CANTO  SEIS

 

 

PROJECTO  ALÉM  MINHA  CERVIZ  DE  GEBO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 633 e 732 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                        633 – Projecto além minha cerviz de gebo

                                                   

                                                    Projecto além minha cerviz de gebo

                                                    Endireitando a espinha para olhar

                                                    Da fímbria do horizonte o que espreitar,

                                                    Acenos de lonjura em que me embebo.

 

                                                    Do infinito em cascatas aqui bebo,

                                                    Sequioso de meus campos cultivar

                                                    E em meu imo, em lugar,

                                                    Constato que, afinal, é que concebo.

 

                                                    Caminho pelo imaginário

                                                    Saboroso e  vário,

                                                    Suspendo o tempo, a tomar o gosto.

 

                                                    E cada evento saboreado

                                                    É o alvor anunciado

                                                    Sobre a agrura diária do sol posto.

 

 

634 – Belo

 

Do que há de mais belo

Na Terra sombria

Bendito sejas.

Não é o Sete-Estrelo,

A montanha esguia:

- É o que desejas!

 

Quando o prolongas sempre mais além,

Teu fito

Ultrapassa montanhas e mares: só te convém

O infinito.

 

O que é belo

É no que te transfiguras neste apelo:

- Belo é quanto em ti leio,

Afinal, meu anseio…

 

É o que não sou nem tu és.

Porém, ao ver-te, quando este nada em ti o sonho,

Disponho

De asas nos pés:

 

- Belo é quanto por ti além vou

Até ao mundo do que nunca sou.

 

 

635 – Inevitavelmente

 

Os humanos, inevitavelmente,

Acabam se enfastiando

Do que têm em mente

E que deles é criado ao mando.

Ao invés, jamais se cansam

Do que oferta a Natureza.

Então os pés lhes avançam

Pela terra natal além

Absorvendo-lhe a beleza.

 

E, finalmente, advém

Sentirem-se como nunca parte integrante

Dela,

Instante a instante:

- Como a Terra-Humanidade é bela!

 

 

636 – Primeiro

 

O livro primeiro

Por que nos apaixonámos

É o primeiro beijo a sério:

Transporta-nos, pioneiro,

Para onde sempre sonhámos

Vagamente explorar a terra do mistério.

 

Navegamos bem no centro

Da jangada de palavras

Para um lugar: o das lavras

Cá de dentro.

 

 

637 – Quilómetros

 

Quilómetros de praia à noite palmilhei

Compondo versos soltos, pobres e falhados,

Incansável buscando algum oiro de lei,

Alguém maravilhoso que os passos trocados,

Da escuridão saído, de vez me acertara.

 

Nunca me ocorreu

Que a pessoa rara

Devera ser eu!

 

 

638 – Pessimista

 

Nenhum pessimista alguma vez

Descobriu segredos nas estrelas,

A terras ignotas aproou as velas,

A novos horizontes nos afez.

 

Nenhum pessimista

Inscreve o nome

Na lista

Nem do que nos dá renome

Nem do que nos traz qualquer conquista.

 

O pessimista é a fome,

Não a abundância:

A todos nos come

Nossa eterna infância.

 

 

639 – Natureza

 

A natureza

Não é cruel, odiosa,

Nem despreza

Quem a goza.

 

É sempre o meio propício

Ao benefício

Da interacção

Do homem com as forças vitais,

Mesmo quando os sinais

Me escapam à compreensão.

 

A natureza é mais

Que o sugestivo

Azul dos céus,

- É o enigmático, o vivo

Rosto de Deus.

 

 

640 – Truque

 

Há truque em muita coisa na vida,

Por aí nos encanta.

O desmancha-prazeres, quando o elucida,

Destrói-nos o dia.

Tudo o que é vivo,

Desfeito o que espanta,

Perde a magia

E o atractivo.

- Que importaria a vida

Se um mistério me não convida?

 

 

641 – Morte

 

Sabendo que a morte me espia,

Estarei a viver de novo

O terror de quando nascia?

O desejo que provo

De me plácido manter

No ventre materno

E o impulso que me quer

Fora dele,

Qual deles mais me impele,

Superno?

 

Quando fui dado à luz

E quando deixo este mundo

São as duas vezes em que se traduz

Minha prova da morte.

 

Ou em que eu fundo

(E fecundo)

Outra sorte.

 

- Da primeira vez foi a vida.

E da segunda, em seguida?

 

 

642 – Missão

 

Cada novo dia

Que a madrugada me invade

É uma missão perigosa e fugidia

Contra a mortalidade.

 

- Há um milagre qualquer

Nisto de a tantos dias sobreviver.

 

 

643 – Tarda

 

Exaltado

Pelo treno,

Pelo fado,

Não tarda, ninguém reparou

Que o passado

É bem mais pequeno

Do que sempre alguém o imaginou.

 

Semi-deuses, heróis,

Nunca foram o presente,

Foram sempre depois…

São o que a memória mente

Para o horizonte ter sóis.

 

 

644 – Dentro

 

Por dentro de ti medra

Um estranho sopro que respiras

E nem sabes:

Por dentro de ti nem cabes…

O que te distingue duma pedra

É a força com que a atiras.

Todavia, se crês que é tua,

Deliras:

Não tens a Lua…

 

Lá vê-la,

Vês,

Mas quem te talha dela

Os sapatos de sonhar que tens nos pés?

 

 

645 – Dorme

 

Dorme no quarto, dorme,

Mas mora dentro de mim,

Ela a mim é tão conforme

Que me não logro livrar.

Minha lucidez, por fim,

É uma lente a me queimar:

O tempo bate-me em cheio,

Porém, sozinho sem ela

Acabo sendo só meio…

 

Curo-me com a mazela,

Está lá fora e cá dentro:

Afinal qual é meu centro?

 

- Meu destino

És tu, mulher, para quem me inclino:

Meu bichinho, meu bichinho,

Afinal és tão eu

Que em ti adivinho

Minha fresta de Céu.

 

 

646 – Prometida

 

A Terra Prometida…

A Terra Prometida nunca a vi.

A Terra Prometida ou é fingida

Ou está dentro de ti.

Procurá-la fora

É apenas aumentar o frenesi

Da demora.

 

 

647 – Alimento

 

Que maravilha

Poder-se ofertar

Como alimento a outro ser!

Como a mãe brilha,

Poesia do luar

Na noite que a um filho ocorrer!

 

Como em tal apresto

Natural, ligeiro,

De todo o Universo é o mágico gesto

Ali por inteiro!

 

 

648 – Mora

 

Que é que te habita,

Mora em ti,

És tu e não és tu?

Não é o corpo, é o que ele concita

E, ao ver-te, pressenti

Que escondes no baú.

 

O que de ti perdura nesta sala,

Neste ar,

Teu modo único de ser,

Aquilo a que se te fala

Quando alguém te vem falar,

Atravessando tua parte visível

Sem a ver sequer…

 

Sei que do tu real e disponível

Que te habitava

Não eras senão a morada,

Abismo insondável cuja cava

Não tem nunca entrada

Transponível.

