CANTO  SETE

 

 

OS  PÉS  ME  GRUDA  DO  COTIO  O  SEBO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 733 e 840 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    733 – Os pés me gruda do cotio o sebo

 

                                                    Os pés me gruda do cotio o sebo

                                                    Nos rastos pegajosos da rotina

                                                    E talho a sina

                                                    Das normas e dos jeitos que recebo.

 

                                                    O que concebo

                                                    Marcas tem da sensatez que atina,

                                                    Entre as cordas afina

                                                    O acorde harmónico em que a vida embebo.

 

                                                    Dos hábitos o rio

                                                    Sigo no rodopio

                                                    Dos turbilhões de cada dia.

 

                                                    Por trás de cada qual espreita

                                                    Minha fugaz intuição afeita

                                                    À madrugada de quanto se anuncia.

 

 

734 – Apesar

 

Apesar de vivermos bem,

Eis-nos insatisfeitos, inquietos,

Que a vida deve ser mais.

Viajamos então pelo mundo além,

Discretos…

Descobrimos os sinais:

 

- A viagem exterior

Enriquece

A que, interior,

Por dentro floresce.

 

 

735 – Hoje

 

Hoje

A dor de hoje em dia sofre,

À de ontem foge

E à de amanhã fecha teu cofre:

- Os ombros teus carregados

Tem-los logo levantados.

 

 

736 – Compreender

 

Compreender um problema

Só por si nunca o resolve.

É, porém, um lema,

Para quem se envolve,

Principiar de verdade

A tomar responsabilidade:

Pode mudar atitudes,

Modelar comportamentos,

Afloram novas virtudes,

Até ali meros fermentos…

 

Compreender abre a janela

Do saguão:

Pode a sequela

Ser uma revelação.

 

 

737 – Auto-estima

 

Auto-estima

Não é direito de nascença.

O que ela encima

É uma conquista,

Até devir, por fim, nossa pertença.

 

Se nos falta, é tê-la em vista,

Que é tempo de fazer algo:

Escolher ser responsável,

Para conquistar o respeito

De mim próprio – eis como galgo

O viável

Degrau estreito.

E desculpas, disto em lugar,

Deixemo-las de vez de arranjar!

 

 

738 – Tempo

 

É tempo de não ir

Na conversa dos que perdem a vida

Com expedientes para justificar

Cada asneira cometida.

 

O porvir

É de quem principiar

A aprender com os erros ocorridos.

 

- Éramos capazes de ficar

Mais crescidos!

 

 

739 – Arte

 

Arte de envelhecer:

Cada facto

Melhor acolher

E ficar mais grato…

 

A incrível equação da velhice:

Quanto mais se lhe vai tirando,

Em lugar da sovinice,

De mais dispõe para o que lhe for restando.

 

 

740 – Insensato

 

Um homem sensato

Adapta-se ao mundo,

O insensato tenta

Adaptá-lo a si.

O aparato

Fecundo

Que inventa

O frenesi

Do progresso, por mais ligeiro,

É do insensato por inteiro.

 

Que admira,

Afinal,

Se, com tal,

Mais e mais o Homem delira?

- É o insensato

Em acto!

 

 

741 – Mestre

 

O mestre inexperiente pergunta:

Como é que estou a portar-me?

O experiente, em troca, assunta,

Sem mais alarme

Nem disfarce:

- Como é que os alunos estão a portar-se?

  

 

742 – Estranha

 

Que estranha, a natureza!

Não muda nunca…

Enquanto o solo nos junca

Dos despojos que despreza

Ou por que reza.

 

Nós é que envelhecemos,

Nós é que nos desviámos.

Não aprendemos

O segredo destes amos,

O sinal

Que perene descansa:

- Permanecer igual

Na perpétua mudança.

 

 

743 – Jornalista

 

Jornalista que se preza,

Paladino da verdade e da justiça,

Corre à liça,

Fecha os olhos à própria safadeza

E, triunfal e jucundo,

Desata a julgar o mundo.

 

- Hoje como sempre, o lixo

Fá-lo qualquer bicho.

 

 

744 – Amadurecer

 

Se amadurecer dói muito,

Produto

Nada gratuito,

Pode ser óptimo o fruto.

 

Então compensa

A dor mais intensa.

 

 

745 – Acordo

 

Jamais a má teima

Findará

Num acordo singular:

Quem livros queima

Tarde ou cedo acabará

Homens a queimar.

  

 

746 – Técnica

 

Da técnica a caridade

Contra o logro original da natureza

Dá-nos a capacidade,

Pela luta e pelo amor,

De, com suor,

A desarmadilhar do que nos pesa.

 

Pelo amor também,

Que requer ligeiros

(Como nos convier e às vezes advém)

Galantes e mágicos pedreiros.

 

 

747 – Distingue

 

O que distingue um humano

É não acatar nada tal como for,

Tem de mexer-lhe, trocar de plano,

Jamais quieto, com suor.

 

Escrever

É ficar despercebido,

Nada mudar no mundo, na vida

Que haja a sofrer,

Quando, no interior escondido,

Toda a terra é revolvida,

Sem mal se aperceber.

Quieto, sossegado,

- E a minar o mundo por todo o lado.

 

 

748 – Alívio

 

A vida e o tédio

Deles tenho o dia nédio,

 

Não são, porém, suportados,

São olhados.

 

É um alívio, a libertação,

Em cada dia, uma revolução.

 

Tudo actua, como dantes, sobre mim.

