CANTO  QUATRO

 

 

FACTOS  RETRATO,  A  FONTE  SÃO  QUE  BEBO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 382 e 518 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como ua mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    382 – Factos retrato, a fonte são que bebo

 

                                                    Factos retrato, a fonte são que bebo

                                                    No fértil manancial do dia-a-dia.

                                                    São marcos miliários pela via

                                                    Em que a lonjura leio onde me embebo.

 

                                                    A paisagem registo que anuncia

                                                    O vale fértil como o monte gebo,

                                                    O gesto limpo ou pegajoso ensebo

                                                    No azeite que transporta a almotolia,

 

                                                    Colo meus rótulos em cada esquina,

                                                    Escolho as pedras que pisar do chão,

                                                    No sentimento leio a que me inclina

 

                                                    E por mim dentro aponho o meu guião.

                                                    De afectos, pedras, laços me construo

                                                    E é neles que apoiado não recuo.

 

 

383 – Lojas

 

Corres lojas na avenida

Em demanda duma prenda.

Tostão a tostão, na lida,

Poupas custos, numa venda,

 

Dumas botas que ele sonha,

Dum anel que ela imagina…

Perdes a noite enfadonha

A querer traçar a sina

 

Só para que os olhos saltem

No espanto dum "é p'ra mim?!"

Para que espantos não faltem

Deus também o fez assim.

 

Um pôr-de-sol de encantar,

De flores campo virente,

Sem palavras vão deixar

Quem os olhe de repente.

 

Não digas nada, ouve só

O murmúrio do Universo:

"Gostas mesmo, grão de pó?

Para ti fiz este verso!"

 

 

384 – Português

 

O português da saudade

Não gosta, quer é matá-la.

No fim das férias se evade

E, ao trabalho quando abala,

Revela: "matei-as todas!"

- E a ternura mais sublime

Que gerou mil e uma bodas

Virou, nas palavras, crime!

 

 

385 – Primeiro

 

O primeiro aviador,

O primeiro homem no espaço,

O primeiro homem na Lua

- Vieram-se sobrepor

Num tempo igual, num abraço,

À esquina da mesma rua.

 

As vidas coincidiram,

Conhecemo-los a todos.

- Os avanços que eclodiram

De tão variegados modos

Num século mal corrido,

Tão depressa revolvido!

 

Pior é que nem deu tempo

De lhe medir o sentido:

Foi o maior contratempo.

 

Como há-de nosso porvir,

À medida que eclodir,

Por nós vir a ser medido?

  

 

386 – Borboleta

 

Bate as asas, borboleta,

Lá nas costas do Brasil,

Que um tornado tal completa

E, logo após, outros mil

Que pelo Texas além

Revelam, como convém,

Quanto tudo é uma cadeia

- E ninguém lhe escapa à teia!

 

 

387 – Caras

 

Dar de caras, muitas vezes,

Com uma oportunidade

É contemplar os reveses

E sem que haja qualquer safa

De quem olha de verdade

Uns joelhos de girafa.:

- De facto, daquela altura

Quem não vai sentir tontura?

Como não se precipita

No abismo que de lá fita?

 

 

388 – Reflexo

 

Reflexo do pôr-do-sol

Em cambiantes cor-de-rosa

Nos bulcões esfarrapados,

O menino põe no rol

Dos espantos uma glosa:

- O céu tem lábios pintados!

 

 

389 – Vergel

 

A vida é como um vergel

Recém-coberto de neve:

Seja o que for que me impele,

Deixarei, pesada ou leve,

Nítida em meio ao nevão,

Minha pegada no chão.

 

 

390 – Juventude

 

Temos juventude a mais:

Os que a já são pela idade,

Os que a querem ser demais

E os que aceitabilidade

Só terão com marcas tais.

 

- Depois vamo-nos queixar

De o mais já não ter lugar!

 

 

391 – Circo

 

Chega um circo à região,

Pinta um cartaz e anuncia:

Eis o que é divulgação

Feita ali no próprio dia.

 

Se depois um elefante

Pegar de cartaz às costas,

Se o passeia rua adiante,

São da promoção apostas.

 

Se o elefante pisar

Canteiros do presidente,

É publicidade a par

Do que narre toda a gente.

 

Se o presidente se rir

Da conjuntura e a comenta,

Relações públicas ir

Cultivando é o que isto inventa.

 

- Eis como a publicidade

Trepa, degrau a degrau,

E os pegos, quando os invade,

Nos assalta vau a vau.

 

 

392 – Doença

 

Sabe o médico a doença

De que alguém irá morrer

Mas não lhe lavra a sentença,

Sempre à espera, para ver…

 

É que a morte conviria

Só contá-la para alguém

Quando se encontrara a via

Para escapar-lhe também.

 

A morte é uma aberração

Perante a vida e tamanha

Que mesmo o crente diz não

À prenda que dela venha.

 

 

393 – Profetas

 

Os optimistas encaram

Os pessimistas tal sendo

Os profetas que mascaram

De desgraça o que vão vendo.

O pessimista compara

Os optimistas a um homem

Que do arranha-céus tombara:

Enquanto os metros se somem,

 

Grita a alguém que da janela

Vê com horror a desgraça:

"Por enquanto a vida é bela,

Até aqui nada se passa!"

 

- Esmagar-se um nada à frente

Poderá ser agradável

Se o trajecto descendente

For de vez inevitável?

 

 

394 – Ambas

 

Uma guerra que pudera

Destruir ambas as partes

A paz perpétua nos dera

À custa de malas-artes:

É o preço que dela emana

- Enterrar a espécie humana!

 

 

395 – Fé

 

Toda a fé, como um chacal,

Entre as tumbas se alimenta:

A esperança mais vital

Das dúvidas mortas, mal

As colhe, se reinventa.

 

- E eis como, ao fim, nos aumenta.

 

 

396 – Colhe

 

Do político, o cientista

Colhe louvor, se apresenta

De matar gente a conquista

Que intérmina se acrescenta.

Apelos à contenção

Rejeitados logo irão.

 

Por ingénuos os vão ter,

Incompetentes, de resto.

Sempre os há-de transcender

O que requer tal apresto:

Criar armas é ciência,

Usá-las é doutra essência.

 

São como um adolescente

A quem um bólido ofertam

E a que ninguém acrescente

Regras, leis, com que o apertam,

Nem carta de condução:

Só quer pressa, na ilusão!

 

Perigos, quem diz perigos?

A voar, cabelo ao vento,

Isso é coisa de inimigos,

De inveja daquele invento!

- E então, na primeira esquina

Voará pela ravina.

 

 

397 – Coragem

 

A ideia dum presidente

Sem coragem para ir

Com um gesto derruir

O mundo inteiro, é evidente

 

Que é desmoralizadora

Para quaisquer militares…

- Tal é o gesto que demora

Toda a paz que conquistares.

 

 

398 – Lembrança

 

A lembrança pode ser

Evento enlouquecedor:

Escapa se a quero ter,

Abate-se com fragor

Se a quer esquecer quenquer.

Quando de voltas trocadas,

Memórias são punhaladas.

 

 

399 – Lago

 

Há no lago ondulação.

Chego à margem, com a mão

 

Dou palmadinhas nas águas

Para acalmá-las das mágoas.

 

Com tal, porém, só provoco

Mais ondas em quanto toco.

 

Assim é na minha vida

E mundo fora, em seguida:

 

- Às vezes, um remedeio

Agrava um erro só meio.

 

 

400 – Talento

 

Cada um de nós possui

Algum tipo de talento

Que pode desenvolver

Com treino com que evolui,

Como ao músculo que tento

Treinar um dia qualquer.

 

Quanto mais utilizarmos

Qualquer músculo fanado,

Tão mais forte é de o tornarmos,

Como ao talento implantado.

 

Nada nos vem desde a origem

Com tamanho de vertigem.

 

 

401 – Comprar

 

Afirmam que com dinheiro

Poderemos comprar tudo.

É mentira. Se me inteiro,

O que encontro, sobretudo,

 

É poder comprar comida,

Porém, jamais o apetite.

Remédios, sim, de seguida,

Mas a saúde isto omite.

 

Comprarei conhecimentos

Mas não a sabedoria.

De brilhar os condimentos,

Não a beleza em que cria.

 

Divertimentos, também,

Não, porém, uma alegria.

Relações quantas convêm,

Não amigos, se os queria.

 

E criados, certamente,

Mas jamais a lealdade.

O descanso é ponto assente,

Mas não a paz que me invade.

