de poder bruto…
Gera um condutor terrível:
Ele é rei, o rei do asfalto,
Pode ameaçar o peão
Que dele a via, num salto,
Atravesse rente ao chão.
Sente-se, aliás, protegido
Pela máquina-couraça,
Cavaleiro destemido
Ao mundo a mostrar a raça!
- Então, a morte na estrada
É uma ficção consumada.
444 – Escalo
Quando escalo uma montanha,
Tanto quanto estes meus pés
É a montanha que me apanha,
Me arranca de mim resvés.
Quando pinto, é meu pincel
Que me impõe o resultado,
Como a tinta ou o papel,
Quanto a mão que houver pintado.
O mundo é meu conivente
Naquilo que nele tente.
445 – Agarro
Agarro numa palavra
Tal se for a ferramenta,
O texto é de minha lavra,
É de mim que ele se inventa.
Daquela palavra ignoro
Que tem personalidade
E vida própria e decoro,
Ao viajar pela cidade.
O mágico, porém, mostra
Que a palavra não precisa
De esconder, como uma ostra,
O sentido que ela visa
Para dar encantamento.
Basta-lhe, para a magia,
Cantar no sopro do vento
E voar na fantasia.
446 – Eras
As palavras têm família,
Têm infância e crescimento,
Vivem eras de vigília,
Como outras de esquecimento.
Este relacionamento
É que dá corpo à palavra
Duma forma, de momento,
Que a definição não lavra.
Posso mais encantamento,
Mais magia lhe encontrar,
Se menos ao elemento
Olho que significar
E mais vir o corpo dela:
Menos o senso que tem,
Mais o contra-senso que ela
Presente nos traz também.
447 – Conversa
Uns minutos encantados
Duma conversa sincera
Mais efeitos nos curados
Podem ter que anos de espera,
Por análise a tratar-se
Do que a vida lhes esgarce.
Aliás, psicanalista
Destes nunca vem na lista.
E quando ele é quem opera
Aquele abcesso de vida
Melhor que a do especialista
Era a cura conseguida
De forma assim imprevista.
Tanto, afinal, prepondera
Uma conversa sincera.
448 – Sagrado
Quando o sagrado se mostra,
No mesmo gesto se oculta:
Revela uma vaga amostra,
Do mais fica a gente inculta.
Então é misterioso.
Mesmo por se revelar
É que finda a se ocultar
Nas profundezas que gozo.
449 – Nume
O nume é o gesto divino,
Não o humano que o acolhe,
Não é da montanha o pino,
Nem, ao fim, no cais o molhe,
Não é do aperfeiçoamento
Ou da consciência moral.
É do aprendiz um momento,
É da criança o fanal
Com o poder de admirar
E a falta de ambição dela.
Quando menos o buscar
É que me espreita à janela,
Quando abrimos nossos olhos
Despreocupados de metas
É que os numes, sem escolhos,
O céu cortam de cometas.
Devêm lugar-comum:
Atrás da nuvem sol-pôr,
A Lua em penhasco algum
De azul a pintar-lhe a cor…
- E em mim este encantamento
Sem preço, a qualquer momento.
450 – Teologia
A teologia que busco
Não mistura tradições,
Pensa calmo, pensa brusco
Espirituais questões
Com desafios primários
Com que lidamos, diários.
É um alicerce de quem
Mantém prática de igreja
E uma ponte que convém
A quem à margem se veja:
Extrai uma explicação
Da radical comunhão.
Em todos os tipos de arte
E literatura, enfim,
Lê sentidos num aparte
Que unirá princípio e fim.
Única, individual,
Molda-se ao gosto pessoal.
Sempre em vista de quem serve
É a fé que o mundo respeita
E que cada qual obteve
Sem opressão nem despeita.
Entroncando na raiz,
De nós todos é a matriz.
451 – Estrelas
Nós somos as estrelas e cantamos
Porque cantamos com a nossa luz,
Somos aves de fogo pelos ramos
Abrindo asas no céu que nos
seduz.
Nossa luz é uma voz de
encantamento,
Abrimos uma estrada para as almas
Na jornada da morte, cujo invento
São as estrelas pelas noites
calmas.
No remanso final serena o canto:
Das estrelas acena-nos o encanto.
452 – Pequenos
Podíamos entender
Que do macrocosmo imenso
Somos uns pequenos mundos:
Partilhamos-lhe do ser
E de seu fulgor intenso
Somos os ovos fecundos.
Do todo somos o pleno,
Porém em ponto pequeno.
453 – Fora
Em vez dum céu interior
Poderemos ver o céu
Tal nosso interior sem véu
Para fora a nos expor.
Macro-microcosmo em força,
Alma o céu terá qualquer
Que coincida, a bem dizer,
Com a que em nós cá se esforça.
454 – Promove
Uma espiritualidade
Que promove o encantamento
Não é duma variedade
De única fé, pensamento:
Do sagrado vive o encanto
De cada instante e recanto.
