CANTO  CINCO

 

 

DO  AMOR  RETOMO  OS  LAÇOS  E  AS  MAGIAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 519 e 632 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    519 – Do amor retomo os laços e as magias

 

                                                    Do amor retomo os laços e as magias

                                                    Quando um tropeço em minha esteira sai

                                                    E quantas vezes ele então se esvai

                                                    Pelo brando cetim das fantasias!

 

                                                    Revisto de ternura as elegias

                                                    Que a vida vão gradando de quem vai

                                                    Cada encontro a que sai

                                                    Retomando nas mãos embora frias.

 

                                                    Sopro as brasas na lareira

                                                    Da paixão emurchecida

                                                    Com cônjuge, pais, filhos e avós à minha beira.

 

                                                    A vida

                                                    É dia a dia mais comunidade

                                                    Que de mim parte como a mim me invade.

 

 

520 – Limitam-se

 

Aos filhos os pais

Limitam-se a pregar

Vezes demais

O que devem fazer e pensar.

 

Na adolescência

Vão-lhes os amigos dizer,

Em cada ocorrência,

O que pensar e fazer.

 

O que leva a que nunca apareça

A idade

De usar a própria cabeça,

Ter responsabilidade.

 

Somos eternas crianças,

Mundo além,

A pular doutrem as danças.

Por quê? Ninguém,

Da vida ao fazer as tranças,

O vê muito bem…

 

 

521 – Trilho

 

O trilho da vida é duro

E solitário.

Quando é de optar, no apuro,

Não caias do lado contrário

Da barricada,

Onde te não reste família,

Na paisagem desolada.

Embora de pulsos e tornozelos

Em carne viva

De qualquer familiar quezília,

Teu nome quem mais aviva,

Quem te mais tolera anelos,

Mais oportunidade oferta?

Se um frigorífico crês

Que é um livro de porta aberta,

Se nos mais "imbecil!" lês,

Nos teus é "resposta esperta!"

 

O derradeiro elo a quebrar

É a cadeia familiar:

Atendê-lo é prioritário

Para quem há-de ser fatalmente um solitário.

 

 

522 – Buscas

 

Buscas a verdade longe de casa,

Em templos de meditação oriental,

Em seminários…

Trata de tua avó que a morte apraza,

Dá-lhe a aspirina, o serenal,

Presta-lhe os imprescindíveis cuidados precários…

 

Preocupa-te com ela tanto

Quanto contigo.

 

- Mudarás tua vida, entretanto,

De tais cuidados ao abrigo,

Bem mais que por ilusórias vias

De gurus e terapias.

 

 

523 – Verdadeiro

 

O primeiro amor

É o que fundo queima mais.

O amor verdadeiro é o palor

Que aflora e cresce pelos juncais,

Que junta e alimenta o melhor,

O mais fino e delicado

Que germine em dois entes que amam.

Compreende e desculpa, alcandorado,

Os minúsculos amores que o não conclamam.

 

O primeiro é um licor atordoante,

Quebra postura e calma.

O amor durável é constante,

Sentimo-lo a criar alma.

 

 

524 – Amável

 

Como um fado,

Pela reciprocidade quenquer

Finda sempre dominado:

- Seja amável se quer

Ser amado.

 

 

525 – Devemos

 

Devemos ralhar?

A verbal repreensão,

Contando o que faz zangar

E aborrecer na questão,

 

Num comportamento mau,

Poderá surtir efeito.

Porém, não grite o solau,

Gritar revela-o sem jeito.

 

E não trate com dureza

Nem humilhe:

Sentir culpa ninguém preza

Nem há um inferior que brilhe.

 

E devemos castigar?

O castigo é ponderado

Por dois critérios a par:

O grau do mal provocado

E a idade.

Uma birra é uma maldade

Que é só sentar na cadeira

Até parar e acalmar

Ou então,

Por ora, da televisão,

Nem sequer chegar à beira!

Repreender ou castigar

Uma criança é eficaz

Se acabar de se portar

Mal em algo do que faz.

 

É que meia hora após

Já se esqueceu do que fez…

Mas aqui, de viva voz

Explique então os porquês.

 

Isto faz qualquer castigo

Devir um porto de abrigo.

 

 

526 – Considerar

 

Da Humanidade o erro-mor

Foi considerar o amor

Uma ideia.

Mais depressa amor é instinto.

Dar-lhe cérebro é se minto,

A mente cheia.

 

O amor é a festa,

O que é belo.

Vem a ideia entristecê-lo

E então não presta.

 

 

527 – Labor

 

Labor não é vida ou morte

Mas desgasta,

De sorte

Que importa interrompê-lo e basta

Para tomar ar:

Fechar a porta e cozinhar,

Mesmo largando um ouvinte;

Sorrir ao filho no serão seguinte

A ter perdido um doente;

Desligar o computador

Quando um prazo assente

Acabou de se transpor,

- Para ficar disponível

A um gesto de ternura

Exactamente vivível

Naquela altura…

 

No dia imediato

Podemos retomar o fio da meada,

No acto

De entrada.

  

 

528 – Pequenos

 

Em pequenos

Somos miúdos monstros egoístas.

Adultos, ao menos,

Alargamos as listas:

Não somos apenas nós no mundo.

 

Daqui a cem anos

Quem vai lembrar as freimas em que abundo?

Para evitar enganos,

Mais vale ajudar alguém caído no passeio,

Fazer algo por meus filhos…

 

Talvez, pelo meio,

Algo transponha para além…

 

- Tais atilhos,

Quando deve e haver da vida se apontam,

Para quem os tem

Tais atilhos é que contam.

 

 

529 – Quando

 

Quando aqui vivias

Tranquilamente,

Todos os dias

Me parecia a morte

Estranha, longínqua, ausente

Definitivamente.

A sorte

Eram teus dois braços estendidos

A defender-me dela.

Agora que partiste, a sequela

É que não vejo outra coisa nos laços perdidos

Senão ela, a morte, senão ela!

 

 

530 – Sozinho

 

Agora, sozinho inteiramente,

Compreendes, esquivo,

Finalmente,

A diferença entre andar vivo

E viver realmente.

Sozinho, de repente…

 

- E, pior ainda, se, em companhia,

A solidão a companhia te desmente

Cada dia.

  

 

531 – Abandona

 

Muita mulher abandona o marido

Por ser bom em demasia.

É o nosso rasquido

Em cada dia:

 

Ferir alguém

Por ser puro demais,

Demasiado inocente.

 

Jesus é refém,

Se calhar, de marcas tais

Serem o que é nele evidente.

 

A multidão o insulta,

Pedras lhe atira?

Não é de ser estulta

Nem por ira,

Mas do prazer que lhe dava

Ver alguém todo bondoso

Com a vida escrava

Da populaça:

É o gozo

Que a congraça.

 

O prazer de acumular injúrias

Sobre o irrepreensível, o incontaminado!

Não foram gestas espúrias

Num momento dado,

É um sentimento partilhado

Por todos nós,

No mais fundo do coração.

 

- Só que, de viva voz

Ninguém faz a confissão!

 

 

532 – Instinto

 

O principal

É que não há protecção

Contra o instinto natural

De atracção:

- Em tais extremos

Somos barco de que remos?

 

 

533 – Namorados

 

Já lá vão vinte e cinco anos!

Quem diria?

De namorado são decerto enganos,

Por mor do sonho, da magia…

 

Como é que tão depressa nos correram

Por entre os dedos?

Já vinte e cinco vezes floresceram

As sementes que plantámos contra os medos.

 

Os fogos da paixão domesticaram

A lareira discreta do serão,

Os filhos cresceram e hoje aram

Novo torrão.

 

Vinte e cinco anos de ilusão

E continuas linda

Hoje ainda

Como então!