Como ao espírito duma casa,

À intimidade dum lar,

As paredes os fazem germinar,

E quando alguém as arrasa,

O que lá havia

Morre então no mesmo dia,

Assim ocorre contigo.

És, porém,

Sempre o postigo

Para Além.

 

- Ora, é aí

Que sempre vi

Que mora Alguém.

 

 

649 – Ilusão

 

Se meu pai não houvera conhecido

Minha mãe,

Se os pais de ambos também

Viveram num mútuo olvido,

Se há cem, há mil, há um milhão de anos

Um homem determinado não cobrira de enganos

A ilusão duma mulher,

Eu não existiria sequer.

Nesta cadeia de triliões de acasos

Eis que um homem brota

Na pele da Terra,

Cumpridos os prazos.

E mal anota

A raiz a que se aferra.

Elo perdido na infinidade dos elos

E das encruzilhadas

Onde tudo e nada se perdeu,

Materializando os apelos

Das jornadas

- Eis-me aqui, sou Eu!

 

 

650 – Jacto

 

Quando digo eu

Como poderia não existir?

Jacto de céu,

Jorrando da Terra para o nadir,

Como pensar que é nada

Se ao pensá-lo sou já uma pegada?

Acto puro de me ver em mim,

Isto me fascina e sou,

Todavia sei que brotou

Para o silêncio sem fim.

 

 

651 – Nocturno

 

No silêncio nocturno mergulhado,

Sinto-me não existindo,

Que existir é ser este punhado

De ser acutilante, do nada vindo

Como um punhal do absoluto:

O Universo aguarda o primeiro homem

Como final produto,

Como as mãos que tudo tomem.

De súbito reparo que estou

Vivo e sou!

 

Quem sou eu?

Quem é que em mim vive comigo?

Que fantasma me habitou,

Se me prendeu

Como outro alguém a que me amigo,

A ver por meus olhos,

A falar por minha boca?

Doido perdido nestes escolhos,

Se me toco, quem me toca?

O que existe é o vulcão que de mim sai,

Jacto de deus que me habita,

Que de hábito adormece e se esvai

E mesmo então tudo o que sou me concita.

 

 

652 – Submersa

 

No instante-limite

A voz submersa brota,

Leva a que a grite,

A tomar nota.

 

Vida atrás da vida,

Irrealidade por dentro do real,

Mundo de névoa esvaída,

Fugidio e primordial,

Todo surpresa e aviso,

Presente com voz de passado

No rasto conciso

Da obscuridade em que sobrenado.

 

Minha voz é o desejo

De ao que me foge prender,

De contar aquilo onde nenhum nome vejo,

Onde os termos nem sequer

Subsistem, que se apagam

Como a névoa que afagam.

 

Eu em mim,

Princípio e fim,

E o mais além

Que vem, não vem…

 

 

653 – Amanhã

 

Amanhã é o dia de hoje

Que me foge.

 

No passado o que seduz

Não é o presente que foi,

É o que nunca veio à luz.

 

Do passado o que me dói

Não é do passado a paz

Que nem sequer foi capaz.

 

O que lá ponho e desperto

É o sonho que foi deserto.

E o que transponho

De mim para perto

É o sonho eterno que sonho.

 

 

654 – Reino

 

O reino da vida,

Do rasto dos deuses pejado,

É um país velho onde perdura, delida,

A memória de senhores antigos,

Expulsos do ancestral reinado.

 

Mas o homem brotou destes pascigos.

 

Quando virá o dia

Em que a vida fique cheia

Do rasto que tal homem anuncia,

Evidente e tranquilo,

Como, ao sol de Verão, a tarde meia,

De ave canora um leve trilo?

 

 

655 – Sementes

 

Em Abril

Não podemos ver os girassóis,

Que girassóis ainda não há.

Porém, às mil e mil,

Os agricultores plantaram já

Sementes de vindoiros arrebóis.

Quando olham para os campos plantados

Já vêem girassóis ainda não nados.

Afinal,

Os girassóis estão lá,

Embora sem dar sinal.

Só lhes faltam condições,

Um calor de sol, a chuva

E um pouco de mês de Julho.

Se lhes dispões

O que os coadjuva,

Como rebentam de orgulho!

Erros, distracções ou nem sequer,

Perenemente deles nos despistam:

- Só porque os não logramos ver

Não quer dizer que não existam!

 

 

656 – Lei

 

Custa.

A lei natural,

Porém, é justa,

Inexorável e fatal.

 

Primeiro, do cosmos a consciência,

Depois, então, a do ser.

No ovo, a violência

De nascer.

Um nada a germinar

Em húmus perdido, devagar.

 

E brota da fome a boca

E uns pés da lonjura do caminho.

Tudo desemboca

No sonho adivinho.

 

Difícil, a coragem inicial.

Tudo, porém, ela consegue,

Até, quando adregue,

Fazer-me parte do coro universal.

 

 

657 – Nascer

 

Nascer não existe

Se algo for tirar do nada:

Conspira o todo e persiste

Na nova forma adoptada.

 

Morrer não existe

Se algo reduzir a nada:

Perene, o todo resiste

Na dissolução tramada.

 

Uma flor que abriu,

Abre à luz o mundo inteiro

Nas mil formas que assumiu

Desde o começo primeiro.

 

Nascimento e morte,

Ser e não-ser…

- A realidade é doutra sorte,

Livre dos conceitos de a entender.

 

 

658 – Ondas

 

As ondas do mar são altas

E outras tão baixas serão

Que delas nas faltas

É que o mar nos ficou chão.

As ondas aparecem

Para nascer e morrer.

Quando acontecem,

O fundo me empecem

De ver:

Se olho mais atentamente

Vejo que ondas vêm, vão,

Água, porém, sempre são,

Lá constante, permanente.

 

Alto e baixo, vida e morte,

Podem contar-se das ondas.

Quando as águas, porém, sondas,

Livres são daquela sorte.

Das ondas a lucidez

É o momento em que dão conta

De que são água de vez

E tudo o mais tanto monta.

 

Aqui, neste credo,

Fenece da morte o medo.

 

Quando me olho bem no fundo

Sou uma onda do mundo,

Já sem morte ou nascimento,

Liberto enfim do tormento.

Posso construir o barco

Que pelas ondas me leve,

Inteiro o Cosmos abarco

Num olhar breve:

Não terei mais de abandonar

O Mundo para me libertar.

 

 

659 – Reino

 

Se as ondas não têm

De morrer para ser água,

Então eu também,

Embora perecendo aos olhos meus,

Não terei de sofrer da morte a mágoa

Para entrar no Reino dos Céus:

Ele já nos mora aqui

No fundo de mim e ti.

 

 

660 – Fenómenos

 

Dos fenómenos o mundo comum

Lemo-lo pelos conceitos que houver:

Muitos, um,

Ser, não ser,

Criar, destruir,

Ir e vir…

O alívio maior ao alcance de quenquer

Provém de atingir o fundamento do ser.