Nas mil e uma humanas vias
Outras tantas vê magias.
455 – Sondamos
Sondamos a opinião,
Tomamos a direcção
Da regra da maioria.
Mas o encantado diria:
Deveras a fundação
Vem-me da imaginação
À procura de sinais
Dum sentido com os mais.
As nossas escolhas são,
Por suposto, racionais.
As deles, porém, jamais,
Que por sagradas se dão.
Nós visamos o objectivo
Definido claramente.
Eles visam algo vivo:
- A revelação urgente!
456 – Seria
Como seria agradável
Ter sexo sem compromisso,
Sem ter de cuidar mais disso,
Sem a dor inominável
De emoções desencontradas,
Separações e uniões!
Contudo, a tais pretensões
Quaisquer almas, sublevadas,
Enjeitam, porém, de vez,
Que uma vida própria têm,
Vontade que lhes convém:
A tentativa talvez
De tal sexo aventureiro
Acabará dando errado,
Que finda o trilho encetado
De emoções num atoleiro.
É que nós o corpo humano
A ver nos condicionámos
Como só químicos ramos
E tubagens, cano a cano,
Quando ele é fala expressiva
Duma enorme subtileza,
De cambiantes, de beleza,
É totalidade viva,
Intimamente ligado
A emoções, a sentimentos,
Diáfano em quaisquer momentos
E de sentidos pejado,
De significados cheio,
Poético nos órgãos todos,
Belo de múltiplos modos
E capaz de infindo enleio.
Este é o corpo que há no sexo:
De alma tanta permeado
Que se tal é sonegado
Tudo ficará sem nexo.
457 – Corvo
Às vezes tenho remorsos,
Negro corvo a alimentar-se
Nas sombras, nos desperdícios,
Destroços de alheios torsos
No crepuscular disfarce
Em que virtudes são vícios.
Remorsos cruzam a vida,
Do que podia ter sido
E não foi ou se perdeu
Depois de lhe dar guarida,
Do que à vida era devido,
Dito e feito em tempo meu,
E que a tempo jamais foi
Ou então o foi demais.
Os desencontros eternos,
O desacerto que dói,
Sempre trocando os sinais
Que os céus mudam em infernos.
A manhã sempre desperta
Do que fez e desfez noite
Por trás dum rumo vazio:
A luz do dia é deserta
De dunas em que me acoite…
- Onde é que perdi o fio?
458 – Sexo
Se o que é o sexo quer saber
Reflicta no que é uma flor,
Na beleza que tiver,
Que aos sentidos traz fulgor.
Depois toda a natureza
Passe em revista à janela,
Veja como o mesmo preza
E o lugar que a flor tem nela.
Uma flor, seja o que for
Que a figura fascinante,
A sexualidade a pôr
Apenas nos anda diante.
459 – Rumo
No sexo nós incutimos
Poder e rumo aos desejos
Mais profundos que sentimos,
Dele nos mil e um harpejos.
Os prazeres que nos traz,
Sexo brando ou agressivo,
Exploratório, inventivo,
Jogos de guerra e de paz,
Todo o vestir e o despir,
Partes do corpo, mil beijos,
Ambientes, lugar onde ir,
Tudo infindos são ensejos
De tão íntima paixão
Que nos mostram quem nós somos,
Aonde as almas irão,
Os complexos que aí pomos,
As nossas inibições,
Obstáculos que enfrentamos…
- No sexo temos visões
De quanto privados ramos
Nas almas moram, senhores
De secretos pormenores
Que nem mesmo imaginamos
E ao fim nunca iluminamos.
460 – Erro
Cometo um erro ao cuidar
Que é física a percepção:
Qualquer humano lugar
Envolve imaginação.
Vivemos sempre uma história
Com cercadura de imagens:
Imaginário, memória
É que entendem as mensagens.
Perceber é imaginar:
Na física principia
Mas vem-no a determinar
Finalmente a fantasia.
Assim é que a astronomia
Não vê por fim as estrelas,
Só o poeta na poesia
É que acabará por vê-las.
Quem toda a vida comer
Da mãe os bons cozinhados
Toda a vida a reviver
Os vai em todos os lados.
Sexo é física experiência?
Esquecemo-nos então
Que no êxtase há uma evidência
De imensa imaginação!
Do sexo quando banir
Toda a poesia que tem,
Irei, do fundo ao nadir,
Perdê-lo de vez também.
461 – Separação
Talvez tenha de entender
Que a separação histórica
Entre espírito e matéria,
Com a psíquica que houver,
Quer real, quer metafórica,
Entre corpo e alma sidérea,
O transcendente e o sensível,
Entre tempo e eternidade,
Entre a virtude e o desejo,
- São a neurose visível,
Um distúrbio que me invade,
Sempre a vedar-me este ensejo
De inteiro ser e visar-me,
Pois levam-me a que desarme:
Rasgam-me por todo o lado,
No profano e no sagrado,
Em política, em negócio,
Ao trabalhar como em ócio…
- Sou sempre este dois-em-um
E, ao fim, nem serei nenhum.