 

Se outros vinte e cinco houver, decerto,

Para mim, eis a verdade:

És meu caminho aberto,

- És cheia de eternidade!

 

 

534 – Cadilho

 

São cadilhos

E um cadilho é o que é capaz

De nos atar e se impor:

- Os filhos

Não é o sangue, não, que os faz,

É o amor.

 

 

535 – Mulher

 

Quanto mais santa,

Mais a mulher é mulher.

Então é que deveras encanta

Quenquer.

 

No encantamento

Acaba o mundo por ver,

Mais que a mulher,

Todo inteiro o firmamento.

 

 

536 – Cão

 

Um cão dolente

Reflecte o homem sofredor

Que ordinariamente

Aquele acompanha com amor.

 

Ao escravo triste

Segue o cão desolado

Que fiel lhe persiste

Ao lado.

O cão do pobre,

Escanzelado,

Creio até que nele dobre

O rosto do desgraçado.

 

- Ao sofrer um animal,

A piedade que sentimos

Não é que nele o sinal

Da libertação pressentimos?

 

 

537 – Obra

 

Obra de arte religiosa

Que não inspira oração

É tão monstruosa

Como uma bela mulher

Que não

Inspira amor a quenquer.

 

 

538 – Poder

 

O poder baseado no amor

Do povo pelo ditador

 

É fraco, sem garantia de renovo,

Pois depende apenas do povo.

 

O poder baseado no temor

Do povo perante o ditador

 

É forte, dura todo o ano,

Pois depende apenas do tirano.

 

Tem, contudo, um calcanhar de Aquiles:

É instável.

O pavor que obriga a que te perfiles

Só é durável

A partir do momento

Em que dele o amor seja o frumento.

 

Se temo o ditador

Com amor,

 

Aí, sim,

O reinado não terá fim.

 

As asneiras,

Os crimes,

Ou são coisas leveiras,

Ou gravames que arrimes

Ao dorso

De qualquer executor sem remorso.

 

Um ditador

Por sistema ilibado

Pelo amor

Dura até que a morte o haja levado.

 

 

539 – Início

 

No início da relação

Mil sonhos em mente

Voam…

Sapatos novos magoam

Decididamente,

Mal ponhas os pés no chão.

 

 

540 – Acaba

 

Por mais que lute esforçada,

A razão

Acaba sempre enganada,

Vergada

Pelo coração.

 

 

541 – Extremo

 

A paixão

É de extremos conhecida.

O amor, não.

Quanto mais nele me adentro,

Sendo ele o polo da vida,

É pelo centro,

Pelo centro que em mim lida.

 

 

542 – Lava-loiça

 

Contemplo-a no lava-loiça

E penso na minha mãe,

Na mãe dela que Deus tem,

Nas do mundo que as nem oiça…

 

Quem

Jamais quer ter alibi

Perante servos nem amos?

- A mãe,

A mãe que está sempre ali,

Sempre, sempre onde a deixámos!

 

 

543 – Companheiros

 

Agora companheiros de cotio,

Amanhã pó da história,

Cumprido bem ou mal este desvio

Para memória,

Como ignorar-te e tu a mim?

Seríamos traidores

À solidariedade umbilical,

Cósmica e sem fim,

Se amanhã virem que não fomos actores

Do significado radical:

Onde um homem estiver ou tenha estado,

Erguido na ponta da realidade,

Importa encontrar nele o traslado

De toda a Humanidade.

 

 

544 – Solidão

 

Sentir a solidão é universal.

Cremos, ingénuos,

Que, sem esforços mais estrénuos,

Uma relação sexual

 

Nos porá menos sozinhos.

Porém, sem comunicação

Do espírito e do coração

Nunca o sexo constrói ninhos.

 

Violar este preceito

Provoca feridas graves.

Mas quem é que o toma a peito,

Onde lhe opomos entraves?

 

Casais de infidelidade

São a raiva, o desespero,

O ciúme que os invade.

Quem dói disto o rosto vero?

 

As crianças, germinando,

Germinam os mesmos erros.

- Quando

Poremos tais conjunturas a ferros?

 

 

545 - Meios

 

Meios de comunicar

Nunca tantos nós tivemos

E somos ilhas, a par.

De que é que nos esquecemos?

 

Entre os membros da família,

Quanta quezília!

 

Dentro da comunidade,

Que vaidade!

 

Entre nações

O mais que se ouvirão

Serão

Antes tiros de canhões!

 

Não cultivámos as artes

Nem de ouvir nem de falar,

Temos de aprender apartes,

Modos de nos partilhar.

 

Quando não comunicamos,

Ficamos então doentes,

E, se do mal pioramos,

Dão os mais em pacientes.

 

Quando é difícil demais

Uma partilha no lar,

Os recursos principais

São terapeutas usar:

 

Que, ao menos, por um momento

Alguém ouça o sofrimento!

 

O pior, ao dar-lhe aval,

É que ele, como os restantes,

Sofrerá do mesmo mal

Doutros incomunicantes.

 

 

546 – Fresta

 

Quem ama alguém

Há-de então ser paciente.

Só pode a sério ajudar

Qualquer negativa semente

A transmudar

Quem

Generoso e persistente

Devém.

 

Aí toda a semente germina

Como uma fresta divina.

 

 

547 – Paz

 

Adivinho

O que a traz:

Para a paz não há caminho,

É que o caminho é a paz.

 

Ergo-a no presente

Com cada olhar e palavra,

Com o sorriso que invente,

Com a acção que o mundo lavra.

A paz não é mero fim,

Cada pegada

Implantada

Será ou não dela um patim,

 

O momento da alegria

Que a felicidade pelo mundo anunciaria.

 

 

548 – Fracasso

 

O narcisismo

É o fracasso do amor:

Incapaz de amar me crismo

E ao mundo em meu redor.

 

Estar de bem comigo

É um pré-requisito

Para bem servir os mais.

De mim ausente, nem concito

O abrigo

Dos gestos banais.

 

Do narcisismo a cura

Provém da comunidade,

Que a alma se configura

Doutrem na palavra que a invade:

- A ansiedade de cuidar de mim

Só pela entrega à comunidade

Terá fim.

 

 

549 – Movimento

 

O movimento no espaço

Ocorre: dele matriz,

Dele vaso, receptáculo,

Mãe ou ama, passo a passo

A gerá-lo de raiz,

O espaço é dele o pináculo.

Ao viajar,

É tal como se estivéramos

O útero da mãe a explorar,

Pois o mundo, se o quiséramos,

É também a nossa mãe,

Na qual vivemos contidos.

Viajar é descobrir

A alma que o mundo contém,

De que somos envolvidos.

É como ir

À nascente da verdade,

Matriz onde se anda a urdir

Nossa própria identidade.

 

 

550 – Encorajaria

 

Nas artes, o objectivo

Não é o mistério tornar consciente,

O que encorajaria, recidivo,

A viver apenas pela mente,

Antes é o de iniciar

Ao mistério pela contemplação.

É ilusão

Acreditar

Que descubro a liberdade

Fora da raiz do instinto.

Ao invés,

Mais livre e envolvido me sinto,

Talvez,

Quando a fundura me invade

E a vivo num comprometimento

Que resiste à análise mental,

Evocado por um sentimento

Radical

Desperto por imagens poderosas.

- Aí é que tu, sobretudo,

A mim e a tudo

Te entrosas.

 

 

551 – Lugar

 

A terra natal

Não é mero lugar da memória,

É a carne da minha história,

Local a local.

 

Por isso é que, dia a dia,

Me acalma:

- É a geografia

De minha alma.

 

 

552 – Horizonte

 

Quando me ergo sobre o horizonte da Terra

Ela chama-me "meu filho!".