 

O corpo a durar

Já não é tempo de vida,

Nascer não é principiar

Nem morrer nos pára a lida.

Vida e morte são noções

De vez então superadas,

Do tempo-espaço aos baldões

Não mais confinamos nossas pegadas.

Atingir o nirvana, a suprema dimensão,

A Deus configura a inteira rendição.

No momento

Em que nos rendermos do ser ao fundamento

Integral,

Anulamos dos medos qualquer sinal.

Seremos mero afloramento

Da eterna aventura inicial:

O ser em mim adivinho

Numa curva do caminho.

 

 

661 – Cadeia

 

Da história a causalidade

Não deve obliterar

A da suprema dimensão.

 

"Após a família me gerar,

Criou-me a comunidade"

- É a cadeia neste chão.

 

"Do mar brotam as ondas,

Todas elas feitas de água"

- Da causa histórica mondas

A cadeia. Agora trago-a

Pendurada do Infinito

E da história me desquito:

- Tudo é o Grande Ser em mim

Do princípio até ao fim.

 

 

662 – Inviável

 

É inviável transmitir

A vivência duma época trilhada,

Os factos que a obrigaram a erigir,

Cada meta visada,

A penetrante presença,

No que sou, do que dali me pertença.

Vivo como sonho:

Sozinho.

Da vida no cadinho,

Sozinho me exponho,

Sozinho…

Tudo, porém, em mim alinho

E disponho,

Dos outros e do mundo eterno adivinho.

 

 

663 – Encantada

 

Uma vida encantada não é isenta

Do medo e da ansiedade existencial

De abandonar-se à tormenta

Do destino que é fatal,

Pois implica uma entrega ulisseana

À tempestade e ao remanso,

O budista afastamento da margem plana,

Do deserto mosaica travessia sem descanso,

Até mesmo a crística caminhada

Sobre as águas, à chegada…

 

Em cada dia,

Uma pegada

E deste modo importaria

Ir progredindo eternamente na jornada.

 

Minha alma quer um quadro de visões

E de paisagens infinitas,

Vislumbrado apenas quando fitas,

Ao viajar, os recantos de emoções,

Quer ela saboreie os do mundo de fora,

Quer quando nos de dentro se demora.

 

Encantar-me implica o risco

De vadiar por fora do aprisco.

 

 

664 – Marcas

 

O desafio

Não é eliminar a violência

Mas realizá-la,

Meu navio

Despertar da dormência,

Vesti-lo de gala,

E, pelo mar fora,

Inaugurar um novo rumo desde agora.

 

Deixar marcas no mundo

É violento,

Manter-me firme como um rio fecundo

É um viril intento,

Meu espírito e minha alma

A desprenderem-se criativamente

São a reverência calma

Por tudo quanto a vida por mim tente.

 

O desafio

Na violência da vida

É ser este navio

Da terra prometida.

 

 

665 – Arte

 

As obras de arte são iscas

Para do espírito os peixes

Atrair e aprisionar,

Delas nos feixes

De coruscantes riscas

Onde lucila o luar.

Explicar as imagens

Não é, pois, nossa tarefa,

Mas expormo-nos delas às miragens.

 

Na sementeira e na ceifa,

Deixá-las afectar o sentimento,

Burilar o pensamento,

Nas inauditas viagens

De colheita

A que a vida é perenemente atreita.

 

As imagens

Iniciam ao mistério

Do nível profundo,

Do acto vital e sério

Onde principia o mundo.

 

 

666 – Permanecer

 

Permanecer desencantado

É ser de vez tentado

A acolher a vida

No quadro previamente apresentado.

O sonho, em contrapartida,

Que nada é linear nos ensina:

Tudo tem poesia,

Nada que nos afecta e nos inclina

Se desvia

Do fascinante e medonho

Coração do sonho.

 

 

667 – Senta-te

 

Na cadeira

Mora a sabedoria.

Senta-te à minha beira,

Traz a nossas almas a mais-valia

Do imaginário liberto.

Maravilha-te, conversa,

Entrega-te ao devaneio incerto

Da fantasia dispersa.

Buda é iluminado

Sob a árvore da revelação

Sentado,

Do Zen o coração

É sentar.

Sentar e esquecer tudo.

Ficar presente, ficar,

Sem tentar seja o que for.

Mudo,

Saborear o amor.

Na cadeira

Mora a sabedoria,

Principia

Tua carreira:

- É a via!

 

 

668 – Almas

 

As almas não se explicam nem se curam,

Seguimo-las como ao grão-mestre

Onde os mistérios se apuram,

Na disciplina agreste

Com que cada qual nos cativa.

Não lhe exigimos que se ajuste

A nosso padrão nem expectativa,

Servos dela, por mais que custe.

Nenhuma está em nós

Nem é por nós contida,

Para a atarmos de laços e nós.

Não é nossa, desmedida.

Dela somos o brinquedo,

A argila de modelar:

Paramos de conversar,

Conta-nos ela um segredo.

Paramos de agir,

Logo age ela

E, na sequela,

Paro de interpretar, intuir,

- E então eis que se revela.

 

 

669 – Sombra

 

Descobrir a sombra interior

Para não tropeçar nela?

Não há conhecedor

Que a ponha à trela.

 

Apenas a vislumbro,

Não para a esgotar e ter controlo,

Mas, enquanto me deslumbro,

Para meu magnético polo

A tornar,

Dentro e fora de mim,

Tudo a impregnar

Até ao derradeiro confim.

 

 

Que as sombras me guiem à matriz do instinto,

À verdadeira raiz da identidade:

Ali é que me sinto

Com minha alma em íntima comunidade.

 

E então deveras

Comungo com todas as eras.

 

 

670 – Enigma

 

Se como enigma nos vemos,

Com teorias intelectuais

Nos satisfaremos.

Se for como mistérios indesvendáveis,

Buscaremos imagens e sinais

Sugestivos e fiáveis,

Jamais

Inteiramente decifráveis.

 

Uma excelente obra de arte

Mergulha-nos fundo na confusão

Do caos primitivo da vida,

No mundo aparte

Da combustão

Onde todo o além nos convida.

Em arte, a verdade

É difusa, inefável,

Oferta um grau de honestidade

E certeza

Inviável

Em qualquer outra devesa.

 

 

671 – Única

 

Uma única imagem,

Quadro de pintura,

Metáfora de poema,

Viagem

Pela lisura

Dum tema

Musical,

É uma janela aberta

Para um mistério abismal,

O ilimitado, o infinito…

Ao contrário, o horizonte se aperta

No conceito, quando o concito:

O termo abstracto

Estreita a visão.

Que de mim não me desato

Revelam as artes:

Não me reparto pelo chão,

Feito de muitas partes,

Mecânico objecto,

Antes, por trás das estilhas das memórias,

Uno desvendam meu aspecto

Entretecido de infinitas histórias.

 

 

672 – Relembro

 

Mil vezes relembro as bases de mim:

Doutrem o labor em cadeia sem fim

De vivos e mortos ao infinito…

Deverei dar de mim na mesma proporção,

Gratuito e sem fito,

Tal como recebi dali, meu quinhão.

