CANTO CINCO
DO AMOR RETOMO OS
LAÇOS E AS MAGIAS
Escolha aleatoriamente um número entre 519 e 632
inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem
particular para o seu dia de hoje.
519 – Do amor retomo os laços e as magias
Do amor retomo os laços e as magias
Quando um tropeço em minha esteira sai
E quantas vezes ele então se esvai
Pelo brando cetim das fantasias!
Revisto de ternura as elegias
Que a vida vão gradando de quem vai
Cada encontro a que sai
Retomando nas mãos embora frias.
Sopro as brasas na lareira
Da paixão emurchecida
Com cônjuge, pais, filhos e avós à minha beira.
A vida
É dia a dia mais comunidade
Que de mim parte como a mim me invade.
520 – Limitam-se
Aos filhos os pais
Limitam-se a pregar
Vezes demais
O que devem fazer e pensar.
Na adolescência
Vão-lhes os amigos dizer,
Em cada ocorrência,
O que pensar e fazer.
O que leva a que nunca apareça
A idade
De usar a própria cabeça,
Ter responsabilidade.
Somos eternas crianças,
Mundo além,
A pular doutrem as danças.
Por quê? Ninguém,
Da vida ao fazer as tranças,
O vê muito bem…
521 – Trilho
O trilho da vida é duro
E solitário.
Quando é de optar, no apuro,
Não caias do lado contrário
Da barricada,
Onde te não reste família,
Na paisagem desolada.
Embora de pulsos e tornozelos
Em carne viva
De qualquer familiar quezília,
Teu nome quem mais aviva,
Quem te mais tolera anelos,
Mais oportunidade oferta?
Se um frigorífico crês
Que é um livro de porta aberta,
Se nos mais "imbecil!"
lês,
Nos teus é "resposta
esperta!"
O derradeiro elo a quebrar
É a cadeia familiar:
Atendê-lo é prioritário
Para quem há-de ser fatalmente um
solitário.
522 – Buscas
Buscas a verdade longe de casa,
Em templos de meditação oriental,
Em seminários…
Trata de tua avó que a morte
apraza,
Dá-lhe a aspirina, o serenal,
Presta-lhe os imprescindíveis
cuidados precários…
Preocupa-te com ela tanto
Quanto contigo.
- Mudarás tua vida, entretanto,
De tais cuidados ao abrigo,
Bem mais que por ilusórias vias
De gurus e terapias.
523 – Verdadeiro
O primeiro amor
É o que fundo queima mais.
O amor verdadeiro é o palor
Que aflora e cresce pelos
juncais,
Que junta e alimenta o melhor,
O mais fino e delicado
Que germine em dois entes que
amam.
Compreende e desculpa,
alcandorado,
Os minúsculos amores que o não
conclamam.
O primeiro é um licor atordoante,
Quebra postura e calma.
O amor durável é constante,
Sentimo-lo a criar alma.
524 – Amável
Como um fado,
Pela reciprocidade quenquer
Finda sempre dominado:
- Seja amável se quer
Ser amado.
525 – Devemos
Devemos ralhar?
A verbal repreensão,
Contando o que faz zangar
E aborrecer na questão,
Num comportamento mau,
Poderá surtir efeito.
Porém, não grite o solau,
Gritar revela-o sem jeito.
E não trate com dureza
Nem humilhe:
Sentir culpa ninguém preza
Nem há um inferior que brilhe.
E devemos castigar?
O castigo é ponderado
Por dois critérios a par:
O grau do mal provocado
E a idade.
Uma birra é uma maldade
Que é só sentar na cadeira
Até parar e acalmar
Ou então,
Por ora, da televisão,
Nem sequer chegar à beira!
Repreender ou castigar
Uma criança é eficaz
Se acabar de se portar
Mal em algo do que faz.
É que meia hora após
Já se esqueceu do que fez…
Mas aqui, de viva voz
Explique então os porquês.
Isto faz qualquer castigo
Devir um porto de abrigo.
526 – Considerar
Da Humanidade o erro-mor
Foi considerar o amor
Uma ideia.
Mais depressa amor é instinto.
Dar-lhe cérebro é se minto,
A mente cheia.
O amor é a festa,
O que é belo.
Vem a ideia entristecê-lo
E então não presta.
527 – Labor
Labor não é vida ou morte
Mas desgasta,
De sorte
Que importa interrompê-lo e basta
Para tomar ar:
Fechar a porta e cozinhar,
Mesmo largando um ouvinte;
Sorrir ao filho no serão seguinte
A ter perdido um doente;
Desligar o computador
Quando um prazo assente
Acabou de se transpor,
- Para ficar disponível
A um gesto de ternura
Exactamente vivível
Naquela altura…
No dia imediato
Podemos retomar o fio da meada,
No acto
De entrada.
528 – Pequenos
Em pequenos
Somos miúdos monstros egoístas.
Adultos, ao menos,
Alargamos as listas:
Não somos apenas nós no mundo.
Daqui a cem anos
Quem vai lembrar as freimas em
que abundo?
Para evitar enganos,
Mais vale ajudar alguém caído no
passeio,
Fazer algo por meus filhos…
Talvez, pelo meio,
Algo transponha para além…
- Tais atilhos,
Quando deve e haver da vida se
apontam,
Para quem os tem
Tais atilhos é que contam.
529 – Quando
Quando aqui vivias
Tranquilamente,
Todos os dias
Me parecia a morte
Estranha, longínqua, ausente
Definitivamente.
A sorte
Eram teus dois braços estendidos
A defender-me dela.
Agora que partiste, a sequela
É que não vejo outra coisa nos
laços perdidos
Senão ela, a morte, senão ela!
530 – Sozinho
Agora, sozinho inteiramente,
Compreendes, esquivo,
Finalmente,
A diferença entre andar vivo
E viver realmente.
Sozinho, de repente…
- E, pior ainda, se, em
companhia,
A solidão a companhia te desmente
Cada dia.
531 – Abandona
Muita mulher abandona o marido
Por ser bom em demasia.
É o nosso rasquido
Em cada dia:
Ferir alguém
Por ser puro demais,
Demasiado inocente.
Jesus é refém,
Se calhar, de marcas tais
Serem o que é nele evidente.
A multidão o insulta,
Pedras lhe atira?
Não é de ser estulta
Nem por ira,
Mas do prazer que lhe dava
Ver alguém todo bondoso
Com a vida escrava
Da populaça:
É o gozo
Que a congraça.
O prazer de acumular injúrias
Sobre o irrepreensível, o
incontaminado!
Não foram gestas espúrias
Num momento dado,
É um sentimento partilhado
Por todos nós,
No mais fundo do coração.
- Só que, de viva voz
Ninguém faz a confissão!
532 – Instinto
O principal
É que não há protecção
Contra o instinto natural
De atracção:
- Em tais extremos
Somos barco de que remos?
533 – Namorados
Já lá vão vinte e cinco anos!
Quem diria?
De namorado são decerto enganos,
Por mor do sonho, da magia…
Como é que tão depressa nos
correram
Por entre os dedos?
Já vinte e cinco vezes
floresceram
As sementes que plantámos contra
os medos.
Os fogos da paixão domesticaram
A lareira discreta do serão,
Os filhos cresceram e hoje aram
Novo torrão.
Vinte e cinco anos de ilusão
E continuas linda
Hoje ainda
Como então!
Se outros vinte e cinco houver,
decerto,
Para mim, eis a verdade:
És meu caminho aberto,
- És cheia de eternidade!