462 – Mora
Nos homens e nas mulheres
Mora a ninfa e, quando está,
Dela à presença acolá
Reagem todos os seres.
Com muita inabilidade,
Jeito acaso de quem reza,
Veneramos a deidade
E chamamos-lhe beleza.
463 – Ilumina
O amor ilumina o brilho
Percebido na beleza.
Parte do sexo, o vidrilho,
Atracção da natureza,
Desejo e satisfação
Sem carácter permanente.
Fulgor de alma, em expressão,
Torna o rosto refulgente.
Percebemos estes raios
Brilhando invisivelmente
Num rosto que traz desmaios
De encantamento a quem sente.
Para os mais, sem atractivos,
Pelos padrões actuais
O mais comum dentre os vivos,
Só tu vês outros sinais.
Podes ficar fascinado,
Mesmo incapaz de pensar,
Ansiando, desesperado,
Nunca dele te afastar.
Tamanha atrai a beleza
Que tudo o mais se despreza.
464 – Celebrações
Celebrações primitivas
Do falo são riso, graça,
São louvor, festas e vivas,
Alegria em toda a praça,
- O que a todos os congraça.
Não é lá simbolizado
Pelas imagens antigas
De árvore, touro danado,
Nem dos raios pelas brigas
De mil forças inimigas.
Ao contrário, representa
Todo o poder que há na vida
E que, ao fim e ao cabo, assenta
Na grandeza desmedida
Das forças da natureza
Que a imagem sagrada preza.
É o falo aquele poder
Penetrando em corpo de homem
Como também de mulher,
A fonte donde se tomem
Vitalidade, energia,
Criatividade algum dia,
Para então seguir em frente,
Sobreviver, progredir.
Não é o Eu suficiente
Para uma vida erigir,
Há uma força natural
Que me invade e é sexual.
O sexo é que gera a vida:
- Isto é que à festa convida.
465 – Quando
Quando os pais acostumaram
Os filhos ao que estes queiram,
Quando os filhos já deixaram
De olhar aos pais que se abeiram,
Quando os mestres têm medo
Dos alunos e preferem
Fazer-lhes, mesmo em segredo,
As vontades que tiverem,
Quando os jovens já não têm
Pela lei e autoridade
Respeito, nem por ninguém,
Tudo arbitrariedade,
- Aí temos, com pujança
E a carregar energia,
O inferno que nos alcança:
O início da tirania!
466 – Talha
Somos Caim e Abel,
É o que teremos à mão.
Dali se talha o papel
De que depende a função.
Somos madeira de sonhos
Humilde e maravilhosa,
De cadafalsos medonhos
Ou de altar que amor desposa.
Somos este tudo e nada
Sempre a cobrir a jornada.
467 – Ante
Ante a banca de revistas
Cheias de fotografias
Em vários graus de nudez,
Filas de homens traçam pistas,
Olhando aquelas magias
Cada qual de sua vez.
O estado em que eles se vão
É mesmo em contemplação.
Deveras por que ansiamos
É pelo que reprimimos:
O desejo que exploramos,
Mistérios que contemplamos,
Sexo que mal intuímos,
A intimidade perdida,
Todo o erótico da vida…
As revistas, as revistas
Nas bancas ali no chão
São simbólicas conquistas,
São reconciliação.
468 – Imagens
As imagens em geral
Espírito poderoso
Para a vida, crucial,
Contêm misterioso.
Perturbadoras no modo
Como rompem as amarras
Com qualquer moral engodo,
Mais perturbam com as garras
Duma espiritualidade
A ressumar obviamente
Da bruta carnalidade
Que sempre são fatalmente.
469 – Cultura
A nossa cultura quer
O controlo inteiro ter.
E ser capaz de exprimir
O que actuar e sentir,
Verificar e saber
Que é que andamos a fazer…
Não tem dela aval e abono
Que eu tenha facilidade
Na atitude de abandono
E de adaptabilidade.
É neste desequilíbrio
Que dela sofro o ludíbrio.
470 – Engloba
Moralismo engloba medo
De não ser bem acolhido.
Cada qual quer, desde cedo,
Ser elogiado e querido.
No entanto, esta pretensão
Visa a paixão sexual
Acaso em oposição,
Num desacordo total.
Tentamo-nos controlar,
Mas repressão simplesmente
A paixão vai aumentar
Na via em que tudo mente.
Quão mais a paixão aumenta
Mais o complexo moral
Forte e negativo tenta
Conter o grosso caudal.
A crescente frustração
Em nós próprios se concentra,
Ou noutrem, numa nação,
E à humanidade se adentra:
Somos a bomba explosiva
A matar tudo o que viva.