E a cadeia se alonga

E prolonga

Mistério além…

- E eis como do mistério

Sob o império

Mergulho eu também.

 

 

673 – Anéis

 

As histórias nos encantam,

Não pela fuga à condição humana,

Mas pelo encontro que dali dimana

Entre nós e os anéis que nos suplantam.

 

Encantam porque ampliam a visão,

Incluem a magia misteriosa

E, ao lado da fada nebulosa,

O desumano, o mau, a perversão…

 

Se evitar o sombrio,

Evito o encantamento:

Não supero do frio

O fatídico tormento.

 

Obcecado pelo escuro,

Descubro o peso do mal.

As histórias que procuro

Tornam minha alma real.

 

 

674 – Fluem

 

A linguagem sagrada e o ritual

Fluem de maneira natural

Da profundeza

Da emoção

Provinda da manifestação

Da natureza.

 

E a religião

Pura

Do encontro com o poder do Universo

Supura

Como um verso.

 

 

675 – Ética

 

Uma vida ética, depurada do dever na frágua,

Pode ser tão numinosa

Como uma assombrosa

Queda de água.

 

A estese brota do espectáculo

Da natureza,

O homem ético é o pináculo

Que a embeleza.

 

 

676 – Íntimo

 

Os poetas e os artistas

Viverão

No íntimo familiares

Da edificação,

Das conquistas

Basilares

Da perplexidade:

 

Os melhores deles dirão

Que não têm a veleidade

De entender o que é que implica

A criação

Nem o que o trabalho significa

Ao lhes borbotar da mão.

 

Usam palavras, imagens,

Que falam bem mais do fundo

Que a razão,

Acerca das fontes do mundo

E, nele, de nossas passagens.

 

Alegorias que ocorrem,

Ricas em implicações,

Complexa veracidade,

São lavas que lhes escorrem

Dos vulcões

Da intimidade.

Como descortinar a derradeira raiz

Desta matriz?

 

 

677 – Desajustamento

 

O desajustamento do coração

Anda mais enraizado

Em nossa humana condição

Que os problemas mentais,

Mecanistas, tecnológicos,

Algum dia, nalgum lado,

Andarão,

Enquanto não detectarmos os sinais

Epidemiológicos,

A profunda falta de visão

Que as almas nos anda a ressequir.

 

As vidas requeimadas

Andamos a sentir,

Nómadas perdidos no deserto,

Sequiosas almas penadas,

De rumo incerto

Quanto a onde ir buscar água,

Iludidos miragem após miragem,

E nada nos apaga a frágua

Que nos requeima cada cartilagem.

 

 

As seivas da vitalidade

Apenas o encantamento as evoca.

Ele renova a infância, o divertimento retoca,

A poesia, as artes, de verdade

Germina das virtudes religiosas naturais

E da comunidade.

Do encantamento a emoção é a alegria

E por ela vais,

Finalmente fresco e denso,

Visando o prazer intenso

De cada dia.

 

 

678 – Radicalmente

 

Não há corpo humano

Sem emoção nem imaginário.

O que de mim emano

Mais radicalmente primário

É inatingível

Em perspectiva materialista:

Além dela mora, vivível,

Tudo quanto revista

Significados,

Todo um mundo de fundamentais

Sentidos sexuais,

O pano de fundo dos entes amados

E os sinais

Dos rejeitados.

No abismo de mim mora o grito

Silente do infinito

Em pedaços de meu imo cheios,

Protegidos de olhares alheios,

Indiscretos,

Que ignorem o sabor de quem tem tectos.

Sob eles ensaio mil tenteios

Predilectos,

Longe pudicamente

Dos olhos de toda a gente.

 

Tudo o mais é um engano

Sumário.

Não há corpo humano

Sem emoção nem imaginário.

 

 

679 – Donos

 

Nada do que é importante

Morre deveras.

Apenas nos iludimos, instante a instante,

Crendo-nos donos das eras,

Dos outros, das coisas, dos momentos…

Caminham comigo

Os mortos que amei,

Os sentimentos

Por qualquer amigo

Que pelas bermas deixei,

Os dias felizes

A que os ventos

Deliram os matizes…

Nada perdi,

Nada.

Apenas da ilusão me despedi

De que a estrada

Por onde tudo caminha

Podia ser para sempre minha.

 

 

680 – Sem

 

Sem desvendar

A religião do sexo

E o erotismo da religião

Há-de

Continuar

A sexualidade

Um complexo

Vulcão

Incompleto e desumano.

A religiosa sensibilidade

É o perfeito arcano

De que emana,

Vária,

A vida humana

No que tem de humanitária.

O momento

Do sexo

Pode ser o sacramento

A Deus conexo,

No radical amplexo

Que abrange todo o firmamento.

 

 

681 – Místicas

 

A vida espiritual

Profunda

E transcendente

Pode ser a vida sexual

Que, na profundeza, redunda

De alturas místicas vidente.

 

 

682 – Mundo

 

O mundo está repleto

Dum Deus que o transcende.

Adoro este Deus discreto

Cuja função

Como um perfume rescende

Dentro e para além da criação.

 

 

683 – Era

 

Em era secular,

Olho em redor o mundo materialista.

Uma espiritual vida

É verificar quanto dista

E diverge deste lugar.

 

Entro na igreja escura e silenciosa

Fugindo ao burburinho da cidade,

Medito na penumbra gostosa

Da presença humana como quem se evade.

 

Vou a palestras, de igreja me inundo:

Duma espiritualidade doutro mundo.

 

Muitos anseiam

Fora do corpo por vivências que ateiam.

 

Árida devém a espiritualidade

Buscada em mestres, gurus, livros, profetas,

Longe das metas

Da comunidade,

Dos negócios, do trabalho, do divertimento,

Da família, do lar, do firmamento…

 

Todo o pendor da vida tem

Espiritualidade também.

 

O sexo leva a um lugar

De sentimentos e de imaginário

Que é, a par,

Tão comum e tão extraordinário

Que, no que ao corpo é concernente,

É profundo e transcendente.

 

Ora, é quem deste limiar

Se abeira

Que atinge a fronteira

- E daí pode chamar.

 

 

684 – Tudo

 

Tudo é amor e pensamento

Mais deles o perpétuo movimento.

 

Isto é Deus,

Isto, os céus.

 

Mais

Para além

Seres não vejo quais

Nem quem.

 

 

685 – Através

 

O casamento espiritual

Descobrimo-lo, não além

Do sensual,

Mas através dele.

 

O amante explora o corpo de quem

Ama, aflora-lhe a pele

E descobre-se na fonte:

O parceiro faz vir à tona do horizonte

Dele o erótico potencial

E dá-lhe a oportunidade

De realizá-lo.

O que é revelado, porém,

No amor de verdade

É das almas o halo,

Nunca apenas o que pretendemos

Nem

O que a nível mental

Compreendemos.

É o além,

O que jamais apreendemos,

O que mais nos convém.

 

 

686 – Fantasia

 

De facto quando encontramos

Cônjuge ou amante viável,

De fantasia amorável

O cercamos.