Doravante, porém, não fica assim:

 

Não me calo, tremendo,

- Reajo escrevendo!

 

Ao apontar a dedo,

Perco medo

 

E o esmagador peso primeiro

Torno, então, de vez leveiro.

 

 

749 – Guarda

 

A escrita nunca te foi indispensável,

Guarda tua religião dentro de ti.

Deus vem aí

Ao teu encontro, infatigável,

Aí, onde falas contigo,

De terceiros ao abrigo.

 

Deixa que os mais pela rua

Apregoem a deles.

Respira tu a tua,

Que então não os repeles

E é apenas por tua alma nua

Que te impeles.

Ouve em teu íntimo o segredo,

- Então é que nos compeles

A escapar do degredo.

 

 

750 – Osso

 

O cão

Morre sem jamais ter encontrado

O osso derradeiro algures enterrado

No chão.

 

Quantos vestígios da vida

Jamais se hão recuperado!

Embora isto nunca impeça

De ir sendo a busca prosseguida

E cada vez mais depressa.

 

 

751 – Rasto

 

Andará Deus à nossa espera

No cabo do mundo?

Aqui, nem rasto de quimera

De cada dia ao fundo.

 

Tens de o procurar em ti

Como quem bate a uma porta.

Encontrá-lo-ás aí,

Se ainda existir da sombra morta

Algo que te exorta

Discreto e sem frenesim.

 

Se eu bem houver entendido,

Temos de ser o pica-pau persistente

Para este Deus duro de ouvido.

 

E logo me ocorre a mim

Que, se me aplico,

Reparo simplesmente

Que me falta o bico!

 

 

752 – Difícil

 

Que difícil explicar-me,

Quanta banalização!

O mais elevado carme

Como rasteja no chão!

 

Com palavras condenados a pensar,

A sentir com palavras,

Para os outros, ao calhar,

Entenderem nossas lavras,

Como ao fim as rotas apontadas

Resultam glabras,

Comedidas,

Ao lado das estradas

Prometidas!

As palavras são pedras,

Toda a vida lutei com elas

E, depois de rasgar tantas janelas,

Vê como tão pouco medro, tão pouco medras!

 

Aqui ando eterno a lutar comigo

Para apanhar minha evidência,

Meu prémio e meu castigo:

- Sei lá o que é desta existência!

 

 

753 – Fadiga

 

Por que há-de a vida

Ter razão contra nós?

Por que havemos sempre de atar-lhe os nós

Em fadiga submetida?

Um curso, o lar, os filhos,

Eternamente os mesmos trilhos, os mesmos trilhos…

 

- Não, não há maneira

De saltar fora da jeira.

 

 

754 – Real

 

Mais real do que nascer é morrer.

Quem nasce ainda é nada mas se ilude.

Quem morre é que faz que nada mude,

É o Universo, puro facto de ser.

 

Um homem só é perfeito

Se transpôs até os limites,

Se a morte não tiver jeito

De lhe surpreender apetites.

 

Não por ser gesta esquecida,

Mas por tê-la incorporado

Na plenitude da vida.

Mas como entender tal dado?

 

A parte animal dum homem,

O que é sono e quer dormir,

Como pesa e o que consomem

Estes passos de não ir!

 

 

755 – Fleuma

 

Amigo,

Tua fleuma desmedida,

Com ela não condigo.

Busca o rasto divino de tua medida,

O lume clandestino de tua aparição

Brotando como um grito do alcantil da serra.

Onde o perdeste, irmão?

O ar monolítico da terra

Como é que tudo te pontua?

Trago o eco perdido de ti

Na hoje erma rua

Onde, num dia de espantos, te surpreendi.

Onde estás, que não te alcanço,

Entre as pedras e poeiras em que me canso?

 

 

756 – Falhados

 

Aos quinze anos,

Foi a roupa de dar sorte.

Falhados da sorte os planos,

Foi dum penteado o corte,

Depois, um número ao jogo,

Dias fastos de jogar…

 

Quinze anos após me arrogo

O segredo de que auguro

A vitória a germinar:

- É bem duro e só bem duro

Trabalhar!

 

 

757 – Discutir

 

Discutir Deus?

Mas que asneira!

Toco Deus, não com a ideia,

É com realidade viva.

A prática leva os céus

A tombar da cumeeira.

A palavra é escada meia

De transpor a porta esquiva.

A realidade

Vive livre de noções.

É dever de quem a invade

Saltar conceitos, chavões,

Até se tornar capaz

Do que ela tem de fugaz.

 

 

758 – Bondade

 

Haja a bondade que houver,

Se houver dinheiro

O homem não enxerga nada.

 

Esta bicheza danada

Cega e surda a iremos ver,

Se vislumbra tal parceiro:

O dinheiro é a desgraça

Do tempo que passa.

 

Muito mais que um furacão,

Que o vírus Ébola ou Lassa,

É o dinheiro este vulcão

Que queima os rumos que traça.

 

Quando ao homem dou dinheiro

É certo que o encegueiro:

Não verá mais nada, não,

Para além daquele argueiro.

 

 

759 – Diálogo

 

O diálogo verdadeiro

Apenas tem lugar

Quando eu e o outro parceiro,

Ambos nos dispomos a mudar.

 

De dentro como de fora

De meu grupo de pertença

Me negaceia a verdade.

Mas quanto demora

Até que me convença

O que ao fim me persuade!

 

Se em tal não creio, porém,

Qualquer diálogo é mera perca

De tempo, vida além.

