CANTO SEIS
PROJECTO ALÉM MINHA CERVIZ
DE GEBO
Escolha um número aleatório
entre 633 e 732 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
633 – Projecto além minha cerviz de gebo
Projecto além minha cerviz de gebo
Endireitando a espinha para olhar
Da fímbria do horizonte o que espreitar,
Acenos de lonjura em que me embebo.
Do infinito em cascatas aqui bebo,
Sequioso de meus campos cultivar
E em meu imo, em lugar,
Constato que, afinal, é que concebo.
Caminho pelo imaginário
Saboroso e vário,
Suspendo o tempo, a tomar o gosto.
E cada evento saboreado
É o alvor anunciado
Sobre a agrura diária do sol posto.
634 – Belo
Do que há de mais belo
Na Terra sombria
Bendito sejas.
Não é o Sete-Estrelo,
A montanha esguia:
- É o que desejas!
Quando o prolongas sempre mais
além,
Teu fito
Ultrapassa montanhas e mares: só
te convém
O infinito.
O que é belo
É no que te transfiguras neste
apelo:
- Belo é quanto em ti leio,
Afinal, meu anseio…
É o que não sou nem tu és.
Porém, ao ver-te, quando este
nada em ti o sonho,
Disponho
De asas nos pés:
- Belo é quanto por ti além vou
Até ao mundo do que nunca sou.
635 – Inevitavelmente
Os humanos, inevitavelmente,
Acabam se enfastiando
Do que têm em mente
E que deles é criado ao mando.
Ao invés, jamais se cansam
Do que oferta a Natureza.
Então os pés lhes avançam
Pela terra natal além
Absorvendo-lhe a beleza.
E, finalmente, advém
Sentirem-se como nunca parte
integrante
Dela,
Instante a instante:
- Como a Terra-Humanidade é bela!
636 – Primeiro
O livro primeiro
Por que nos apaixonámos
É o primeiro beijo a sério:
Transporta-nos, pioneiro,
Para onde sempre sonhámos
Vagamente explorar a terra do
mistério.
Navegamos bem no centro
Da jangada de palavras
Para um lugar: o das lavras
Cá de dentro.
637 – Quilómetros
Quilómetros de praia à noite
palmilhei
Compondo versos soltos, pobres e
falhados,
Incansável buscando algum oiro de
lei,
Alguém maravilhoso que os passos
trocados,
Da escuridão saído, de vez me
acertara.
Nunca me ocorreu
Que a pessoa rara
Devera ser eu!
638 – Pessimista
Nenhum pessimista alguma vez
Descobriu segredos nas estrelas,
A terras ignotas aproou as velas,
A novos horizontes nos afez.
Nenhum pessimista
Inscreve o nome
Na lista
Nem do que nos dá renome
Nem do que nos traz qualquer
conquista.
O pessimista é a fome,
Não a abundância:
A todos nos come
Nossa eterna infância.
639 – Natureza
A natureza
Não é cruel, odiosa,
Nem despreza
Quem a goza.
É sempre o meio propício
Ao benefício
Da interacção
Do homem com as forças vitais,
Mesmo quando os sinais
Me escapam à compreensão.
A natureza é mais
Que o sugestivo
Azul dos céus,
- É o enigmático, o vivo
Rosto de Deus.
640 – Truque
Há truque em muita coisa na vida,
Por aí nos encanta.
O desmancha-prazeres, quando o
elucida,
Destrói-nos o dia.
Tudo o que é vivo,
Desfeito o que espanta,
Perde a magia
E o atractivo.
- Que importaria a vida
Se um mistério me não convida?
641 – Morte
Sabendo que a morte me espia,
Estarei a viver de novo
O terror de quando nascia?
O desejo que provo
De me plácido manter
No ventre materno
E o impulso que me quer
Fora dele,
Qual deles mais me impele,
Superno?
Quando fui dado à luz
E quando deixo este mundo
São as duas vezes em que se
traduz
Minha prova da morte.
Ou em que eu fundo
(E fecundo)
Outra sorte.
- Da primeira vez foi a vida.
E da segunda, em seguida?
642 – Missão
Cada novo dia
Que a madrugada me invade
É uma missão perigosa e fugidia
Contra a mortalidade.
- Há um milagre qualquer
Nisto de a tantos dias
sobreviver.
643 – Tarda
Exaltado
Pelo treno,
Pelo fado,
Não tarda, ninguém reparou
Que o passado
É bem mais pequeno
Do que sempre alguém o imaginou.
Semi-deuses, heróis,
Nunca foram o presente,
Foram sempre depois…
São o que a memória mente
Para o horizonte ter sóis.
644 – Dentro
Por dentro de ti medra
Um estranho sopro que respiras
E nem sabes:
Por dentro de ti nem cabes…
O que te distingue duma pedra
É a força com que a atiras.
Todavia, se crês que é tua,
Deliras:
Não tens a Lua…
Lá vê-la,
Vês,
Mas quem te talha dela
Os sapatos de sonhar que tens nos
pés?
645 – Dorme
Dorme no quarto, dorme,
Mas mora dentro de mim,
Ela a mim é tão conforme
Que me não logro livrar.
Minha lucidez, por fim,
É uma lente a me queimar:
O tempo bate-me em cheio,
Porém, sozinho sem ela
Acabo sendo só meio…
Curo-me com a mazela,
Está lá fora e cá dentro:
Afinal qual é meu centro?
- Meu destino
És tu, mulher, para quem me
inclino:
Meu bichinho, meu bichinho,
Afinal és tão eu
Que em ti adivinho
Minha fresta de Céu.
646 – Prometida
A Terra Prometida…
A Terra Prometida nunca a vi.
A Terra Prometida ou é fingida
Ou está dentro de ti.
Procurá-la fora
É apenas aumentar o frenesi
Da demora.
647 – Alimento
Que maravilha
Poder-se ofertar
Como alimento a outro ser!
Como a mãe brilha,
Poesia do luar
Na noite que a um filho ocorrer!
Como em tal apresto
Natural, ligeiro,
De todo o Universo é o mágico
gesto
Ali por inteiro!
648 – Mora
Que é que te habita,
Mora em ti,
És tu e não és tu?
Não é o corpo, é o que ele
concita
E, ao ver-te, pressenti
Que escondes no baú.
O que de ti perdura nesta sala,
Neste ar,
Teu modo único de ser,
Aquilo a que se te fala
Quando alguém te vem falar,
Atravessando tua parte visível
Sem a ver sequer…
Sei que do tu real e disponível
Que te habitava
Não eras senão a morada,
Abismo insondável cuja cava
Não tem nunca entrada
Transponível.
Como ao espírito duma casa,
À intimidade dum lar,
As paredes os fazem germinar,
E quando alguém as arrasa,
O que lá havia
Morre então no mesmo dia,
Assim ocorre contigo.