Terá para nós um brilho

Que em amigos nem aparece

Nem mesmo no filho

Que a ternura enaltece.

 

Devém uma dupla estrela:

Dum lado, aura da presença,

Doutro, luz de fonte desconhecida,

Que, na sequela,

Intensifica, imensa,

A totalidade da vida.

 

 

687 – Misterioso

 

O amante misterioso, ideal,

Convida

A satisfazer o desejo sexual

E a completar a vida.

 

Implica a gratificação,

Porém, outro produto:

Em germe a satisfação

Do desejo absoluto.

 

No sexo há sempre outro elemento,

A cúpula do casamento.

 

A física união

Tem por destino

Reflectir o acto sexual divino

E nele ter qualquer participação.

 

Importa levar a sério

Nossos desejos, mesmo o mais mundano e banal:

Podem indicar da presença o refrigério

Do parceiro angelical,

 

O amante profundamente interior

Que sozinho, abismal,

Dentro de mim lida

E, dele ao sabor,

Cria uma vida.

 

 

688 – Alma

 

Alma, uma fonte

De que brota água da vida.

Vem dela a vitalidade,

Como a nossa identidade

Que provém dum horizonte

Mais que a personalidade

Oferecida

Dum ego pela medida.

 

Quando ligados a ela,

De tão profunda, elevada,

Se o desejo acolho à entrada,

Nossa consciência revela

Qualidade a mais sublime,

Excelência pessoal.

É a virtude com que encime

A integridade moral

Com poder individual,

Nos quais meu poder arrime.

 

Assim é que me revela

Aquela fonte:

Alma, íntima ponte

Até à próxima estrela.

 

 

689 – Ligam

 

Na vida, em todas as áreas,

As almas precisam de basear-se

Nas profundezas

E de inspirar-se

Nas alturas.

Ligam, sumárias,

O chão que mal prezas

Ao pináculo que auguras.

 

Alma, a mediadora,

Atinge o mais alto e o mais baixo

Da humana condição:

Dentro mora

E liga-o ao de fora,

Por ela o passado encaixo

No momento de agora,

Funde a cabeça e o coração.

 

Da vida a maior tragédia

É ficar o espírito do corpo desligado

E apenas a alma com a rédea

Os ata de seu fado.

 

Alma, a escada

Que a humanidade intacta nos mantém

Quando livres nos movemos no vaivém,

Na romaria com todos os mais,

Jornada a jornada,

Entre as nossas vivências corpóreas e espirituais.

 

 

690 – Estranhar

 

Não era de estranhar que um novo fascínio

Pela vida espiritual

Germine no final

Duma era de progressos materiais, tecnológicos

E de extermínio.

 

A natureza temos desventrado a golpes lógicos,

Tecnicamente as reservas lhe explorando,

Apagando-lhe lentamente o mistério

E a imensidão.

 

Quando

Nela não busco refrigério,

Deixa a natureza de servir-me o pão.

 

Quando as pedras e a poeira

De Marte e da Lua

Nossas pequenas máquinas revelam

Na distante paisagem,

Devém leveira

E nua

A imagem

Com que os céus sobre nós velam:

Que pequenos

Somos ante os siderais acenos!

 

A sublimidade

É alimentada pela viagem,

A miragem

Da maravilhosa terra azul me invade

A milhares de quilómetros de distância.

 

Meu espanto

Do Universo ante a grandiosidade

Perde a acutilância,

Entretanto,

Enquanto

Ela é desfeita

Do tecnólogo pela visão estreita.

 

E aqui me fino

Entre as redondas paredes do planeta,

Míope e mofino,

Sem vislumbrar sequer

A infinidade que além um certo Alguém detecta

E me requer!

 

 

691 – Navego

 

Navego desconhecido

À descoberta de mim.

Venci onde nunca estive,

Perdido

No mar sem fim.

Que brisa nova revive

Nesta sonolência indescritível

Em que posso andar em frente,

Curvado, indigente,

A marchar sobre o impossível?

 

Cada qual seu álcool tem.

Tenho meu álcool bastante

Em existir.

Bêbado de me sentir,

Bamboleio

E vagueio

Como quem

Mal se tem

E ando certo para diante.

 

Sou igual a meus iguais

Mas por detrás dos sinais

Constelo-me às escondidas, sem um grito,

E tenho o meu infinito.

 

 

692 – Míopes

 

Míopes somo-lo todos,

Exceptuando para dentro.

O sonho, apenas, tem modos

De ver, quando me concentro,

Como um olhar

Donde fito

Sem lugar

O Infinito.

 

 

693 – Secreta

 

A secreta esperança dum segredo

É a possibilidade,

Embora vaga, longínqua, tornada num credo,

De um dia deixar de o ser.

A humanidade

É o segredo e o credo:

E é o que a faz correr.

 

 

694 – Novo

 

Novo céu e nova terra

Não germinam de factos mas de raízes,

Nenhum facto o ovo encerra

Das matrizes.

 

 

Apenas há o facto de que o homem,

Todo e cada qual, em toda a parte do mundo,

Vai a caminho da criação.

Uns o caminho mais longo faz que tomem,

Outros, o mais curto, mas fecundo

E ali à mão.

 

Todo o homem anda a emalhar o destino

À própria maneira.

Ninguém o pode ajudar senão com tino,

Sendo amável, generoso e paciente,

Enquanto vai trepando, persistente,

A ladeira.

 

 

695 – Cidade

 

Toda a cidade

É um momento

Da mais alta insanidade

Em todo e qualquer elemento.

 

Esgotos, linhas de comboio,

Jornais, caça-moedas,

Tudo inçado de joio

A trepar pelas medas.

 

Não faria diferença

Se nada disto existira,

Despejado no bueiro.

Ninguém perderia a mantença

E ganharíamos, se a página se vira,

Um Universo inteiro.

 

 

696 – Topo

 

Entre o topo e o fundo

Não há paragem

Nem apeadeiro intermédio,

A viagem

Do mundo

É sem remédio.

 

O rio nasce algures na montanha

E corre para o mar.

No rio que a Deus lentamente ganha

Serve tanto a pequena causa

Como um navio de guerra para navegar.

Desde o princípio nada é à toa:

Toda a viagem, aliás,

Rumo à pátria se faz.

  

 

697 – Desorientação

 

A desorientação e a reorientação

Inerente

À iniciação

Em qualquer mistério

São

A experiência mais transcendente

Que é viável ter.

A mente

Dela sob o império

A vida inteira a tentar reter,

Categorizar,

Sintetizar

E, de repente,

Tudo tem de ser

Desintegrado

E reorganizado!

 

Dia de mudança

Para a alma e tudo o que ela alcança.

 

 

698 – Oportunidade

 

Sem engano,

A oportunidade maior que a vida me oferta

É a de ser humano.

Todo o Universo abarca

E nos braços aperta.

E engloba o conhecimento da Parca,

Da morte bruta,

De que nem mesmo Deus desfruta.