534 – Cadilho
São cadilhos
E um cadilho é o que é capaz
De nos atar e se impor:
- Os filhos
Não é o sangue, não, que os faz,
É o amor.
535 – Mulher
Quanto mais santa,
Mais a mulher é mulher.
Então é que deveras encanta
Quenquer.
No encantamento
Acaba o mundo por ver,
Mais que a mulher,
Todo inteiro o firmamento.
536 – Cão
Um cão dolente
Reflecte o homem sofredor
Que ordinariamente
Aquele acompanha com amor.
Ao escravo triste
Segue o cão desolado
Que fiel lhe persiste
Ao lado.
O cão do pobre,
Escanzelado,
Creio até que nele dobre
O rosto do desgraçado.
- Ao sofrer um animal,
A piedade que sentimos
Não é que nele o sinal
Da libertação pressentimos?
537 – Obra
Obra de arte religiosa
Que não inspira oração
É tão monstruosa
Como uma bela mulher
Que não
Inspira amor a quenquer.
538 – Poder
O poder baseado no amor
Do povo pelo ditador
É fraco, sem garantia de renovo,
Pois depende apenas do povo.
O poder baseado no temor
Do povo perante o ditador
É forte, dura todo o ano,
Pois depende apenas do tirano.
Tem, contudo, um calcanhar de
Aquiles:
É instável.
O pavor que obriga a que te
perfiles
Só é durável
A partir do momento
Em que dele o amor seja o
frumento.
Se temo o ditador
Com amor,
Aí, sim,
O reinado não terá fim.
As asneiras,
Os crimes,
Ou são coisas leveiras,
Ou gravames que arrimes
Ao dorso
De qualquer executor sem remorso.
Um ditador
Por sistema ilibado
Pelo amor
Dura até que a morte o haja
levado.
539 – Início
No início da relação
Mil sonhos em mente
Voam…
Sapatos novos magoam
Decididamente,
Mal ponhas os pés no chão.
540 – Acaba
Por mais que lute esforçada,
A razão
Acaba sempre enganada,
Vergada
Pelo coração.
541 – Extremo
A paixão
É de extremos conhecida.
O amor, não.
Quanto mais nele me adentro,
Sendo ele o polo da vida,
É pelo centro,
Pelo centro que em mim lida.
542 – Lava-loiça
Contemplo-a no lava-loiça
E penso na minha mãe,
Na mãe dela que Deus tem,
Nas do mundo que as nem oiça…
Quem
Jamais quer ter alibi
Perante servos nem amos?
- A mãe,
A mãe que está sempre ali,
Sempre, sempre onde a deixámos!
543 – Companheiros
Agora companheiros de cotio,
Amanhã pó da história,
Cumprido bem ou mal este desvio
Para memória,
Como ignorar-te e tu a mim?
Seríamos traidores
À solidariedade umbilical,
Cósmica e sem fim,
Se amanhã virem que não fomos
actores
Do significado radical:
Onde um homem estiver ou tenha
estado,
Erguido na ponta da realidade,
Importa encontrar nele o traslado
De toda a Humanidade.
544 – Solidão
Sentir a solidão é universal.
Cremos, ingénuos,
Que, sem esforços mais estrénuos,
Uma relação sexual
Nos porá menos sozinhos.
Porém, sem comunicação
Do espírito e do coração
Nunca o sexo constrói ninhos.
Violar este preceito
Provoca feridas graves.
Mas quem é que o toma a peito,
Onde lhe opomos entraves?
Casais de infidelidade
São a raiva, o desespero,
O ciúme que os invade.
Quem dói disto o rosto vero?
As crianças, germinando,
Germinam os mesmos erros.
- Quando
Poremos tais conjunturas a
ferros?
545 - Meios
Meios de comunicar
Nunca tantos nós tivemos
E somos ilhas, a par.
De que é que nos esquecemos?
Entre os membros da família,
Quanta quezília!
Dentro da comunidade,
Que vaidade!
Entre nações
O mais que se ouvirão
Serão
Antes tiros de canhões!
Não cultivámos as artes
Nem de ouvir nem de falar,
Temos de aprender apartes,
Modos de nos partilhar.
Quando não comunicamos,
Ficamos então doentes,
E, se do mal pioramos,
Dão os mais em pacientes.
Quando é difícil demais
Uma partilha no lar,
Os recursos principais
São terapeutas usar:
Que, ao menos, por um momento
Alguém ouça o sofrimento!
O pior, ao dar-lhe aval,
É que ele, como os restantes,
Sofrerá do mesmo mal
Doutros incomunicantes.
546 – Fresta
Quem ama alguém
Há-de então ser paciente.
Só pode a sério ajudar
Qualquer negativa semente
A transmudar
Quem
Generoso e persistente
Devém.
Aí toda a semente germina
Como uma fresta divina.
547 – Paz
Adivinho
O que a traz:
Para a paz não há caminho,
É que o caminho é a paz.
Ergo-a no presente
Com cada olhar e palavra,
Com o sorriso que invente,
Com a acção que o mundo lavra.
A paz não é mero fim,
Cada pegada
Implantada
Será ou não dela um patim,
O momento da alegria
Que a felicidade pelo mundo
anunciaria.
548 – Fracasso
O narcisismo
É o fracasso do amor:
Incapaz de amar me crismo
E ao mundo em meu redor.
Estar de bem comigo
É um pré-requisito
Para bem servir os mais.
De mim ausente, nem concito
O abrigo
Dos gestos banais.
Do narcisismo a cura
Provém da comunidade,
Que a alma se configura
Doutrem na palavra que a invade:
- A ansiedade de cuidar de mim
Só pela entrega à comunidade
Terá fim.
549 – Movimento
O movimento no espaço
Ocorre: dele matriz,
Dele vaso, receptáculo,
Mãe ou ama, passo a passo
A gerá-lo de raiz,
O espaço é dele o pináculo.
Ao viajar,
É tal como se estivéramos
O útero da mãe a explorar,
Pois o mundo, se o quiséramos,
É também a nossa mãe,
Na qual vivemos contidos.
Viajar é descobrir
A alma que o mundo contém,
De que somos envolvidos.
É como ir
À nascente da verdade,
Matriz onde se anda a urdir
Nossa própria identidade.
550 – Encorajaria
Nas artes, o objectivo
Não é o mistério tornar
consciente,
O que encorajaria, recidivo,
A viver apenas pela mente,
Antes é o de iniciar
Ao mistério pela contemplação.
É ilusão
Acreditar
Que descubro a liberdade
Fora da raiz do instinto.
Ao invés,
Mais livre e envolvido me sinto,
Talvez,
Quando a fundura me invade
E a vivo num comprometimento
Que resiste à análise mental,
Evocado por um sentimento
Radical
Desperto por imagens poderosas.
- Aí é que tu, sobretudo,
A mim e a tudo
Te entrosas.
551 – Lugar
A terra natal
Não é mero lugar da memória,
É a carne da minha história,
Local a local.
Por isso é que, dia a dia,
Me acalma:
- É a geografia
De minha alma.
552 – Horizonte
Quando me ergo sobre o horizonte
da Terra
Ela chama-me "meu
filho!".
E então já nada mais me aterra,
Nem a víbora que me ferra,
Nem a pantera que me assalta no
trilho…
Um homem moderno erguido do chão
Vê lojas, estradas, casas
Em frente do camião,
Mais quantos lotes restam para
exploração
E dos incêndios as brasas…
Num mundo encantado
O primeiro olhar é teológico, não
pragmático,
Sem dogma, porém, nem fado,
De fé natural dotado,
Descontraído, contemplativo e
pouco ou nada prático.