És, porém,
Sempre o postigo
Para Além.
- Ora, é aí
Que sempre vi
Que mora Alguém.
649 – Ilusão
Se meu pai não houvera conhecido
Minha mãe,
Se os pais de ambos também
Viveram num mútuo olvido,
Se há cem, há mil, há um milhão
de anos
Um homem determinado não cobrira
de enganos
A ilusão duma mulher,
Eu não existiria sequer.
Nesta cadeia de triliões de
acasos
Eis que um homem brota
Na pele da Terra,
Cumpridos os prazos.
E mal anota
A raiz a que se aferra.
Elo perdido na infinidade dos elos
E das encruzilhadas
Onde tudo e nada se perdeu,
Materializando os apelos
Das jornadas
- Eis-me aqui, sou Eu!
650 – Jacto
Quando digo eu
Como poderia não existir?
Jacto de céu,
Jorrando da Terra para o nadir,
Como pensar que é nada
Se ao pensá-lo sou já uma pegada?
Acto puro de me ver em mim,
Isto me fascina e sou,
Todavia sei que brotou
Para o silêncio sem fim.
651 – Nocturno
No silêncio nocturno mergulhado,
Sinto-me não existindo,
Que existir é ser este punhado
De ser acutilante, do nada vindo
Como um punhal do absoluto:
O Universo aguarda o primeiro
homem
Como final produto,
Como as mãos que tudo tomem.
De súbito reparo que estou
Vivo e sou!
Quem sou eu?
Quem é que em mim vive comigo?
Que fantasma me habitou,
Se me prendeu
Como outro alguém a que me amigo,
A ver por meus olhos,
A falar por minha boca?
Doido perdido nestes escolhos,
Se me toco, quem me toca?
O que existe é o vulcão que de
mim sai,
Jacto de deus que me habita,
Que de hábito adormece e se esvai
E mesmo então tudo o que sou me
concita.
652 – Submersa
No instante-limite
A voz submersa brota,
Leva a que a grite,
A tomar nota.
Vida atrás da vida,
Irrealidade por dentro do real,
Mundo de névoa esvaída,
Fugidio e primordial,
Todo surpresa e aviso,
Presente com voz de passado
No rasto conciso
Da obscuridade em que sobrenado.
Minha voz é o desejo
De ao que me foge prender,
De contar aquilo onde nenhum nome
vejo,
Onde os termos nem sequer
Subsistem, que se apagam
Como a névoa que afagam.
Eu em mim,
Princípio e fim,
E o mais além
Que vem, não vem…
653 – Amanhã
Amanhã é o dia de hoje
Que me foge.
No passado o que seduz
Não é o presente que foi,
É o que nunca veio à luz.
Do passado o que me dói
Não é do passado a paz
Que nem sequer foi capaz.
O que lá ponho e desperto
É o sonho que foi deserto.
E o que transponho
De mim para perto
É o sonho eterno que sonho.
654 – Reino
O reino da vida,
Do rasto dos deuses pejado,
É um país velho onde perdura,
delida,
A memória de senhores antigos,
Expulsos do ancestral reinado.
Mas o homem brotou destes
pascigos.
Quando virá o dia
Em que a vida fique cheia
Do rasto que tal homem anuncia,
Evidente e tranquilo,
Como, ao sol de Verão, a tarde
meia,
De ave canora um leve trilo?
655 – Sementes
Em Abril
Não podemos ver os girassóis,
Que girassóis ainda não há.
Porém, às mil e mil,
Os agricultores plantaram já
Sementes de vindoiros arrebóis.
Quando olham para os campos
plantados
Já vêem girassóis ainda não
nados.
Afinal,
Os girassóis estão lá,
Embora sem dar sinal.
Só lhes faltam condições,
Um calor de sol, a chuva
E um pouco de mês de Julho.
Se lhes dispões
O que os coadjuva,
Como rebentam de orgulho!
Erros, distracções ou nem sequer,
Perenemente deles nos despistam:
- Só porque os não logramos ver
Não quer dizer que não existam!
656 – Lei
Custa.
A lei natural,
Porém, é justa,
Inexorável e fatal.
Primeiro, do cosmos a
consciência,
Depois, então, a do ser.
No ovo, a violência
De nascer.
Um nada a germinar
Em húmus perdido, devagar.
E brota da fome a boca
E uns pés da lonjura do caminho.
Tudo desemboca
No sonho adivinho.
Difícil, a coragem inicial.
Tudo, porém, ela consegue,
Até, quando adregue,
Fazer-me parte do coro universal.
657 – Nascer
Nascer não existe
Se algo for tirar do nada:
Conspira o todo e persiste
Na nova forma adoptada.
Morrer não existe
Se algo reduzir a nada:
Perene, o todo resiste
Na dissolução tramada.
Uma flor que abriu,
Abre à luz o mundo inteiro
Nas mil formas que assumiu
Desde o começo primeiro.
Nascimento e morte,
Ser e não-ser…
- A realidade é doutra sorte,
Livre dos conceitos de a
entender.
658 – Ondas
As ondas do mar são altas
E outras tão baixas serão
Que delas nas faltas
É que o mar nos ficou chão.
As ondas aparecem
Para nascer e morrer.
Quando acontecem,
O fundo me empecem
De ver:
Se olho mais atentamente
Vejo que ondas vêm, vão,
Água, porém, sempre são,
Lá constante, permanente.
Alto e baixo, vida e morte,
Podem contar-se das ondas.
Quando as águas, porém, sondas,
Livres são daquela sorte.
Das ondas a lucidez
É o momento em que dão conta
De que são água de vez
E tudo o mais tanto monta.
Aqui, neste credo,
Fenece da morte o medo.
Quando me olho bem no fundo
Sou uma onda do mundo,
Já sem morte ou nascimento,
Liberto enfim do tormento.
Posso construir o barco
Que pelas ondas me leve,
Inteiro o Cosmos abarco
Num olhar breve:
Não terei mais de abandonar
O Mundo para me libertar.
659 – Reino
Se as ondas não têm
De morrer para ser água,
Então eu também,
Embora perecendo aos olhos meus,
Não terei de sofrer da morte a
mágoa
Para entrar no Reino dos Céus:
Ele já nos mora aqui
No fundo de mim e ti.
660 – Fenómenos
Dos fenómenos o mundo comum
Lemo-lo pelos conceitos que
houver:
Muitos, um,
Ser, não ser,
Criar, destruir,
Ir e vir…
O alívio maior ao alcance de
quenquer
Provém de atingir o fundamento do
ser.
O corpo a durar
Já não é tempo de vida,
Nascer não é principiar
Nem morrer nos pára a lida.
Vida e morte são noções
De vez então superadas,
Do tempo-espaço aos baldões
Não mais confinamos nossas
pegadas.