 

Se a verdade me cerca

E na minha vertente a monopolizo

Pelo diálogo em vão deslizo

E tombo sempre no vazio

Em que falaz me fio.

 

Terei de acreditar

Que ao dialogar com alguém

Meu íntimo irei mudar,

No poço de meu fundo, como convém.

 

Dialogar não é digerir

O outro, desfeito em mim,

Nem por ele deixar-me engolir

Do princípio ao fim.

Dialogar é descobrir

O não-eu

E permitir

Que o bom, bonito e significativo

Que nele cresceu

Me transmude ao vivo.

 

 

760 – Primevo

 

Qualquer diálogo deveras

Deve principiar

De mim próprio nas esferas,

Seu primevo lugar.

 

Com outrem fazer a paz,

Com o mundo,

Depende de como, a fundo,

Comigo ela me faz.

 

Se guerreio com meus pais,

Família, comunidade,

As igrejas ancestrais,

Há uma luta de verdade

 

Aqui no meu interior.

O labor elementar

É olhar bem no meu visor

Como estalado há-de andar.

 

Devo criar harmonia

De meu imo na paisagem,

No afecto que desvaria

Nas percepções que interagem,

Em meus estados mentais…

Então principia,

Um dia,

A paz a dar-me sinais.

 

 

761 – Tocas

 

Tocas em Cristo e te curas,

Ou em Buda ou Maomé…

E peregrinas a pé

Para as relíquias seguras.

Uma peça de roupa

E ficas curado:

- Como te poupa

O cuidado!

 

Quanta superstição,

Ilusão e mentira!…

Quando tocas, profundo e apurado,

O amor e a compreensão,

A ponto que isto em ti tudo revira,

Aí, sim, ficas curado.

 

E tens Cristo, Buda e Maomé

De pé

A teu lado.

 

 

762 – Momento

 

Vive o momento presente!

Não digas: "vou aguardar

Enquanto o rio for corrente,

Depois, sim, ficarei vivo."

É que, quando ele acabar,

O fado esquivo

Não te dará mais sossego:

"Tenho de arranjar emprego!"

Depois é o carro, a casa, o lar…

E jamais somos capazes

De vivermos o presente.

 

Antes que o porvir atrases,

Eternamente adiado,

Repara que é ponto assente

Que o tempo te corre ao lado.

O momento de estar vivo

É este de agora aqui.

Se dele me privo,

Que resta aí?

 

Adiar-me para diante

Não é ser verdadeiramente.

Na vida, fruir o presente

É o que é deveras importante.

 

 

763 – Discutir

 

Discutir Deus não é usar

A energia da melhor maneira.

Se o Espírito alcançar

Ficarei de Deus à beira,

Não, contudo, num conceito

Mas na realidade viva.

Tenho é de tomar a peito

O real com que conviva:

Ao vivê-lo até ao fundo

É que então de Deus me inundo

E o irradio

Como um rio

A fertilizar o mundo.

 

 

764 – Jesus

 

Jesus é Nosso Senhor,

Nosso Pai e professor,

Nosso irmão e nós também:

O único lugar

Onde o podemos alcançar

E ao Reino de Deus além,

Pesados contras e prós,

É dentro de nós.

- E nada mais lhe convém.

 

 

765 – Martelar

 

Quando, ao martelar um prego,

Martelo um dedo,

De dor cego,

Trato dele num credo!

 

Não diz a mão direita à esquerda:

Por ti farei um acto de caridade,

Que apenas então o mérito se herda

Em verdade.

 

Faz o que pode para ajudar,

Socorre, lesta,

Preocupada em findar

Com a dor funesta.

 

Tal é a generosidade:

Por outrem faz o que pode

Sem que lhe agrade

Ver aquele a quem acode

 

Como um ajudado

E a si como quem ajuda.

O outro bem encarado

Neste espírito se transmuda.

 

 

766 – Prática

 

Prática religiosa…

Enquanto, porém, praticas,

Se qual é o mundo que goza

Não verificas

E que mundo anda a sofrer,

Vidas a morrer de fome,

Toda a injustiça que houver

No pendor que à mão se tome,

 

Não és mesmo praticante,

Andas a tentar fugir.

O pior é que adiante

Não há mais para onde ir:

 

Prisioneiro ficas

Do vazio mascarado a que te aplicas.

 

 

767 – Tradição

 

Nenhuma tradição monopoliza

A verdade,

Apenas nos enraíza

O sonho da divindade.

 

Temos de coligir o melhor

De toda e qualquer tradição

E juntos remover a tensão

Entre um e outro pendor,

Dum modo capaz

De dar oportunidade à paz.

 

Precisamos de nos juntar

E cotejar os matizes,

Caminhos bem fundo procurar

Até todos retornarmos às raízes.

 

 

768 – Contemplar

 

Contemplar é a chave.

Ao devir de algo consciente,

Devirei esclarecido.

Quando um copo de água trave

Para bebê-la intensamente

Com meu ser inteiro envolvido,

Toquei a forma inicial:

Bebo, lúcido, o germe seminal.

 

A esta luz,

Em alegria, paz, contentamento,

Se me traduz

O mais humilde esclarecimento.

 

 

769 – Ver

 

O budista e o cristão

Semelhança e diferença

Querem ver da tradição

Que a cada qual deles pertença.

É bom

A laranja ser laranja

Como a banana, banana:

A cor, cheiro e gosto que tudo abranja

Em cada qual difere e não dana.

 

Olhando-as profundamente,

Ambas são frutos deveras.