 

 

699 – Mesmo

 

O homem que renasce

É sempre o mesmo homem:

Mais e mais refaz-se

A cada renascimento de quantos o domem.

 

Cada vez que morre apenas larga a pele

E, com ela, os pecados.

Quem Deus ama é deveras aquele

Que vive como deve em todos os bocados.

Quem Deus ama é uma cebola

Com um  milhão de peles.

Largar a primeira em que se enrola

É tão doloroso que quase o repeles.

 

À segunda, é menos doloroso,

A seguinte, ainda menos.

Depois, a dor vem a dar gozo,

É agradável, um deleite, um êxtase terrenos.

Depois, nem prazer nem dor,

É a mera escuridão

Cedendo perante o alvor

A progredir pelo chão.

 

E, à medida

Que a escuridão é iluminada,

Abandona o esconderijo a ferida

Negregada:

 

A ferida que é o homem,

Mais dele o amor canhestro e pequeno,

Para que doravante o tomem

Banhos de luz em pleno.

 

A identidade perdida

Se recupera,

Sai o homem da ferida,

Da sepultura que ele era.

 

Tudo nele gradualmente se reduz

A um gesto de luz.

 

 

700 – Música

 

A música de estufa,

Panaceia para a dor de viver,

É apenas ópera bufa

A fazer rir sem querer.

 

Música é fogo planetário,

Auto-suficiente irredutibilidade,

O fogo dos deuses vário

Com cuja identidade

 

Nem o erudito, nem o ignaro

Sabem lidar,

Que o eixo do mundo ali não tem reparo

Após desenganchar.

 

Eis do ser as entranhas,

O inefável,

O inevitável,

O fio imponderável

Das cosmogónicas teias das aranhas:

Nada ainda foi decidido,

Nada determinado nem resolvido…

 

Tudo o que vai ocorrendo,

Música, arquitectura, lei, governo,

Atitudes com que me ofendo,

O invento e a descoberta do céu e do inferno,

Tudo

É mero exercício de velocidade

E de rota onde me mudo

E renovo minha identidade.

 

Eis a primeira

E derradeira

Verdade,

Com que, afinal, tão pouco tudo emparceira.

 

Tudo, em minha miopia,

Acaba reduzido,

Na rotina do dia-a-dia,

A desprezível rasquido.

Que cegueira!

 

 

701 – Roda

 

A roda do destino

Podemos superá-la a qualquer momento,

Pois, se nela atino,

Reparo que toca o real em todo o segmento

Das áreas selectivas

E bastam de inspiração algumas chispas vivas

Para o milagre desencadear

E o patinador

Acaba nadador

E o nadador, um rochedo em seu lugar.

 

O rochedo é quem detém

A inútil rotação da roda

E do ser que lhe convém

Toma a consciência toda.

 

No oceano desta

Se engloba o Sol e a Lua

E a estes inexaurível se empresta.

 

Tudo o que existe flutua

No ilimitado mar de luz,

Até a noite lá conduz.

 

Nas intérminas revoluções da roda,

Olhando o abismo,

Vislumbro o salto a dar:

 

Saltar

Fora do mecanismo

Que me engoda.

Eis o gesto libertador:

- E de mim serei senhor.

 

 

702 – Tornei-me

 

Tornei-me um anjo.

Valiosa não é dele a pureza que abranjo,

Mas o facto de poder voar.

Um anjo pode quebrar

O sistema em toda a parte e momento,

No facto e no pensamento,

E dele encontrar o céu.

À baixa matéria pode descer

E dela se libertar a seu

Bel-prazer,

Despojado

Do passado,

Despreocupadamente seguro

Do futuro.

 

Para além do êxtase dobro as asas,

Escondo-as no sovaco

Por debaixo do casaco,

 

- E ninguém repara em mim por entre as casas.

 

 

703 – Ateus

 

Os ateus, entendendo a mensagem,

Ensinaram-me os livros sagrados

De toda e qualquer fé:

Tempo fora, a viagem

Não é a dos fados,

Sagrada é a palavra que põe os homens de pé.

 

 

704 – Regime

 

É um regime a democracia

Que para toda a gente cria

Condições económicas, políticas e espirituais,

A fim de permitir o pleno desenvolvimento

Dos humanos potenciais.

 

- E há quem não creia que um poema

Alguma vez ao humano intento

Possa servir de lema…

 

 

705 – Família

 

Uma família à volta da lareira,

A chaminé duma fábrica a fumegar,

Uma locomotiva cheia de canseira…

- Tenho a impressão de que, por todo o lugar,

Esventrando a terra cada vez mais fundo,

Obrigo a girar o mundo.

 

 

706 – Transcendência

 

Transcendência, enquanto forma

De romper com o passado,

É o inerente postulado

De qualquer revolução

Ou reforma.

O determinismo, por definição,

É conservador.

O trabalho humano, em norma

Com finalidade consciente,

É libertador:

- Projecto, inaugura mundo em frente.

 

 

707 – Fim

 

Do Homem o fim radical e derradeiro

Nunca é sentido fora de nós por inteiro:

Definitivamente inalcançável na totalidade,

Temos a certeza obscura de que apela no horizonte

De qualquer actividade,

Por ela postulado como primária fonte.

Sentido da história suspenso e adiado,

Apela às dúvidas e ronda na treva.

Para o não vermos num dogmatismo derivado

Nem na inquisição a que leva,

Só não o hipostasiando em realidade alguma,

Em nenhum objecto, ídolo ou tese,

Vivê-lo como postulado de esfumada espuma

Implicado em todo o acto

Que, quando o desato,

Deste modo o respeite e preze.

 

 

708 – Presença

 

É uma presença e uma promessa a transcendência,

Como uma ausência

E uma exigência.

 

E uma consciência de ausência tão alta

Uma presença qualquer

Não requer

Para ser vivida, muito embora como falta?

 

- Entre um já e um ainda não

A vida é perene tensão.

 

 

709 – Facto

 

Viver a ressurreição

Não é crer que é um facto histórico

Da ciência positivista,

A química reacção

Duma reconstituição,

Sem mais sentido alegórico,

Da matéria como exista.

 

Ao invés, é a afirmação

Do impossível pelo qual

A História se abre, afinal,

Rumo a todos os possíveis:

Assim o futuro não

Assenta em indefectíveis

Prolongamentos de antanho.

 

Não é uma ressurreição

Enxertá-la como um ganho

Na História que tenho à mão,

Antes entender a História

Como um pendor de vitória

Que augura a Ressurreição.

Não nasceu para morrer,

Antes para começar

O Homem que há-de viver

Dele o poema a declamar:

 

A nascer e a renascer

Como melhor convier,

 

Com um olhar sempre fito

Nas fronteiras do Infinito.

 

 

710 – Mediados

 

Podemos, mediados por todas as culturas,

Viver a experiência espiritual mais radical

Que nos constitui o ser, no mais fundo das funduras:

O eu abismal,

A minha relação com o todo.