471 – Orgulho
O orgulho do intolerante
Não vê o preceito moral
Que influi pela vida adiante
E a que se gruda, formal.
É assim que os ambientalistas
Em relação aos negócios
São afinal moralistas,
Não querem labor nem ócios.
Como os vegetarianos
Relativamente à carne
São moralistas dos danos
Na saúde que os incarne.
Alguns têm por bem raro
Serem mesmo moralistas
Em tudo a que dão reparo
Ou em que põem as vistas.
472 – Efeito
É um efeito de magia
O desígnio desta ideia
Duma força que me ameia
E transcendente alumia,
Mostrando-se humildemente
Nos encantos da paisagem:
As árvores, a forragem,
Cada planta em mato assente,
Cada animal, o granito
Na bruteza mais inerte…
Tudo em mim faz que desperte
A noção de haver um fito:
A divindade a mostrar-se
Em degraus de autonomia,
De razão e fantasia
Atrás de cada disfarce.
É que afinal tudo fala
Ou minha imaginação
É que tem mesmo o condão
De pôr a falar quem cala?
473 – Celibato
Celibato espiritual
Todos poderemos ter
De criativo potencial.
A solidão que acolher
É feita de integridade,
De individualidade,
E sempre complementada
Pela profunda vivência
Da vida comunitária.
É dos monges a coutada,
Mas pode, por excelência,
Num lar ser prioritária,
Ou num local de trabalho,
Numa amizade ou família…
É daquilo que me valho
Quando me ponho em vigília:
Um lugar de solidão,
De reencontro em meu imo,
Junto com a comunhão
De amizade a que me arrimo.
Quer um grau de celibato
O acorde por que me bato.
474 – Sonecas
As sonecas são a forma
Que a natureza terá
De nos lembrar sempre e já
Que a vida é bela por norma.
A vida, a cama de rede,
Abana com suavidade
Do nascer onde tem sede
Até mesmo à eternidade.
475 – Mar
É certo que o mar liberta
Mas ao mesmo tempo prende,
Já que os sonhos acoberta,
No que ao infindo se rende,
Em terra, sem descoberta.
E não há mais rota aberta
Ao que finda ali na praia
Sem barco a transpor a raia,
Nossa vida desmedida
Toda neste adeus contida.
476 – Fácil
Mais fácil à rapariga
É falar duma fraqueza,
Pode chorar de tristeza,
De angústia, de desespero,
Que com ela ninguém briga
Nem vota a desprezo mero.
Já com os rapazes, não.
Sentimentos reprimidos
Farão subir a tensão,
Podendo atingir o ponto
Em que não aguentarão.
Nem se ouvirão os gemidos
De todos quantos eu conto
Que a morte ao fim se darão.
Quantas mortes de suicidas
São de jamais ser ouvidas!
477 – Partilhada
Alegria partilhada
Jamais é diminuída,
Antes é multiplicada.
E a tristeza partilhada
É tristeza dividida,
- Fica, ao fim, reconfortada.
478 – Detrás
Por detrás de cada avanço
Há um germe de criação
Na mente dum solitário,
Alguém a quem não alcanço,
Cujos sonhos vigiarão
À noite, no mundo vário,
Enquanto os mais, em seus leitos,
Vão dormindo satisfeitos.
479 – Dedicada
Que é dedicada ao prazer
Nossa cultura parece,
Tanto cuida de entreter,
De a conveniência acolher,
Cultivar dela na messe.
São, contudo, substitutos
Para as grandes recompensas.
As que oferecem condutos
São da amizade produtos,
Da família são mantenças,
Do trabalho criativo,
Levam à tranquilidade.
Nada terão de passivo:
Delas o melhor cultivo
É que o fim são da ansiedade.
480 – Tratar
Se as coisas falar puderam,
Creio que se queixariam
Deste modo impessoal
De as tratar que não quiseram,
Em que instrumentos seriam,
Meros objectos, igual
Ao que as pessoas reduz
De máquinas a peças meras.
A vida comum traduz
Bem claro em todas as eras
Que as coisas se nos ofertam
Nos laços, na intimidade:
Com a presença despertam
Em nós gostos de verdade
E sentimos-lhes a falta
Se se perdem, vão embora,
E a saudade nos assalta
Se a lonjura nos demora.
Mantemo-las em família
Tal se foram membros dela,
Guardamo-las em vigília
Na infância como uma estrela
A que atiramos desejos.
Mudas, tocam-nos harpejos
De que gostamos, rendidos,
São nossos entes queridos
Que vão indo vida fora,
Mas cá dentro a imagem mora.
As coisas não são apenas
Verdadeira intimidade,
Emprestam sensualidade
A nossas vidas pequenas:
Nós tocamo-las, olhamos,
Ouvimos, lubrificamos,
Limpamos e decoramos…
Sem coisas, o que é uma sala,
Como era um apartamento
Ou uma casa sem móveis?