E então já nada mais me aterra,

Nem a víbora que me ferra,

Nem a pantera que me assalta no trilho…

 

Um homem moderno erguido do chão

Vê lojas, estradas, casas

Em frente do camião,

Mais quantos lotes restam para exploração

E dos incêndios as brasas…

 

Num mundo encantado

O primeiro olhar é teológico, não pragmático,

Sem dogma, porém, nem fado,

De fé natural dotado,

Descontraído, contemplativo e pouco ou nada prático.

 

Encantamento é ouvir a voz da Terra

E fazer parte, fecundo,

Dum relacionamento familiar que se aferra

Ao coração do  mundo.

 

 

553 – Influxo

 

O encantamento

É apenas o meu reconhecimento

Da espiritualidade do mundo

E expor-me dela ao influxo fecundo:

 

Que o espírito do mundo flua

Para dentro de mim…

Fico em harmonia com a Lua,

O Universo inteiro, até ao mais longínquo confim.

 

Somos um mundo pequeno,

Um universo humano.

Ao modelar a vida, me condeno

A levar em conta o mundo natural a que me irmano.

 

Quem somos como iremos definir,

Como imaginar-nos adequadamente,

Sem o Universo incluir

Na definição em que assente?

 

Não só somos o Universo

Como a natureza é humanidade

Dentro em mim, quando me converso

Em profundidade.

 

 

554 – Reflecte

 

O corpo humano

É o mundo em miniatura:

Em cada plano,

A natureza, a cultura,

A vida humana comum…

Caso lográramos olhar

Sem preconceito algum,

Poderíamos reparar

Nos sinais

Dos maiores mistérios da vida.

O corpo todo é corpo místico,

Cada parte um verso mais

No poema sem medida,

Dístico

De profundezas abissais:

O mundo num grão de areia,

Numa sobrancelha a vida,

Num mamilo a maré cheia,

Num pénis a desmedida

Explosão primordial…

 

E a nádega arredondada,

Eis o sacramento inicial

De qualquer ara sagrada.

 

 

555 – Contemplar

 

Felizmente

Ainda não diminuímos o poder

De o sexo provocar um desejo fremente,

Por parte de quenquer,

De contemplar imagens.

É uma graça particular

O corpo humano enviar mensagens,

Provocar

O apetite irresistível de olhar.

Não é uma maldade,

Antes um bem desmedido,

A enorme necessidade

De fazer o que é proibido.

 

Saltar o jardim selado

É a medida

De viver o outro lado,

O outro lado da vida.

 

 

556 – Corpo

 

O corpo é um templo

Pela beleza, pelo valor,

Por abrigar o mistério que contemplo

Da existência humana em todo o esplendor.

 

Eroticamente olhar o corpo humano

É o apelo resoluto

Do fundo desejo de união acolher,

Sem dano

E em regime absoluto,

Por parte de quenquer.

 

Do corpo ao me aproximar,

Olhando-o e por ele sendo seduzido,

Diante dum milagre é ter

Lugar,

Pleno de fascínio e de prazer:

- Ao céu é ver-me conduzido.

 

 

557 – Rasga

 

Espírito e corpo separar

Rasga profunda ferida.

O sexo é basilar

Na identidade assumida,

 

É uma fresta ao meu dispor

De fugir à solidão

E descobrir a alegria.

Se o secularizo, irei pôr

Meu altar inteiro ao chão,

Fica-me a vida vazia.

 

Um enorme caos, em tal fase,

É a bruta consequência

Fincada na base

Da existência.

 

 

558 – Cumes

 

A vida humana é uma porta

Para a existência:

Quem amo me transporta

À libertação

Pelos cumes da excelência,

Bailando minha cósmica  canção.

 

O sexo é uma passagem

Para a vida plena

Com tal imediatismo

Que é o modelo da viagem

Serena

A cruzar-nos da Infinidade o abismo:

É o eros adivinho

Que revela o caminho.

  

 

559 – Devirei

 

Quando eu me apresente

Ao olhar do ente amado,

Dar-me-ei de presente,

Abandonando de lado

Meus escudos de defesa.

Exponho-me ao olhar atento

De que serei presa

Como de nossas almas à reflexão

E ao intento

De comunhão.

 

Não é o corpo físico apenas

Que está sendo visto,

É meu próprio ser:

Em mil coisas pequenas

É que existo,

Como quenquer.

 

No acto de despir-me

A emoção funda que afirme,

A inibição e o prazer

Que sentir quando me expuser,

Não é corpo mero,

São estados de espírito subtis

Que pondero:

Aí crio e recupero

Meus mais significativos perfis.

 

Em qualquer vida o instante

De visível se haver tornado

É deveras importante:

- É ser revelado.

 

 

560 – Divindade

 

A divindade do amor atrai

Mas continua a ser esquiva,

Inviável de possuir, logo se esvai,

Extremamente desejada, é fugitiva,

Definitivamente inatingível:

Porque a divindade, que não engana,

Não pode ser retida,

Credível,

Nem definida

Dentro da esfera humana.

 

 

561 – Talvez

 

Talvez importe o sexo à luz do dia,

Ao ar livre, em pleno ar,

Ter tempo e privacidade para olhar,

Vestir de fantasia,

De modo revelador, acaso provocante,

Ter pinturas e fotos nas paredes…

 

- Adiante

O que vedes

É que deviremos do olhar à subtileza

Mais receptivos

E doravante

Ao convite menos esquivos

Do eros feito espírito e beleza.

 

 

562 – Mística

 

A mística do sexo

Provém duma rendição

Igual à que de nós requer a paixão,

Doutrem o amplexo,

Os mistérios da vida

A que o sexo normalmente nos convida.

A sexualidade da penetração

É de hábito salientá-la.

Ninguém fala

Da de ser aberto,

Acolhedor,

Receptivo.

Ora, a vulnerabilidade é que mora

Mais perto

Do amor

Vivo.

E mesmo cativo,

Como a revelação demora!

 

 

563 – Vários

 

Ser sexual é devir receptivo

A vários tipos de penetração,

Do amor, da intimidade, da paixão,

Das influências a que não me esquivo,

Dos exemplos que me dão a mão,

Dos ensinamentos que dia a dia arquivo…

 

Admiro mestres e especialistas,

Médicos, enfermeiros, jogadores…

De tanto às vezes serem os maiores,

Prendo-me de formas imprevistas:

A receptividade

Ao cuidado profissional

Leva a que me agrade

Aquele agente individual,

Tornando-me vulnerável.

 

Talvez não entenda o eco sexual

Inescapável

Da vulnerabilidade,

Acabando chocado

Com minha reactividade

Àqueles por quem sou ajudado.

 

A mais pura receptividade,

Porém,

Contém,

Implícita, a sexualidade:

Nenhum ovo germina

Sequer

Sem uma qualquer

Forma de semente divina.

 

 

564 – Lado

 

Há um lado sombrio

Na vulnerabilidade,

Quando me desvio

Da sanidade,

Quando, excessivo,

Doutrem à influência

Devier receptivo.

 

As flechas do amor podem alertar

Para a malevolência

Do desejo,

Restituindo, se calhar,

Algum pejo

À ingenuidade

De qualquer vulnerabilidade.

Concomitantemente,

Maior receptividade

Aos convites da vida,

Eis um remédio eficiente

Para qualquer ferida:

 

Um tipo diferente

E mais profundo

De acolher-me a mim e ao mundo

Pode acabar com o hábito de ser demasiado

Vulnerável a qualquer seta de lado.

 

 

565 – Sexo

 

O sexo pode ser mecânico demais

Ou brando em demasia.

O bom sexo abandona para trás

A realidade comum,

Entrando na lonjura pela via

Da sensação,

Do imaginário,

Da paixão,

Da fantasia…

- Aí, na terra de lugar algum,

É que, primário,

Tudo principia.

 

 

566 – Afecto

 

É no afecto natural

Que o sexo principia.

Como a raiz do afecto é espiritual,

O sexo fluiria

Com naturalidade

Do vigor

De nossa espiritualidade,

Através do amor.