Encantamento é ouvir a voz da
Terra
E fazer parte, fecundo,
Dum relacionamento familiar que
se aferra
Ao coração do mundo.
553 – Influxo
O encantamento
É apenas o meu reconhecimento
Da espiritualidade do mundo
E expor-me dela ao influxo
fecundo:
Que o espírito do mundo flua
Para dentro de mim…
Fico em harmonia com a Lua,
O Universo inteiro, até ao mais
longínquo confim.
Somos um mundo pequeno,
Um universo humano.
Ao modelar a vida, me condeno
A levar em conta o mundo natural
a que me irmano.
Quem somos como iremos definir,
Como imaginar-nos adequadamente,
Sem o Universo incluir
Na definição em que assente?
Não só somos o Universo
Como a natureza é humanidade
Dentro em mim, quando me converso
Em profundidade.
554 – Reflecte
O corpo humano
É o mundo em miniatura:
Em cada plano,
A natureza, a cultura,
A vida humana comum…
Caso lográramos olhar
Sem preconceito algum,
Poderíamos reparar
Nos sinais
Dos maiores mistérios da vida.
O corpo todo é corpo místico,
Cada parte um verso mais
No poema sem medida,
Dístico
De profundezas abissais:
O mundo num grão de areia,
Numa sobrancelha a vida,
Num mamilo a maré cheia,
Num pénis a desmedida
Explosão primordial…
E a nádega arredondada,
Eis o sacramento inicial
De qualquer ara sagrada.
555 – Contemplar
Felizmente
Ainda não diminuímos o poder
De o sexo provocar um desejo
fremente,
Por parte de quenquer,
De contemplar imagens.
É uma graça particular
O corpo humano enviar mensagens,
Provocar
O apetite irresistível de olhar.
Não é uma maldade,
Antes um bem desmedido,
A enorme necessidade
De fazer o que é proibido.
Saltar o jardim selado
É a medida
De viver o outro lado,
O outro lado da vida.
556 – Corpo
O corpo é um templo
Pela beleza, pelo valor,
Por abrigar o mistério que
contemplo
Da existência humana em todo o
esplendor.
Eroticamente olhar o corpo humano
É o apelo resoluto
Do fundo desejo de união acolher,
Sem dano
E em regime absoluto,
Por parte de quenquer.
Do corpo ao me aproximar,
Olhando-o e por ele sendo
seduzido,
Diante dum milagre é ter
Lugar,
Pleno de fascínio e de prazer:
- Ao céu é ver-me conduzido.
557 – Rasga
Espírito e corpo separar
Rasga profunda ferida.
O sexo é basilar
Na identidade assumida,
É uma fresta ao meu dispor
De fugir à solidão
E descobrir a alegria.
Se o secularizo, irei pôr
Meu altar inteiro ao chão,
Fica-me a vida vazia.
Um enorme caos, em tal fase,
É a bruta consequência
Fincada na base
Da existência.
558 – Cumes
A vida humana é uma porta
Para a existência:
Quem amo me transporta
À libertação
Pelos cumes da excelência,
Bailando minha cósmica
canção.
O sexo é uma passagem
Para a vida plena
Com tal imediatismo
Que é o modelo da viagem
Serena
A cruzar-nos da Infinidade o
abismo:
É o eros adivinho
Que revela o caminho.
559 – Devirei
Quando eu me apresente
Ao olhar do ente amado,
Dar-me-ei de presente,
Abandonando de lado
Meus escudos de defesa.
Exponho-me ao olhar atento
De que serei presa
Como de nossas almas à reflexão
E ao intento
De comunhão.
Não é o corpo físico apenas
Que está sendo visto,
É meu próprio ser:
Em mil coisas pequenas
É que existo,
Como quenquer.
No acto de despir-me
A emoção funda que afirme,
A inibição e o prazer
Que sentir quando me expuser,
Não é corpo mero,
São estados de espírito subtis
Que pondero:
Aí crio e recupero
Meus mais significativos perfis.
Em qualquer vida o instante
De visível se haver tornado
É deveras importante:
- É ser revelado.
560 – Divindade
A divindade do amor atrai
Mas continua a ser esquiva,
Inviável de possuir, logo se
esvai,
Extremamente desejada, é
fugitiva,
Definitivamente inatingível:
Porque a divindade, que não
engana,
Não pode ser retida,
Credível,
Nem definida
Dentro da esfera humana.
561 – Talvez
Talvez importe o sexo à luz do
dia,
Ao ar livre, em pleno ar,
Ter tempo e privacidade para
olhar,
Vestir de fantasia,
De modo revelador, acaso
provocante,
Ter pinturas e fotos nas paredes…
- Adiante
O que vedes
É que deviremos do olhar à
subtileza
Mais receptivos
E doravante
Ao convite menos esquivos
Do eros feito espírito e beleza.
562 – Mística
A mística do sexo
Provém duma rendição
Igual à que de nós requer a
paixão,
Doutrem o amplexo,
Os mistérios da vida
A que o sexo normalmente nos
convida.
A sexualidade da penetração
É de hábito salientá-la.
Ninguém fala
Da de ser aberto,
Acolhedor,
Receptivo.
Ora, a vulnerabilidade é que mora
Mais perto
Do amor
Vivo.
E mesmo cativo,
Como a revelação demora!
563 – Vários
Ser sexual é devir receptivo
A vários tipos de penetração,
Do amor, da intimidade, da
paixão,
Das influências a que não me
esquivo,
Dos exemplos que me dão a mão,
Dos ensinamentos que dia a dia
arquivo…
Admiro mestres e especialistas,
Médicos, enfermeiros, jogadores…
De tanto às vezes serem os
maiores,
Prendo-me de formas imprevistas:
A receptividade
Ao cuidado profissional
Leva a que me agrade
Aquele agente individual,
Tornando-me vulnerável.
Talvez não entenda o eco sexual
Inescapável
Da vulnerabilidade,
Acabando chocado
Com minha reactividade
Àqueles por quem sou ajudado.
A mais pura receptividade,
Porém,
Contém,
Implícita, a sexualidade:
Nenhum ovo germina
Sequer
Sem uma qualquer
Forma de semente divina.
564 – Lado
Há um lado sombrio
Na vulnerabilidade,
Quando me desvio
Da sanidade,
Quando, excessivo,
Doutrem à influência
Devier receptivo.
As flechas do amor podem alertar
Para a malevolência
Do desejo,
Restituindo, se calhar,
Algum pejo
À ingenuidade
De qualquer vulnerabilidade.
Concomitantemente,
Maior receptividade
Aos convites da vida,
Eis um remédio eficiente
Para qualquer ferida:
Um tipo diferente
E mais profundo
De acolher-me a mim e ao mundo
Pode acabar com o hábito de ser
demasiado
Vulnerável a qualquer seta de
lado.
565 – Sexo
O sexo pode ser mecânico demais
Ou brando em demasia.
O bom sexo abandona para trás
A realidade comum,
Entrando na lonjura pela via
Da sensação,
Do imaginário,
Da paixão,
Da fantasia…
- Aí, na terra de lugar algum,
É que, primário,
Tudo principia.
566 – Afecto
É no afecto natural
Que o sexo principia.
Como a raiz do afecto é
espiritual,
O sexo fluiria
Com naturalidade
Do vigor
De nossa espiritualidade,
Através do amor.
Por quê tanta complicação
Entre as gentes?
- É só ter no chão
Os pés assentes…
567 – Borbotam
O sexo da santidade
Ao separar,
Poderei julgar
Que da espiritualidade
Mais elevada o separo,
Até da inteligência.