Lúgubre, o vazio estala
E a vida, a nenhum momento,
Nem nos mais belos imóveis,
Pode começar deveras
Antes de as coisas levadas
Serem, após as esperas,
Para lá como esposadas.
481- Materialismo
Materialismo é neurose,
Do mundo físico excesso,
Revela no que mais goze
Que o mundo neste processo
A tenção de que precisa
Não vê que afinal a visa.
Ficamos demais absortos
No que negligenciámos,
Exibimos pelos hortos
O que não temos e amamos.
Esta inversão de valores,
De paradoxos tão cheia,
É o padrão que mostra as cores
Do interesse que permeia
As coisas do mundo real
E ao mesmo tempo a tendência
De nós as tratarmos mal
Com gratuita violência.
Um obcecado fascínio
Por objectos materiais
Traz escondido no escrínio
Um rol de gestos fatais
De reacção acaso oposta
Que só no espírito aposta.
Ao mesmo tempo que absortos
Pelas coisas nos tornamos,
Também experimentamos,
Do mundo em estranhos portos,
Duma espiritualidade
As mais místicas das formas,
Para além de quaisquer normas
Ou de credibilidade.
Institucional, a fé
Com poder e autoridade
Se preocupa, põe de pé:
A busca em privacidade
De íntima vitalidade,
Não mais presa à tradição
Nem à norma da razão,
Conduz às mais questionáveis
Das vivências perigosas,
Do mundo porque evitáveis
As coisas que são gostosas.
Por não ter um meio-termo
Anda todo o mundo enfermo.
482 – Conheço
Eu conheço uma família
Em que o pai trabalha a horas
Do lar donde sai bem cedo,
Madrugada ainda em vigília,
E onde só volta a desoras,
Após ter jantado a medo.
Em geral traz para casa
Comida chinesa pronta,
Prato igual todos os dias.
A mãe labor fora apraza,
O dia inteiro por conta.
Umas tostas fugidias
De manhã come sozinha,
Mal põe os pés na cozinha,
Almoça e janta ao acaso
Uma sanduíche com prazo.
Deixam o filho com ama
Que lhe apronta as refeições,
Pratos prontos duma gama
Que descongela em fogões.
O menino terapia
Acaba a ter de fazer
E os pais perguntam que havia
Que neurótico o faria,
Pois tudo andam a viver
Para dar-lhe o que quiser.
É uma família eficiente,
Contemporânea cultura
Numa síntese evidente:
Tudo certo se afigura
No campo do labor ético;
Relativamente ao sexo,
Ao eros, ao gozo estético,
Da vida ao princípio grado,
Andam, sem qualquer complexo,
A praticar tudo errado.
E como trabalham muito
Têm electrodomésticos,
Dos pais de hoje o grande
intuito,
Meros enfeites domésticos:
Estéreos, televisões,
Os vídeos, o micro-ondas
E, claro, o computador…
Mas depois, tudo aos baldões,
Quando a casa perto sondas,
Não tem alma nem sabor.
E uma das indicações
Mais claras deste teor
Que vemos logo de entrada
Dizer que não é lar de homem
É a natureza assexuada
Dos alimentos que comem.
483 – Obra
A obra saber que é má,
A que nunca se fará…
E a que afinal se fizer?
A feita, ao menos perdura,
Pobre embora, é uma qualquer,
Planta a murchar, insegura
No vaso duma vizinha
Aleijada e mui mesquinha,
Mas que era a alegria dela
E, por estranha sequela,
Por vezes também a minha.
Tudo o que escrevo e que faço
Por maus bem os reconheço,
Mas pode ser que algum traço
Distraia um triste qualquer
No que lhe deixar impresso.
Tanto me basta e não basta.
A obra, em quanto fizer,
É fasta quanto nefasta:
- Ambiguidade seguida,
Afinal, é toda a vida.
484 – Parece
Por mim, quando vejo um morto,
É ver uma despedida,
Traje perdido num horto
Por alguém, quando da ida.
Alguém que se foi embora
Não precisou de levar
A fatiota da demora
Que aqui vestira, ao chegar.
Um cadáver, que impressão
Dum traje atirado ao chão!
485 – Espaçado
Espaçado, um vaga-lume
Vai-se pospondo a si mesmo.
Em torno, obscuro, o perfume
Do agro que ao sol foi torresmo
É uma falta de ruído
Que me cheira quase bem.
De tudo a paz, confrangido
Sofro, pois me dói também
Toda esta infinda leveza
Que em tédio me afoga informe
E afinal tanto me pesa
Sendo um nada tão enorme.
486 – Gela-me
Gela-me de corpo e alma
Que serei quando não for,
Anteneurose que a calma
Semeia fria de horror.
De minha morte futura
Uma como que lembrança
De dentro arrepia dura,
Alcança o que não alcança.
Numa névoa de intuição
Sinto-me matéria morta,
Na chuva caído ao chão,
Do vento gemido à porta.