Quando ir mais fundo tente

Vejo a chuva e o sol

Das primaveras,

A terra e os minerais,

A luz inteira do arrebol

Como em ambos dão sinais.

 

Autêntica vivência da pedra angular

Torna uma religião

Um lar

De verdadeira tradição:

 

Tudo são cadilhos humanos.

Darão estabilidade,

Paz, amor ou alegria,

Compreensão, liberdade,

Em quaisquer planos

Que o coração requereria.

 

Semelhança e diferença

Moram lá,

Difere cada pertença

Na ênfase que cada fruto lhe dá.

 

Em cada fruto

Encontro ácido e glucose

Em graus divergentes.

Não afirmo que este é o verdadeiro produto,

Aquele, o falso, nem que a necrose

O deveria eliminar da vida das gentes.

 

 

770 – Primordial

 

Diálogo verdadeiro

É o que leva à tolerância.

Falta a vivência primordial por inteiro?

Logo a intolerância

Ocupa o lugar cimeiro

E a confiança esmorece.

O autêntico ecumenismo floresce

Em escolas diferentes

No seio da multímoda tradição.

Aprendem uns com os outros as sementes

Para restaurar o húmus do chão

E poderão os campos desagregados,

Unidos de novo, ser de novo cultivados.

 

 

771 – Partilham

 

Budistas e cristãos

Partilham a sabedoria

Como irmãos

Que a vida separaria.

Partilhar não quer dizer

Que as raízes espirituais

Próprias abandone quenquer,

Doutrem convertido à fé e rituais.

Estáveis e felizes,

Apenas os enraizados

Na tradição e cultura

Que deles são matrizes.

Sofrerão, danados,

Delas sobre a sepultura

Quando delas transviados.

Os desenraizados são

Fantasmas esfomeados

Até retornarem à própria tradição.

Todos, pois, deverão

Encaminhar os desencaminhados

Para o respectivo chão,

Mesmo que seja

O mais estranho ao dos próprios cuidados

E ao que deles cada qual almeja.

 

 

772 – Importante

 

Num mundo desencantado

É importante atingir

Algum lado,

Fingir,

Num gesto fidalgo,

Empreender algo.

 

Ora, o tempo de jardim

Não leva a lugar nenhum,

A meus ritmos porá fim.

Minha alma, porém, posta em jejum,

É aqui que vem retouçar,

Quando a ambição é contida,

Mantida no limiar

Do pulsar da vida.

É no jardim que aprendo a me promover:

Ajudo as plantas a crescer.

  

 

773 – Ouvir

 

Ouvir o silêncio,

O coração a bater,

Minha alma a respirar…

Convence-o,

Ao botão da vida activa,

Aflitiva,

Quando te aprouver,

A se desligar.

 

Liga o amplificador

Dos cantos de alma.

Da natureza o clamor

Atinge-te na calma

Com que na pedra te sentaste,

Olhando o mar.

Na tranquilidade interior

Finalmente reparaste

Como tuas ânsias poderão alto soar.

 

 

774 – Coluna

 

A imaginação

É profunda e central.

Coluna vertebral,

Em vão

A rotulamos de superficial,

 

Esquecendo que a vida

Construída

Para nós e para o mundo

É modelada e limitada

Pelo perímetro fecundo

Da fantasia nela aplicada.

 

As realidades são

Como as imaginamos.

Imaginação

É criatividade:

O modo como elevamos

As paredes da vida

Provém da agilidade

Da imaginação envolvida.

 

 

775 – Última

 

Vivemos num mundo de objectos

De alma privados

E tornar-nos quietos

Objectos inanimados

É a última sina que queremos.

 

As coisas do mundo, todavia,

Querem ser vistas e tocadas

E os objectos que temos

Por comuns, no dia-a-dia,

Têm almas veladas.

Desvendamo-las pelo modo como os fazemos,

Tratamos e respeitamos.

Como entes sexuais

O mesmo em nós descortinamos,

O próprio olhar tem abismos tais,

O enigma de observar…

 

O valor e o prazer

Podemos reconquistar

De ser

Objectos de olhares sexuais

Tímidos e sérios,

Pejados de mistérios.

 

 

776 – Trocarão

 

Para qualquer alma do sexo apreciar,

Nossos gostos e valores actuais,

Em primeiro lugar,

Trocarão de sinais.

 

Temos de aprender a entrar

No jardim dos sentidos

Com abandono e confiança,

Não sendo já movidos

Pela esperança

De entender a meia-luz das sensações

Quando lhes mergulhamos nos saguões.

 

A vivência mística, depois,

Na realidade, modo de operar e no valor,

Teremos de nos propor,

Por entre os difíceis róis

Duma cultura que apenas acredita

No que mede e prova,

Não no que medita

E joga morto na cova.

 

Dois trilhos inseparáveis,

Lados da mesma moeda,

Só juntos serão viáveis

Até que a porta nos ceda.

Espiritualidade e sensação

Uma à outra se alimentam,

Não são inimigas, não:

Sensação afasta o ego

Das mil coisas que atormentam

E a que tanto sinto apego.

Liberto então, como jamais,

Metas espirituais.

 

 

777 – Evite

 

O corpo do espírito evite separar.

Em termos dualistas

Nem sequer pensar,

É, para o lograr,

A melhor das pistas.

 

O sexo e quanto obremos,

Todos os objectos e eventos,

Por mais seculares que os vislumbremos

Contêm espirituais elementos.

Vivendo não-dualista filosofia,

Sexo é espiritualidade.