Então
Deparo
Com uma religião
De indigência:
Prática mental assexuada
De árida compreensão,
Divisão
De teologias, cada qual em sua
estrada,
Em lugar da aceitação
Apaixonada
Dos mistérios que borbotam com
furor
Da vida, em cada pendor.
Se a religião recuperara
De levar ao êxtase o poder
perdido
E tanto se não separara
Do sexo e da paixão,
Teria podido
Dar-nos o sabor
Da comunhão
No vergel mais encantador
E físico da vida:
Apreciaríamos a espiritualidade
Conseguida
Num olhar erótico, na suavidade
Dum toque, no beijo, no abraço…
Religião e vida sexual
Ganhariam então cada qual
Profundidade
Por dentro do próprio espaço.
568 – Vívida
No sexo, um imo
De intensa emoção e vívida
fantasia
Explode num indivíduo real
E cria
O momento do cimo
No vulcão radical:
A plenitude a vida atinge
E a razão nos foge,
Finge
Que o eterno é hoje.
As brincadeiras amorosas
Têm a primazia,
Dengosas.
São, todavia,
Umas férias
Enganosas:
Nada tem
Implicações mais sérias.
Mesmo imperfeito,
O sexo conduz muito para além
Do terreno,
Olhares e toques levam a um
transe de tal jeito,
A um estado de consciência tão
pleno,
Que é fantástica a emoção,
Imaginário o evento,
E o chão
Não é mais onde me sento.
Qualquer alma anseia
Por esta fuga à realidade
literal.
Não espanta que o sexo, afinal,
Seja tão irresistível quando
ameia.
Não é só corpo animado
Mas alma, todavia,
Que o desejo sente em demasia
E sempre com ela vive, portanto,
conluiado.
569 – Ateia
Cremes e perfumes,
Intimidade, música, veste
particular,
- O que ao sexo ateia os lumes
Leva a atingir o limiar.
Este limiar de consciência
Às almas diz respeito,
Não é da vida comum uma
ocorrência.
Falamos dum jeito
Que comummente não falaríamos,
Fazemos o que aí é apropriado
Mas que, em qualquer outro lado,
Jamais faríamos.
O sexo implanta um domínio
Com linguagem própria, ritos e
costumes,
Com ideais dele cujo fascínio
Torna transparentes os tapumes
E rebrilha nas relações, afinal,
Em nós mesmos e na vida
espiritual.
A espiritualidade inerente ao
sexo
Extraí-la, afinal,
É o amplexo
Dum orgasmo físico e emocional.
É ser generoso
No acto sexual
Ou permitir, saboroso,
O espírito do amor no rasto da
vida,
O prazer, a intimidade
Acolhida
Numa receptividade
Bem medida.
Aqui é que principia
Para um outro mundo a via.
570 – Indicia
O sexo indicia a imortalidade:
Para fora de nós nos leva e o
tempo pára.
O grau de intimidade
Que envolve não o compara
Ao de qualquer etiqueta
colectiva:
Eleva o relacionamento
A uma postura tão altiva
Que nenhum comunitário
entendimento
Igual cultiva.
Há milénios os rituais
O empregam, clandestino:
É metáfora poderosa demais
Do encontro com o divino.
Sexo com amante humano
Indica o mais fundo do imo,
Ali, donde emano,
Sem o pressentir sequer,
Da raiz até ao cimo,
Sobre-humana união com a base do
ser.
A vida comum é o ponto de partida
Para a jornada
Do misticismo rumo à encumeada
Inatingida.
No sexo cada membro do par
É o limiar
Mediador:
Acolhendo a paixão
Devém anjo do Senhor,
Representante radical
Da ordem espiritual.
Através do parceiro, cada qual
vislumbra
Algo que da criatividade humana
Jamais emana
E o deslumbra.
571 – Cultivar
Cultivar o afectivo e o sensual
É parte
Da prática espiritual.
A literatura desta nos reparte
O amor, dito importante,
Por um modelo abstracto,
Tão seco e universal,
Que não pode ser sentido.
Ora, o garante
Do pacto
Com o imo mais fundamente vivido
É o amor humano
Com toda a emoção e sexualidade.
O amor sensual do afecto emano,
E ele logo o sexo invade,
Dando-lhe alma para não devir
Agressivo, manipulador, vazio.
Quando o afecto se esvair,
Deviremos passivos.
Quando fluir como um rio,
Deviremos activos,
Nossas vidas e nosso coração
Influirão
Nos vizinhos e no mundo,
Espiritualidade da emoção,
Não do conceito infecundo.
E uma cultura ávida de afecto
Encontra mil várzeas no projecto.
572 – Sintoma
Sem alma, a moralidade
É moralismo:
Sintoma em que me abismo,
Complexo neurótico com que cismo,
Que o julgamento me invade
E embota.
Não é moral verdadeira,
Mas tentativa falhada
Que adopta
Por norma derradeira
Uma postura fanatizada.
Recuperar alma, também
É ter vida moral satisfatória,
Itinerário profundo e positivo
Como convém
A uma vida meritória
Em harmonia com a natureza,
Com o eu que em mim vivo,
Com o ente amado que os dias me
embeleza,
Com os amigos, com a comunidade…
A moral, porém, não é uma
entidade
Definida e acabada
E criá-la não é lição
À ligeira ensinada.
É vivaz e em perene mutação:
Dela o desenvolvimento
Corre de mãos dadas
Com o amadurecimento
De nossas vidas em todas as
estradas.
573 – Pendor
De vários modos, solteiro
É um pendor de ser casado,
Que este não deve por inteiro
Haver aquele obliterado.
Meu projecto laboral
Viverei matrimoniado
E a decisão pessoal
De igual modo hei ponderado.
Em algo de mim, porém,
Viverei sozinho:
É sozinho que descubro o que
fundo me convém,
Num esforço adivinho,
E nem sempre há maneira
De tal devir aceitável
A minha parceira;
É só que acaso requeiro tanto de
mim
Que porventura era inviável
Operá-lo com ela até ao fim…
Algumas travessias me preferem
Como indivíduo, não como casal.
Celibatário me auferem,
Não num recorte literal
Mas num jeito metafórico e
profundo
De tomar em mãos, nalguns
momentos,
Meu íntimo mundo
E o eco de meus relacionamentos.
574 – Ritual
O sexo é a religião
Do casamento:
É deste a contemplação,
O ritual, a prece, a comunhão
E o encantamento.
A sexual dificuldade
Quando é resolvida,
A trilha da felicidade
Quando é perseguida,
Das almas o alquímico labor
Desempenhamos,
Frustrações, bloqueios e horror
De antigos papões, nossos amos,
Transmudamos
Na novel arte gostosa
Duma erótica satisfação valiosa.
É num casamento deveras
importante
O sexo praticar até torná-lo
Livre de interferências,
Já que a alquimia do instante
Leva do imo ao abalo
No íntimo regalo
Das vivências:
De rudes e primitivos
Devimos gente refinada,
Capazes de unir-nos, vivos,
Aos mais em toda a humana
caminhada.
Devir Deus
É ir germinando este Nós dentro
dos Eus.
575 – Busca
O sexo conjugal
Vai muito além
Da busca de amor e de
experiências.
É um tipo de ecologia, afinal,
Um modo de conviver também
Com o mundo e suas potências,
Porém,
Com responsabilidade:
Plantando sementes de amor,
Ajuda a formar comunidade
Onde a união é requerida.