Atingir o nirvana, a suprema
dimensão,
A Deus configura a inteira
rendição.
No momento
Em que nos rendermos do ser ao
fundamento
Integral,
Anulamos dos medos qualquer
sinal.
Seremos mero afloramento
Da eterna aventura inicial:
O ser em mim adivinho
Numa curva do caminho.
661 – Cadeia
Da história a causalidade
Não deve obliterar
A da suprema dimensão.
"Após a família me gerar,
Criou-me a comunidade"
- É a cadeia neste chão.
"Do mar brotam as ondas,
Todas elas feitas de água"
- Da causa histórica mondas
A cadeia. Agora trago-a
Pendurada do Infinito
E da história me desquito:
- Tudo é o Grande Ser em mim
Do princípio até ao fim.
662 – Inviável
É inviável transmitir
A vivência duma época trilhada,
Os factos que a obrigaram a
erigir,
Cada meta visada,
A penetrante presença,
No que sou, do que dali me
pertença.
Vivo como sonho:
Sozinho.
Da vida no cadinho,
Sozinho me exponho,
Sozinho…
Tudo, porém, em mim alinho
E disponho,
Dos outros e do mundo eterno
adivinho.
663 – Encantada
Uma vida encantada não é isenta
Do medo e da ansiedade
existencial
De abandonar-se à tormenta
Do destino que é fatal,
Pois implica uma entrega
ulisseana
À tempestade e ao remanso,
O budista afastamento da margem
plana,
Do deserto mosaica travessia sem
descanso,
Até mesmo a crística caminhada
Sobre as águas, à chegada…
Em cada dia,
Uma pegada
E deste modo importaria
Ir progredindo eternamente na
jornada.
Minha alma quer um quadro de
visões
E de paisagens infinitas,
Vislumbrado apenas quando fitas,
Ao viajar, os recantos de
emoções,
Quer ela saboreie os do mundo de
fora,
Quer quando nos de dentro se
demora.
Encantar-me implica o risco
De vadiar por fora do aprisco.
664 – Marcas
O desafio
Não é eliminar a violência
Mas realizá-la,
Meu navio
Despertar da dormência,
Vesti-lo de gala,
E, pelo mar fora,
Inaugurar um novo rumo desde
agora.
Deixar marcas no mundo
É violento,
Manter-me firme como um rio
fecundo
É um viril intento,
Meu espírito e minha alma
A desprenderem-se criativamente
São a reverência calma
Por tudo quanto a vida por mim
tente.
O desafio
Na violência da vida
É ser este navio
Da terra prometida.
665 – Arte
As obras de arte são iscas
Para do espírito os peixes
Atrair e aprisionar,
Delas nos feixes
De coruscantes riscas
Onde lucila o luar.
Explicar as imagens
Não é, pois, nossa tarefa,
Mas expormo-nos delas às
miragens.
Na sementeira e na ceifa,
Deixá-las afectar o sentimento,
Burilar o pensamento,
Nas inauditas viagens
De colheita
A que a vida é perenemente
atreita.
As imagens
Iniciam ao mistério
Do nível profundo,
Do acto vital e sério
Onde principia o mundo.
666 – Permanecer
Permanecer desencantado
É ser de vez tentado
A acolher a vida
No quadro previamente
apresentado.
O sonho, em contrapartida,
Que nada é linear nos ensina:
Tudo tem poesia,
Nada que nos afecta e nos inclina
Se desvia
Do fascinante e medonho
Coração do sonho.
667 – Senta-te
Na cadeira
Mora a sabedoria.
Senta-te à minha beira,
Traz a nossas almas a mais-valia
Do imaginário liberto.
Maravilha-te, conversa,
Entrega-te ao devaneio incerto
Da fantasia dispersa.
Buda é iluminado
Sob a árvore da revelação
Sentado,
Do Zen o coração
É sentar.
Sentar e esquecer tudo.
Ficar presente, ficar,
Sem tentar seja o que for.
Mudo,
Saborear o amor.
Na cadeira
Mora a sabedoria,
Principia
Tua carreira:
- É a via!
668 – Almas
As almas não se explicam nem se
curam,
Seguimo-las como ao grão-mestre
Onde os mistérios se apuram,
Na disciplina agreste
Com que cada qual nos cativa.
Não lhe exigimos que se ajuste
A nosso padrão nem expectativa,
Servos dela, por mais que custe.
Nenhuma está em nós
Nem é por nós contida,
Para a atarmos de laços e nós.
Não é nossa, desmedida.
Dela somos o brinquedo,
A argila de modelar:
Paramos de conversar,
Conta-nos ela um segredo.
Paramos de agir,
Logo age ela
E, na sequela,
Paro de interpretar, intuir,
- E então eis que se revela.
669 – Sombra
Descobrir a sombra interior
Para não tropeçar nela?
Não há conhecedor
Que a ponha à trela.
Apenas a vislumbro,
Não para a esgotar e ter
controlo,
Mas, enquanto me deslumbro,
Para meu magnético polo
A tornar,
Dentro e fora de mim,
Tudo a impregnar
Até ao derradeiro confim.
Que as sombras me guiem à matriz
do instinto,
À verdadeira raiz da identidade:
Ali é que me sinto
Com minha alma em íntima
comunidade.
E então deveras
Comungo com todas as eras.
670 – Enigma
Se como enigma nos vemos,
Com teorias intelectuais
Nos satisfaremos.
Se for como mistérios
indesvendáveis,
Buscaremos imagens e sinais
Sugestivos e fiáveis,
Jamais
Inteiramente decifráveis.
Uma excelente obra de arte
Mergulha-nos fundo na confusão
Do caos primitivo da vida,
No mundo aparte
Da combustão
Onde todo o além nos convida.
Em arte, a verdade
É difusa, inefável,
Oferta um grau de honestidade
E certeza
Inviável
Em qualquer outra devesa.
671 – Única
Uma única imagem,
Quadro de pintura,
Metáfora de poema,
Viagem
Pela lisura
Dum tema
Musical,
É uma janela aberta
Para um mistério abismal,
O ilimitado, o infinito…
Ao contrário, o horizonte se
aperta
No conceito, quando o concito:
O termo abstracto
Estreita a visão.
Que de mim não me desato
Revelam as artes:
Não me reparto pelo chão,
Feito de muitas partes,
Mecânico objecto,
Antes, por trás das estilhas das
memórias,
Uno desvendam meu aspecto
Entretecido de infinitas
histórias.
672 – Relembro
Mil vezes relembro as bases de
mim:
Doutrem o labor em cadeia sem fim
De vivos e mortos ao infinito…
Deverei dar de mim na mesma
proporção,
Gratuito e sem fito,
Tal como recebi dali, meu
quinhão.
E a cadeia se alonga
E prolonga
Mistério além…
- E eis como do mistério
Sob o império
Mergulho eu também.