 

Com dinheiro posso obter

Em tudo o casco do bolo

Mas nem num caso sequer

Adquirirei o miolo.

 

 

402 – Liberdade

 

Sem liberdade a criança

Para explorar e falhar

Menos criativa dança,

Nem é persistente, a par.

 

Sem autonomia, todos

Ir-se-ão sempre comportar

Como crianças, nos modos,

No que é ser e no que é estar.

 

 

403 – Competente

 

Um médico competente,

Se incompetente se julga

Numa doença presente,

Outro médico promulga

Que o doente então consulte

Que aquela doença ausculte.

Um médico competente

Nem mesmo a si próprio mente.

 

 

404 – Optimista

 

O optimista sofre menos

Com os percalços da vida

Porque só sofre os percalços,

Não sofre com os acenos

Da eventual recaída

Em fados que ao fim são falsos.

 

Mantém a proximidade

Com o que é realidade.

 

Preocupa-se o pessimista

Com o pior a ocorrer,

Embora jamais ocorra,

Enquanto exulta o optimista

Do bom que há-de aparecer,

Embora em sonhos lhe morra.

 

O saldo do que é melhor

Corre sempre a seu favor.

 

 

405 – Princípios

 

"De seus princípios que é feito?

Não o estou reconhecendo,

Ao radicalismo atreito,

De homem culto sem o jeito

Superior ao povo horrendo.

 

Todo o indivíduo que é culto

Deveria estar de acordo

Que com um fascista inulto,

Um nazi sempre insepulto,

Como um pedagogo o abordo,

 

Já que temos de envidar

Esforços a converter

Esta franja, a conquistar,

Ouvir mesmo, se calhar,

Em lugar de os combater."

 

- O todos os liberais

E social-democratas

Com argumentos que tais

Ao lobo abrem os portais

Com que a grei ao fim tu matas.

 

 

406 – Graus

 

Há vários graus de verdade

Em toda a religião:

Todas vêm da divindade,

Mesmo Deus buscado em vão.

 

A religião é imperfeita

Porque é sempre transmitida

Por homens, a raça eleita

Imperfeita toda a vida.

 

Todas são, pois, por igual,

(Se bem que numa me aferro)

Mistura de bem e mal,

Parte verdade, parte erro.

 

Há religiões diferentes.

São simplesmente caminhos

Que nos levam, entrementes,

Ao fim a sermos vizinhos.

 

 

407 – Baptizado

 

Foi baptizado em criança,

Não foi de própria vontade.

Então a fé que ele alcança

Não tem autenticidade.

 

Mesmo quando ele se esforça

Por rigoroso cumprir,

É mera de hábito força,

É fé de pronto a vestir.

 

Quando assim é o mundo inteiro,

Afinal, de que me abeiro?

 

 

408 – Mistério

 

Há um mistério irracional

No coração escondido

De qualquer um, por igual.

A razão diz que o prazer

Deverá ser prosseguido

Nas coisas belas que houver.

 

Porém, na realidade,

Vamos encontrar beleza

No que é feio de verdade,

A ponto de a fealdade

Ser que deveras se preza.

 

Este instinto basilar

Tem verdadeira alegria

Na depravação humana…

A que extremo vai chegar

Do coração a magia

Nesta insondável tisana!

 

 

409 – Nome

 

Dei nome a cada animal,

Deste modo os recriei

Pelo molde racional

Do que sou e que farei.

 

E deles me apoderei

Com jeito de imperador,

À minha pele os fixei,

Cosi-os em meu redor.

 

Imiscuído no destino

Deles e no meu também

O nosso equilíbrio afino

Como aos humanos convém.

 

Se me levanto os levanto,

Ao afundar-me os afundo,

Partilhamos riso e pranto:

- Todo o destino do mundo.

 

 

410 – Gestos

 

Quando alguém pensar em Deus,

Como o pensar nos conforma,

Vai ser Deus nos gestos seus

Tanto quanto o gera a norma.

 

Tanto quanto a criatura

O pode ser em figura.

 

 

411 – Mal

 

Ninguém pode dizer nada,

Nada mal acerca dele.

Todos, porém, na jornada,

Ao salvar a própria pele,

 

A outrem mal facilmente

Farão, quando convencidos

Que o mal assim fica ausente

Deles: acabam perdidos,

 

Uns dos outros vitimados,

Pouco importa que pecados

À inocência são urdidos.

 

 

412 – Degredo

 

Quem manda gente ao degredo

Engana-se quando pensa

Que vence um homem por medo.

Matá-lo pode a sentença,

 

Vencê-lo, contudo, não,

Que não há força que o vença

Se, afinal, tiver razão.

 

 

413 – Fiel

 

Ser fiel mas só por medo

É mais que por convicção:

Quem tem medo queda quedo,

As convicções mudarão.

 

Questão é a fidelidade

Que procuras de verdade:

- É só corpo ou coração?

 

 

414 – Adversidades

 

Adversidades, rosários de cartas

Enfiadas na linha do destino,

O sábio passa-as calmo e clandestino.

 

Por tal serenidade é que o apontas:

Nem gritos, nem protestos, nem lamentos,

- A indiferença a nu dos elementos.

  

 

415 – Mesmo

 

As coisas do mesmo mundo

Saltam para se juntarem.

É o que o tornará fecundo

Antes de elas o castrarem.

 

Já nos mundos diferentes

Gerados em liberdade

Sempre os separam ingentes

Abismos de eternidade.

 

É para saltar os fossos

Que somos heróis e santos.

E por mais que haja colossos

Há eternas sombras nos cantos.

 

 

416 – Fácil

 

Quão mais fácil suportar

É o conhecido inimigo

Que tentar-se colocar

Dum incógnito ao abrigo!

 

Como prevenir o fado

No meio do inesperado?

 

 

417 – Espelho

 

Olho o espelho e eis alguém

Que me fita ali defronte.

Espreito os olhos que tem,

Que me estendem uma ponte.

 

É o outro que mora em mim,

Que deveras ignorava,

Que habita no meu confim,

Que sou eu e nem sonhava.

 

É o alarme do real,

Ser vivo que anda comigo,

Indiferente ao sinal

De ser de mim ao abrigo.

 

Aparição fulminante

De mim a mim mesmo ali,

Ente presente e distante,

Me anuncia o que esqueci.

 

Dá-me e furta-me este ensejo

De me agarrar que desejo.

 

 

418 – Ensina

 

Ninguém nos ensina nada,

O que se aprende que importa?

Funda, a sina destinada

Somo-la em cada pegada

Quando ela nos bate à porta.

 

Ensinar, neste entretanto,

É confirmar riso e pranto.

 

O cheiro da novidade

Só engana se nos invade.

 

 

419 – Lembro

 

Lembro às vezes o passado,

A tentar reconquistar-me.

Sei que nada explica nada,

Mas donde vem tanto gado

 

Silencioso, sem alarme,

Em doméstica manada,

Por mim fora, desde antanho,

Neste cortejo tamanho?

 

São pontos de referência,

Geodésicos marcos vivos

Nos mapas de minha ausência

Que me saltam dos arquivos.

 

Sabe-me bem relembrar,

Jorra a vida borda fora

Por bem longínquas paragens.

E eu dali a borbotar

Não tal quem a vive agora

Mas quem descobre as voragens

 

Em que lá mora submerso.

Sou a pura testemunha

Que o bebé beija no berço

E a fada má não se opunha.

 

 

420 – Música

 

Ai esta música ainda,

A do cântico sagrado,

Eco da avenida finda

Perdida aí nalgum lado!

 

Não ainda mas sempre ouve

A melodia de antanho

Quem por bem das perdas houve

Que triar perdas e ganho.

 

O descrente é um auditor,

O crente não ouve, canta:

Quem a musa em si vai pôr,

Não ouve o que o mundo espanta.

 

 

421 – Rua

 

Rua estreita e distorcida

Não é do tempo ou silêncio

Duma geração perdida

Por eras de curso imenso.

 

É apenas meio comando

Aos reflexos que eu tiver,

Simplesmente um como e um quando

De pés, mãos ou nem sequer.

 

Acordar alma ao passado

Requer calma e mais cuidado

 

Não é correr simplesmente

Pegadas dum tempo ausente.

 

Mais isto as tem apagado

Do que as tem para o presente

Alguma vez evocado.

 

 

422 – Meus

 

Estas mãos, estes meus pés,

Os meus são e não são meus,

Sou-os a eles de vez

Mas deles recuso os véus.