Do que não serei o frio
Morde o coração actual,
Sou desde agora o vazio
Que eu hei-de ser radical.
487 – Sentimento
Meu sentimento profundo
De ser tão incongruente…
A maioria, no fundo,
É que pensa diferente,
Nos sentimentos assente,
E eu por mim sinto sozinho
Com meu pensar adivinho:
Pensam com o sentimento
E eu sinto com pensamento.
Num homem vulgar
Sentir é viver,
Pensar é saber
Viver no lugar.
Mas para mim, ao invés,
Pensar é sempre viver
E sentir não é um revés
Do que venha a acontecer,
Sentir mesmo é mastigar
O alimento de pensar.
488 – Tanto
Mesmo eu que tanto hei sonhado
Às vezes faço intervalos
Em que me ponho de lado,
Ficam os sonhos bem ralos.
Tudo nítido aparece.
Então a névoa se esvai
De que me cerco, esmorece,
E as arestas do que sai,
Visível, desta neblina
Fere-me a carne em minha alma.
Toda a dureza de esquina
Me magoa e não me acalma.
Todos os pesos visíveis
Destes objectos me pesam
Pela alma dentro, insensíveis
Aos tecidos que em mim lesam.
As feridas são de tomo
Nem que eu não venha à janela
E a minha vida é tal como
Se me batessem com ela.
489 – Repente
De repente só no mundo,
Vejo tudo do telhado
Espiritual e fecundo:
Ver é distar bem ao fundo,
É ficar ali de lado,
Como aclarar é parar,
Analisar é estrangeiro
Me manter dentro em meu lar,
Toda a gente a perpassar
Sem roçar em mim primeiro.
Apenas ar em redor,
Sinto-me tão isolado
Que de lonjura anda um ror
Entre mim e meu melhor
Fato novo endomingado.
Sou deveras a criança,
Palmatória mal acesa,
Que atravessa e nunca alcança
No pijama em que balança,
Mansão vaga onde anda presa.
Vivem sombras que me cercam,
Dos móveis e luz corrente,
Acompanham-me, se acercam,
Rondam-me, que me não percam,
E todavia são gente.
490 – Arredor
Tudo na vida duvido
Se não é degenerado,
Véspera é o ser de ter sido,
Um arredor de algum lado.
Os cristãos abastardaram
Greco-romana cultura
Pagã que sacralizaram,
Dogma que ninguém depura.
Hoje, época cancerígena
E senil, é o desviado
Efeito que algum indígena
Génio tiver levantado.
Todos os grandes propósitos,
Confluentes ou opostos,
Falem nos actuais depósitos,
Era em que vivemos postos.
A cultura em que, pacato,
Me creio uma abelha-mestra…
- Vivemos num entreacto
Só com barulho de orquestra.
491 – Metafísica
Metafísica parece
Uma forma prolongada
Duma loucura patente:
Se a verdade alguém conhece,
Vê-la-ia desvelada,
Definitiva, presente,
E o mais, um mero sistema,
Arrabaldes do problema.
A indecifrabilidade
Do cosmos nos bastaria
Se a pensar nos persuade:
Querer entender seria
Menos do que homens só sermos,
Que ser homem é sabermos
Que jamais se entenderia.
Trazem-me a fé num embrulho
Em salva alheia fechado,
Que o aceite sem engulho
Mas não abra, que é selado.
A ciência como uma faca
Me servem pronta no prato
Para abrir a folha fraca
Do livro que nem desato.
Trazem-me a dúvida, enfim,
Como pó dentro da caixa.
Para quê tal frenesim
Se apenas pó nela se acha?
492 – Saudade
Não há saudade maior
Do que a de quem nunca foi,
Do que a do que nunca for,
Que esta, infinda, é que nos dói.
O que sinto quando penso
No passado que vivi,
Quando choro sobre o imenso
Cadáver que em mim perdi,
Nada atinge o fervor trémulo,
Doloroso, com que choro
Por não encontrarem émulo
Entes em que me demoro,
De sonho humildes figuras
Primárias e secundárias,
Quase às vezes sombras puras
Perdidas em trilhas várias.
Reavivar a saudade
Nem reviver jamais pode
Esta impossibilidade
Do que em sonhos nos acode,
Toda esta vida suposta
De conversa iluminada
Num café, numa congosta,
De fantasia enxertada.
Os meus amigos de sonho
Afinal nunca pertencem
A mundo algum onde os ponho,
Nunca a fronteira convencem
Do real a ser da essência
Do que voga na consciência.
- A dor de nunca ter sido,
Não há nada mais dorido!
493 – Concebemos
Toda a vida é para nós
O que concebemos nela.
Para o rústico que após
Corre uma fértil gabela
Seu nada de agro é um império.
Para um César cujo grampo
Dos povos prende o minério
Todo o mundo é um simples campo.
Do pobre o nada é um império,
Do rico é o império um campo.