673 – Anéis
As histórias nos encantam,
Não pela fuga à condição humana,
Mas pelo encontro que dali dimana
Entre nós e os anéis que nos
suplantam.
Encantam porque ampliam a visão,
Incluem a magia misteriosa
E, ao lado da fada nebulosa,
O desumano, o mau, a perversão…
Se evitar o sombrio,
Evito o encantamento:
Não supero do frio
O fatídico tormento.
Obcecado pelo escuro,
Descubro o peso do mal.
As histórias que procuro
Tornam minha alma real.
674 – Fluem
A linguagem sagrada e o ritual
Fluem de maneira natural
Da profundeza
Da emoção
Provinda da manifestação
Da natureza.
E a religião
Pura
Do encontro com o poder do
Universo
Supura
Como um verso.
675 – Ética
Uma vida ética, depurada do dever
na frágua,
Pode ser tão numinosa
Como uma assombrosa
Queda de água.
A estese brota do espectáculo
Da natureza,
O homem ético é o pináculo
Que a embeleza.
676 – Íntimo
Os poetas e os artistas
Viverão
No íntimo familiares
Da edificação,
Das conquistas
Basilares
Da perplexidade:
Os melhores deles dirão
Que não têm a veleidade
De entender o que é que implica
A criação
Nem o que o trabalho significa
Ao lhes borbotar da mão.
Usam palavras, imagens,
Que falam bem mais do fundo
Que a razão,
Acerca das fontes do mundo
E, nele, de nossas passagens.
Alegorias que ocorrem,
Ricas em implicações,
Complexa veracidade,
São lavas que lhes escorrem
Dos vulcões
Da intimidade.
Como descortinar a derradeira
raiz
Desta matriz?
677 – Desajustamento
O desajustamento do coração
Anda mais enraizado
Em nossa humana condição
Que os problemas mentais,
Mecanistas, tecnológicos,
Algum dia, nalgum lado,
Andarão,
Enquanto não detectarmos os
sinais
Epidemiológicos,
A profunda falta de visão
Que as almas nos anda a
ressequir.
As vidas requeimadas
Andamos a sentir,
Nómadas perdidos no deserto,
Sequiosas almas penadas,
De rumo incerto
Quanto a onde ir buscar água,
Iludidos miragem após miragem,
E nada nos apaga a frágua
Que nos requeima cada cartilagem.
As seivas da vitalidade
Apenas o encantamento as evoca.
Ele renova a infância, o
divertimento retoca,
A poesia, as artes, de verdade
Germina das virtudes religiosas
naturais
E da comunidade.
Do encantamento a emoção é a
alegria
E por ela vais,
Finalmente fresco e denso,
Visando o prazer intenso
De cada dia.
678 – Radicalmente
Não há corpo humano
Sem emoção nem imaginário.
O que de mim emano
Mais radicalmente primário
É inatingível
Em perspectiva materialista:
Além dela mora, vivível,
Tudo quanto revista
Significados,
Todo um mundo de fundamentais
Sentidos sexuais,
O pano de fundo dos entes amados
E os sinais
Dos rejeitados.
No abismo de mim mora o grito
Silente do infinito
Em pedaços de meu imo cheios,
Protegidos de olhares alheios,
Indiscretos,
Que ignorem o sabor de quem tem
tectos.
Sob eles ensaio mil tenteios
Predilectos,
Longe pudicamente
Dos olhos de toda a gente.
Tudo o mais é um engano
Sumário.
Não há corpo humano
Sem emoção nem imaginário.
679 – Donos
Nada do que é importante
Morre deveras.
Apenas nos iludimos, instante a
instante,
Crendo-nos donos das eras,
Dos outros, das coisas, dos
momentos…
Caminham comigo
Os mortos que amei,
Os sentimentos
Por qualquer amigo
Que pelas bermas deixei,
Os dias felizes
A que os ventos
Deliram os matizes…
Nada perdi,
Nada.
Apenas da ilusão me despedi
De que a estrada
Por onde tudo caminha
Podia ser para sempre minha.
680 – Sem
Sem desvendar
A religião do sexo
E o erotismo da religião
Há-de
Continuar
A sexualidade
Um complexo
Vulcão
Incompleto e desumano.
A religiosa sensibilidade
É o perfeito arcano
De que emana,
Vária,
A vida humana
No que tem de humanitária.
O momento
Do sexo
Pode ser o sacramento
A Deus conexo,
No radical amplexo
Que abrange todo o firmamento.
681 – Místicas
A vida espiritual
Profunda
E transcendente
Pode ser a vida sexual
Que, na profundeza, redunda
De alturas místicas vidente.
682 – Mundo
O mundo está repleto
Dum Deus que o transcende.
Adoro este Deus discreto
Cuja função
Como um perfume rescende
Dentro e para além da criação.
683 – Era
Em era secular,
Olho em redor o mundo
materialista.
Uma espiritual vida
É verificar quanto dista
E diverge deste lugar.
Entro na igreja escura e
silenciosa
Fugindo ao burburinho da cidade,
Medito na penumbra gostosa
Da presença humana como quem se
evade.
Vou a palestras, de igreja me
inundo:
Duma espiritualidade doutro
mundo.
Muitos anseiam
Fora do corpo por vivências que
ateiam.
Árida devém a espiritualidade
Buscada em mestres, gurus,
livros, profetas,
Longe das metas
Da comunidade,
Dos negócios, do trabalho, do
divertimento,
Da família, do lar, do
firmamento…
Todo o pendor da vida tem
Espiritualidade também.
O sexo leva a um lugar
De sentimentos e de imaginário
Que é, a par,
Tão comum e tão extraordinário
Que, no que ao corpo é
concernente,
É profundo e transcendente.
Ora, é quem deste limiar
Se abeira
Que atinge a fronteira
- E daí pode chamar.
684 – Tudo
Tudo é amor e pensamento
Mais deles o perpétuo movimento.
Isto é Deus,
Isto, os céus.
Mais
Para além
Seres não vejo quais
Nem quem.
685 – Através
O casamento espiritual
Descobrimo-lo, não além
Do sensual,
Mas através dele.
O amante explora o corpo de quem
Ama, aflora-lhe a pele
E descobre-se na fonte:
O parceiro faz vir à tona do
horizonte
Dele o erótico potencial
E dá-lhe a oportunidade
De realizá-lo.
O que é revelado, porém,
No amor de verdade
É das almas o halo,
Nunca apenas o que pretendemos
Nem
O que a nível mental
Compreendemos.
É o além,
O que jamais apreendemos,
O que mais nos convém.
686 – Fantasia
De facto quando encontramos
Cônjuge ou amante viável,
De fantasia amorável
O cercamos.
Terá para nós um brilho
Que em amigos nem aparece
Nem mesmo no filho
Que a ternura enaltece.