 

Vivo-os, são o meu ente

E vejo-os também de fora,

De cima, como um ausente

Que um instante se demora.

 

E, neste distanciamento,

Deva-lhes o que lhes devo,

São tão alheio instrumento

Como o lápis com que escrevo.

 

 

423 – Factos

 

Factos que me estruturaram,

Gesto a gesto me erigiram,

Ainda minhas glebas aram,

Lançam puas que me firam.

Pelos caminhos desertos

Aguardam, montam ciladas,

Rebentam à esquina, certos

Como certas punhaladas.

 

Algo em mim será daqui,

Então eu serei também

Do pó de que me cobri

Eternamente refém.

 

 

424 – Fugaz

 

A vida é o fugaz instante,

Não cresce nem envelhece,

A irradiar adiante

E atrás, para quanto esquece.

 

O tempo não passa então

Por mim como um corredor,

Eu sou quem o tem à mão,

De mim parte ele em redor.

 

O tempo afinal sou eu

Sendo eu mesmo a me viver,

Vibrando neste escarcéu

Miraculoso de ser.

 

 

425 – Arrepender-me

 

Arrepender-me de quê?

É cada dia um rebento

A germinar desde o pé

De minha árvore do tempo:

 

Não é possível, eu acho,

Sem ter árvore por baixo…

 

 

426 – Ricos

 

Os ricos são mais sovinas.

O pobre é quem dá valor,

Arredondando as esquinas

Da vida com o suor,

Ao que vales e ao que valho,

Que nele pesa o trabalho.

 

 

427 – Deitaram-se

 

Branco e negro, pobre e rico

Deitaram-se a noite atrás.

Não acordarão em paz:

Da morte os tolhe o fanico.

 

Por cinco minutos só

De calor dariam tudo,

Por dez minutos de pó

Da terra que lavro mudo.

 

Portanto, de que te queixas?

Se não gostas de algo, muda,

Ou muda-lhe as tuas deixas

De modo que ao fim te acuda.

 

Branco e negro, pobre e rico

Deitaram-se a noite atrás…

- Tens a sorte que te apraz

Se contigo aqui me fico.

 

 

428 – Pontos

 

Quatro pontos cardeais,

Norte, Sul, Oeste e Leste,

Tem o Ocidente de seu.

A China tem dois a mais:

Além dos quatro que leste,

Acrescenta a Terra e o Céu.

 

 

429 – Rapaz

 

Um rapaz tem o apetite

Dum cavalo de corrida

E a digestão que suscite

A um traga-espada a comida.

 

Tem duma bomba a energia,

Dum gato, a curiosidade,

Do tirano, a goela fria,

Mais fantasia que agrade.

 

Tímido como a violeta,

Brusco como uma armadilha,

O entusiasmo que o afecta

Embravece o que perfilha.

 

Quando opera alguma coisa

Parece que tem condão:

Cinco polegares poisa

E todos duma só mão!

 

 

430 – Programa

 

Num programa de TV

Ela busca a relação,

Prefere ele o que lhe dê

Mil aventuras de acção.

 

O miúdo é hiperactivo,

A rapariga, serena.

Ele o espaço molda ao vivo,

Ela na palavra engrena.

 

Não é, não, a educação,

Cultura, que os escalona:

Só moldam o que haja à mão,

- Diversa testosterona.

 

Sem a força pioneira,

Desregrada e vulnerável

Deste, é certo, a Terra inteira

Era calma, justa e fiável,

 

Mas decerto era também

Mais cinzenta e fastidiosa,

- Um lugar onde ninguém

Queria a vida que goza.

 

 

431 – Quebra

 

Dizemos algo indiscreto.

Imaginamos após

Repor a quebra do veto

Pedindo a outrem que seja

Mais discreto do que nós

Antes que mais mal se veja!

Um segredo acaba aqui,

Quando a porta lhe eu abri.

 

 

432 – Primavera

 

A Primavera bonita,

Dantes feia, lama, estrume,

Húmus que o podre concita,

Muita humildade presume.

 

Ajuda-me a compreender

De humilhante o que há na vida,

O que tombar me fizer

Na sarjeta fementida.

 

Poderá fertilizar

O solo no qual de novo

Algo houver de germinar

Com a marca do renovo.

 

 

 

433 – Escuro

 

Bem no escuro do cinema

Sou convidado a assistir

Mais que ao filme, antes ao poema

De nele entrar, deixar-me ir…

 

Ai quantas vezes, ai quantas,

Ao sair, nós nos sentimos,

Por uns momentos, às tantas,

Deveras o herói que vimos!

 

Poderemos esquecer

Bem rápido os pormenores

Que a emoção que se viver

Fulge em mil e um arredores.

 

 

434 – Valor

 

Valor dum homem deveras

Só uma família o conhece.

O triste e a dormir de esperas

No trem que não aparece,

 

O maçador do escritório,

O taciturno da empresa,

- O esteio nada ilusório

Pode ser de quem mais preza,

 

Acolhido com abraços

E as novidades do dia,

A dar conselhos, a espaços,

Num alfobre de alegria.

 

Não mais o senhor fulano

Mas o papá bem-querido,

Não o irrelevante do ano

Mas o sábio preferido,

 

Bem corajoso e capaz,

Paciente e muito afável…

- De respeitado e veraz,

Quem há mais incontornável?

 

 

435 – Poeta

 

O poeta, nos celeiros

Tem os invernos vazios,

Só nele cabem inteiros

Da vida e da morte os fios.

 

Correr a vida a cantar,

Além de vencer a morte,

É na vida acreditar

Nela se jogando à sorte.

 

 

436 – Rezava

 

Rezava quando batia

A qualquer porta de acaso.

Se, porém, na reza cria,

Outro mote vem ao caso:

 

Não rebenta o pé de malva

Ao cantar salve-rainhas,

A boa acção é que salva,

Não há no céu ladainhas.

 

 

437 – Vivo

 

Quando um padre não revive

O vivo da tradição

Como à nova geração

Transmite o que quer que avive?

 

Símbolos exteriores

Apenas vai breve usar,

Vagas formas em lugar

Do sangue que há nos valores.

 

A vida destes ausente,

Só dogmas e rituais

Descorados e banais,

Rigidez que tudo mente,

 

Ficarão bem opressivos.

Sem ver o que o mundo quer,

Intolerantes, quenquer

Vê que já não estão vivos.

 

Que admira que a juventude

Se alheie de quem a ilude?

 

 

438 – Vemos

 

Ao meditarmos e orarmos

Vemos que onda é feita de água,

Que a história, feita de mágoa,

É de paz, ao bem visarmos.

 

Viver no mundo das ondas

É nas águas já tocarmos;

Se nas ondas nos ficarmos,

Sofreremos, mas, se sondas

 

Que uma onda é apenas água

Terás o maior alívio.

É só retirar do oblívio

A matriz, pondo-a na frágua.

 

 

439 – Candeia

 

Se a candeia andar acesa

Desato a ver dentro em mim

E em redor, com mais justeza,

A fundura até ao fim.

 

É importante olhar a sério

Das coisas toda a inconstância,

Do não-eu este mistério

Por que anseio na ignorância.

 

Não são nada negativo

A inconstância e o não-eu,

São a ponte do que vivo

Ao real que me fugiu.

 

Não nos causam nossa dor,

Dói-nos é a desilusão

Ao permanente supor

O que, instável, tomba ao chão,

 

Ao crer que vai ter um eu

O que um eu jamais terá.

Instável quanto ocorreu,

Muda de lá para cá,

 

Não tem uma identidade

Permanente com que conte.

Vazio, o não-eu invade

Dum falso eu o horizonte.

 

Ele é apenas inter-ser,

Tudo é feito do demais,

Nada vai prevalecer

Dos outros sem dar sinais.

 

Tudo é interpenetração,

Que tudo o mais contém tudo,

Interdependentes são

Os entes a que me grudo.

 

Cada qual depende então

De tudo para existir.

Inter-existir: desvão

De mim para o mais ao ir.

  

 

440 – Cinzel

 

Nas mãos certas, um tractor

Era um cinzel de escultor,

 

Mais vulgarmente, porém,

É uma fúria que contém.

 

Quanto mais sofisticados

Na técnica nos tornamos

Mais ficamos isolados

Da condição que incarnamos.

 

A nossa espontaneidade,

Cara não civilizada,

Se a perdemos de verdade

Na natureza domada,

 

O que então domar queremos

É nosso próprio desejo,

Medos selvagens que temos,

Sem de os ver lhe dar ensejo.