O contexto comunitário vem apor
Ao sexo conjugal
Uma nobreza inatendida
Que, afinal,
É dele a matriz original:
- A Humanidade me cria
E a recrio cada dia.
576 – Juntos
Fiquem juntos, fiquem,
Mas não demasiado.
As colunas do templo, verifiquem,
Têm o pé bem afastado.
O bom casamento tem um pendor
Em que um e outro se escolherão
Cada qual o par tomando como
protector
Da própria solidão.
577 – Fundo
No fundo de toda a vida,
A sensação
De faltar algo e de ela andar
dividida,
Arquetípica, visceral separação.
Levar tal ansiedade ao casamento,
Esperando que o outro encha a
lacuna,
Inteiro recole o dividido
tegumento,
Encher é de areia a duna
Que em breve dispersa o vento.
Não é meu par
Que me torna inteiro,
É o próprio casamento
Que trata, singular,
Do argumento
E do guião
De algo me faltar
Na radical solidão.
578 – Gostar
Podemos não gostar da solidão
Que nos leva a casar
E também não querer deixar
De ser o solteirão,
Para viver com alguém
Na limitação
E desafio que daí advém.
Há muito quem se veja ambivalente
No matrimónio que tem
E, secretamente,
Alimente
A fantasia
De divorciar-se algum dia.
Quem gosta
Com autonomia,
Num relativo afastamento,
É que afinal garante a aposta
Do casamento.
579 – Artístico
O sexo é das almas o artístico
labor:
A busca do par, o encontro de
amor,
O convívio, a ida para a cama,
Revelam elementos profundos e
secretos
Por trás da rama
Dos campos e aspectos,
São o mito
Em que acredito.
Ali buscamos alma,
Não a minha nem a tua,
A do sopro da vida
Que nos acalma
E convida,
A da centelha que flutua
Na escuridade
E ao sentimento empresta a
vitalidade.
Buscar a felicidade
É buscar esta faúlha
De alma desperta
E o ânimo, cuja agulha
Recose de sentido, na hora certa,
Cada ruptura aberta,
Com a sabedoria e a compreensão
Que sempre hesitam
Mas em nós habitam.
Alma e ânimo em outrem vislumbro,
Então,
E desejo-o sexualmente
Enquanto me deslumbro,
Visando momentaneamente
Que a centelha fulgure,
Que a vida vá pulsando
E que o significado enfim se
inaugure
Sem mais como nem quando.
580 – Dois
Quando dois casados
Em alma se adentram,
Menos neles se concentram,
Nos egos edulcorados,
E mais no casamento,
Na vida que juntos têm,
Nos filhos, nos vizinhos também,
No labor, do mundo no momento…
Tudo ao lar anda ligado,
Como ao sexo, estranhamente.
O mundo inteiro acaba deitado
Na cama comigo intimamente,
Que as almas a fronteira não
conhecem
Que os egos estabelecem.
Um ego impõe limites
E as almas correm sempre a
superá-los.
Ficam quites
As almas individuais, da família
e do mundo,
Tão inseparáveis, tão fundidas,
sem intervalos,
Que umas e outras, no fundo,
São um mesmo e único gesto
fecundo.
Quando um casal se abraça
É o mundo inteiro que ele enlaça.
581 – Prazer
Apesar
Do prazer de olhar,
Do sexo a verdade inamovível
É muitas vezes invisível.
Grande parte da união,
Dos olhares,
Da satisfação,
Dos actos entre os pares,
De despir,
Tocar,
Acariciar,
De sorrir,
- Pasmas
Ao descobrir
Que é uma actividade
De fantasmas.
A generosidade
Com que os amantes se dão
Envolve desejos empolgantes
E infiéis
De representar de muitos amantes
Os papéis.
E o prazer vem da visão
Intensa,
Prenhe de gozos,
De que anda ali uma qualquer
presença
Dum dos amantes misteriosos.
582 – Evocam
Do sexo os ritos
Evocam mitos.
Visam comprometer o
relacionamento
Com os amantes misteriosos
Que apenas dos sonhos no momento,
Em devaneios saborosos,
Logramos encontrar.
Como o amante de alma não é deste
mundo,
As tentativas para o incarnar
São, no fundo,
Um pouco desapontadoras.
- Mas continuamos, a desoras,
A tentar.
583 – Amante
Do sexo a verdadeira
essência
É o amante misterioso
- Eis a evidência,
O segredo mais valioso,
Porque o sexo da alma
É o segredo da alma do sexo,
Cujo amplexo
Nos acalma.
A ânsia das almas pelos próprios
amantes
É tão forte
Que desesperadas, à sorte,
Os buscam, constantes.
Deles espiam qualquer
manifestação
E arranjam a vida de modo,
afinal,
Que ele ou ela tenham alguma
incarnação
Em nosso relacionamento actual.
584 – Possuir
No desejo de possuir quem amamos,
Fantasia sexual que não requer
ser agressiva,
Difícil de reconhecer acaso
achamos
A multidão que, viva,
Se uniu a nós na cama.
Quem dedicação mental e emocional
Deseja de quem ama
Total,
Busca sádico controlo.
Ora, o prazer mais profundo
Exige às almas dar colo
E não ao corpo apenas,
Já que o mais fecundo
É das subtilezas de alma o mundo,
Das maiores às mais pequenas.
O bom sexo aplica
E suplica
Um novo apego,
Implica
Viver noutro lugar além do ego.
Pode parecer
Que o desejo sexual
Ruma ao próprio prazer,
Quando o ideal
Pode não ser nosso de forma
alguma:
Dele a intensidade
Talvez o resuma
À perda do ego numa relação.
A ironia
É que o sexo em profundidade
Vive o paradoxo desta implicação:
Deveras começa
Onde leva a perder a cabeça…
585 – Anseio
O anseio de entreter
Os filhos de formas inesquecíveis
É neurose dum adulto qualquer.
O que os filhos querem,
previsíveis
Nos engodos
Leveiros,
Somos nós, nós todos,
Inteiros.
O mais
São equívocos banais
De quem
Afinal não se entrega bem.
586 – Pés
Houve momentos
Em que meus pés me não falharam,
Em que em mil encantamentos
Meu corpo e o dela voaram
Tal se foram um apenas,
Como se a fazer amor
Em leito de penas
Estivéramos da vida no alvor.
Um do outro nos braços
Mais próximos nos sentíamos,
Protegidos nos abraços
Por onde fluíamos…
Voávamos
Pelos espaços…
- Enfim, dançávamos!
587 – União
É o sexo a união sagrada
Com tudo a que podemos aspirar.
Vem-nos ajudar
Ao espírito a ser receptivos
Que, duma assentada,
Nos cria as vidas e sustenta o
mundo,
De modo a ficarmos cativos
De corpo e espírito a um
casamento fecundo,
A atingirmos um cume de
significados
Numa vida sensual e activa por
inteiro germinados.
Viver espiritual
E sensualmente
Atinge o pico e tem incarnação
ritual
No sexo presente.
Quando deixamos o ego se afastar,
Entra o espírito em lugar.
A paixão resultante é o sinal
De que atingimos o nível sexual
Requerido
Para devirmos receptáculos vivos
De espíritos que aspiram a ficar
Cada qual mais unido
A nossos corpos expressivos.
Vivem eles e nós os vivemos a
par,
Somos um no Todo transfundido.
588 – Entregar-se
O amante misterioso evocar,
O cônjuge escondido,
Não requer um ritual particular,
Uma linguagem de mágico sentido.
Algo mais difícil impõe
E nada à toa:
Generoso meu controlo põe
Na mão doutra pessoa.