Nós de nada mais dispomos
Que de nossas sensações,
Nelas somos o que somos,
Todo o real são visões.
Afinal, a realidade
É mais sonho que verdade.
494 – Dependerá
O que vemos, o que ouvimos,
Dependerá do local
Em que nos imiscuímos
Mas depende por igual
De que tipo de pessoa
Somos neste mundo à toa.
495 – Escrever
Escrever será esquecer:
A literatura é o modo
Agradável a quenquer
De a vida ignorar de todo.
A música sempre embala,
Artes visuais animam,
Dança e teatro entretêm…
A primeira nem se rala,
No sono a vida retém
Que as mais ao fim reanimam.
A literatura, não,
Já que esta simula a vida:
Um romance é um mundo vão
Que nunca foi de vencida,
Uma tragédia é um romance
Escrito sem narrativa,
Um poema tem o alcance
Da afectividade viva
Em língua que não converso,
Já que ninguém fala em verso…
- Escrever será esquecer
A vida que ninguém quer.
496 – Renúncia
Renúncia é libertação,
O não-querer é poder.
Que pode dar-me o Japão
Que minha alma me não der?
Se ela mo não puder dar,
O Japão como há-de dar-mo,
Se é de alma com meu olhar
Que o vejo quando me alarmo?
A riqueza ao Oriente
Poderei sempre ir buscar
Mas a de alma não consente
Provir de nenhum lugar.
Riqueza de alma sou eu
E eu estou onde estiver,
Com Oriente de meu,
Mesmo sem ele sequer.
Compreendo que viaje
Quem é incapaz de sentir.
Por isso pobre reage
Dele o livro que exibir,
Já que os livros de viagens
Valem da imaginação
De quem escreve as paisagens
Que o imo lhe empolgarão.
497 – Galo
De dentro da capoeira
Donde irá para ser morto
Canta o galo, a aurora inteira,
À liberdade, ao bom porto,
Apenas porque lhe deram
Dois poleiros sempre à escolha…
- E sempre os homens morreram
Sem darem, porque escolheram,
Pelo carro da recolha,
À espera, à esquina da vida,
Desde a hora da partida.
498 – Equilibram
O livro da criação
Decifra-se em dois sentidos
Que equilibram a função
Pela balança medidos:
Tudo vive, afinal, para morrer
E tudo morre para reviver.
Qual dos dois convence,
Ao homem pertence.
O cosmos indiferente
Apenas prossegue em frente.
499 – Esquecer
Facto, em comunicação,
Leva a esquecer o sentido:
Rajadas de informação
Dão este mar desmedido
A ponto de ninguém ver
Qualquer fio condutor
Ou de nem querer sequer
Que tal seja de supor.
Para indecifrar o mundo
Nem há meio mais fecundo,
Até porque, na aparência,
É o contrário, por essência.
500 – Poder
Para o poder, a política
É do cérebro lavagem.
Televisão não é crítica,
Logo embarca na voragem.
Jogo televisionado
É sempre de anticultura
Um liminar postulado
Onde a mente não se apura.
Se a cultura simular
Então é um computador
Memórias a acumular
Para no fim as depor.
- Logo o pensamento humano
É um fantasma: não traz dano.
501 – Retornar
Retornar onde feliz
Foste um dia no passado
Após um longo intervalo
A tudo muda o matiz
E é sempre desapontado
Que de antes vês o regalo.
502 – Sempre
Em absoluto, é evidente,
Esta vida é invivível.
Porém, é sempre vivível
Se for relativamente.
Não há nada mais credível
Na vida, evidentemente:
O absoluto é inatingível,
Moro em relativo assente.
503 – Vestuário
É o vestuário um uniforme,
Que uma personalidade
Se exprime sempre conforme
A roupa que mais lhe agrade.
Os aspectos subversivos,
É fatal, ficam expostos
Como pirilampos vivos
Onde fico de olhos postos.
A mulher de roupa ousada
Não busca, ao pôr-se à janela,
Ser violada ou apalpada,
Quer só que reparem nela.
Se um homem sábio se veste
De forma mui diferente,
Se calhar nisto o que investe
É se tornar atraente.
Se a colega que ele visa
Corresponder ao que intente,
Muda de forma precisa
Todo o porvir que haja em frente.
É o vestuário um uniforme
Ao momento e a alguém conforme.
504 – Palavra
A palavra tem poder
Manifestado e oculto,
É uma parábola a ser
Alegoria de vulto:
Dela o conteúdo excede
O que há na definição.
Na palavra pega e mede,
Pesa o que há no coração,
Tira a palavra da boca,
Empenha a palavra à justa,
Que a última ninguém toca…
- Desvendá-la, como custa!
505 – Engenheiro
Ao engenheiro não basta
Uma ideia no papel.
Ao cientista o que o impele
Das coisas é ver a casta.