 

Agarramo-nos ansiosos

À matriz civilizada,

Tal se fora, de assentada,

Perder-se por entre os gozos.

 

De repente reparamos

Que de nós nos desatámos.

 

Perdido nosso interior,

Somos então só furor.

 

 

441 – Dose

 

A dose de narcisismo

Do esforço de nos mantermos

Civilizados, o abismo

Nos cava de justos sermos.

 

Ficamos apaixonados

Pelas nossas criações

E acabamos enciumados

Das belas imposições

 

Com que a natureza nos brinda.

Amamos vangloriar-nos

De inventos e mais ainda

Da descoberta adornar-nos.

 

Ignoramos sentimentos

De respeito e reverência

Da natura por eventos

De criativa evidência.

 

A bazófia prometeica

Do político, empresário,

Contrasta com a proteica

Humildade do fadário

 

Dos sábios de antigamente:

Eles nunca ignorariam,

Não, que inelutavelmente

Do cosmo as leis nos moviam.

 

 

442 – Escapo

 

Escapo à comum vivência

Numa história bem contada,

Tempo e lugar, de assentada,

Mudam logo de evidência,

 

Ligo-me a gente que não

É mais que imaginação.

 

A atenção pode prender

De tal maneira que acaso

Nem o meu trabalho aprazo

Nem o meu sono irei ter.

 

O feitiço tanto encanta

Que o cotio nem preocupa

E o que nele então se implanta

E todo o sangue lhe chupa

 

É minha alma a ser servida

Com a magia da vida.

 

 

443 – Automóvel

 

Automóvel é estatuto

Como económico nível,

Objecto de poder bruto…

Gera um condutor terrível:

 

Ele é rei, o rei do asfalto,

Pode ameaçar o peão

Que dele a via, num salto,

Atravesse rente ao chão.

 

Sente-se, aliás, protegido

Pela máquina-couraça,

Cavaleiro destemido

Ao mundo a mostrar a raça!

 

 

- Então, a morte na estrada

É uma ficção consumada.

 

 

444 – Escalo

 

Quando escalo uma montanha,

Tanto quanto estes meus pés

É a montanha que me apanha,

Me arranca de mim resvés.

 

Quando pinto, é meu pincel

Que me impõe o resultado,

Como a tinta ou o papel,

Quanto a mão que houver pintado.

 

O mundo é meu conivente

Naquilo que nele tente.

 

 

445 – Agarro

 

Agarro numa palavra

Tal se for a ferramenta,

O texto é de minha lavra,

É de mim que ele se inventa.

 

Daquela palavra ignoro

Que tem personalidade

E vida própria e decoro,

Ao viajar pela cidade.

 

O mágico, porém, mostra

Que a palavra não precisa

De esconder, como uma ostra,

O sentido que ela visa

 

Para dar encantamento.

Basta-lhe, para a magia,

Cantar no sopro do vento

E voar na fantasia.

 

 

446 – Eras

 

As palavras têm família,

Têm infância e crescimento,

Vivem eras de vigília,

Como outras de esquecimento.

 

Este relacionamento

É que dá corpo à palavra

Duma forma, de momento,

Que a definição não lavra.

 

Posso mais encantamento,

Mais magia lhe encontrar,

Se menos ao elemento

Olho que significar

 

E mais vir o corpo dela:

Menos o senso que tem,

Mais o contra-senso que ela

Presente nos traz também.

 

 

447 – Conversa

 

Uns minutos encantados

Duma conversa sincera

Mais efeitos nos curados

Podem ter que anos de espera,

Por análise a tratar-se

Do que a vida lhes esgarce.

Aliás, psicanalista

Destes nunca vem na lista.

E quando ele é quem opera

Aquele abcesso de vida

Melhor que a do especialista

Era a cura conseguida

De forma assim imprevista.

Tanto, afinal, prepondera

Uma conversa sincera.

 

 

448 – Sagrado

 

Quando o sagrado se mostra,

No mesmo gesto se oculta:

Revela uma vaga amostra,

Do mais fica a gente inculta.

 

Então é misterioso.

Mesmo por se revelar

É que finda a se ocultar

Nas profundezas que gozo.

 

 

449 – Nume

 

O nume é o gesto divino,

Não o humano que o acolhe,

Não é da montanha o pino,

Nem, ao fim, no cais o molhe,

 

Não é do aperfeiçoamento

Ou da consciência moral.

É do aprendiz um momento,

É da criança o fanal

 

Com o poder de admirar

E a falta de ambição dela.

Quando menos o buscar

É que me espreita à janela,

 

Quando abrimos nossos olhos

Despreocupados de metas

É que os numes, sem escolhos,

O céu cortam de cometas.

 

Devêm lugar-comum:

Atrás da nuvem sol-pôr,

A Lua em penhasco algum

De azul a pintar-lhe a cor…

 

- E em mim este encantamento

Sem preço, a qualquer momento.

 

 

450 – Teologia

 

A teologia que busco

Não mistura tradições,

Pensa calmo, pensa brusco

Espirituais questões

Com desafios primários

Com que lidamos, diários.

 

É um alicerce de quem

Mantém prática de igreja

E uma ponte que convém

A quem à margem se veja:

Extrai uma explicação

Da radical comunhão.

 

Em todos os tipos de arte

E literatura, enfim,

Lê sentidos num aparte

Que unirá princípio e fim.

Única, individual,

Molda-se ao gosto pessoal.

 

Sempre em vista de quem serve

É a fé que o mundo respeita

E que cada qual obteve

Sem opressão nem despeita.

Entroncando na raiz,

De nós todos é a matriz.

 

 

451 – Estrelas

 

Nós somos as estrelas e cantamos

Porque cantamos com a nossa luz,

Somos aves de fogo pelos ramos

Abrindo asas no céu que nos seduz.

 

Nossa luz é uma voz de encantamento,

Abrimos uma estrada para as almas

Na jornada da morte, cujo invento

São as estrelas pelas noites calmas.

 

No remanso final serena o canto:

Das estrelas acena-nos o encanto.

 

 

452 – Pequenos

 

Podíamos entender

Que do macrocosmo imenso

Somos uns pequenos mundos:

Partilhamos-lhe do ser

E de seu fulgor intenso

Somos os ovos fecundos.

 

Do todo somos o pleno,

Porém em ponto pequeno.

 

 

453 – Fora

 

Em vez dum céu interior

Poderemos ver o céu

Tal nosso interior sem véu

Para fora a nos expor.

 

Macro-microcosmo em força,

Alma o céu terá qualquer

Que coincida, a bem dizer,

Com a que em nós cá se esforça.

 

 

454 – Promove

 

Uma espiritualidade

Que promove o encantamento

Não é duma variedade

De única fé, pensamento:

Do sagrado vive o encanto

De cada instante e recanto.

Nas mil e uma humanas vias

Outras tantas vê magias.

 

 

455 – Sondamos

 

Sondamos a opinião,

Tomamos a direcção

 

 

Da regra da maioria.

Mas o encantado diria:

 

Deveras a fundação

Vem-me da imaginação

 

À procura de sinais

Dum sentido com os mais.

 

As nossas escolhas são,

Por suposto, racionais.

As deles, porém, jamais,

Que por sagradas se dão.

 

Nós visamos o objectivo

Definido claramente.

Eles visam algo vivo:

- A revelação urgente!

 

 

456 – Seria

 

Como seria agradável

Ter sexo sem compromisso,

Sem ter de cuidar mais disso,

Sem a dor inominável

 

De emoções desencontradas,

Separações e uniões!

Contudo, a tais pretensões

Quaisquer almas, sublevadas,

 

Enjeitam, porém, de vez,

Que uma vida própria têm,

Vontade que lhes convém:

A tentativa talvez

 

De tal sexo aventureiro

Acabará dando errado,

Que finda o trilho encetado

De emoções num atoleiro.

 

É que nós o corpo humano

A ver nos condicionámos

Como só químicos ramos

E tubagens, cano a cano,

 

Quando ele é fala expressiva

Duma enorme subtileza,

De cambiantes, de beleza,

É totalidade viva,

 

Intimamente ligado

A emoções, a sentimentos,

Diáfano em quaisquer momentos

E de sentidos pejado,

 

De significados cheio,

Poético nos órgãos todos,

Belo de múltiplos modos

E capaz  de infindo enleio.

 

Este é o corpo que há no sexo:

De alma tanta permeado

Que se tal é sonegado

Tudo ficará sem nexo.