Devém uma dupla estrela:
Dum lado, aura da presença,
Doutro, luz de fonte
desconhecida,
Que, na sequela,
Intensifica, imensa,
A totalidade da vida.
687 – Misterioso
O amante misterioso, ideal,
Convida
A satisfazer o desejo sexual
E a completar a vida.
Implica a gratificação,
Porém, outro produto:
Em germe a satisfação
Do desejo absoluto.
No sexo há sempre outro elemento,
A cúpula do casamento.
A física união
Tem por destino
Reflectir o acto sexual divino
E nele ter qualquer participação.
Importa levar a sério
Nossos desejos, mesmo o mais
mundano e banal:
Podem indicar da presença o
refrigério
Do parceiro angelical,
O amante profundamente interior
Que sozinho, abismal,
Dentro de mim lida
E, dele ao sabor,
Cria uma vida.
688 – Alma
Alma, uma fonte
De que brota água da vida.
Vem dela a vitalidade,
Como a nossa identidade
Que provém dum horizonte
Mais que a personalidade
Oferecida
Dum ego pela medida.
Quando ligados a ela,
De tão profunda, elevada,
Se o desejo acolho à entrada,
Nossa consciência revela
Qualidade a mais sublime,
Excelência pessoal.
É a virtude com que encime
A integridade moral
Com poder individual,
Nos quais meu poder arrime.
Assim é que me revela
Aquela fonte:
Alma, íntima ponte
Até à próxima estrela.
689 – Ligam
Na vida, em todas as áreas,
As almas precisam de basear-se
Nas profundezas
E de inspirar-se
Nas alturas.
Ligam, sumárias,
O chão que mal prezas
Ao pináculo que auguras.
Alma, a mediadora,
Atinge o mais alto e o mais baixo
Da humana condição:
Dentro mora
E liga-o ao de fora,
Por ela o passado encaixo
No momento de agora,
Funde a cabeça e o coração.
Da vida a maior tragédia
É ficar o espírito do corpo
desligado
E apenas a alma com a rédea
Os ata de seu fado.
Alma, a escada
Que a humanidade intacta nos
mantém
Quando livres nos movemos no
vaivém,
Na romaria com todos os mais,
Jornada a jornada,
Entre as nossas vivências
corpóreas e espirituais.
690 – Estranhar
Não era de estranhar que um novo
fascínio
Pela vida espiritual
Germine no final
Duma era de progressos materiais,
tecnológicos
E de extermínio.
A natureza temos desventrado a
golpes lógicos,
Tecnicamente as reservas lhe
explorando,
Apagando-lhe lentamente o
mistério
E a imensidão.
Quando
Nela não busco refrigério,
Deixa a natureza de servir-me o
pão.
Quando as pedras e a poeira
De Marte e da Lua
Nossas pequenas máquinas revelam
Na distante paisagem,
Devém leveira
E nua
A imagem
Com que os céus sobre nós velam:
Que pequenos
Somos ante os siderais acenos!
A sublimidade
É alimentada pela viagem,
A miragem
Da maravilhosa terra azul me
invade
A milhares de quilómetros de
distância.
Meu espanto
Do Universo ante a grandiosidade
Perde a acutilância,
Entretanto,
Enquanto
Ela é desfeita
Do tecnólogo pela visão estreita.
E aqui me fino
Entre as redondas paredes do
planeta,
Míope e mofino,
Sem vislumbrar sequer
A infinidade que além um certo
Alguém detecta
E me requer!
691 – Navego
Navego desconhecido
À descoberta de mim.
Venci onde nunca estive,
Perdido
No mar sem fim.
Que brisa nova revive
Nesta sonolência indescritível
Em que posso andar em frente,
Curvado, indigente,
A marchar sobre o impossível?
Cada qual seu álcool tem.
Tenho meu álcool bastante
Em existir.
Bêbado de me sentir,
Bamboleio
E vagueio
Como quem
Mal se tem
E ando certo para diante.
Sou igual a meus iguais
Mas por detrás dos sinais
Constelo-me às escondidas, sem um
grito,
E tenho o meu infinito.
692 – Míopes
Míopes somo-lo todos,
Exceptuando para dentro.
O sonho, apenas, tem modos
De ver, quando me concentro,
Como um olhar
Donde fito
Sem lugar
O Infinito.
693 – Secreta
A secreta esperança dum segredo
É a possibilidade,
Embora vaga, longínqua, tornada
num credo,
De um dia deixar de o ser.
A humanidade
É o segredo e o credo:
E é o que a faz correr.
694 – Novo
Novo céu e nova terra
Não germinam de factos mas de
raízes,
Nenhum facto o ovo encerra
Das matrizes.
Apenas há o facto de que o homem,
Todo e cada qual, em toda a parte
do mundo,
Vai a caminho da criação.
Uns o caminho mais longo faz que
tomem,
Outros, o mais curto, mas fecundo
E ali à mão.
Todo o homem anda a emalhar o
destino
À própria maneira.
Ninguém o pode ajudar senão com
tino,
Sendo amável, generoso e
paciente,
Enquanto vai trepando,
persistente,
A ladeira.
695 – Cidade
Toda a cidade
É um momento
Da mais alta insanidade
Em todo e qualquer elemento.
Esgotos, linhas de comboio,
Jornais, caça-moedas,
Tudo inçado de joio
A trepar pelas medas.
Não faria diferença
Se nada disto existira,
Despejado no bueiro.
Ninguém perderia a mantença
E ganharíamos, se a página se
vira,
Um Universo inteiro.
696 – Topo
Entre o topo e o fundo
Não há paragem
Nem apeadeiro intermédio,
A viagem
Do mundo
É sem remédio.
O rio nasce algures na montanha
E corre para o mar.
No rio que a Deus lentamente
ganha
Serve tanto a pequena causa
Como um navio de guerra para
navegar.
Desde o princípio nada é à toa:
Toda a viagem, aliás,
Rumo à pátria se faz.
697 – Desorientação
A desorientação e a reorientação
Inerente
À iniciação
Em qualquer mistério
São
A experiência mais transcendente
Que é viável ter.
A mente
Dela sob o império
A vida inteira a tentar reter,
Categorizar,
Sintetizar
E, de repente,
Tudo tem de ser
Desintegrado
E reorganizado!
Dia de mudança
Para a alma e tudo o que ela
alcança.
698 – Oportunidade
Sem engano,
A oportunidade maior que a vida
me oferta
É a de ser humano.
Todo o Universo abarca
E nos braços aperta.
E engloba o conhecimento da
Parca,
Da morte bruta,
De que nem mesmo Deus desfruta.
699 – Mesmo
O homem que renasce
É sempre o mesmo homem:
Mais e mais refaz-se
A cada renascimento de quantos o
domem.
Cada vez que morre apenas larga a
pele
E, com ela, os pecados.