 

Por quê tanta complicação

Entre as gentes?

- É só ter no chão

Os pés assentes…

 

 

567 – Borbotam

 

O sexo da santidade

Ao separar,

Poderei julgar

Que da espiritualidade

Mais elevada o separo,

Até da inteligência.

Então

Deparo

Com uma religião

De indigência:

Prática mental assexuada

De árida compreensão,

Divisão

De teologias, cada qual em sua estrada,

Em lugar da aceitação

Apaixonada

Dos mistérios que borbotam com furor

Da vida, em cada pendor.

 

Se a religião recuperara

De levar ao êxtase o poder perdido

E tanto se não separara

Do sexo e da paixão,

Teria podido

Dar-nos o sabor

Da comunhão

No vergel mais encantador

E físico da vida:

Apreciaríamos a espiritualidade

Conseguida

Num olhar erótico, na suavidade

Dum toque, no beijo, no abraço…

 

Religião e vida sexual

Ganhariam então cada qual

Profundidade

Por dentro do próprio espaço.

  

 

568 – Vívida

 

No sexo, um imo

De intensa emoção e vívida fantasia

Explode num indivíduo real

E cria

O momento do cimo

No vulcão radical:

A plenitude a vida atinge

E a razão nos foge,

Finge

Que o eterno é hoje.

 

As brincadeiras amorosas

Têm a primazia,

Dengosas.

São, todavia,

Umas férias

Enganosas:

Nada tem

Implicações mais sérias.

Mesmo imperfeito,

O sexo conduz muito para além

Do terreno,

Olhares e toques levam a um transe de tal jeito,

A um estado de consciência tão pleno,

Que é fantástica a emoção,

Imaginário o evento,

E o chão

Não é mais onde me sento.

 

Qualquer alma anseia

Por esta fuga à realidade literal.

Não espanta que o sexo, afinal,

Seja tão irresistível quando ameia.

 

Não é só corpo animado

Mas alma, todavia,

Que o desejo sente em demasia

E sempre com ela vive, portanto, conluiado.

 

 

569 – Ateia

 

Cremes e perfumes,

Intimidade, música, veste particular,

- O que ao sexo ateia os lumes

Leva a atingir o limiar.

 

Este limiar de consciência

Às almas diz respeito,

Não é da vida comum uma ocorrência.

Falamos dum jeito

Que comummente não falaríamos,

Fazemos o que aí é apropriado

Mas que, em qualquer outro lado,

Jamais faríamos.

 

O sexo implanta um domínio

Com linguagem própria, ritos e costumes,

Com ideais dele cujo fascínio

Torna transparentes os tapumes

E rebrilha nas relações, afinal,

Em nós mesmos e na vida espiritual.

 

A espiritualidade inerente ao sexo

Extraí-la, afinal,

É o amplexo

Dum orgasmo físico e emocional.

É ser generoso

No acto sexual

Ou permitir, saboroso,

O espírito do amor no rasto da vida,

O prazer, a intimidade

Acolhida

Numa receptividade

Bem medida.

 

Aqui é que principia

Para um outro mundo a via.

 

 

570 – Indicia

 

O sexo indicia a imortalidade:

Para fora de nós nos leva e o tempo pára.

O grau de intimidade

Que envolve não o compara

Ao de qualquer etiqueta colectiva:

Eleva o relacionamento

A uma postura tão altiva

Que nenhum comunitário entendimento

Igual cultiva.

 

Há milénios os rituais

O empregam, clandestino:

É metáfora poderosa demais

Do encontro com o divino.

 

Sexo com amante humano

Indica o mais fundo do imo,

Ali, donde emano,

Sem o pressentir sequer,

Da raiz até ao cimo,

Sobre-humana união com a base do ser.

A vida comum é o ponto de partida

Para a jornada

Do misticismo rumo à encumeada

Inatingida.

 

No sexo cada membro do par

É o limiar

Mediador:

Acolhendo a paixão

Devém anjo do Senhor,

Representante radical

Da ordem espiritual.

 

Através do parceiro, cada qual vislumbra

Algo que da criatividade humana

Jamais emana

E o deslumbra.

 

 

571 – Cultivar

 

Cultivar o afectivo e o sensual

É parte

Da prática espiritual.

A literatura desta nos reparte

O amor, dito importante,

Por um modelo abstracto,

Tão seco e universal,

Que não pode ser sentido.

Ora, o garante

Do pacto

Com o imo mais fundamente vivido

É o amor humano

Com toda a emoção e sexualidade.

O amor sensual do afecto emano,

E ele logo o sexo invade,

Dando-lhe alma para não devir

Agressivo, manipulador, vazio.

Quando o afecto se esvair,

Deviremos passivos.

Quando fluir como um rio,

Deviremos activos,

Nossas vidas e nosso coração

Influirão

Nos vizinhos e no mundo,

Espiritualidade da emoção,

Não do conceito infecundo.

 

E uma cultura ávida de afecto

Encontra mil várzeas no projecto.

 

 

572 – Sintoma

 

Sem alma, a moralidade

É moralismo:

Sintoma em que me abismo,

Complexo neurótico com que cismo,

Que o julgamento me invade

E embota.

Não é moral verdadeira,

Mas tentativa falhada

Que adopta

Por norma derradeira

Uma postura fanatizada.

Recuperar alma, também

É ter vida moral satisfatória,

Itinerário profundo e positivo

Como convém

A uma vida meritória

Em harmonia com a natureza,

Com o eu que em mim vivo,

Com o ente amado que os dias me embeleza,

Com os amigos, com a comunidade…

 

A moral, porém, não é uma entidade

Definida e acabada

E criá-la não é lição

À ligeira ensinada.

 

É vivaz e em perene mutação:

Dela o desenvolvimento

Corre de mãos dadas

Com o amadurecimento

De nossas vidas em todas as estradas.

 

 

573 – Pendor

 

De vários modos, solteiro

É um pendor de ser casado,

Que este não deve por inteiro

Haver aquele obliterado.

 

Meu projecto laboral

Viverei matrimoniado

E a decisão pessoal

De igual modo hei ponderado.

 

Em algo de mim, porém,

Viverei sozinho:

É sozinho que descubro o que fundo me convém,

Num esforço adivinho,

E nem sempre há maneira

De tal devir aceitável

A minha parceira;

É só que acaso requeiro tanto de mim

Que porventura era inviável

Operá-lo com ela até ao fim…

 

Algumas travessias me preferem

Como indivíduo, não como casal.

Celibatário me auferem,

Não num recorte literal

Mas num jeito metafórico e profundo

De tomar em mãos, nalguns momentos,

Meu íntimo mundo

E o eco de meus relacionamentos.

 

 

574 – Ritual

 

O sexo é a religião

Do casamento:

É deste a contemplação,

O ritual, a prece, a comunhão

E o encantamento.

 

A sexual dificuldade

Quando é resolvida,

A trilha da felicidade

Quando é perseguida,

Das almas o alquímico labor

Desempenhamos,

Frustrações, bloqueios e horror

De antigos papões, nossos amos,

Transmudamos

Na novel arte gostosa

Duma erótica satisfação valiosa.

 

É num casamento deveras importante

O sexo praticar até torná-lo

Livre de interferências,

Já que a alquimia do instante

Leva do imo ao abalo

No íntimo regalo

Das vivências:

De rudes e primitivos

Devimos gente refinada,

Capazes de unir-nos, vivos,

Aos mais em toda a humana caminhada.

 

Devir Deus

É ir germinando este Nós dentro dos Eus.

 

 

575 – Busca

 

O sexo conjugal

Vai muito além

Da busca de amor e de experiências.

É um tipo de ecologia, afinal,

Um modo de conviver também

Com o mundo e suas potências,

Porém,

Com responsabilidade:

Plantando sementes de amor,

Ajuda a formar comunidade

Onde a união é requerida.