 

 

457 – Corvo

 

Às vezes tenho remorsos,

Negro corvo a alimentar-se

Nas sombras, nos desperdícios,

Destroços de alheios torsos

No crepuscular disfarce

Em que virtudes são vícios.

 

Remorsos cruzam a vida,

Do que podia ter sido

E não foi ou se perdeu

Depois de lhe dar guarida,

Do que à vida era devido,

Dito e feito em tempo meu,

 

E que a tempo jamais foi

Ou então o foi demais.

Os desencontros eternos,

O desacerto que dói,

Sempre trocando os sinais

Que os céus mudam em infernos.

 

A manhã sempre desperta

Do que fez e desfez noite

Por trás dum rumo vazio:

A luz do dia é deserta

De dunas em que me acoite…

- Onde é que perdi o fio?

 

 

458 – Sexo

 

Se o que é o sexo quer saber

Reflicta no que é uma flor,

Na beleza que tiver,

Que aos sentidos traz fulgor.

 

Depois toda a natureza

Passe em revista à janela,

Veja como o mesmo preza

E o lugar que a flor tem nela.

Uma flor, seja o que for

Que a figura fascinante,

A sexualidade a pôr

Apenas nos anda diante.

 

 

459 – Rumo

 

No sexo nós incutimos

Poder e rumo aos desejos

Mais profundos que sentimos,

Dele nos mil e um harpejos.

 

Os prazeres que nos traz,

Sexo brando ou agressivo,

Exploratório, inventivo,

Jogos de guerra e de paz,

 

Todo o vestir e o despir,

Partes do corpo, mil beijos,

Ambientes, lugar onde ir,

Tudo infindos são ensejos

 

De tão íntima paixão

Que nos mostram quem nós somos,

Aonde as almas irão,

Os complexos que aí pomos,

 

As nossas inibições,

Obstáculos que enfrentamos…

- No sexo temos visões

De quanto privados ramos

 

Nas almas moram, senhores

De secretos pormenores

 

Que nem mesmo imaginamos

E ao fim nunca iluminamos.

 

 

460 – Erro

 

Cometo um erro ao cuidar

Que é física a percepção:

Qualquer humano lugar

Envolve imaginação.

 

Vivemos sempre uma história

Com cercadura de imagens:

Imaginário, memória

É que entendem as mensagens.

 

Perceber é imaginar:

Na física principia

Mas vem-no a determinar

Finalmente a fantasia.

 

Assim é que a astronomia

Não vê por fim as estrelas,

Só o poeta na poesia

É que acabará por vê-las.

 

Quem toda a vida comer

Da mãe os bons cozinhados

Toda a vida a reviver

Os vai em todos os lados.

 

Sexo é física experiência?

Esquecemo-nos então

Que no êxtase há uma evidência

De imensa imaginação!

 

Do sexo quando banir

Toda a poesia que tem,

Irei, do fundo ao nadir,

Perdê-lo de vez também.

 

 

461 – Separação

 

Talvez tenha de entender

Que a separação histórica

Entre espírito e matéria,

Com a psíquica que houver,

Quer real, quer metafórica,

Entre corpo e alma sidérea,

O transcendente e o sensível,

Entre tempo e eternidade,

Entre a virtude e o desejo,

- São a neurose visível,

Um distúrbio que me invade,

Sempre a vedar-me este ensejo

De inteiro ser e visar-me,

Pois levam-me a que desarme:

Rasgam-me por todo o lado,

No profano e no sagrado,

Em política, em negócio,

Ao trabalhar como em ócio…

 

- Sou sempre este dois-em-um

E, ao fim, nem serei nenhum.

 

 

462 – Mora

 

Nos homens e nas mulheres

Mora a ninfa e, quando está,

Dela à presença acolá

Reagem todos os seres.

 

Com muita inabilidade,

Jeito acaso de quem reza,

Veneramos a deidade

E chamamos-lhe beleza.

 

 

463 – Ilumina

 

O amor ilumina o brilho

Percebido na beleza.

Parte do sexo, o vidrilho,

Atracção da natureza,

 

Desejo e satisfação

Sem carácter permanente.

Fulgor de alma, em expressão,

Torna o rosto refulgente.

 

Percebemos estes raios

Brilhando invisivelmente

Num rosto que traz desmaios

De encantamento a quem sente.

 

Para os mais, sem atractivos,

Pelos padrões actuais

O mais comum dentre os vivos,

Só tu vês outros sinais.

 

Podes ficar fascinado,

Mesmo incapaz de pensar,

Ansiando, desesperado,

Nunca dele te afastar.

 

Tamanha atrai a beleza

Que tudo o mais se despreza.

 

 

464 – Celebrações

 

Celebrações primitivas

Do falo são riso, graça,

São louvor, festas e vivas,

Alegria em toda a praça,

- O que a todos os congraça.

 

Não é lá simbolizado

Pelas imagens antigas

De árvore, touro danado,

Nem dos raios pelas brigas

De mil forças inimigas.

 

Ao contrário, representa

Todo o poder que há na vida

E que, ao fim e ao cabo, assenta

Na grandeza desmedida

Das forças da natureza

Que a imagem sagrada preza.

 

É o falo aquele poder

Penetrando em corpo de homem

Como também de mulher,

A fonte donde se tomem

Vitalidade, energia,

Criatividade algum dia,

 

Para então seguir em frente,

Sobreviver, progredir.

Não é o Eu suficiente

Para uma vida erigir,

Há uma força natural

Que me invade e é sexual.

 

O sexo é que gera a vida:

- Isto é que à festa convida.

 

 

465 – Quando

 

Quando os pais acostumaram

Os filhos ao que estes queiram,

Quando os filhos já deixaram

De olhar aos pais que se abeiram,

 

Quando os mestres têm medo

Dos alunos e preferem

Fazer-lhes, mesmo em segredo,

As vontades que tiverem,

 

Quando os jovens já não têm

Pela lei e autoridade

Respeito, nem por ninguém,

Tudo arbitrariedade,

 

- Aí temos, com pujança

E a carregar energia,

O inferno que nos alcança:

O início da tirania!

 

 

466 – Talha

 

Somos Caim e Abel,

É o que teremos à mão.

Dali se talha o papel

De que depende a função.

 

Somos madeira de sonhos

Humilde e maravilhosa,

De cadafalsos medonhos

Ou de altar que amor desposa.

Somos este tudo e nada

Sempre a cobrir a jornada.

 

 

467 – Ante

 

Ante a banca de revistas

Cheias de fotografias

Em vários graus de nudez,

Filas de homens traçam pistas,

 

Olhando aquelas magias

Cada qual de sua vez.

O estado em que eles se vão

É mesmo em contemplação.

 

Deveras por que ansiamos

É pelo que reprimimos:

O desejo que exploramos,

Mistérios que contemplamos,

Sexo que mal intuímos,

A intimidade perdida,

Todo o erótico da vida…

 

As revistas, as revistas

Nas bancas ali no chão

São simbólicas conquistas,

São reconciliação.

 

 

468 – Imagens

 

As imagens em geral

Espírito poderoso

Para a vida, crucial,

Contêm misterioso.

 

Perturbadoras no modo

Como rompem as amarras

Com qualquer moral engodo,

Mais perturbam com as garras

 

Duma espiritualidade

A ressumar obviamente

Da bruta carnalidade

Que sempre são fatalmente.

 

 

469 – Cultura

 

A nossa cultura quer

O controlo inteiro ter.

 

E ser capaz de exprimir

O que actuar e sentir,

Verificar e saber

Que é que andamos a fazer…

 

Não tem dela aval e abono

Que eu tenha facilidade

Na atitude de abandono

E de adaptabilidade.

 

É neste desequilíbrio

Que dela sofro o ludíbrio.

 

 

470 – Engloba

 

Moralismo engloba medo

De não ser bem acolhido.

Cada qual quer, desde cedo,

Ser elogiado e querido.

 

No entanto, esta pretensão

Visa a paixão sexual

Acaso em oposição,

Num desacordo total.

 

Tentamo-nos controlar,

Mas repressão simplesmente

A paixão vai aumentar

Na via em que tudo mente.

 

Quão mais a paixão aumenta

Mais o complexo moral

Forte e negativo tenta

Conter o grosso caudal.

 

A crescente frustração

Em nós próprios se concentra,

Ou noutrem, numa nação,

E à humanidade se adentra:

 

Somos a bomba explosiva

A matar tudo o que viva.