Quem Deus ama é deveras aquele
Que vive como deve em todos os
bocados.
Quem Deus ama é uma cebola
Com um milhão de peles.
Largar a primeira em que se enrola
É tão doloroso que quase o
repeles.
À segunda, é menos doloroso,
A seguinte, ainda menos.
Depois, a dor vem a dar gozo,
É agradável, um deleite, um
êxtase terrenos.
Depois, nem prazer nem dor,
É a mera escuridão
Cedendo perante o alvor
A progredir pelo chão.
E, à medida
Que a escuridão é iluminada,
Abandona o esconderijo a ferida
Negregada:
A ferida que é o homem,
Mais dele o amor canhestro e
pequeno,
Para que doravante o tomem
Banhos de luz em pleno.
A identidade perdida
Se recupera,
Sai o homem da ferida,
Da sepultura que ele era.
Tudo nele gradualmente se reduz
A um gesto de luz.
700 – Música
A música de estufa,
Panaceia para a dor de viver,
É apenas ópera bufa
A fazer rir sem querer.
Música é fogo planetário,
Auto-suficiente irredutibilidade,
O fogo dos deuses vário
Com cuja identidade
Nem o erudito, nem o ignaro
Sabem lidar,
Que o eixo do mundo ali não tem
reparo
Após desenganchar.
Eis do ser as entranhas,
O inefável,
O inevitável,
O fio imponderável
Das cosmogónicas teias das
aranhas:
Nada ainda foi decidido,
Nada determinado nem resolvido…
Tudo o que vai ocorrendo,
Música, arquitectura, lei,
governo,
Atitudes com que me ofendo,
O invento e a descoberta do céu e
do inferno,
Tudo
É mero exercício de velocidade
E de rota onde me mudo
E renovo minha identidade.
Eis a primeira
E derradeira
Verdade,
Com que, afinal, tão pouco tudo
emparceira.
Tudo, em minha miopia,
Acaba reduzido,
Na rotina do dia-a-dia,
A desprezível rasquido.
Que cegueira!
701 – Roda
A roda do destino
Podemos superá-la a qualquer
momento,
Pois, se nela atino,
Reparo que toca o real em todo o
segmento
Das áreas selectivas
E bastam de inspiração algumas
chispas vivas
Para o milagre desencadear
E o patinador
Acaba nadador
E o nadador, um rochedo em seu
lugar.
O rochedo é quem detém
A inútil rotação da roda
E do ser que lhe convém
Toma a consciência toda.
No oceano desta
Se engloba o Sol e a Lua
E a estes inexaurível se
empresta.
Tudo o que existe flutua
No ilimitado mar de luz,
Até a noite lá conduz.
Nas intérminas revoluções da
roda,
Olhando o abismo,
Vislumbro o salto a dar:
Saltar
Fora do mecanismo
Que me engoda.
Eis o gesto libertador:
- E de mim serei senhor.
702 – Tornei-me
Tornei-me um anjo.
Valiosa não é dele a pureza que
abranjo,
Mas o facto de poder voar.
Um anjo pode quebrar
O sistema em toda a parte e
momento,
No facto e no pensamento,
E dele encontrar o céu.
À baixa matéria pode descer
E dela se libertar a seu
Bel-prazer,
Despojado
Do passado,
Despreocupadamente seguro
Do futuro.
Para além do êxtase dobro as
asas,
Escondo-as no sovaco
Por debaixo do casaco,
- E ninguém repara em mim por
entre as casas.
703 – Ateus
Os ateus, entendendo a mensagem,
Ensinaram-me os livros sagrados
De toda e qualquer fé:
Tempo fora, a viagem
Não é a dos fados,
Sagrada é a palavra que põe os
homens de pé.
704 – Regime
É um regime a democracia
Que para toda a gente cria
Condições económicas, políticas e
espirituais,
A fim de permitir o pleno
desenvolvimento
Dos humanos potenciais.
- E há quem não creia que um
poema
Alguma vez ao humano intento
Possa servir de lema…
705 – Família
Uma família à volta da lareira,
A chaminé duma fábrica a fumegar,
Uma locomotiva cheia de canseira…
- Tenho a impressão de que, por
todo o lugar,
Esventrando a terra cada vez mais
fundo,
Obrigo a girar o mundo.
706 – Transcendência
Transcendência, enquanto forma
De romper com o passado,
É o inerente postulado
De qualquer revolução
Ou reforma.
O determinismo, por definição,
É conservador.
O trabalho humano, em norma
Com finalidade consciente,
É libertador:
- Projecto, inaugura mundo em
frente.
707 – Fim
Do Homem o fim radical e
derradeiro
Nunca é sentido fora de nós por
inteiro:
Definitivamente inalcançável na
totalidade,
Temos a certeza obscura de que
apela no horizonte
De qualquer actividade,
Por ela postulado como primária
fonte.
Sentido da história suspenso e
adiado,
Apela às dúvidas e ronda na
treva.
Para o não vermos num dogmatismo
derivado
Nem na inquisição a que leva,
Só não o hipostasiando em
realidade alguma,
Em nenhum objecto, ídolo ou tese,
Vivê-lo como postulado de
esfumada espuma
Implicado em todo o acto
Que, quando o desato,
Deste modo o respeite e preze.
708 – Presença
É uma presença e uma promessa a
transcendência,
Como uma ausência
E uma exigência.
E uma consciência de ausência tão
alta
Uma presença qualquer
Não requer
Para ser vivida, muito embora
como falta?
- Entre um já e um ainda não
A vida é perene tensão.
709 – Facto
Viver a ressurreição
Não é crer que é um facto
histórico
Da ciência positivista,
A química reacção
Duma reconstituição,
Sem mais sentido alegórico,
Da matéria como exista.
Ao invés, é a afirmação
Do impossível pelo qual
A História se abre, afinal,
Rumo a todos os possíveis:
Assim o futuro não
Assenta em indefectíveis
Prolongamentos de antanho.
Não é uma ressurreição
Enxertá-la como um ganho
Na História que tenho à mão,
Antes entender a História
Como um pendor de vitória
Que augura a Ressurreição.
Não nasceu para morrer,
Antes para começar
O Homem que há-de viver
Dele o poema a declamar:
A nascer e a renascer
Como melhor convier,
Com um olhar sempre fito
Nas fronteiras do Infinito.
710 – Mediados
Podemos, mediados por todas as
culturas,
Viver a experiência espiritual
mais radical
Que nos constitui o ser, no mais
fundo das funduras:
O eu abismal,
A minha relação com o todo.
O homem não é humano,
Qualquer que seja o engodo,
Senão habitado por Deus:
O sufismo muçulmano,
A não-dualidade hindu,
Os humanismos ateus,
A mística cristã,
Põem a nu
A partilhada manhã
De todas as espiritualidades do
Universo:
Do poema comum cada qual recita o
próprio verso.