O contexto comunitário vem apor

Ao sexo conjugal

Uma nobreza inatendida

Que, afinal,

É dele a matriz original:

- A Humanidade me cria

E a recrio cada dia.

 

 

576 – Juntos

 

Fiquem juntos, fiquem,

Mas não demasiado.

As colunas do templo, verifiquem,

Têm o pé bem afastado.

 

O bom casamento tem um pendor

Em que um e outro se escolherão

Cada qual o par tomando como protector

Da própria solidão.

 

 

577 – Fundo

 

No fundo de toda a vida,

A sensação

De faltar algo e de ela andar dividida,

Arquetípica, visceral separação.

 

Levar tal ansiedade ao casamento,

Esperando que o outro encha a lacuna,

Inteiro recole o dividido tegumento,

Encher é de areia a duna

Que em breve dispersa o vento.

 

Não é meu par

Que me torna inteiro,

É o próprio casamento

Que trata, singular,

Do argumento

E do guião

De algo me faltar

Na radical solidão.

 

 

578 – Gostar

 

Podemos não gostar da solidão

Que nos leva a casar

E também não querer deixar

De ser o solteirão,

Para viver com alguém

Na limitação

E desafio que daí advém.

 

Há muito quem se veja ambivalente

No matrimónio que tem

E, secretamente,

Alimente

A fantasia

De divorciar-se algum dia.

 

Quem gosta

Com autonomia,

Num relativo afastamento,

É que afinal garante a aposta

Do casamento.

 

 

579 – Artístico

 

O sexo é das almas o artístico labor:

A busca do par, o encontro de amor,

O convívio, a ida para a cama,

Revelam elementos profundos e secretos

Por trás da rama

Dos campos e aspectos,

São o mito

Em que acredito.

 

Ali buscamos alma,

Não a minha nem a tua,

A do sopro da vida

Que nos acalma

E convida,

A da centelha que flutua

Na escuridade

E ao sentimento empresta a vitalidade.

 

Buscar a felicidade

É buscar esta faúlha

De alma desperta

E o ânimo, cuja agulha

Recose de sentido, na hora certa,

Cada ruptura aberta,

Com a sabedoria e a compreensão

Que sempre hesitam

Mas em nós habitam.

 

Alma e ânimo em outrem vislumbro,

Então,

E desejo-o sexualmente

Enquanto me deslumbro,

Visando momentaneamente

Que a centelha fulgure,

Que a vida vá pulsando

E que o significado enfim se inaugure

Sem mais como nem quando.

  

 

580 – Dois

 

Quando dois casados

Em alma se adentram,

Menos neles se concentram,

Nos egos edulcorados,

E mais no casamento,

Na vida que juntos têm,

Nos filhos, nos vizinhos também,

No labor, do mundo no momento…

 

Tudo ao lar anda ligado,

Como ao sexo, estranhamente.

O mundo inteiro acaba deitado

Na cama comigo intimamente,

Que as almas a fronteira não conhecem

Que os egos estabelecem.

Um ego impõe limites

E as almas correm sempre a superá-los.

Ficam quites

As almas individuais, da família e do mundo,

Tão inseparáveis, tão fundidas, sem intervalos,

Que umas e outras, no fundo,

São um mesmo e único gesto fecundo.

 

Quando um casal se abraça

É o mundo inteiro que ele enlaça.

 

 

581 – Prazer

 

Apesar

Do prazer de olhar,

Do sexo a verdade inamovível

É muitas vezes invisível.

 

Grande parte da união,

Dos olhares,

Da satisfação,

Dos actos entre os pares,

De despir,

Tocar,

Acariciar,

De sorrir,

- Pasmas

Ao descobrir

Que é uma actividade

De fantasmas.

A generosidade

Com que os amantes se dão

Envolve desejos empolgantes

E infiéis

De representar de muitos amantes

Os papéis.

E o prazer vem da visão

Intensa,

Prenhe de gozos,

De que anda ali uma qualquer presença

Dum dos amantes misteriosos.

 

 

582 – Evocam

 

Do sexo os ritos

Evocam mitos.

Visam comprometer o relacionamento

Com os amantes misteriosos

Que apenas dos sonhos no momento,

Em devaneios saborosos,

Logramos encontrar.

Como o amante de alma não é deste mundo,

As tentativas para o incarnar

São, no fundo,

Um pouco desapontadoras.

 

- Mas continuamos, a desoras,

A tentar.

 

 

583 – Amante

 

Do sexo a  verdadeira essência

É o amante misterioso

- Eis a evidência,

O segredo mais valioso,

 

Porque o sexo da alma

É o segredo da alma do sexo,

Cujo amplexo

Nos acalma.

 

A ânsia das almas pelos próprios amantes

É tão forte

Que desesperadas, à sorte,

Os buscam, constantes.

 

Deles espiam qualquer manifestação

E arranjam a vida de modo, afinal,

Que ele ou ela tenham alguma incarnação

Em nosso relacionamento actual.

 

 

584 – Possuir

 

No desejo de possuir quem amamos,

Fantasia sexual que não requer ser agressiva,

Difícil de reconhecer acaso achamos

A multidão que, viva,

Se uniu a nós na cama.

Quem dedicação mental e emocional

Deseja de quem ama

Total,

Busca sádico controlo.

Ora, o prazer mais profundo

Exige às almas dar colo

E não ao corpo apenas,

Já que o mais fecundo

É das subtilezas de alma o mundo,

Das maiores às mais pequenas.

O bom sexo aplica

E suplica

Um novo apego,

Implica

Viver noutro lugar além do ego.

Pode parecer

Que o desejo sexual

Ruma ao próprio prazer,

Quando o ideal

Pode não ser nosso de forma alguma:

Dele a intensidade

Talvez o resuma

À perda do ego numa relação.

A ironia

É que o sexo em profundidade

Vive o paradoxo desta implicação:

Deveras começa

Onde leva a perder a cabeça…

 

 

585 – Anseio

 

O anseio de entreter

Os filhos de formas inesquecíveis

É neurose dum adulto qualquer.

O que os filhos querem, previsíveis

Nos engodos

Leveiros,

Somos nós, nós todos,

Inteiros.

 

O mais

São equívocos banais

De quem

Afinal não se entrega bem.

 

 

586 – Pés

 

Houve momentos

Em que meus pés me não falharam,

Em que em mil encantamentos

Meu corpo e o dela voaram

Tal se foram um apenas,

Como se a fazer amor

Em leito de penas

Estivéramos da vida no alvor.

 

Um do outro nos braços

Mais próximos nos sentíamos,

Protegidos nos abraços

Por onde fluíamos…

Voávamos

Pelos espaços…

 

- Enfim, dançávamos!

 

 

587 – União

 

É o sexo a união sagrada

Com tudo a que podemos aspirar.

Vem-nos ajudar

Ao espírito a ser receptivos

Que, duma assentada,

Nos cria as vidas e sustenta o mundo,

De modo a ficarmos cativos

De corpo e espírito a um casamento fecundo,

A atingirmos um cume de significados

Numa vida sensual e activa por inteiro germinados.

 

Viver espiritual

E sensualmente

Atinge o pico e tem incarnação ritual

No sexo presente.

Quando deixamos o ego se afastar,

Entra o espírito em lugar.

A paixão resultante é o sinal

De que atingimos o nível sexual

Requerido

Para devirmos receptáculos vivos

De espíritos que aspiram a ficar

Cada qual mais unido

A nossos corpos expressivos.

 

Vivem eles e nós os vivemos a par,

Somos um no Todo transfundido.

 

 

588 – Entregar-se

 

O amante misterioso evocar,

O cônjuge escondido,

Não requer um ritual particular,

Uma linguagem de mágico sentido.