 

 

471 – Orgulho

 

O orgulho do intolerante

Não vê o preceito moral

Que influi pela vida adiante

E a que se gruda, formal.

 

É assim que os ambientalistas

Em relação aos negócios

São afinal moralistas,

Não querem labor nem ócios.

 

Como os vegetarianos

Relativamente à carne

São moralistas dos danos

Na saúde que os incarne.

 

Alguns têm por bem raro

Serem mesmo moralistas

Em tudo a que dão reparo

Ou em que põem as vistas.

 

 

472 – Efeito

 

É um efeito de magia

O desígnio desta ideia

Duma força que me ameia

E transcendente alumia,

 

Mostrando-se humildemente

Nos encantos da paisagem:

As árvores, a forragem,

Cada planta em mato assente,

 

Cada animal, o granito

Na bruteza mais inerte…

Tudo em mim faz que desperte

A noção de haver um fito:

 

A divindade a mostrar-se

Em degraus de autonomia,

De razão e fantasia

Atrás de cada disfarce.

 

É que afinal tudo fala

Ou minha imaginação

É que tem mesmo o condão

De pôr a falar quem cala?

 

 

473 – Celibato

 

Celibato espiritual

Todos poderemos ter

De criativo potencial.

A solidão que acolher

É feita de integridade,

De individualidade,

 

E sempre complementada

Pela profunda vivência

Da vida comunitária.

É dos monges a coutada,

Mas pode, por excelência,

Num lar ser prioritária,

 

Ou num local de trabalho,

Numa amizade ou família…

É daquilo que me valho

Quando me ponho em vigília:

 

Um lugar de solidão,

De reencontro em meu imo,

Junto com a comunhão

De amizade a que me arrimo.

 

Quer um grau de celibato

O acorde por que me bato.

 

 

474 – Sonecas

 

As sonecas são a forma

Que a natureza terá

De nos lembrar sempre e já

Que a vida é bela por norma.

 

A vida, a cama de rede,

Abana com suavidade

Do nascer onde tem sede

Até mesmo à eternidade.

 

 

475 – Mar

 

É certo que o mar liberta

Mas ao mesmo tempo prende,

Já que os sonhos acoberta,

No que ao infindo se rende,

 

Em terra, sem descoberta.

E não há mais rota aberta

Ao que finda ali na praia

Sem barco a transpor a raia,

Nossa vida desmedida

Toda neste adeus contida.

 

 

476 – Fácil

 

Mais fácil à rapariga

É falar duma fraqueza,

Pode chorar de tristeza,

De angústia, de desespero,

Que com ela ninguém briga

Nem vota a desprezo mero.

 

Já com os rapazes, não.

Sentimentos reprimidos

Farão subir a tensão,

Podendo atingir o ponto

Em que não aguentarão.

Nem se ouvirão os gemidos

De todos quantos eu conto

Que a morte ao fim se darão.

 

Quantas mortes de suicidas

São de jamais ser ouvidas!

 

 

477 – Partilhada

 

Alegria partilhada

Jamais é diminuída,

Antes é multiplicada.

E a tristeza partilhada

É tristeza dividida,

- Fica, ao fim, reconfortada.

 

 

478 – Detrás

 

Por detrás de cada avanço

Há um germe de criação

Na mente dum solitário,

Alguém a quem não alcanço,

Cujos sonhos vigiarão

À noite, no mundo vário,

Enquanto os mais, em seus leitos,

Vão dormindo satisfeitos.

 

 

479 – Dedicada

 

Que é dedicada ao prazer

Nossa cultura parece,

Tanto cuida de entreter,

De a conveniência acolher,

Cultivar dela na messe.

 

São, contudo, substitutos

Para as grandes recompensas.

As que oferecem condutos

São da amizade produtos,

Da família são mantenças,

 

Do trabalho criativo,

Levam à tranquilidade.

Nada terão de passivo:

Delas o melhor cultivo

É que o fim são da ansiedade.

 

 

480 – Tratar

 

Se as coisas falar puderam,

Creio que se queixariam

Deste modo impessoal

De as tratar que não quiseram,

Em que instrumentos seriam,

Meros objectos, igual

Ao que as pessoas reduz

De máquinas a peças meras.

A vida comum traduz

Bem claro em todas as eras

Que as coisas se nos ofertam

Nos laços, na intimidade:

Com a presença despertam

Em nós gostos de verdade

E sentimos-lhes a falta

Se se perdem, vão embora,

E a saudade nos assalta

Se a lonjura nos demora.

 

Mantemo-las em família

Tal se foram membros dela,

Guardamo-las em vigília

Na infância como uma estrela

A que atiramos desejos.

Mudas, tocam-nos harpejos

De que gostamos, rendidos,

São nossos entes queridos

Que vão indo vida fora,

Mas cá dentro a imagem mora.

 

As coisas não são apenas

Verdadeira intimidade,

Emprestam sensualidade

A nossas vidas pequenas:

Nós tocamo-las, olhamos,

Ouvimos, lubrificamos,

Limpamos e decoramos…

 

Sem coisas, o que é uma sala,

Como era um apartamento

Ou uma casa sem móveis?

Lúgubre, o vazio estala

E a vida, a nenhum momento,

Nem nos mais belos imóveis,

Pode começar deveras

Antes de as coisas levadas

Serem, após as esperas,

Para lá como esposadas.

 

 

481- Materialismo

 

Materialismo é neurose,

Do mundo físico excesso,

Revela no que mais goze

Que o mundo neste processo

A tenção de que precisa

Não vê que afinal a visa.

 

Ficamos demais absortos

No que negligenciámos,

Exibimos pelos hortos

O que não temos e amamos.

 

Esta inversão de valores,

De paradoxos tão cheia,

É o padrão que mostra as cores

Do interesse que permeia

As coisas do mundo real

E ao mesmo tempo a tendência

De nós as tratarmos mal

Com gratuita violência.

 

Um obcecado fascínio

Por objectos materiais

Traz escondido no escrínio

Um rol de gestos fatais

De reacção acaso oposta

Que só no espírito aposta.

 

Ao mesmo tempo que absortos

Pelas coisas nos tornamos,

Também experimentamos,

Do mundo em estranhos portos,

Duma espiritualidade

As mais místicas das formas,

Para além de quaisquer normas

Ou de credibilidade.

 

Institucional, a fé

Com poder e autoridade

Se preocupa, põe de pé:

A busca em privacidade

De íntima vitalidade,

Não mais presa à tradição

Nem à norma da razão,

Conduz às mais questionáveis

Das vivências perigosas,

Do mundo porque evitáveis

As coisas que são gostosas.

 

Por não ter um meio-termo

Anda todo o mundo enfermo.

 

 

482 – Conheço

 

Eu conheço uma família

Em que o pai trabalha a horas

Do lar donde sai bem cedo,

Madrugada ainda em vigília,

E onde só volta a desoras,

Após ter jantado a medo.

 

Em geral traz para casa

Comida chinesa pronta,

Prato igual todos os dias.

A mãe labor fora apraza,

O dia inteiro por conta.

Umas tostas fugidias

 

De manhã come sozinha,

Mal põe os pés na cozinha,

 

Almoça e janta ao acaso

Uma sanduíche com prazo.

 

Deixam o filho com ama

Que lhe apronta as refeições,

Pratos prontos duma gama

Que descongela em fogões.

 

O menino terapia

Acaba a ter de fazer

E os pais perguntam que havia

Que neurótico o faria,

Pois tudo andam a viver

Para dar-lhe o que quiser.

 

É uma família eficiente,

Contemporânea cultura

Numa síntese evidente:

Tudo certo se afigura

No campo do labor ético;

Relativamente ao sexo,

Ao eros, ao gozo estético,

Da vida ao princípio grado,

Andam, sem qualquer complexo,

A praticar tudo errado.

 

E como trabalham muito

Têm electrodomésticos,

Dos pais de hoje o grande intuito,

Meros enfeites domésticos:

Estéreos, televisões,

Os vídeos, o micro-ondas

E, claro, o computador…

 

Mas depois, tudo aos baldões,

Quando a casa perto sondas,

Não tem alma nem sabor.

 

E uma das indicações

Mais claras deste teor

Que vemos logo de entrada

Dizer que não é lar de homem

É a natureza assexuada

Dos alimentos que comem.

 

 

483 – Obra

 

A obra saber que é má,

A que nunca se fará…

E a que afinal se fizer?