 

Se a qualquer hora do dia

O espírito separo da corporeidade,

Com tal divórcio conexo

Terei decerto problemas com o sexo.

 

 

778 – Aprofunda

 

Torna tua espiritualidade

Sexual.

Tua afectividade

Aprofunda com toda a variação individual

Das linguagens do afecto.

Como o monge no mosteiro,

Dá tecto

E visibiliza

Os mil modos com que o amor inteiro

Nos mobiliza

E a todos o prodigaliza.

Podes ser afectuoso

Com amigos e vizinhos:

Sexualizas, gostoso,

A vizinhança de carinhos.

Ao inundar de ternura

Cônjuges e enamorados

Ao mundo dás a figura

De intenso viver em todos os bocados.

 

Ao nutrir afectos

Por animais,

Lugares e objectos,

Ao espírito eriges tectos

Sentimentais

Que, radicalmente sexuais,

Serão, a vida inteira, teus predilectos.

Todos estes afectos dão

À comunidade humana uma visão,

Um ponto de vista, uma filosofia,

Provinda da mais sublime meditação

E leitura do dia-a-dia.

 

Alma para o ânimo,

Cônjuge do coração para o enamorado da mente,

Corpo visível para o espírito oculto,

- Tudo isto é vida semear

Quando o desânimo

Consente

Em ler-se estulto

E transpor o limiar:

Devir integralmente sexual

Quão integralmente espiritual.

 

 

779 – Saboreando

 

O afecto

É a maneira de acabar

De corpo e espírito com o dualismo.

De modo correcto

Usar

O corpo para lograr

Do ego transpor o abismo,

Saboreando a beleza do mundo,

A beleza física de quem se ama,

E eis como de espírito me inundo,

Como a emoção em cada gesto se acama.

 

É apenas usar corpos e sentidos

Numa prática espiritual

Pejada de erotismo,

É acolher, por igual,

O belo e os prazeres comedidos:

As sensações de que me crismo,

E a que fiel sou tão pouco, afinal.

 

 

780 – Devém

 

Sem sensualidade,

A religião devém árida e agressiva.

Sem espiritualidade,

O materialismo em que viva

Devém vazio, insatisfatório,

De violência compulsiva.

Ambos encontram resolução

Na alma do sexo

E é ilusório

Qualquer caminho que, em vão,

Lhes evite o mútuo amplexo.

 

Descobrimos nas encruzilhadas

Que as duas grandes forças

Não são inimigas declaradas.

 

Embora por uma ou outra torças,

Ambas te atraem e perdes a razão

Quando ambas as não semeias em teu chão.

 

 

781 – Urge

 

Se apenas passa a existir

O propagandeado,

Para quê vestir

De modesto a véstia?

- É que urge não pôr de lado

A virtude que reside na modéstia.

Apenas as mil formas da virtude

Erguem o mundo que nos não ilude.

 

 

782 – Grandes

 

Cabeça permanentemente

De grandes ideais pejada

Ou dum santo é uma semente

Ou dum fanático a estrada.

 

O mundo, presentemente,

A capacidade esgotada

Tem de santificar gente:

Para o fanático eis a porta de entrada.

E, neste processo,

Anda o mundo a fabricá-los em excesso.

 

 

783 – Erro

 

O erro do eficiente

É crer que deve operar

Em exclusivo com a mente.

Qualquer labor é de homens que precisa,

Não de máquinas de calcular.

A emoção,

A imaginação,

Isto é que nos avisa

Da vantagem

Que sobre a máquina temos.

Não é miragem,

O segredo

Não é eliminar o que vivemos,

É acatá-lo desde cedo,

Com ele aprender

A conviver

E a canalizá-lo,

Orientá-lo.

Já que não podemos

Eliminá-lo

Sem, no gesto que o despreza,

Eliminarmos a humana natureza.

 

 

784 – Inocência

 

Nunca à inocência da infância

Poderemos nós voltar

Literalmente.

Às almas, porém, qualquer ânsia

Como a pode limitar

Um mero facto literal,

Simplesmente?

 

A inocência pode ser restaurada

E a virgindade germinal

Renovada:

 

Nossa atitude,

De nós próprios a consciência,

Nosso estilo de vida e de virtude,

Feridas de ausência,

No ponto de partida

Poderão buscar guarida.

 

É viável cultivar

Psíquica virgindade

E uma pureza de altar

Quando as percorra

Mesmo através duma sexualidade

Activa,

Desde que por ela morra,

Desde que por ela viva.

 

 

785 – Falta-nos

 

No sexo conjugal

Falta-nos acaso às vezes

Apreciá-lo no que vale,

Nos benefícios e prazeres,

Nos gestos corteses,

Devido a o apetite de novidade,

Diluído entre os deveres,

Se estender à sexualidade.

 

Muitos no mundo vivem

No seguro reconfortante

Da tradição com que convivem

E tal estilo de vida,

De raiz no que é constante,

Ancorado na narrativa vivida,

Estende-se ao sexo

Onde a tradição assume

A forma da familiaridade e do costume.

 

Do erotismo o nexo

Com a comunitária história

Não o deteriora,

Antes, em regra, o beneficia, o melhora,

Alimentando-o da individual e colectiva memória.

 

 

786 – Confundir

 

Confundir vida com fantasia,

Eis o risco.

Alguns trocam de parceiros

Como quem procuraria

Fora do aprisco,

Personificados,

Os amantes de alma inteiros.

Ou ficam desencantados

Quando o sexo não corresponde

Às vivências imaginárias.