 

O homem não é humano,

Qualquer que seja o engodo,

Senão habitado por Deus:

O sufismo muçulmano,

A não-dualidade hindu,

Os humanismos ateus,

A mística cristã,

Põem a nu

A partilhada manhã

De todas as espiritualidades do Universo:

Do poema comum cada qual recita o próprio verso.

  

 

711 – Confins

 

A graça, nos confins da natureza

Não abolida mas completada,

Embeleza

De afecto terno

A mística de cada pegada:

A graça é no tempo a descida do eterno.

 

 

712 – Limites

 

Além da técnica ou lógica inteligência,

Onde o computador com vantagem nos substitui,

A sabedoria intui

A premência

Da consciência

Dos limites e valores:

Limites duma ciência

Que não pode alcançar

Nenhuma causa primeira, a pedra angular;

Valores

Duma sabedoria

Que jamais atingiria

Os fins últimos promissores.

 

Aí principia

A fé:

Presença voluntária, na brecha

De pé,

Ao outro, a qualquer outro abertura,

Teimosa a acender a mecha

Na escuridão de alicerces e fundamentos.

Fé de Abraão

Ou humildade do poema, da pintura

Que acolhe a invasão

E os tormentos

Do que dentro dele se gerou

E lhe não pertence em seu estranho voo.

 

 

713 – Séculos

 

De séculos uma catarata

O abismal desfiladeiro burilou.

A tal arte cósmica a dos homens se ata,

Instante de eternidade que se evolou.

Que arquitecto rasgou a grandeza

Deste abismo de beleza,

Quem no Cosmos traçou a elipse

Colossal do Apocalipse?

 

Aqui, o acto de criação

Não é mera evocação,

Mas presença.

Presença não experimental mas sentida

Com vigor

Numa vivência desmedida

Que nos avassala, tão clara e densa

Como a ternura dum amor.

 

 

714 – Verdadeiro

 

Mais verdadeiro que o real

É o ideal.

E a tarefa do homem é modelar

A realidade escassa

Tentando-a permanentemente configurar

Pelo que a ultrapassa.

 

 

715 – Utopia

 

Uma utopia é o Islão,

Como utopista

É o cristão,

Como o é o socialista.

Utopia sem a qual

O mundo e a vida em geral

Já não teriam sentido.

Senão, que havia de ser prosseguido?

A utopia é um horizonte

Que ante nós sempre recua

À medida que avançamos.

Se nosso olhar não faz ponte

Até lá mostrando a rua,

A acção faz que nós percamos.

 

Sem tais

Postulados reguladores

O mundo não é mais,

Perdidos os sinais

Orientadores,

Do que um caos desordenado

E a vida já não leva a nenhum lado.

O absurdo ou a fé,

Não há mesmo outra opção:

Ou nos erguemos de pé

Ou nos esboroamos no chão.

 

 

716 – Leitura

 

A transcendência absoluta de Deus

Exclui qualquer leitura literal

Da revelação.

Os céus

Não pode medi-los a linguagem banal

Nem a experiência deste chão.

Deus fala

Por parábolas apenas.

Às vezes o homem cala

Os cambiantes das mudas pequenas

- E estas, afinal, é que são plenas.

 

 

717 – História

 

A História é a dos vencedores,

Revoluções de fingimento

Tornadas dialéctica do ressentimento:

Discriminados os pormenores,

O escravo vencedor,

Com alma de escravo,

Logo institui em redor

Nova servidão, bravo.

 

História deveras

É uma história de alma,

A de franquear

Através das eras,

Com humor e calma,

O nosso limiar

Através da criação

De novas formas de libertação.

 

Tal História seria

A das religiões, das artes, da sabedoria

Que, discretas, tornaram visível

A marcha do invisível.

 

O porvir requer a incarnação

Dos profetas,

Não é de César nem Napoleão,

Tem o rasto de pegadas dos poetas.

 

 

718 – Revolução

 

Revolução em profundidade

É o apelo a uma aberta e universal comunidade

Onde o homem não é humano

Se não for, de qualquer modo,

Habitado, sem engano,

Pelo Todo.

 

A parcialidade,

O individualismo,

O nacionalismo,

Eis doravante a matriz da desumanidade,

O abismo.

 

 

719 – Viver

 

Viver

Não é viver contra a morte.

Não é a morte, sequer,

Que à vida virá dar norte.

Opera ao contrário a medida:

É a vida

Que dá sentido à morte

Quando no Todo é vivida.

 

 

720 – Ponto

 

O ponto em que o acto de fé, o acto político e a poesia

Dum poema vivido

Mais do que o mesmo não são,

Pode ser atingido

A partir de toda a sabedoria

E de toda e qualquer religião.

 

Ser cristão

Ou muçulmano

Não pode separar-me dos que o não são,

Sob pena de tornar-me desumano,

A anti-religião:

Que cada qual seja o que é

Mais profunda e universalmente

E poderemos reencontrar-nos, ombro a ombro, de pé,

Cada qual presente,

Em postura solidária,

Com todos os membros da comunidade planetária.

Aquele que destrói as fronteiras do individual

E as alarga ao extremo limite sideral:

As do individualismo e do nacionalismo

Destruidores do mundo;

As da tecnocracia e do cientismo

Que separam o saber e o poder fecundo

Dos sentidos e objectivos deles;

As de igrejas, partidos, ideologias,

Pretendendo impor aos imbeles,

Como um bodo,

As verdades parciais e fechadas de suas fantasias

Contra a unidade infindamente aberta do Todo.

 

 

721 – Noite

 

É de noite que oiço o mar,

A morte, eternidade vivida,

A silenciosa e bela eternidade,

Com Deus a se recriar, sem parar,

No homem total e sem medida.

A morte, este mar que me persuade

A abordá-lo a plenos pulmões,

Sem a vertigem do abismo.

A nadar, a nadar,

De alegria as explosões

Com que me crismo!

Remanso onde me acoite,

Que era do dia sem esta noite?

Eu oiço o mar, eu oiço o mar…

 

 

722 – Ver

 

Numa coisa ver mais que o que nela está

É vê-la menos lá:

O que espiritualmente a acrescenta,

Materialmente a diminui.

No limite, quem atenta,

Vê como um nada flui:

O espanto que me deixa mudo

É que este nada é tudo.

Não existem, portanto, os céus:

Quando reparo nisto

Vejo que, afinal, o que para além avisto

É que é Deus.

 

 

723 – Civilizações

 

As civilizações não existem senão

A germinar arte e literatura.

São palavras, são,

O que delas fala e fica,

Mesmo em quadros de pintura,

Grandezas de arquitectura,

Músicas onde a emoção

A conversar-nos se aplica.

Então por que não serão

Elas, em cada figura,

O que é deveras real?

Dói na existência mental

Que isto venha a ser assim:

- Qual a fronteira de mim?

Não há fronteira, afinal,

E, quando eu chegar ao fim,

Tudo aquilo é o meu sinal

Apontando o meu confim,

Prolongando o gesto e o fito

Rumo a intérmino infinito.

Na aventura como é que entro

É o mistério onde me adentro.