711 – Confins
A graça, nos confins da natureza
Não abolida mas completada,
Embeleza
De afecto terno
A mística de cada pegada:
A graça é no tempo a descida do
eterno.
712 – Limites
Além da técnica ou lógica
inteligência,
Onde o computador com vantagem
nos substitui,
A sabedoria intui
A premência
Da consciência
Dos limites e valores:
Limites duma ciência
Que não pode alcançar
Nenhuma causa primeira, a pedra
angular;
Valores
Duma sabedoria
Que jamais atingiria
Os fins últimos promissores.
Aí principia
A fé:
Presença voluntária, na brecha
De pé,
Ao outro, a qualquer outro
abertura,
Teimosa a acender a mecha
Na escuridão de alicerces e
fundamentos.
Fé de Abraão
Ou humildade do poema, da pintura
Que acolhe a invasão
E os tormentos
Do que dentro dele se gerou
E lhe não pertence em seu
estranho voo.
713 – Séculos
De séculos uma catarata
O abismal desfiladeiro burilou.
A tal arte cósmica a dos homens
se ata,
Instante de eternidade que se
evolou.
Que arquitecto rasgou a grandeza
Deste abismo de beleza,
Quem no Cosmos traçou a elipse
Colossal do Apocalipse?
Aqui, o acto de criação
Não é mera evocação,
Mas presença.
Presença não experimental mas
sentida
Com vigor
Numa vivência desmedida
Que nos avassala, tão clara e
densa
Como a ternura dum amor.
714 – Verdadeiro
Mais verdadeiro que o real
É o ideal.
E a tarefa do homem é modelar
A realidade escassa
Tentando-a permanentemente
configurar
Pelo que a ultrapassa.
715 – Utopia
Uma utopia é o Islão,
Como utopista
É o cristão,
Como o é o socialista.
Utopia sem a qual
O mundo e a vida em geral
Já não teriam sentido.
Senão, que havia de ser
prosseguido?
A utopia é um horizonte
Que ante nós sempre recua
À medida que avançamos.
Se nosso olhar não faz ponte
Até lá mostrando a rua,
A acção faz que nós percamos.
Sem tais
Postulados reguladores
O mundo não é mais,
Perdidos os sinais
Orientadores,
Do que um caos desordenado
E a vida já não leva a nenhum
lado.
O absurdo ou a fé,
Não há mesmo outra opção:
Ou nos erguemos de pé
Ou nos esboroamos no chão.
716 – Leitura
A transcendência absoluta de Deus
Exclui qualquer leitura literal
Da revelação.
Os céus
Não pode medi-los a linguagem
banal
Nem a experiência deste chão.
Deus fala
Por parábolas apenas.
Às vezes o homem cala
Os cambiantes das mudas pequenas
- E estas, afinal, é que são
plenas.
717 – História
A História é a dos vencedores,
Revoluções de fingimento
Tornadas dialéctica do ressentimento:
Discriminados os pormenores,
O escravo vencedor,
Com alma de escravo,
Logo institui em redor
Nova servidão, bravo.
História deveras
É uma história de alma,
A de franquear
Através das eras,
Com humor e calma,
O nosso limiar
Através da criação
De novas formas de libertação.
Tal História seria
A das religiões, das artes, da
sabedoria
Que, discretas, tornaram visível
A marcha do invisível.
O porvir requer a incarnação
Dos profetas,
Não é de César nem Napoleão,
Tem o rasto de pegadas dos
poetas.
718 – Revolução
Revolução em profundidade
É o apelo a uma aberta e
universal comunidade
Onde o homem não é humano
Se não for, de qualquer modo,
Habitado, sem engano,
Pelo Todo.
A parcialidade,
O individualismo,
O nacionalismo,
Eis doravante a matriz da
desumanidade,
O abismo.
719 – Viver
Viver
Não é viver contra a morte.
Não é a morte, sequer,
Que à vida virá dar norte.
Opera ao contrário a medida:
É a vida
Que dá sentido à morte
Quando no Todo é vivida.
720 – Ponto
O ponto em que o acto de fé, o
acto político e a poesia
Dum poema vivido
Mais do que o mesmo não são,
Pode ser atingido
A partir de toda a sabedoria
E de toda e qualquer religião.
Ser cristão
Ou muçulmano
Não pode separar-me dos que o não
são,
Sob pena de tornar-me desumano,
A anti-religião:
Que cada qual seja o que é
Mais profunda e universalmente
E poderemos reencontrar-nos,
ombro a ombro, de pé,
Cada qual presente,
Em postura solidária,
Com todos os membros da
comunidade planetária.
Aquele que destrói as fronteiras
do individual
E as alarga ao extremo limite
sideral:
As do individualismo e do
nacionalismo
Destruidores do mundo;
As da tecnocracia e do cientismo
Que separam o saber e o poder
fecundo
Dos sentidos e objectivos deles;
As de igrejas, partidos,
ideologias,
Pretendendo impor aos imbeles,
Como um bodo,
As verdades parciais e fechadas
de suas fantasias
Contra a unidade infindamente
aberta do Todo.
721 – Noite
É de noite que oiço o mar,
A morte, eternidade vivida,
A silenciosa e bela eternidade,
Com Deus a se recriar, sem parar,
No homem total e sem medida.
A morte, este mar que me persuade
A abordá-lo a plenos pulmões,
Sem a vertigem do abismo.
A nadar, a nadar,
De alegria as explosões
Com que me crismo!
Remanso onde me acoite,
Que era do dia sem esta noite?
Eu oiço o mar, eu oiço o mar…
722 – Ver
Numa coisa ver mais que o que
nela está
É vê-la menos lá:
O que espiritualmente a
acrescenta,
Materialmente a diminui.
No limite, quem atenta,
Vê como um nada flui:
O espanto que me deixa mudo
É que este nada é tudo.
Não existem, portanto, os céus:
Quando reparo nisto
Vejo que, afinal, o que para além
avisto
É que é Deus.
723 – Civilizações
As civilizações não existem senão
A germinar arte e literatura.
São palavras, são,
O que delas fala e fica,
Mesmo em quadros de pintura,
Grandezas de arquitectura,
Músicas onde a emoção
A conversar-nos se aplica.
Então por que não serão
Elas, em cada figura,
O que é deveras real?
Dói na existência mental
Que isto venha a ser assim:
- Qual a fronteira de mim?
Não há fronteira, afinal,
E, quando eu chegar ao fim,
Tudo aquilo é o meu sinal
Apontando o meu confim,
Prolongando o gesto e o fito
Rumo a intérmino infinito.
Na aventura como é que entro
É o mistério onde me adentro.