Um engenheiro requer
Que elas ao fim funcionem
E os homens, ao que prefere,
É que do mundo se adonem.
506 – Religião
Minha religião adora
Meu Deus em cada semente.
Nos templos já nada mora
Além duma flor que mente:
Embora bem arranjada,
É sempre uma flor cortada.
507 – Oculta
Minha alma, que oculta orquestra,
Que instrumentos é que tange,
Que cordas e harpejos range,
Címbalos, feita maestra?
Dentro em mim só me conheço
Na sinfonia que meço,
Harmónica, desarmónica…
- Qual, afinal, minha tónica?
508 – Dia
Deste dia o que me fica
É o que de ontem me ficou
E de amanhã ficará:
A sede que não tem bica,
Insaciável, onde vou
Tentar ser eu onde vá,
Ser inúmero e o mesmo,
Ser outro e mais outro e tudo
Enquanto em mim me ensimesmo…
- E ao fim fico sempre mudo.
Degraus de sonho e fadiga,
Trepem num passo fecundo
E venham findar a briga,
Venham substituir o mundo!
509 – Sentido
Que sentido é o desta viagem
De que forçado me inteiro,
Sem recanto onde me acoite,
Sem mais escolha ou triagem
Entre uma noite e outra noite,
Com este Universo inteiro?
O nada antes de nascer,
Depois de morrer, o nada,
Que é que faz a madrugada
Pelo meio a alvorecer,
A madrugada de ser,
Se a ser nada é destinada?
510 – Experimental
Toda a vida é uma viagem
Feita involuntariamente,
Experimental paisagem
Que mente quanto desmente.
Trilho através da matéria
Do espírito a viajar,
Nele a viagem é séria,
Nele se vive e sem par.
Vidas há contemplativas
Com a vida mais intensa,
Mais fremente que as esquivas
Vidas outras onde extensa
É a mera exterioridade.
O resultado é que é tudo:
O sentido é a realidade
Do vivido mais miúdo.
Recolhe-se tão cansado
Dum sonho tal dum labor
Visível e afadigado,
Quando não é bem maior.
O resultado, portanto,
Não tem nada de fortuito:
Nunca ninguém viveu tanto
Como quando pensou muito.
511 – Dolorosa
Não é dolorosa a vida,
Nem doloroso pensá-la.
Verdade é que a dor sofrida,
Séria e grave é a dor fingida,
A da mente que me abala.
É que, se eu for natural,
Corre a vida tal qual veio,
Esbater-se-á tal e qual
Como cresceu, afinal,
Tudo é nada, um mero enleio.
Nossa dor, no meio dele,
Nem sequer nos roça a pele.
512 – Escrevo
Não escrevo em português.
Quando em português escrevo
A mim mesmo é que me lês.
Escrevo em eu-mesmo, vês?,
E no que escrevo me levo,
Feito minha própria rês.
513 – Amanhã
Amanhã também serei,
Desta alma que sente e pensa,
Do mundo que me pintei,
Amanhã também serei,
Na multidão que se adensa,
O que deixou de passar
Nestas ruas desta grei,
O que outros vão evocar
Vagamente, vagamente,
"Que é que será feito
dele?",
Com o gesto displicente
Que afasta a mosca da pele.
Então tudo quanto faço,
Tudo quanto sinto e vivo,
Empoeirado no arquivo,
Menos que um caderno baço,
Não é mais que um transeunte
A menos no dia-a-dia,
Nas ruas onde não junte
Aos mais nem a fantasia,
Numa cidade qualquer
Onde nem memória houver.
514 – Honesto
Quando mesmo o mentiroso
Pode ser amedrontado
Até contar a verdade,
Pode o honesto mais ditoso
Por igual ser torturado
Até que a mentira o grade.
O que a violência afira
Nem verdade é nem mentira.
515 – Importa
O que foge da pistola
E o que corre para ela,
Se cada qual lá se imola,
Que lhe importa, na sequela,
Como é que alguém o leria:
Coragem ou cobardia?
- Vai ter lá tempo sequer
De reparar no que quer!
516 – Restos
São os restos da nobreza
O que o burguês triunfante
Colhe como o que mais preza:
- Crê que a História segue
avante.
Assim é que o proletário
Bebe do capitalista
A pegada ao fado vário
E crê que inovou a lista.
Eis como as revoluções,
Na justiça que tenteiam,
Findam tendo os aleijões
Que o antigo já desfeiam.
517 – Procrastinar
Procrastinar significa
Sabermos o que fazer,
Não o fazendo, porém.
Se o não sabemos, implica
Que não é um adiar qualquer
Aquilo que me convém.
Já não é procrastinar,
O que estou mesmo é a pensar.
518 – Ego
É o ego aquele duende
Pequeno e feio que vive
Sob a ponte donde tende
A esconder-se onde se esquive,
Furtivo como um anão,
Entre a mente e o coração.
E é sempre do inconsciente
No escuro que ele nos tente.