 

Teremos de aprender

Em dois mundos a viver,

Ali onde

Se misturam sonho e vida

Em proporções várias,

Acolhendo o que ambos valida

E tanto nos importa.

 

Então, entre os dois polos

Abrimos a porta

A podermos sobrepô-los,

De vez em quando,

Com a vida pelo sonho navegando.

 

 

787 – Desejos

 

Dos desejos o fruto

Aprender a colher

É o radical produto

Duma educação que o pretenda ser.

 

Porque cedo ou tarde demais

O colhemos,

Temos

Problemas reais.

 

Quando o recolhemos cedo,

Devém a vida confusa.

Quando tarde, é a medo,

O vazio nos acusa,

De arrependimento e remorso tolhidos,

Acabamos deprimidos.

Para a hora exacta

É que uma educação verdadeira

Nos precata,

Certeira.

 

 

788 – Trama

 

Como o sexo é abrangente

Não pode ser separado,

De tão envolvente,

Da trama da vida

E do rosto afivelado.

Anda frequentemente

Implicado

Na corrida

Encadeada, descomedida,

De eventos e transições.

Em selvagens confusões

Envolve quem ânsia sexual

Sentir inesperada,

Involuntária, malfadada,

Quando ela for abismal

E com foros de fatal.

É útil encontrar modos

De se concentrar na alma

Para, com calma,

Vitais decisões evitar a rodos

Imediatas

Que, ao invés, requerem ponderações pacatas.

Mau é ficar pressionado

Para alguma coisa empreender

Em lugar de continuar passivo, dominado

Por emoções e imagens

De dor e prazer,

Que, nas demoras,

Concomitantemente desfilam paisagens

Atraentes e perturbadoras.

 

Ao final, o fito

É que assim de minhas tensões me desquito.

 

 

789 – Medo

 

Nosso medo colectivo

Da homossexualidade,

A condenação ao vivo

Da pública personalidade,

 

O nosso puritanismo

Ante imagens sexuais,

O constante ilusionismo

Com ansiedades fatais

 

Ante o poder da mulher,

Todo o nosso moralismo

Ante o sexo, é de esconder

Os amores com que cismo,

 

Reprimidos, coarctados.

Se ao invés foram libertos,

Reconhecidos, eram fados

Com novos rumos abertos

 

A desafiar a rotina.

Trariam vida nova

A uma civilização mofina

Que tão pouco se renova

 

Que a alma que ainda tiver

Anda rápida a morrer.

 

Nos sintomas da infecção

Germinam sempre as sementes

Da revitalização.

Se quisermos, entrementes,

 

Nova sensibilidade,

Vida nova de verdade,

 

O que temos de fazer

É de olhar atentamente

Para os problemas que houver,

Sem cair ingenuamente

Em compensações quaisquer.

 

Sugere a pornografia

Que podemos considerar

Que a imagem sexual valeria

Mais que seu actual lugar.

 

Sugere o divórcio em aumento

Que precisará de espaço

A ideia de casamento

Que é mais que o nó que houver no laço.

 

O estupro, a violação,

Implicam que é de supor

Que não aprendemos a lição

Do poder que tem o amor.

 

O sexo na comunicação

Implica

Que temos de alicerçar no chão

Uma comunidade eroticamente rica.

 

Teremos coragem de ser rijos,

De abandonar algum dia

Nossos esconderijos

De moralismo e hipocrisia?

 

Que mais nos importaria:

Filhos gerentes de dados,

Ou com um pouco de sabedoria

Oriunda de nossos cuidados?

 

De tantos moralismos prisioneiros,

Das ricas possibilidades da vida

Com eles nos protegemos, interesseiros,

Em prudência comedida.

 

Não confiamos a sério

Na sexualidade.

Atraídos dela pelo império,

Quando nos invade

 

Não suportamos que complique

Nossa vida nem nossos planos.

Impedindo que imaginosa se aplique,

Findamos, afinal, menos humanos.

 

 

790 – Afirmar

 

Afirmar a vida

Em lugar de reprimi-la

Não nos predispõe, ao deixar de negar-nos,

A tentarmos, de seguida,

Compensar-nos

Com gratificações mais entretenimento em fila

Intranquila

E desmedida.

Afirmar a vida,

Ao invés, vai serenar-nos,

Na paz da plenitude prosseguida.

 

 

791 – Melhor

 

Melhor é cama de palha

Livre de medo

Que cama doirada,

Mesa com vitualha

E o degredo

Duma mente perturbada.

 

 

792 – Desafios

 

As ofertas e desafios da vida comum

Ao aceitar,

Poderemos encontrar

A dádiva da vitalidade

Sem pé atrás nenhum.

Dela a falta deprime nossa idade

Em negror profundo

Que fere inteiro o mundo.

 

Acolher

Sinceramente, porém,

Requer

Que aceitemos também

Os momentos

De perda, falha e desilusão

Que acompanham uma vida plena,

Como elementos

De seu chão,

Da maior à mais pequena.

 

Eros não é tão relacionado

Com nossa apreciação

De indivíduos, eventos e objectos

Dum mundo novo revelado

Quanto com estoutros aspectos:

Acolher cada qual ser amado

E perseguido

Pelo fado,

Pela vida que o houver distinguido.

 

É uma ilusão julgar

Que somos sujeitos

Na vida diária.

A pedra angular,

Nunca atrabiliária,

É que, em múltiplos aspectos,

Somos objectos,

Aqueles a quem os desafios são feitos,

E não apenas

Os que protagonizam as cenas.