O meu derradeiro verso

Afinal não será meu:

Eu sou eu neste Universo,

Do Eu dele afloramento,

Vergôntea do infindo Eu,

Nele eternamente imerso,

Dele a respirar o alento,

Indefinidamente,

Ao vento

Da eternidade presente

Agora e futuramente.

 

 

724 – Ponte

 

Nem tudo nem nada poderei ser.

Ponte de passagem

Entre o que não tiver e o que não quiser,

Aqui vou de viagem,

Rumo a qualquer

Paisagem

Que me venha a surpreender

O meu bornal de esmoler

Em perpétua vadiagem.

 

 

725 – Humana

 

A humana desilusão

Obriga a cuidar

Da ideia vulgar

De inspiração.

 

Este corpo de comércio,

Com alma de escola e norma,

Cada qual a sós exerce-o

Revestido de alheia forma.

 

Investidos de mistério,

Algo íntimo é-lhes alheio,

Não falam, que fala o império

De que cada qual é cheio.

 

A voz diz o que é verdade

E que seria mentira

Se algum deles se persuade

Que é dele próprio que a tira.

 

Assim,

Por muito que me custe,

Nem sequer isto aqui vem de mim,

Por mais que mo ajuste.

 

 

726 – Universo

 

Universo: Que enigma espantoso!

Verificá-lo basta a me sentir vivo.

Nada responder às perguntas que em mim arquivo

E a que me coso,

Que importância tem?

- Basta entendê-las bem…

E que gozo! Que gozo!

 

 

727 – Berço

 

Desde o berço de bebé

Meu pai só vejo por entre grades.

Vão de minha casa até

Ao mestre-escola e aos frades,

Do ponteiro à palmatória,

Da tabuada às trindades,

Atravessam o polícia,

Espreitam cantos de glória,

Cassetetes de sevícia,

São o guarda prisional,

Vão do praça ao general…

Mesmo o livre presidente

Entre grades vejo assente.

De oiro, ferro ou de cimento,

Grades são nossa medida

E o mais que a mim acrescento

São sempre grades de aumento,

Embora o que me convida

Seja o contrário que tento.

Não há invento

Que nos liberte da sina

A que o fado nos destina.

Por muito que trepe aos céus,

Adivinho

Que fatalmente amarinho

Nas grades de Deus.

 

 

728 – Durante

 

Durante alguns anos

Viveu, comeu, riu,

Amou, esperou

Como todos os humanos.

 

Agora, para sempre tudo acabou:

Morreu.

Uma vida de alguns dias,

Depois, mais nada.

Nascemos, crescemos, mil fantasias,

Esperamos… e é o fim da jornada!

 

Homem ou mulher

Jamais à terra voltará quenquer.

Todavia cada qual vive em si

As ânsias da eternidade,

Universo dentro do Universo

E cada qual se desfaz logo ali,

Por fatalidade,

No estrume converso

Da vindoira realidade.

 

A mosca vive umas horas,

A borboleta, uns dias,

O Homem tem mais demoras,

Decénios de tristezas e alegrias,

Os mundos são biliões de anos…

 

A diferença, contudo,

São enganos, são enganos:

A mais apenas algumas auroras

- E eis tudo!

 

 

729 – Fatal

 

O absurdo

É que deveras importante

Na vida é a morte.

Nasço e quanto na vida urdo

Depara adiante

Com a fatídica sorte.

Todo o evento,

Positivo ou negativo,

É mero acessório no percurso.

Tento,

No que vivo,

Inverter o fio do discurso.

 

Em vão:

Minha raiz é o chão

Donde brotei

E aonde retornarei.

 

Há quem fique deprimido,

Vá mesmo suicidar-se:

Não encontrou o sentido

Que a morte fatal disfarce.

 

O melhor, como a balança,

É elevar, bem positivo,

Quando a um braço o mal alcança,

O outro por quem eu vivo.

 

E o mais deixar ao destino

Indecifrável,

Sem mais gemido nem grito.

Para quê o desatino?

- Tudo é provável,

Inclusive o infinito.

 

 

730 – Lugar

 

Na vida das nações

Um lugar relevante

Convém ao romance.

Motor das históricas evoluções,

Da liberdade o melhor garante,

É espírito crítico em tudo o que alcance.

Sem o romance o Homem sofreria

Uma perda irreparável:

A grande literatura enuncia

Um questionamento radical,

Inevitável,

Do mundo em que vivemos.

Da sedição alimenta o fanal,

Revoltosa, inconformista.

Quando a lemos

Dos insubmissos alargamos a lista.

 

Então,

Depois,

Erguem-se no promontório os faróis

Para a vindoira navegação.

 

 

731 – Calha

 

Leva-nos a viver a literatura

Num mundo cujas leis transgridem

A calha que segura

Os trilhos da vida real.

Mal

Nos convidem

À aventura,

Livram-nos os livros da prisão

Do tempo e do espaço,

Na impunidade para o excesso e a rebelião,

Donos duma soberania

Que, num mundo escasso,

Nada limitaria.

 

Como não havia

De me sentir defraudado

Ao retornar a este mundo de mesquinharia,

De balizas e servidões,

Gradeado

De fronteiras e proibições

Que a vontade nos secam

E, quando alegres os passos rompem,

Os sonhos nos dissecam

E corrompem?

 

A vida sonhada

Do romance

É mais bela, variegada,

Lógica e perfeita

E tem maior alcance

Que a real

Que, afinal,

Me enjeita.

 

Da literatura eis o melhor contributo

Para o progresso:

Recorda que o mundo está mal feito

No estatuto

E no processo

E poderia tomar melhor jeito,

Se mais atento ao que a fantasia

É capaz de pôr em dia.

Uma democrática e livre comunidade

Vai implicar

De cada cidadão a plena responsabilidade,

Homens críticos, independentes,

Difíceis de manipular,

Em mobilização espiritual,

Conscientes

De que urge submeter o mundo a exame

Permanente e radical,

Para tratar de o fazer

Coerente com o que proclame

O mundo outro em que quereríamos viver.

 

Sem tal insatisfação e rebeldia

No primitivismo ainda o mundo viveria,

O indivíduo nascido

Ainda nem sequer havia,

Nem a ciência, nem a tecnologia,

Nem era reconhecido

Qualquer direito humano,

Nem a liberdade brotaria

Por detrás de cada engano…

 

Tudo isto são os produtos

Da insubmissão contra a vida

Como, desensabida,

Nos vem sendo servida

Em concretos condutos.

 

Para este espírito que a desacata,

A fim de materializar o impossível

Do sonho a que nos ata,

É sempre a literatura

Quem o mais formidável combustível

Nos apura.

 

 

732 – Correnteza

 

Corre apenas uma estrada

Que é tal como um grande rio:

A cada porta nasce, da levada

A correnteza dum fio

E todos os caminhos existentes

Serão do grande rio os afluentes.

 

Por ele vamos todos navegando,

Mesmo se ninguém sabe onde nem quando.

 

O risco é sair da porta,

Que, ao pormos o pé na estrada,

Quem sabe para onde nos transporta

A violência da enxurrada?