 

Algo mais difícil impõe

E nada à toa:

Generoso meu controlo põe

Na mão doutra pessoa.

 

Como o místico aconselhado

A entregar-se ao jeito da união divina,

O cônjuge é solicitado

A entregar-se ao parceiro e ao casamento

Sem reservas, como quem se inclina

Ante uma sina,

E sem desvendar, de momento,

Quem, afinal, venha a ser

O parceiro que tiver.

 

Não é masoquista degradação,

Auto-aniquilamento,

Antes da caridade

A mais funda expressão,

O amor espiritual que invade

A paixão erótica do casamento

E visa a meta

Que a satisfaz e completa.

 

 

589 – Superou

 

Decadente

É quem superou, gradual,

O inconsciente,

Porque a inconsciência, afinal,

É o fundamento da vida:

Se o coração pudera pensar,

Iria parar

De seguida.

 

 

590 – Recantos

 

Todos os recantos já foram vividos,

Revividos,

Milhares de vezes

Pelos desaparecidos

Que transportamos em nossos conveses.

Como as miríades de seres

Que virão a existir

Fazem parte de nossos haveres,

Sementes que somos de porvir.

Por que é que das partículas inumeráveis

Que em nós flutuam

Umas apenas e não outras são viáveis

E nos actuam?

 

 

591 – Bolo

 

Nunca vivo sozinho,

Mormente

Quando não me encontro com mais ninguém,

Bocadinho

Do enorme bolo envolvente

Do mundo que me contém.

Nunca existi separadamente,

Nunca em mim pensei

Como sendo a grande bola

Onde a vida se me enrola

Nos artigos e parágrafos da lei.

Quando estou triste

É o mundo inteiro que em mim existe

E choro o meu mal

Como partícipe duma tristeza universal.

A minha dor sempre foi

O mundo inteiro que dói.

E, quando rio, não sou eu que rio,

É a Terra, a Lua, o Sol,

São as estrelas a fio,

O Cosmos às risadas no meu rol.

 

 

592 – Pobres

 

Os homens são pobres em toda a parte,

Sempre o foram e sempre o serão.

Sob a terrível pobreza, porém,

Aparte,

Num desvão,

Há uma chama.

Em geral tão fraca a têm

Que invisível se conclama.

Mas existe, todavia,

E, se alguém

Tivera coragem de a soprar,

Podê-la-ia

Num incêndio transmudar:

Se lhes não podes dar trabalho, dá dinheiro;

Se lhes não podes dar dinheiro, dá coragem;

Em vez dum ralho, um sorriso prazenteiro,

Uma palavra amiga para a viagem…

 

O efeito é inebriante.

Ninguém pode avaliar o resultado

Derivado,

Constante,

Dum bom acto, dum gesto de bondade:

É a gratidão,

Os votos de felicidade,

Convites para o serão,

- Mil patéticos presentinhos

Que não valem um tostão,

De tão comezinhos,

Mas onde pulsa terno um coração.

 

 

593 – Perda

 

A perda de nosso eu peculiar

É que entristece.

O pão de centeio saborear,

Recém-colhido na messe,

Que participou na feitura

De nossa personalidade,

Pão de comunhão que assegura

Que a cada qual tanto agrade

Quanto a graça que tiver,

Como o deixámos perder?

 

Comemos agora o mesmo pão,

Porém sem a comunhão,

É para encher a barriga,

Mas sem graça,

Já que a fome a tanto obriga

E o tempo tudo o mais deslaça.

 

Comemos o pão,

Mas está gelado e vazio

O coração.

 

Vivemos separados

Na fome e no fastio,

Mas não estamos individualizados:

Quebrámos o fio

Que tece a pessoa por todos os lados.

 

 

594 – Terrível

 

Do mundo que terrível a inaptidão

Quando posto cara a cara com a verdade!

De laços de sangue e de amor a união,

Que estupidez, quando não a persuade

O singelo recado

Do que é espiritualmente inspirado!

 

A lei, a tradição,

O código genético,

Sozinhos apenas são

Um patético

Não.

 

 

595 – Significado

 

Há momentos em que temos de romper

Com os amigos, de verdade,

A fim de compreender

O significado da amizade.

 

 

Às vezes um livro é a ferramenta

Com que ceifo amigo a amigo

Que já me não alimenta

Nem é meu porto de abrigo.

 

Dá-me a coragem de ficar só,

De apreciar a solidão,

Mesmo sendo eu o grão de pó

Que do livro nem terei compreensão.

 

Há maneiras de não compreender

E a diferença entre a dum e a doutro cria

A terra firme onde principia

A hipótese de eu vir a ser.

 

 

596 – Mundo

 

O mundo é para mim um museu,

Um terreiro de festa.

Nada mais presta

Senão ir comendo o toucinho do céu

Que os homens de antanho,

Por inúmeros chãos,

A nosso ganho,

Nos vieram abandonando nas mãos.

 

 

597 – Eternidade

 

Viver a eternidade dum instante,

Não mais futuro, nem projectos, nem impaciência,

Tudo com sentido daí por diante,

Da plenitude perante a evidência.

Com a aguda consciência

De ser fragmento dum todo,

Sentir que ele vive intenso dentro de mim

E me não pertence, afinal, de nenhum modo.

Como se, imperativo e terno,

Oriundo de ignoto confim,

Me penetrara o sentimento do eterno.

 

 

598 – Amor

 

Um homem pode ser amado

Pela sua obra.

A mulher, por seu lado,

Outro amor cobra:

Pretende ser amada

Por ela mesma e mais nada.

 

 

599 – Maldita

 

A maldita contradição

Da vida militante:

Das carreiras profissionais função,

Dum ideário missão,

Ou dum sonho, duma obsessão,

- Sempre o custo pago adiante.

 

Quanto mais pelo lar milito,

Mais o labor dele me separa,

Como um delito,

E meu verdadeiro fito

Jamais se me depara.

Quão mais vitorioso sigo em frente,

Mais do lar acabo ausente:

- Quanto mais venço na lida,

Mais derrotado na vida.

 

 

600 – Malha

 

O abraço

Atinge muito além do braço,

Intérmina malha humana,

É o enérgico baraço

Que do pião arma a gincana,

Ou antes uma espiral

Do turbilhão dum tornado,

Por todo o lado

A semear o cósmico sinal

Em que se misturam e fecundam, com desembaraço,

O homem e a Natureza

Quando aquele finalmente a preza,

O homem e a mulher

Quando o amor o quiser,

O homem e Deus

Quando no horizonte maravilham os céus.

 

 

601 – Impressão

 

Dias inteiros na cama,

A impressão de não sermos nada

Só porque ninguém nos ama,

Lixeira abandonada…

Ninguém nos estende o braço,

Ninguém quer nada de nós,

Nem sequer para chegar-nos o baraço

De corrediços nós…

Como aguentar

Ser nada em nenhum ligar?

  

 

602 – Antes

 

Antes logicamente de existirem por destino,

Antes de se haverem os mundos configurado,

O Ente divino

É nele mesmo o amor, o amante e o amado.

 

Ora, quando é que nós

Atamos, de nosso lado,

Sobretudo,

Os laços e os nós

A Tudo?

 

 

603 – Novo

 

Facto novo em nossos dias

É que a visão planetária do Uno

Não é já um ideal que buscarias

Mas a realidade a que me coaduno.

 

De quem a transgredir, a sorte

É a pena de morte.

 

Do míssil-átomo a junção mortal

É a ameaça total:

 

Das forças o arcaico equilíbrio

Deveio equilíbrio do terror,

Cada qual outrem pode destruir, sem ludíbrio,

A ele próprio se destruindo no mesmo fulgor.

 

O satélite alarga o campo da televisão

De modo que o mundo nos cabe na mão.

 

O mercado mundial

Torna duns o subdesenvolvimento

O corolário do crescimento

Dos outros, afinal.