O meu derradeiro verso
Afinal não será meu:
Eu sou eu neste Universo,
Do Eu dele afloramento,
Vergôntea do infindo Eu,
Nele eternamente imerso,
Dele a respirar o alento,
Indefinidamente,
Ao vento
Da eternidade presente
Agora e futuramente.
724 – Ponte
Nem tudo nem nada poderei ser.
Ponte de passagem
Entre o que não tiver e o que não
quiser,
Aqui vou de viagem,
Rumo a qualquer
Paisagem
Que me venha a surpreender
O meu bornal de esmoler
Em perpétua vadiagem.
725 – Humana
A humana desilusão
Obriga a cuidar
Da ideia vulgar
De inspiração.
Este corpo de comércio,
Com alma de escola e norma,
Cada qual a sós exerce-o
Revestido de alheia forma.
Investidos de mistério,
Algo íntimo é-lhes alheio,
Não falam, que fala o império
De que cada qual é cheio.
A voz diz o que é verdade
E que seria mentira
Se algum deles se persuade
Que é dele próprio que a tira.
Assim,
Por muito que me custe,
Nem sequer isto aqui vem de mim,
Por mais que mo ajuste.
726 – Universo
Universo: Que enigma espantoso!
Verificá-lo basta a me sentir
vivo.
Nada responder às perguntas que
em mim arquivo
E a que me coso,
Que importância tem?
- Basta entendê-las bem…
E que gozo! Que gozo!
727 – Berço
Desde o berço de bebé
Meu pai só vejo por entre grades.
Vão de minha casa até
Ao mestre-escola e aos frades,
Do ponteiro à palmatória,
Da tabuada às trindades,
Atravessam o polícia,
Espreitam cantos de glória,
Cassetetes de sevícia,
São o guarda prisional,
Vão do praça ao general…
Mesmo o livre presidente
Entre grades vejo assente.
De oiro, ferro ou de cimento,
Grades são nossa medida
E o mais que a mim acrescento
São sempre grades de aumento,
Embora o que me convida
Seja o contrário que tento.
Não há invento
Que nos liberte da sina
A que o fado nos destina.
Por muito que trepe aos céus,
Adivinho
Que fatalmente amarinho
Nas grades de Deus.
728 – Durante
Durante alguns anos
Viveu, comeu, riu,
Amou, esperou
Como todos os humanos.
Agora, para sempre tudo acabou:
Morreu.
Uma vida de alguns dias,
Depois, mais nada.
Nascemos, crescemos, mil
fantasias,
Esperamos… e é o fim da jornada!
Homem ou mulher
Jamais à terra voltará quenquer.
Todavia cada qual vive em si
As ânsias da eternidade,
Universo dentro do Universo
E cada qual se desfaz logo ali,
Por fatalidade,
No estrume converso
Da vindoira realidade.
A mosca vive umas horas,
A borboleta, uns dias,
O Homem tem mais demoras,
Decénios de tristezas e alegrias,
Os mundos são biliões de anos…
A diferença, contudo,
São enganos, são enganos:
A mais apenas algumas auroras
- E eis tudo!
729 – Fatal
O absurdo
É que deveras importante
Na vida é a morte.
Nasço e quanto na vida urdo
Depara adiante
Com a fatídica sorte.
Todo o evento,
Positivo ou negativo,
É mero acessório no percurso.
Tento,
No que vivo,
Inverter o fio do discurso.
Em vão:
Minha raiz é o chão
Donde brotei
E aonde retornarei.
Há quem fique deprimido,
Vá mesmo suicidar-se:
Não encontrou o sentido
Que a morte fatal disfarce.
O melhor, como a balança,
É elevar, bem positivo,
Quando a um braço o mal alcança,
O outro por quem eu vivo.
E o mais deixar ao destino
Indecifrável,
Sem mais gemido nem grito.
Para quê o desatino?
- Tudo é provável,
Inclusive o infinito.
730 – Lugar
Na vida das nações
Um lugar relevante
Convém ao romance.
Motor das históricas evoluções,
Da liberdade o melhor garante,
É espírito crítico em tudo o que
alcance.
Sem o romance o Homem sofreria
Uma perda irreparável:
A grande literatura enuncia
Um questionamento radical,
Inevitável,
Do mundo em que vivemos.
Da sedição alimenta o fanal,
Revoltosa, inconformista.
Quando a lemos
Dos insubmissos alargamos a
lista.
Então,
Depois,
Erguem-se no promontório os
faróis
Para a vindoira navegação.
731 – Calha
Leva-nos a viver a literatura
Num mundo cujas leis transgridem
A calha que segura
Os trilhos da vida real.
Mal
Nos convidem
À aventura,
Livram-nos os livros da prisão
Do tempo e do espaço,
Na impunidade para o excesso e a
rebelião,
Donos duma soberania
Que, num mundo escasso,
Nada limitaria.
Como não havia
De me sentir defraudado
Ao retornar a este mundo de
mesquinharia,
De balizas e servidões,
Gradeado
De fronteiras e proibições
Que a vontade nos secam
E, quando alegres os passos
rompem,
Os sonhos nos dissecam
E corrompem?
A vida sonhada
Do romance
É mais bela, variegada,
Lógica e perfeita
E tem maior alcance
Que a real
Que, afinal,
Me enjeita.
Da literatura eis o melhor
contributo
Para o progresso:
Recorda que o mundo está mal
feito
No estatuto
E no processo
E poderia tomar melhor jeito,
Se mais atento ao que a fantasia
É capaz de pôr em dia.
Uma democrática e livre
comunidade
Vai implicar
De cada cidadão a plena
responsabilidade,
Homens críticos, independentes,
Difíceis de manipular,
Em mobilização espiritual,
Conscientes
De que urge submeter o mundo a
exame
Permanente e radical,
Para tratar de o fazer
Coerente com o que proclame
O mundo outro em que quereríamos
viver.
Sem tal insatisfação e rebeldia
No primitivismo ainda o mundo
viveria,
O indivíduo nascido
Ainda nem sequer havia,
Nem a ciência, nem a tecnologia,
Nem era reconhecido
Qualquer direito humano,
Nem a liberdade brotaria
Por detrás de cada engano…
Tudo isto são os produtos
Da insubmissão contra a vida
Como, desensabida,
Nos vem sendo servida
Em concretos condutos.
Para este espírito que a
desacata,
A fim de materializar o
impossível
Do sonho a que nos ata,
É sempre a literatura
Quem o mais formidável
combustível
Nos apura.
732 – Correnteza
Corre apenas uma estrada
Que é tal como um grande rio:
A cada porta nasce, da levada
A correnteza dum fio
E todos os caminhos existentes
Serão do grande rio os afluentes.
Por ele vamos todos navegando,
Mesmo se ninguém sabe onde nem
quando.
O risco é sair da porta,
Que, ao pormos o pé na estrada,
Quem sabe para onde nos
transporta
A violência da enxurrada?