 

Ao aceitá-lo, então

É que nos invade

O dom

Da vitalidade.

 

 

793 – Perfeito

 

O perfeito não existe.

Chora o santo, o que é humano,

E Deus calado persiste.

Ante o enigma dos céus,

O santo amar podemos sem engano,

Mas como amar a Deus?

 

 

794 – Digna

 

Qualquer alma digna de si

Quer viver a vida até o limite.

Contentar-me com o que recebi

É de escravo meu palpite,

 

Pedir mais é de criança,

Mais conquistar é de louco

E tudo o mais que se alcança

Tem sempre sabor a pouco.

 

Resta o frágil equilíbrio

De tudo e nada ludíbrio.

 

 

795 – Fechada

 

Abrir-lhe-ei as janelas,

Os quartos lhe arejarei…

Casa fechada são filomelas

Em que o canto já não é rei,

É a planta

Que esqueceram de regar,

Onde ave nenhuma canta,

Morrendo, de seca a estiolar.

Abrir-lhe-ei as janelas,

Os quartos lhe arejarei

E, em festa, lhe acenderei as velas

De lei.

 

Casa fechada

Tem de ser aberta e arejada.

 

- Todos somos gente

Que precisa de ar,

Que precisa de respirar

Decente

Em sua morada,

Inevitável fogo ardente

Em pleno mar.

 

 

796 – Trepar

 

Mais vale arriscar

Trepar à figueira

Tentando alcançar um figo

Do que se deitar

Sob ela à lazeira

A olhar o próprio umbigo,

Aguardando na toca

Que ele lhe caia na boca.

 

 

797 – Pertenço

 

Não me indigno,

Que é dos fortes;

Não me resigno,

Que é dos nobres;

Não me calo, que o silêncio

É dos grandes que dão mortes.

Não sou forte, nobre, grande,

Pertenço ao mundo dos pobres,

Pense-o

Ou não.

Sofro e sonho, longe do que me comande,

Sei que não valho um tostão.

Queixo-me porque sou fraco

Como um caco.

Entretenho-me a arranjar

O sonho em conformidade

Com o melhor, para o achar

Belo em minha inanidade.

 

 

798 – Amanhã

 

Tudo para amanhã se prepara,

Embora o amanhã nunca chegara.

O presente é uma ponte:

Todo o mundo geme

A olhar para o horizonte

A que aspira e teme.

Ah! Não haver um idiota que se lembre de atirar

A ponte pelo ar!

 

 

799 – Espíritos

 

Espíritos inquietos

Mas não aventureiros,

Atormentados, indiscretos,

Mas incapazes de viver inteiros

No presente,

Vergonhosos cobardes,

Há apenas uma grande aventura:

A que ruma, persistente,

Todas as manhãs e tardes,

Ao imo que ela inaugura,

Ao eu, ao interior

Onde não conta tempo nem espaço,

Nem a gesta-mor

De nenhum homem-de-aço.

Esta é a única aventura

Que, mesmo acabada,

Perdura

Em realidade transmudada.

 

 

800 – Braços

 

Os braços embora ao estender

Para agarrar, para me prender,

Fique tão sem nada como dantes,

A verdade é que encontro a jóia rara,

Fruto do que teime

No rosário dos instantes,

E que jamais procurara:

- Encontrei-me!

 

Não é viver o que procuro,

É dizer-me,

É ser-me

Além do muro.

 

 

801 – Rato

 

Tenho de aprender a viver com a escumalha,

A nadar, rato de esgoto,

Ou serei pino da malha,

Ou me afogo, o gesto boto.

 

Se me juntar à manada

Tenho a vida imunizada:

Para ser aceite e apreciado

Terei de me anular,

Indistinguível do gado

Regulamentar.

 

Poderei sonhar

Se sonhar como ele.

Quando outro sonho em mim apele,

Nem serei um cidadão

Nem deveras patriota.

Um pouco abaixo de cão,

Nem terei cota.

 

 

802 – Objectos

 

Animados ou inanimados,

Todos os objectos têm diferentes

Vertentes

Inerradicáveis de nenhum dos lados.

O que sou quando sou gente

É tão inerradicável

Quanto então for diferente:

Mesmo que seja inviável

Sou urgente.

 

Trepo ao meu arranha-céus

Sem elevador, janelas

Donde gritar escarcéus

Nem adivinhar procelas.

Quem não se cansa a subir

Será logo um perdedor:

Não há inquilinos a vir,

Se os quiser, dê-lhes suor.

Os outros arranha-céus

Dão-lhe o que você requer?

Nos recantos que são meus

Há somente o que eu puser.

E aposto

Que isto tem muito mais gosto.

 

 

803 – Apenas

 

Apenas os olhos dos justos

Nunca se iluminam.

Apenas os justos

O segredo jamais dominam

Da camaradagem humana.

É dos justos que dimana

A criminalidade contra o Homem.

São os justos

Os verdadeiros monstros que nos consomem.

São os justos

Que nos exigem a impressão digital,

Que nos provam que morremos

Quando embora nos encontremos,

Por sinal,

Perante eles em carne e osso.

São os justos

Que nos impõem nomes arbitrários,

Nomes falsos com que não posso,

Que apõem datas mentidas em registos atrabiliários

E, depois de nos terem assim cativos,

Nos enterram vivos.

 

O demónio da rectidão…

Prefiro o ladrão,

O vadio, o assassino:

Do que eles poderei ser mais ladino.

E mil vezes prefiro então

Alguém com estatura

E qualidade,

Com a lisura

De ter com ele próprio lealdade.