 

Um e Todo já não são

Mero apelo ou utopia:

Do real o coração

Mostra a ciência de hoje em dia:

O átomo individual

Separado no vazio

Revela uma universal

Interacção onde enfio

O Cosmos como um rosário:

Tudo mergulha as raízes,

Solidário,

Nas respectivas matrizes

Até aos confins do Universo.

 

Tudo voga sem fronteiras

Num oceano de energia

Sem margem e sem reverso.

Tudo é habitado, em todas as jeiras,

Por tudo o mais, na lei que tudo uniria.

 

Cada qual,

No fundo,

É todos os outros, afinal,

- E é o Mundo.

 

 

604 – Consciência

 

A consciência da presença,

Do eterno presente do Todo na vida dum só,

Leva a exorcizar a morte.

Quem a não tem lavra a sentença,

Grão de pó

Vogando à sorte:

Incônscio de pertencer à cósmica comunidade

E de ser responsável pelo destino de cada um,

Reduzido à solitária identidade

Vulgar e comum,

Fica votado ao mero

Desespero.

 

É o abismo

Do corte:

O individualismo

Engendra o medo da morte.

 

 

605 – Eternidade

 

A eternidade não é o vazio

Das abóbadas escuras

Em que se repercutiu

Em vão, sem fim, pelos infinitos,

O eco de nossos gritos.

Quando a bem apuras,

A eternidade é presente

Em cada instante,

No Todo que se sente

Em qualquer fragmento que nos perpassa diante.

Inscreve-se para sempre cada um de meus actos

Dos homens no destino:

Se humilhei alguém, os factos

Corroerão outras vidas que lento elimino,

Empobrecerão

Em desatino

A mútua comunhão;

A esperança que lhe pude transmitir

Pela fecundidade da alegria

Ajudá-lo-á a prosseguir

Através da escuridão de cada dia.

Daqui germina, até dar flor,

Um futuro melhor.

 

Respondo pelo que cada um de meus gestos

Tem de eternidade.

Reciprocamente, tais aprestos

Constroem a minha realidade:

A epopeia milenária dos homens é assim

O que ecoa, eterno, em mim.

 

 

606 – Milhões

 

Milhões e milhões de mortos bem vivos

Gritam-me, em meu imo, para actuar

O que eles, durante séculos, milénios,

Nem puderam sonhar,

Nestes íntimos, furtivos

Convénios.

 

Cumprindo por igual a lei,

Cobrirei os mesmos trilhos:

Pelas eras fora gritarei

Nas entranhas de nossos filhos.

 

 

607 – Nós

 

Nós que aqui vivemos de ano em ano,

Com nossos mortos de antes, nossos mortos de depois,

(Os mortos  ainda não nados em futuros arrebóis)

Somos um único oceano.

Deste pano

De fundo

Me inundo,

No desengano

De que Eu é que sou fecundo.

 

O Todo, finalmente, acalma e satisfaz

E então vivo e morro em paz.

 

 

608 – Forças

 

Sinto dançar em mim

As forças do Universo.

Todas habitam assim

Meu coração converso.

 

Mergulho nelas para reviver

Como um desejo noutros corações que a tocar vier.

 

O milagre da ressurreição

Das leis da natureza

Não é uma violação,

Antes a confirmação

Da lei profunda que nela reza.

 

A ressurreição ocorre, sem magia,

Em cada dia.

 

Do mundo neste quotidiano nascimento

Desejo ser, ao apelo do profeta original,

Um dos que lavram o dia de alimento

Desde a aurora ao crepúsculo sideral.

 

Então poderei acolher a morte como uma amiga:

Na perspectiva da minha história,

A morte tudo interliga

A partir do fim dela,

Como malha de entretela

À véstia cosida em viva memória.

A esta luz encaro

Meu passado transcorrido

E nele descubro, deparo

Com meu fio de sentido.

 

 

609 – Suficiência

 

Contra a suficiência do proprietário

Ficar solidário

 

Com a vaga de pedintes impenitentes

De todos os continentes

 

É como eles sermos responsáveis pioneiros

Da tomada de consciência que propaga

Os fins derradeiros

Desta vaga:

O Êxodo dos escravos de qualquer faraó,

Sonhos e revoltas de todas as eras,

De todos os mundos, mesmo já feitos em pó,

Contra as opressões, em nome das esperas.

Eis como elevamos quem se encontra só

Rumo a solidárias outras esferas.

 

 

610 – Experiência

 

A experiência do universal,

Ser um com o Todo,

Não nega o que há de pessoal,

Eleva-o, ao invés, como um engodo,

Para além de todos os limites:

Os palpites

Que me chegaram de fora

E me reduziram a um indivíduo mero,

Com uma cultura que em mim mora,

Preconceitos de classe que venero,

Ou de nação orgulhosa, impante,

Todo o sectarismo mutilante…

 

Apenas se realiza alguém

Quando não vive exilado

Em seu reduto de aquém,

Do meio dele espartilhado

Pela sedução

Ou pela parcialidade da educação.

 

Experimentar o universal

É experimentar o eterno, cimeiro,

Experimentar a morte como libertação final

De meu condicionamento derradeiro:

Meu corpo, minha ilusão

De estar fechado neste saco de pele

Que me isolaria, enfiado no alçapão,

Do resto do mundo alheio a ele.

Quando minha vida verdadeira, afinal,

É participação

Numa natureza e numa cultura total:

Perpassa em mim

E corre o Cosmos inteiro, do princípio ao fim.

 

 

611 – Êxtase

 

Amor, primeiro exploração fora de si:

Mesmo dos corpos na união

Onde buscas o êxtase de teu próprio frenesi,

Vives a nostalgia do não,

Necessidade do que não mora em ti:

Ultrapassagem de teu sofrimento,

Instinto de eternidade a perfurar pelo momento.

Amor em que por ele próprio amas quem amas,

Preferindo a alegria dele à tua,

A vida dele à tua.

Sobre cavalheiros e damas

Actua,

Ensina o sacrifício,

A lei da vida total:

No início

Se esconde o final.

 

O amor não é da vida um momento,

É a revelação do sentido dela.

Não é um elemento,

É toda a sequela.

 

Qualquer amor verdadeiro

É amor de Deus:

Amar em cada ser o acto pioneiro

Que o criou, gesto dos céus.

 

Neste amor ouvi o mar

Dentro em mim a marulhar.

Participar no projecto do sentido,

Sentindo que minha vida apenas se faz com a Vida,

Contém nisto a eternidade:

Eternidade do projecto vivido

À medida

De cada instante, assumido

De verdade,

Até à derradeira profundidade.

 

 

612 – Naquele

 

Naquele para quem a vida

É do ser peregrinação,

No amor da participação

No projecto divino,

A morte ocorrida

Não é destino,

Nem lhe ultrapassa os limites:

Findos os apetites,

O pequeno eu se apaga

E eu volto a ser Um,

No infinito Eu-Nós comum

Que finalmente me afaga.

 

 

613 – Vinho

 

Que pode ser senão sonho

O amor de qualquer mulher?

Amei antes do tempo em que me ponho:

O temporal amor que então tiver

Tem para mim o gosto

De lembrar, no vinho que bebi,

O sabor do mosto

Que perdi.

 

Será que um dia

A aberta janela

Me rasga a via

Rumo à estrela

Fugidia?

 

- Ah, maldito fado

De deus eternamente adiado!

 

 

614 – Marcos

 

A confiança

Que os outros em nós depositam

É o cadinho

Que alcança

Depurar os marcos que delimitam

O nosso próprio caminho.

 

 

615 – Carro

 

Guiar um carro com alguém

De quem gosto tal intimidade cria

Que meu carro é também

Local que me confidencia,

Partilha segredos comungados de mãos dadas,

Verdades doridas trocadas…

 

Todos, afinal, crescemos nele,

Incluindo eu, que sou quem o impele.