Como o místico aconselhado
A entregar-se ao jeito da união
divina,
O cônjuge é solicitado
A entregar-se ao parceiro e ao
casamento
Sem reservas, como quem se
inclina
Ante uma sina,
E sem desvendar, de momento,
Quem, afinal, venha a ser
O parceiro que tiver.
Não é masoquista degradação,
Auto-aniquilamento,
Antes da caridade
A mais funda expressão,
O amor espiritual que invade
A paixão erótica do casamento
E visa a meta
Que a satisfaz e completa.
589 – Superou
Decadente
É quem superou, gradual,
O inconsciente,
Porque a inconsciência, afinal,
É o fundamento da vida:
Se o coração pudera pensar,
Iria parar
De seguida.
590 – Recantos
Todos os recantos já foram
vividos,
Revividos,
Milhares de vezes
Pelos desaparecidos
Que transportamos em nossos
conveses.
Como as miríades de seres
Que virão a existir
Fazem parte de nossos haveres,
Sementes que somos de porvir.
Por que é que das partículas
inumeráveis
Que em nós flutuam
Umas apenas e não outras são
viáveis
E nos actuam?
591 – Bolo
Nunca vivo sozinho,
Mormente
Quando não me encontro com mais
ninguém,
Bocadinho
Do enorme bolo envolvente
Do mundo que me contém.
Nunca existi separadamente,
Nunca em mim pensei
Como sendo a grande bola
Onde a vida se me enrola
Nos artigos e parágrafos da lei.
Quando estou triste
É o mundo inteiro que em mim
existe
E choro o meu mal
Como partícipe duma tristeza
universal.
A minha dor sempre foi
O mundo inteiro que dói.
E, quando rio, não sou eu que
rio,
É a Terra, a Lua, o Sol,
São as estrelas a fio,
O Cosmos às risadas no meu rol.
592 – Pobres
Os homens são pobres em toda a
parte,
Sempre o foram e sempre o serão.
Sob a terrível pobreza, porém,
Aparte,
Num desvão,
Há uma chama.
Em geral tão fraca a têm
Que invisível se conclama.
Mas existe, todavia,
E, se alguém
Tivera coragem de a soprar,
Podê-la-ia
Num incêndio transmudar:
Se lhes não podes dar trabalho,
dá dinheiro;
Se lhes não podes dar dinheiro,
dá coragem;
Em vez dum ralho, um sorriso
prazenteiro,
Uma palavra amiga para a viagem…
O efeito é inebriante.
Ninguém pode avaliar o resultado
Derivado,
Constante,
Dum bom acto, dum gesto de
bondade:
É a gratidão,
Os votos de felicidade,
Convites para o serão,
- Mil patéticos presentinhos
Que não valem um tostão,
De tão comezinhos,
Mas onde pulsa terno um coração.
593 – Perda
A perda de nosso eu peculiar
É que entristece.
O pão de centeio saborear,
Recém-colhido na messe,
Que participou na feitura
De nossa personalidade,
Pão de comunhão que assegura
Que a cada qual tanto agrade
Quanto a graça que tiver,
Como o deixámos perder?
Comemos agora o mesmo pão,
Porém sem a comunhão,
É para encher a barriga,
Mas sem graça,
Já que a fome a tanto obriga
E o tempo tudo o mais deslaça.
Comemos o pão,
Mas está gelado e vazio
O coração.
Vivemos separados
Na fome e no fastio,
Mas não estamos individualizados:
Quebrámos o fio
Que tece a pessoa por todos os
lados.
594 – Terrível
Do mundo que terrível a inaptidão
Quando posto cara a cara com a
verdade!
De laços de sangue e de amor a
união,
Que estupidez, quando não a
persuade
O singelo recado
Do que é espiritualmente inspirado!
A lei, a tradição,
O código genético,
Sozinhos apenas são
Um patético
Não.
595 – Significado
Há momentos em que temos de
romper
Com os amigos, de verdade,
A fim de compreender
O significado da amizade.
Às vezes um livro é a ferramenta
Com que ceifo amigo a amigo
Que já me não alimenta
Nem é meu porto de abrigo.
Dá-me a coragem de ficar só,
De apreciar a solidão,
Mesmo sendo eu o grão de pó
Que do livro nem terei
compreensão.
Há maneiras de não compreender
E a diferença entre a dum e a
doutro cria
A terra firme onde principia
A hipótese de eu vir a ser.
596 – Mundo
O mundo é para mim um museu,
Um terreiro de festa.
Nada mais presta
Senão ir comendo o toucinho do
céu
Que os homens de antanho,
Por inúmeros chãos,
A nosso ganho,
Nos vieram abandonando nas mãos.
597 – Eternidade
Viver a eternidade dum instante,
Não mais futuro, nem projectos,
nem impaciência,
Tudo com sentido daí por diante,
Da plenitude perante a evidência.
Com a aguda consciência
De ser fragmento dum todo,
Sentir que ele vive intenso
dentro de mim
E me não pertence, afinal, de
nenhum modo.
Como se, imperativo e terno,
Oriundo de ignoto confim,
Me penetrara o sentimento do
eterno.
598 – Amor
Um homem pode ser amado
Pela sua obra.
A mulher, por seu lado,
Outro amor cobra:
Pretende ser amada
Por ela mesma e mais nada.
599 – Maldita
A maldita contradição
Da vida militante:
Das carreiras profissionais
função,
Dum ideário missão,
Ou dum sonho, duma obsessão,
- Sempre o custo pago adiante.
Quanto mais pelo lar milito,
Mais o labor dele me separa,
Como um delito,
E meu verdadeiro fito
Jamais se me depara.
Quão mais vitorioso sigo em
frente,
Mais do lar acabo ausente:
- Quanto mais venço na lida,
Mais derrotado na vida.
600 – Malha
O abraço
Atinge muito além do braço,
Intérmina malha humana,
É o enérgico baraço
Que do pião arma a gincana,
Ou antes uma espiral
Do turbilhão dum tornado,
Por todo o lado
A semear o cósmico sinal
Em que se misturam e fecundam,
com desembaraço,
O homem e a Natureza
Quando aquele finalmente a preza,
O homem e a mulher
Quando o amor o quiser,
O homem e Deus
Quando no horizonte maravilham os
céus.
601 – Impressão
Dias inteiros na cama,
A impressão de não sermos nada
Só porque ninguém nos ama,
Lixeira abandonada…
Ninguém nos estende o braço,
Ninguém quer nada de nós,
Nem sequer para chegar-nos o
baraço
De corrediços nós…
Como aguentar
Ser nada em nenhum ligar?
602 – Antes
Antes logicamente de existirem
por destino,
Antes de se haverem os mundos
configurado,
O Ente divino
É nele mesmo o amor, o amante e o
amado.
Ora, quando é que nós
Atamos, de nosso lado,
Sobretudo,
Os laços e os nós
A Tudo?
603 – Novo
Facto novo em nossos dias
É que a visão planetária do Uno
Não é já um ideal que buscarias
Mas a realidade a que me coaduno.
De quem a transgredir, a sorte
É a pena de morte.
Do míssil-átomo a junção mortal
É a ameaça total:
Das forças o arcaico equilíbrio
Deveio equilíbrio do terror,
Cada qual outrem pode destruir,
sem ludíbrio,
A ele próprio se destruindo no
mesmo fulgor.
O satélite alarga o campo da
televisão
De modo que o mundo nos cabe na
mão.
O mercado mundial
Torna duns o subdesenvolvimento
O corolário do crescimento
Dos outros, afinal.