A feita, ao menos perdura,

Pobre embora, é uma qualquer,

Planta a murchar, insegura

No vaso duma vizinha

Aleijada e mui mesquinha,

Mas que era a alegria dela

E, por estranha sequela,

Por vezes também a minha.

 

Tudo o que escrevo e que faço

Por maus bem os reconheço,

Mas pode ser que algum traço

Distraia um triste qualquer

No que lhe deixar impresso.

 

Tanto me basta e não basta.

A obra, em quanto fizer,

É fasta quanto nefasta:

- Ambiguidade seguida,

Afinal, é toda a vida.

 

 

484 – Parece

 

Por mim, quando vejo um morto,

É ver uma despedida,

Traje perdido num horto

Por alguém, quando da ida.

 

Alguém que se foi embora

Não precisou de levar

A fatiota da demora

Que aqui vestira, ao chegar.

Um cadáver, que impressão

Dum traje atirado ao chão!

 

 

485 – Espaçado

 

Espaçado, um vaga-lume

Vai-se pospondo a si mesmo.

Em torno, obscuro, o perfume

Do agro que ao sol foi torresmo

É uma falta de ruído

Que me cheira quase bem.

De tudo a paz, confrangido

Sofro, pois me dói também

Toda esta infinda leveza

Que em tédio me afoga informe

E afinal tanto me pesa

Sendo um nada tão enorme.

 

 

486 – Gela-me

 

Gela-me de corpo e alma

Que serei quando não for,

Anteneurose que a calma

Semeia fria de horror.

 

De minha morte futura

Uma como que lembrança

De dentro arrepia dura,

Alcança o que não alcança.

 

Numa névoa de intuição

Sinto-me matéria morta,

Na chuva caído ao chão,

Do vento gemido à porta.

 

Do que não serei o frio

Morde o coração actual,

Sou desde agora o vazio

Que eu hei-de ser radical.

 

 

487 – Sentimento

 

Meu sentimento profundo

De ser tão incongruente…

A maioria, no fundo,

É que pensa diferente,

Nos sentimentos assente,

E eu por mim sinto sozinho

Com meu pensar adivinho:

Pensam com o sentimento

E eu sinto com pensamento.

 

Num homem vulgar

Sentir é viver,

Pensar é saber

Viver no lugar.

Mas para mim, ao invés,

Pensar é sempre viver

E sentir não é um revés

Do que venha a acontecer,

Sentir mesmo é mastigar

O alimento de pensar.

 

 

488 – Tanto

 

Mesmo eu que tanto hei sonhado

Às vezes faço intervalos

Em que me ponho de lado,

Ficam os sonhos bem ralos.

 

Tudo nítido aparece.

Então a névoa se esvai

De que me cerco, esmorece,

E as arestas do que sai,

 

Visível, desta neblina

Fere-me a carne em minha alma.

Toda a dureza de esquina

Me magoa e não me acalma.

 

Todos os pesos visíveis

Destes objectos me pesam

Pela alma dentro, insensíveis

Aos tecidos que em mim lesam.

 

As feridas são de tomo

Nem que eu não venha à janela

E a minha vida é tal como

Se me batessem com ela.

 

 

489 – Repente

 

De repente só no mundo,

Vejo tudo do telhado

Espiritual e fecundo:

Ver é distar bem ao fundo,

É ficar ali de lado,

Como aclarar é parar,

Analisar é estrangeiro

Me manter dentro em meu lar,

Toda a gente a perpassar

Sem roçar em mim primeiro.

 

Apenas ar em redor,

Sinto-me tão isolado

Que de lonjura anda um ror

Entre mim e meu melhor

Fato novo endomingado.

 

Sou deveras a criança,

Palmatória mal acesa,

Que atravessa e nunca alcança

No pijama em que balança,

Mansão vaga onde anda presa.

 

Vivem sombras que me cercam,

Dos móveis e luz corrente,

Acompanham-me, se acercam,

Rondam-me, que me não percam,

E todavia são gente.

 

 

490 – Arredor

 

Tudo na vida duvido

Se não é degenerado,

Véspera é o ser de ter sido,

Um arredor de algum lado.

 

Os cristãos abastardaram

Greco-romana cultura

Pagã que sacralizaram,

Dogma que ninguém depura.

 

Hoje, época cancerígena

E senil, é o desviado

Efeito que algum indígena

Génio tiver levantado.

 

Todos os grandes propósitos,

Confluentes ou opostos,

Falem nos actuais depósitos,

Era em que vivemos postos.

 

A cultura em que, pacato,

Me creio uma abelha-mestra…

- Vivemos num entreacto

Só com barulho de orquestra.

 

 

491 – Metafísica

 

Metafísica parece

Uma forma prolongada

Duma loucura patente:

Se a verdade alguém conhece,

Vê-la-ia desvelada,

Definitiva, presente,

E o mais, um mero sistema,

Arrabaldes do problema.

 

A indecifrabilidade

Do cosmos nos bastaria

Se a pensar nos persuade:

Querer entender seria

Menos do que homens só sermos,

Que ser homem é sabermos

Que jamais se entenderia.

 

Trazem-me a fé num embrulho

Em salva alheia fechado,

Que o aceite sem engulho

Mas não abra, que é selado.

 

A ciência como uma faca

Me servem pronta no prato

Para abrir a folha fraca

Do livro que nem desato.

 

Trazem-me a dúvida, enfim,

Como pó dentro da caixa.

Para quê tal frenesim

Se apenas pó nela se acha?

 

 

492 – Saudade

 

Não há saudade maior

Do que a de quem nunca foi,

Do que a do que nunca for,

Que esta, infinda, é que nos dói.

 

O que sinto quando penso

No passado que vivi,

Quando choro sobre o imenso

Cadáver que em mim perdi,

 

Nada atinge o fervor trémulo,

Doloroso, com que choro

Por não encontrarem émulo

Entes em que me demoro,

 

De sonho humildes figuras

Primárias e secundárias,

Quase às vezes sombras puras

Perdidas em trilhas várias.

 

Reavivar a saudade

Nem reviver jamais pode

Esta impossibilidade

Do que em sonhos nos acode,

 

Toda esta vida suposta

De conversa iluminada

Num café, numa congosta,

De fantasia enxertada.

 

Os meus amigos de sonho

Afinal nunca pertencem

A mundo algum onde os ponho,

Nunca a fronteira convencem

 

Do real a ser da essência

Do que voga na consciência.

 

- A dor de nunca ter sido,

Não há nada mais dorido!

 

 

493 – Concebemos

 

Toda a vida é para nós

O que concebemos nela.

Para o rústico que após

Corre uma fértil gabela

 

Seu nada de agro é um império.

Para um César cujo grampo

Dos povos prende o minério

Todo o mundo é um simples campo.

 

Do pobre o nada é um império,

Do rico é o império um campo.

 

Nós de nada mais dispomos

Que de nossas sensações,

Nelas somos o que somos,

Todo o real são visões.

 

Afinal, a realidade

É mais sonho que verdade.

 

 

494 – Dependerá

 

O que vemos, o que ouvimos,

Dependerá do local

Em que nos imiscuímos

Mas depende por igual

De que tipo de pessoa

Somos neste mundo à toa.

 

 

495 – Escrever

 

Escrever será esquecer:

A literatura é o modo

Agradável a quenquer

De a vida ignorar de todo.

 

A música sempre embala,

Artes visuais animam,

Dança e teatro entretêm…

A primeira nem se rala,

No sono a vida retém

Que as mais ao fim reanimam.

 

A literatura, não,

Já que esta simula a vida:

Um romance é um mundo vão

Que nunca foi de vencida,

 

Uma tragédia é um romance

Escrito sem narrativa,

Um poema tem o alcance

Da afectividade viva


Em língua que não converso,

Já que ninguém fala em verso…

 

- Escrever será esquecer

A vida que ninguém quer.

 

 

496 – Renúncia

 

Renúncia é libertação,

O não-querer é poder.

Que pode dar-me o Japão

Que minha alma me não der?

 

Se ela mo não puder dar,

O Japão como há-de dar-mo,

Se é de alma com meu olhar

Que o vejo quando me alarmo?

 

A riqueza ao Oriente

Poderei sempre ir buscar

Mas a de alma não consente

Provir de nenhum lugar.

 

Riqueza de alma sou eu

E eu estou onde estiver,

Com Oriente de meu,

Mesmo sem ele sequer.

 

Compreendo que viaje

Quem é incapaz de sentir.

Por isso pobre reage

Dele o livro que exibir,

 

Já que os livros de viagens

Valem da imaginação

De quem escreve as paisagens

Que o imo lhe empolgarão.