 

Testemunhou mais trocas de humor

Que um festival de crianças,

Riso, alegria, raiva e amor,

Zangas, palmas e danças

De mil intentos

De pés desvairados pelos assentos…

Disparates tais e tantos

Que tudo são memórias de mil encantos.

 

- Meu carro, meu pequeno lar, meu mundo,

De quanta sementeira nele me fecundo!

 

 

616 – Lei

  

Privilegia a lei de adopção

O estado civil e o rendimento.

O amor, não.

Ora, o amor pesa mais que o alimento.

 

As crianças têm a misteriosa percepção

De serem ou não amadas

E vão

Para onde as olham como fadas.

 

O trágico da miséria infantil

É que não é apenas pobreza financeira:

Muito lar rico sofre de imbecil

Negligência parental rasteira.

 

Amor

E não dinheiro,

Eis o fio condutor

Para o Homem inteiro.

 

 

617 – Crianças

 

As crianças não escolhem as asneiras:

Num lar de quentura,

Vivem amor e ternura

E também orientação, mesmo em meio a brincadeiras.

 

Não tem graça quebrar regras

Se não há regra a quebrar.

E, pior, como te alegras,

Se ninguém a se ralar

Anda na tua peugada

Quando uma regra é quebrada?

 

 

618 – Descobrimos

 

É quando estamos preparados

Para morrer

Que descobrimos, fascinados,

Como viver.

 

"Oh, meu Deus!

Estou na recta final,

É melhor aproveitar bem."

E, entre os meus,

O principal

É fruir a festa que ao dia convém.

 

No extremo da vida,

Quando lá nos pomos,

É que tomamos deveras a medida

Do que somos.

 

 

619 – Humano

 

O ser humano é paisagem

À luz do sol.

Cada momento é diferente,

Com a beleza da triagem,

Um cunho próprio no meio do que bole.

Ter arte ao lidar com toda a gente

É olhar o deslumbramento desta vista

Com olhos de artista.

 

 

620 – Cercado

 

Cercado pelas paredes da solidão,

Creio que o inferno

É uma prisão

De minha própria invenção,

Onde me interno,

Tijolo a tijolo, com furor,

Até me isolar de todo o amor.

 

 

621 – Olhou

 

Ele olhou para ela

Tomado pelo temor respeitoso

Com que no céu olhamos uma estrela,

Um pôr-de-sol majestoso,

As imensidões de Deus…

- …E viu abrirem-se-lhe os céus!

 

 

622 – Despontar

 

É tal o amor

Como o amor que deverá sentir

O caçador

Por quanto despontar vivo:

Não o logra exprimir,

Quando mais fundo e melhor arda,

Doutro modo nem através doutro motivo

Que não seja apontar-lhe uma espingarda.

 

 

623 – Conhecia

 

Ainda não conhecia o amor.

E, sem o amor, que é que vale?

De que vale arriscar com fervor

Se se ignora o vero sabor

Da vida que nos iguale?

Como arriscar a vida

Quando dela nem sequer tenho a medida?!…

 

 

624 – Deveras

 

Conheceram-se.

Ele conheceu-a e a ele próprio se conheceu,

Já  que deveras nunca se houvera conhecido.

 

Conheceram-se.

Ela conheceu-o e a ela própria se conheceu,

Já que, embora sempre se houvera conhecido,

Jamais se reconhecera daquela maneira.

Bastou ele ser parceiro e ela, parceira:

- Penetraram no mundo novo: conviveram-se.

 

 

625 – Ama

 

Não amas de verdade,

Amor:

Quem ama quer a felicidade

E repele a dor.

E quem ama quer apenas o amor,

Ainda que para tal

Seja fatal

A dor.

De propósito faz sofrer,

Por outro lado,

Para a certeza ter

De ser amado.

Não digas que não admitirás,

Que selas de vez os cofres:

Uma vez que amas, sofres

E nunca terás paz,

Embora doutra busca não sejas mais capaz.

 

 

626 – Ciúme

 

Está bem, és ciumento.

De submeter o ciúme à razão

Pior é teu intento.

Tornas o amor mais eficaz, não?…

 

Raciocinas demais:

Alguma vez o amor foi racional?

Pensando, amas mais?

Todas as coisas, mal

As penso, vêem a força aumentar.

No amor, porém, tal

Nunca logrou ter lugar:

O amor mais a razão

Muito raro dão a mão.

 

 

627 – Encontrar

 

Nem sempre encontramos

Nossos semelhantes…

Nem sequer, porém, escapamos

De encontrar, em alguns instantes,

Nossos semelhantes no inevitável lugar:

- Dentro de nós moram, de nós a par.

 

 

628 – Casa-te

 

Casa-te, amigo, casa!

Sabes lá o que sozinho

É viver perdido em casa

Nas horas do desalinho!

 

A solidão

Como angustia,

À noite, junto ao fogão,

Quando o calor arrepia!

Sozinho sobre o planeta,

Terrivelmente só,

Com a teia mais completa

De ignotos perigos

Quase a reduzir-te a pó,

Tuas maçãs e teus figos

A perderem o sabor

No prato ameaçador.

 

O tabique da vizinha

A afastar-te tanto dela

Como duma estrela

Maninha

Te afasta a tua janela.

 

A febre da dor e medo,

O sossego das paredes,

O esmagamento do credo

Que não mata tuas sedes…

 

Profundo e triste silêncio

Dos quartos de viver só!

Em torno a teu corpo vence-o,

Antes que te moa a mó

Que joeira as almas,

Que então nem de amor te acalmas.

 

 

629 – Único

 

O amor é o único bem da vida:

Ter nos braços o ente amado.

É a fronteira comedida

Que nos coube como fado,

Fronteira onde abraço,

Com meu braço minguado,

Para além do tempo, para além do espaço.

 

 

630 – Próximo

 

O próximo como amamos

Tem muito a ver

Com o modo como nos encaramos,

Se me amo, tolero ou nem sequer.

- A outrem como amar

Se a mim nem me conseguir olhar?

 

 

631 – Preconceitos

 

Dos preconceitos contra a estupidez,

Da xenofobia, do racismo,

Do religioso ou político sectarismo,

Do exclusivista nacionalismo,

Ao invés,

A comprovação intérmina e segura

Que nenhuns pesadelos jamais domem,

A brotar da grande literatura:

- A igualdade radical do Homem!

 

Nada como o grande romance

Nos ensina a vislumbrar

O alcance

Das diferenças étnicas e culturais

Por todo e qualquer lugar:

É a riqueza do património humano

Nos contrastes mundiais,

Cada singularidade,

O tutano

De nossa múltipla criatividade.

 

Boa literatura ler é também

Aprender como somos e quem,

Em nossa humana integralidade,

Na pública evidência

Como no segredo da consciência,

Na privacidade.

 

Nem sequer

Outras vergônteas das humanidades,

- Filosofia, ciências sociais, de línguas as variedades –

Lograrão manter

A visão integradora

Entendível ao profano:

Sucumbiram ao dano

Da especialização que tentacular vigora.

 

O sentimento de pertença

À humana colectividade,

Que espaços e tempos vença

Na radical comunidade,

É o feito-mor da cultura.

E nada maior renovação

Lhe assegura,

Geração a geração,

Do que a literatura.

 

 

632 – Abolir

 

Brinca minha filha

Com carrinhos e camiões:

A maravilha

De abolir do sexo as discriminações.

 

Pergunto-me ao que brincará

Toda a manhã,

Desde tão cedo a pé:

"O camião" – confidencia – "é o papá,

O carro é a mamã

E o carrinho é o bebé…"

 

E ficou a conversar

Carinhosamente,

Ao colo o carrinho a aconchegar

Como se fora um bebé doente.