Um e Todo já não são
Mero apelo ou utopia:
Do real o coração
Mostra a ciência de hoje em dia:
O átomo individual
Separado no vazio
Revela uma universal
Interacção onde enfio
O Cosmos como um rosário:
Tudo mergulha as raízes,
Solidário,
Nas respectivas matrizes
Até aos confins do Universo.
Tudo voga sem fronteiras
Num oceano de energia
Sem margem e sem reverso.
Tudo é habitado, em todas as
jeiras,
Por tudo o mais, na lei que tudo
uniria.
Cada qual,
No fundo,
É todos os outros, afinal,
- E é o Mundo.
604 – Consciência
A consciência da presença,
Do eterno presente do Todo na
vida dum só,
Leva a exorcizar a morte.
Quem a não tem lavra a sentença,
Grão de pó
Vogando à sorte:
Incônscio de pertencer à cósmica
comunidade
E de ser responsável pelo destino
de cada um,
Reduzido à solitária identidade
Vulgar e comum,
Fica votado ao mero
Desespero.
É o abismo
Do corte:
O individualismo
Engendra o medo da morte.
605 – Eternidade
A eternidade não é o vazio
Das abóbadas escuras
Em que se repercutiu
Em vão, sem fim, pelos infinitos,
O eco de nossos gritos.
Quando a bem apuras,
A eternidade é presente
Em cada instante,
No Todo que se sente
Em qualquer fragmento que nos
perpassa diante.
Inscreve-se para sempre cada um
de meus actos
Dos homens no destino:
Se humilhei alguém, os factos
Corroerão outras vidas que lento
elimino,
Empobrecerão
Em desatino
A mútua comunhão;
A esperança que lhe pude transmitir
Pela fecundidade da alegria
Ajudá-lo-á a prosseguir
Através da escuridão de cada dia.
Daqui germina, até dar flor,
Um futuro melhor.
Respondo pelo que cada um de meus
gestos
Tem de eternidade.
Reciprocamente, tais aprestos
Constroem a minha realidade:
A epopeia milenária dos homens é
assim
O que ecoa, eterno, em mim.
606 – Milhões
Milhões e milhões de mortos bem
vivos
Gritam-me, em meu imo, para
actuar
O que eles, durante séculos,
milénios,
Nem puderam sonhar,
Nestes íntimos, furtivos
Convénios.
Cumprindo por igual a lei,
Cobrirei os mesmos trilhos:
Pelas eras fora gritarei
Nas entranhas de nossos filhos.
607 – Nós
Nós que aqui vivemos de ano em
ano,
Com nossos mortos de antes,
nossos mortos de depois,
(Os mortos ainda não nados
em futuros arrebóis)
Somos um único oceano.
Deste pano
De fundo
Me inundo,
No desengano
De que Eu é que sou fecundo.
O Todo, finalmente, acalma e
satisfaz
E então vivo e morro em paz.
608 – Forças
Sinto dançar em mim
As forças do Universo.
Todas habitam assim
Meu coração converso.
Mergulho nelas para reviver
Como um desejo noutros corações
que a tocar vier.
O milagre da ressurreição
Das leis da natureza
Não é uma violação,
Antes a confirmação
Da lei profunda que nela reza.
A ressurreição ocorre, sem magia,
Em cada dia.
Do mundo neste quotidiano
nascimento
Desejo ser, ao apelo do profeta
original,
Um dos que lavram o dia de
alimento
Desde a aurora ao crepúsculo
sideral.
Então poderei acolher a morte
como uma amiga:
Na perspectiva da minha história,
A morte tudo interliga
A partir do fim dela,
Como malha de entretela
À véstia cosida em viva memória.
A esta luz encaro
Meu passado transcorrido
E nele descubro, deparo
Com meu fio de sentido.
609 – Suficiência
Contra a suficiência do
proprietário
Ficar solidário
Com a vaga de pedintes
impenitentes
De todos os continentes
É como eles sermos responsáveis
pioneiros
Da tomada de consciência que
propaga
Os fins derradeiros
Desta vaga:
O Êxodo dos escravos de qualquer
faraó,
Sonhos e revoltas de todas as
eras,
De todos os mundos, mesmo já
feitos em pó,
Contra as opressões, em nome das
esperas.
Eis como elevamos quem se
encontra só
Rumo a solidárias outras esferas.
610 – Experiência
A experiência do universal,
Ser um com o Todo,
Não nega o que há de pessoal,
Eleva-o, ao invés, como um
engodo,
Para além de todos os limites:
Os palpites
Que me chegaram de fora
E me reduziram a um indivíduo
mero,
Com uma cultura que em mim mora,
Preconceitos de classe que
venero,
Ou de nação orgulhosa, impante,
Todo o sectarismo mutilante…
Apenas se realiza alguém
Quando não vive exilado
Em seu reduto de aquém,
Do meio dele espartilhado
Pela sedução
Ou pela parcialidade da educação.
Experimentar o universal
É experimentar o eterno, cimeiro,
Experimentar a morte como
libertação final
De meu condicionamento
derradeiro:
Meu corpo, minha ilusão
De estar fechado neste saco de
pele
Que me isolaria, enfiado no
alçapão,
Do resto do mundo alheio a ele.
Quando minha vida verdadeira,
afinal,
É participação
Numa natureza e numa cultura
total:
Perpassa em mim
E corre o Cosmos inteiro, do
princípio ao fim.
611 – Êxtase
Amor, primeiro exploração fora de
si:
Mesmo dos corpos na união
Onde buscas o êxtase de teu
próprio frenesi,
Vives a nostalgia do não,
Necessidade do que não mora em
ti:
Ultrapassagem de teu sofrimento,
Instinto de eternidade a perfurar
pelo momento.
Amor em que por ele próprio amas
quem amas,
Preferindo a alegria dele à tua,
A vida dele à tua.
Sobre cavalheiros e damas
Actua,
Ensina o sacrifício,
A lei da vida total:
No início
Se esconde o final.
O amor não é da vida um momento,
É a revelação do sentido dela.
Não é um elemento,
É toda a sequela.
Qualquer amor verdadeiro
É amor de Deus:
Amar em cada ser o acto pioneiro
Que o criou, gesto dos céus.
Neste amor ouvi o mar
Dentro em mim a marulhar.
Participar no projecto do
sentido,
Sentindo que minha vida apenas se
faz com a Vida,
Contém nisto a eternidade:
Eternidade do projecto vivido
À medida
De cada instante, assumido
De verdade,
Até à derradeira profundidade.
612 – Naquele
Naquele para quem a vida
É do ser peregrinação,
No amor da participação
No projecto divino,
A morte ocorrida
Não é destino,
Nem lhe ultrapassa os limites:
Findos os apetites,
O pequeno eu se apaga
E eu volto a ser Um,
No infinito Eu-Nós comum
Que finalmente me afaga.
613 – Vinho
Que pode ser senão sonho
O amor de qualquer mulher?
Amei antes do tempo em que me
ponho:
O temporal amor que então tiver
Tem para mim o gosto
De lembrar, no vinho que bebi,
O sabor do mosto
Que perdi.
Será que um dia
A aberta janela
Me rasga a via
Rumo à estrela
Fugidia?
- Ah, maldito fado
De deus eternamente adiado!
614 – Marcos
A confiança
Que os outros em nós depositam
É o cadinho
Que alcança
Depurar os marcos que delimitam
O nosso próprio caminho.
615 – Carro
Guiar um carro com alguém
De quem gosto tal intimidade cria
Que meu carro é também
Local que me confidencia,
Partilha segredos comungados de
mãos dadas,
Verdades doridas trocadas…
Todos, afinal, crescemos nele,
Incluindo eu, que sou quem o
impele.