 

 

497 – Galo

 

De dentro da capoeira

Donde irá para ser morto

Canta o galo, a aurora inteira,

À liberdade, ao bom porto,

 

Apenas porque lhe deram

Dois poleiros sempre à escolha…

- E sempre os homens morreram

Sem darem, porque escolheram,

Pelo carro da recolha,

À espera, à esquina da vida,

Desde a hora da partida.

 

 

498 – Equilibram

 

O livro da criação

Decifra-se em dois sentidos

Que equilibram a função

Pela balança medidos:

 

Tudo vive, afinal, para morrer

E tudo morre para reviver.

 

Qual dos dois convence,

Ao homem pertence.

 

O cosmos indiferente

Apenas prossegue em frente.

 

 

499 – Esquecer

 

Facto, em comunicação,

Leva a esquecer o sentido:

Rajadas de informação

Dão este mar desmedido

 

A ponto de ninguém ver

Qualquer fio condutor

Ou de nem querer sequer

Que tal seja de supor.

 

Para indecifrar o mundo

Nem há meio mais fecundo,

 

Até porque, na aparência,

É o contrário, por essência.

 

 

500 – Poder

 

Para o poder, a política

É do cérebro lavagem.

Televisão não é crítica,

Logo embarca na voragem.

 

Jogo televisionado

É sempre de anticultura

Um liminar postulado

Onde a mente não se apura.

 

Se a cultura simular

Então é um computador

Memórias a acumular

Para no fim as depor.

 

- Logo o pensamento humano

É um fantasma: não traz dano.

 

 

501 – Retornar

 

Retornar onde feliz

Foste um dia no passado

Após um longo intervalo

A tudo muda o matiz

E é sempre desapontado

Que de antes vês o regalo.

 

 

502 – Sempre

 

Em absoluto, é evidente,

Esta vida é invivível.

Porém, é sempre vivível

Se for relativamente.

Não há nada mais credível

Na vida, evidentemente:

O absoluto é inatingível,

Moro em relativo assente.

 

 

503 – Vestuário

 

É o vestuário um uniforme,

Que uma personalidade

Se exprime sempre conforme

A roupa que mais lhe agrade.

 

Os aspectos subversivos,

É fatal, ficam expostos

Como pirilampos vivos

Onde fico de olhos postos.

 

A mulher de roupa ousada

Não busca, ao pôr-se à janela,

Ser violada ou apalpada,

Quer só que reparem nela.

 

Se um homem sábio se veste

De forma mui diferente,

Se calhar nisto o que investe

É se tornar atraente.

 

Se a colega que ele visa

Corresponder ao que intente,

Muda de forma precisa

Todo o porvir que haja em frente.

 

É o vestuário um uniforme

Ao momento e a alguém conforme.

 

 

504 – Palavra

 

A palavra tem poder

Manifestado e oculto,

É uma parábola a ser

Alegoria de vulto:

 

Dela o conteúdo excede

O que há na definição.

Na palavra pega e mede,

Pesa o que há no coração,

 

Tira a palavra da boca,

Empenha a palavra à justa,

Que a última ninguém toca…

- Desvendá-la, como custa!

 

 

505 – Engenheiro

 

Ao engenheiro não basta

Uma ideia no papel.

Ao cientista o que o impele

Das coisas é ver a casta.

 

Um engenheiro requer

Que elas ao fim funcionem

E os homens, ao que prefere,

É que do mundo se adonem.

 

 

506 – Religião

 

Minha religião adora

Meu Deus em cada semente.

Nos templos já nada mora

Além duma flor que mente:

Embora bem arranjada,

É sempre uma flor cortada.

 

 

507 – Oculta

 

Minha alma, que oculta orquestra,

Que instrumentos é que tange,

Que cordas e harpejos range,

Címbalos, feita maestra?

 

Dentro em mim só me conheço

Na sinfonia que meço,

 

Harmónica, desarmónica…

- Qual, afinal, minha tónica?

 

 

508 – Dia

 

Deste dia o que me fica

É o que de ontem me ficou

E de amanhã ficará:

A sede que não tem bica,

Insaciável, onde vou

Tentar ser eu onde vá,

Ser inúmero e o mesmo,

Ser outro e mais outro e tudo

Enquanto em mim me ensimesmo…

- E ao fim fico sempre mudo.

 

Degraus de sonho e fadiga,

Trepem num passo fecundo

E venham findar a briga,

Venham substituir o mundo!

 

 

509 – Sentido

 

Que sentido é o desta viagem

De que forçado me inteiro,

Sem recanto onde me acoite,

Sem mais escolha ou triagem

Entre uma noite e outra noite,

Com este Universo inteiro?

 

O nada antes de nascer,

Depois de morrer, o nada,

Que é que faz a madrugada

Pelo meio a alvorecer,

A madrugada de ser,

Se a ser nada é destinada?

 

 

510 – Experimental

 

Toda a vida é uma viagem

Feita involuntariamente,

Experimental paisagem

Que mente quanto desmente.

 

Trilho através da matéria

Do espírito a viajar,

Nele a viagem é séria,

Nele se vive e sem par.

 

Vidas há contemplativas

Com a vida mais intensa,

Mais fremente que as esquivas

Vidas outras onde extensa

 

É a mera exterioridade.

O resultado é que é tudo:

O sentido é a realidade

Do vivido mais miúdo.

 

Recolhe-se tão cansado

Dum sonho tal dum labor

Visível e afadigado,

Quando não é bem maior.

 

O resultado, portanto,

Não tem nada de fortuito:

Nunca ninguém viveu tanto

Como quando pensou muito.

 

 

511 – Dolorosa

 

Não é dolorosa a vida,

Nem doloroso pensá-la.

Verdade é que a dor sofrida,

Séria e grave é a dor fingida,

A da mente que me abala.

 

É que, se eu for natural,

Corre a vida tal qual veio,

Esbater-se-á tal e qual

Como cresceu, afinal,

Tudo é nada, um mero enleio.

 

Nossa dor, no meio dele,

Nem sequer nos roça a pele.

 

 

512 – Escrevo

 

Não escrevo em português.

Quando em português escrevo

A mim mesmo é que me lês.

Escrevo em eu-mesmo, vês?,

E no que escrevo me levo,

Feito minha própria rês.

 

 

513 – Amanhã

 

Amanhã também serei,

Desta alma que sente e pensa,

Do mundo que me pintei,

Amanhã também serei,

Na multidão que se adensa,

O que deixou de passar

Nestas ruas desta grei,

O que outros vão evocar

 

Vagamente, vagamente,

"Que é que será feito dele?",

Com o gesto displicente

Que afasta a mosca da pele.

 

Então tudo quanto faço,

Tudo quanto sinto e vivo,

Empoeirado no arquivo,

Menos que um caderno baço,

 

Não é mais que um transeunte

A menos no dia-a-dia,

Nas ruas onde não junte

Aos mais nem a fantasia,

Numa cidade qualquer

Onde nem memória houver.

 

 

514 – Honesto

 

Quando mesmo o mentiroso

Pode ser amedrontado

Até contar a verdade,

Pode o honesto mais ditoso

Por igual ser torturado

Até que a mentira o grade.

O que a violência afira

Nem verdade é nem mentira.

 

 

515 – Importa

 

O que foge da pistola

E o que corre para ela,

Se cada qual lá se imola,

Que lhe importa, na sequela,

 

Como é que alguém o leria:

Coragem ou cobardia?

- Vai ter lá tempo sequer

De reparar no que quer!

 

 

516 – Restos

 

São os restos da nobreza

O que o burguês triunfante

Colhe como o que mais preza:

- Crê que a História segue avante.

 

Assim é que o proletário

Bebe do capitalista

A pegada ao fado vário

E crê que inovou a lista.

 

Eis como as revoluções,

Na justiça que tenteiam,

Findam tendo os aleijões

Que o antigo já desfeiam.

 

 

517 – Procrastinar

 

Procrastinar significa

Sabermos o que fazer,

Não o fazendo, porém.

Se o não sabemos, implica

Que não é um adiar qualquer

Aquilo que me convém.

 

Já não é procrastinar,

O que estou mesmo é a pensar.

 

 

518 – Ego

 

É o ego aquele duende

Pequeno e feio que vive

Sob a ponte donde tende

A esconder-se onde se esquive,

Furtivo como um anão,

Entre a mente e o coração.

E é sempre do inconsciente

No escuro que ele nos tente.