Testemunhou mais trocas de humor
Que um festival de crianças,
Riso, alegria, raiva e amor,
Zangas, palmas e danças
De mil intentos
De pés desvairados pelos
assentos…
Disparates tais e tantos
Que tudo são memórias de mil
encantos.
- Meu carro, meu pequeno lar, meu
mundo,
De quanta sementeira nele me
fecundo!
616 – Lei
Privilegia a lei de adopção
O estado civil e o rendimento.
O amor, não.
Ora, o amor pesa mais que o
alimento.
As crianças têm a misteriosa
percepção
De serem ou não amadas
E vão
Para onde as olham como fadas.
O trágico da miséria infantil
É que não é apenas pobreza
financeira:
Muito lar rico sofre de imbecil
Negligência parental rasteira.
Amor
E não dinheiro,
Eis o fio condutor
Para o Homem inteiro.
617 – Crianças
As crianças não escolhem as
asneiras:
Num lar de quentura,
Vivem amor e ternura
E também orientação, mesmo em
meio a brincadeiras.
Não tem graça quebrar regras
Se não há regra a quebrar.
E, pior, como te alegras,
Se ninguém a se ralar
Anda na tua peugada
Quando uma regra é quebrada?
618 – Descobrimos
É quando estamos preparados
Para morrer
Que descobrimos, fascinados,
Como viver.
"Oh, meu Deus!
Estou na recta final,
É melhor aproveitar bem."
E, entre os meus,
O principal
É fruir a festa que ao dia
convém.
No extremo da vida,
Quando lá nos pomos,
É que tomamos deveras a medida
Do que somos.
619 – Humano
O ser humano é paisagem
À luz do sol.
Cada momento é diferente,
Com a beleza da triagem,
Um cunho próprio no meio do que
bole.
Ter arte ao lidar com toda a
gente
É olhar o deslumbramento desta
vista
Com olhos de artista.
620 – Cercado
Cercado pelas paredes da solidão,
Creio que o inferno
É uma prisão
De minha própria invenção,
Onde me interno,
Tijolo a tijolo, com furor,
Até me isolar de todo o amor.
621 – Olhou
Ele olhou para ela
Tomado pelo temor respeitoso
Com que no céu olhamos uma
estrela,
Um pôr-de-sol majestoso,
As imensidões de Deus…
- …E viu abrirem-se-lhe os céus!
622 – Despontar
É tal o amor
Como o amor que deverá sentir
O caçador
Por quanto despontar vivo:
Não o logra exprimir,
Quando mais fundo e melhor arda,
Doutro modo nem através doutro
motivo
Que não seja apontar-lhe uma
espingarda.
623 – Conhecia
Ainda não conhecia o amor.
E, sem o amor, que é que vale?
De que vale arriscar com fervor
Se se ignora o vero sabor
Da vida que nos iguale?
Como arriscar a vida
Quando dela nem sequer tenho a
medida?!…
624 – Deveras
Conheceram-se.
Ele conheceu-a e a ele próprio se
conheceu,
Já que deveras nunca se
houvera conhecido.
Conheceram-se.
Ela conheceu-o e a ela própria se
conheceu,
Já que, embora sempre se houvera
conhecido,
Jamais se reconhecera daquela
maneira.
Bastou ele ser parceiro e ela,
parceira:
- Penetraram no mundo novo:
conviveram-se.
625 – Ama
Não amas de verdade,
Amor:
Quem ama quer a felicidade
E repele a dor.
E quem ama quer apenas o amor,
Ainda que para tal
Seja fatal
A dor.
De propósito faz sofrer,
Por outro lado,
Para a certeza ter
De ser amado.
Não digas que não admitirás,
Que selas de vez os cofres:
Uma vez que amas, sofres
E nunca terás paz,
Embora doutra busca não sejas
mais capaz.
626 – Ciúme
Está bem, és ciumento.
De submeter o ciúme à razão
Pior é teu intento.
Tornas o amor mais eficaz, não?…
Raciocinas demais:
Alguma vez o amor foi racional?
Pensando, amas mais?
Todas as coisas, mal
As penso, vêem a força aumentar.
No amor, porém, tal
Nunca logrou ter lugar:
O amor mais a razão
Muito raro dão a mão.
627 – Encontrar
Nem sempre encontramos
Nossos semelhantes…
Nem sequer, porém, escapamos
De encontrar, em alguns
instantes,
Nossos semelhantes no inevitável
lugar:
- Dentro de nós moram, de nós a
par.
628 – Casa-te
Casa-te, amigo, casa!
Sabes lá o que sozinho
É viver perdido em casa
Nas horas do desalinho!
A solidão
Como angustia,
À noite, junto ao fogão,
Quando o calor arrepia!
Sozinho sobre o planeta,
Terrivelmente só,
Com a teia mais completa
De ignotos perigos
Quase a reduzir-te a pó,
Tuas maçãs e teus figos
A perderem o sabor
No prato ameaçador.
O tabique da vizinha
A afastar-te tanto dela
Como duma estrela
Maninha
Te afasta a tua janela.
A febre da dor e medo,
O sossego das paredes,
O esmagamento do credo
Que não mata tuas sedes…
Profundo e triste silêncio
Dos quartos de viver só!
Em torno a teu corpo vence-o,
Antes que te moa a mó
Que joeira as almas,
Que então nem de amor te acalmas.
629 – Único
O amor é o único bem da vida:
Ter nos braços o ente amado.
É a fronteira comedida
Que nos coube como fado,
Fronteira onde abraço,
Com meu braço minguado,
Para além do tempo, para além do
espaço.
630 – Próximo
O próximo como amamos
Tem muito a ver
Com o modo como nos encaramos,
Se me amo, tolero ou nem sequer.
- A outrem como amar
Se a mim nem me conseguir olhar?
631 – Preconceitos
Dos preconceitos contra a
estupidez,
Da xenofobia, do racismo,
Do religioso ou político
sectarismo,
Do exclusivista nacionalismo,
Ao invés,
A comprovação intérmina e segura
Que nenhuns pesadelos jamais
domem,
A brotar da grande literatura:
- A igualdade radical do Homem!
Nada como o grande romance
Nos ensina a vislumbrar
O alcance
Das diferenças étnicas e
culturais
Por todo e qualquer lugar:
É a riqueza do património humano
Nos contrastes mundiais,
Cada singularidade,
O tutano
De nossa múltipla criatividade.
Boa literatura ler é também
Aprender como somos e quem,
Em nossa humana integralidade,
Na pública evidência
Como no segredo da consciência,
Na privacidade.
Nem sequer
Outras vergônteas das
humanidades,
- Filosofia, ciências sociais, de
línguas as variedades –
Lograrão manter
A visão integradora
Entendível ao profano:
Sucumbiram ao dano
Da especialização que tentacular
vigora.
O sentimento de pertença
À humana colectividade,
Que espaços e tempos vença
Na radical comunidade,
É o feito-mor da cultura.
E nada maior renovação
Lhe assegura,
Geração a geração,
Do que a literatura.
632 – Abolir
Brinca minha filha
Com carrinhos e camiões:
A maravilha
De abolir do sexo as
discriminações.
Pergunto-me ao que brincará
Toda a manhã,
Desde tão cedo a pé:
"O camião" –
confidencia – "é o papá,
O carro é a mamã
E o carrinho é o bebé…"
E ficou a conversar
Carinhosamente,
Ao colo o carrinho a aconchegar
Como se fora um bebé doente.