 

 

804 – Esperam

 

Quando chegamos ao limite

Do que esperam de nós,

Ficamos logo após

Ante o eterno palpite:

- Sermos nós, sermos nós!

 

 

805 – Sei

 

Sei lá bem prever

O que irá ocorrer!

Desconfio

É que se quiser apanhar boleia

Do navio que zarpou da areia

Terei de estar à beira do rio.

 

 

806 – Dilaceram-me

 

Dilaceram-me duas vidas:

Aqui, o caos, o absurdo, a violência,

A miséria, a dominação sofridas;

Ali, o idílio maravilhoso da quintessência

Em que o filósofo brinca às contradições

Como numa guilhotina de papelões.

Procuro um itinerário-guia

Que na tempestade dos desejos

Me serviria

Como sextante entre os arquejos,

Aquilo que, soltas as velas,

Me oriente entre as estrelas.

Entre ambas as margens, o navio

Vai navegar por que rio?

 

 

807 – Convencido

 

A verdadeira defesa,

Verdadeira dissuasão:

Um povo convencido da grandeza

Dos valores que dele são.

 

Em caso de guerra ou de invasão,

Nenhum eventual adversário pode, confiado,

Aguardar dele qualquer colaboração,

Mesmo que o haja inteiramente dominado.

 

 

808 – Defender

 

O que devemos defender é o homem,

O homem à imagem de Deus,

A irradiar em toda a pele

A centelha divina que mora dentro dele,

Onde se somem e retomem

Todos os potenciais que forem seus.

 

Quenquer que oprima estas possibilidades

Prepara a derrota,

Quaisquer que sejam de armas as quantidades,

Porque conduz um povo a tomar nota

Da fé que tiver:

- Do que tem a defender.

 

Inviável

Na triagem,

É apenas o povo sem mensagem:

Este é indefensável.

 

 

809 – Objectivo

 

O primeiro objectivo é que os marginalizados

Neles mesmos recuperem confiança.

Vivem habituados

A abandonar o mar dos problemas

Aos políticos, aos padres, a qualquer santa aliança.

Agirem por eles próprios é o primeiro dos lemas:

Construirem escolas, rasgarem janelas,

Abrirem caminhos,

Trabalho conjunto em pequenas courelas

Entre vizinhos…

- Talvez depois brotem deste galho

Germinais comunidades de trabalho

Com a autonomia

De quem é capaz de erguer a cara à luz do dia.

 

 

810 – Regime

 

Temos uma conjuntura subversiva

Quando um regime político, económico ou social

Não permite à maioria que viva.

Os filhos morrem-lhes antes dum ano

Por haver apenas um hospital

Para trezentos mil utentes

Deste engano.

É o que destrói a ordem divina,

É a subversão instalada de mundos doentes

Que directamente nos atinge

E sempre finge

Que connosco combina.

Ora, esta desordem destruir

É que é construir,

Não é mantê-la

Que abre qualquer janela.

Ao contrário, como realidade morta,

Fecha-nos, definitiva, a porta.

 

 

811 – Célula

 

Criar a célula viva

Dum novo tecido social,

Assim principiou a iniciativa

De cada corrente espiritual

De impacto mundial:

Foi em Benares para o budismo,

Em Jerusalém para o cristianismo,

Em Medina para o Islão…

E delas, afinal, mal colhemos refrigérios,

Pervertidas como foram e serão

Pelo poder dos impérios.

 

 

812 – Daninha

 

Pode a mudança da pedagogia

Dar em pedagogia da mudança?

- A erva corredoira que se enfia

Na calçada tanto entrança

Que consegue destruir

Pedra a pedra, as defesas,

Num distante porvir,

Das mais esmagadoras fortalezas.

 

 

813 – Ídolos

 

Nunca precisei de ídolos de madeira ou da razão,

Fabricados com a mão

Ou com a lógica:

Faria de mim um ateu supersticioso

Qualquer prova demagógica.

É de ímpio orgulhoso

Afirmar que Deus existe:

O ser é das coisas que eu liste?

Deus não é desta família,

É o acto que as faz ser.

Dele à imagem, para o homem existir é viver,

O que o leva a ser uma perene vigília,

Que não se demonstra, antes se mostra.

Não é por um exercício de pensamento

Que a pérola retiro da ostra,

Mas por um esforço, momento a momento,

Da vida inteira.

Testemunho vivo de Deus é quem emparceira,

Através da acção embebida de fé,

Com a presença que nos tem de pé:

Tornar visível o invisível,

Dele com a beleza e o apelo indizível.

 

 

814 – Filho

 

Os escravos obedecem por medo do inferno,

Os mercenários, por desejo do Paraíso.

Terno

E com mais siso,

O melhor

É cada filho de Deus que obedece por amor.

 

Ao integrista,

Porém,

Só o argumento da autoridade convém.

Fica, então, fora da lista:

 

É o único crente

Obediente

Que, definitivamente,

Nenhuma salvação consente.

 

 

815 – Vontade

 

Em lugar de pretender deduzir

Dos textos sagrados

A política do porvir

Ou uma doutrina comunitária qualquer,

Importa, em todos os desfiladeiros e valados

Da conjuntura histórica que houver,

Induzir,

A partir daqueles para quem ser pobre é não ter nada,

Qual o rumo

Da vontade revelada.

Os condenados da terra, em resumo,

Impõem outra leitura

De qualquer sagrada escritura.

 

 

816 – Muda

 

Qualquer muda numa comunidade humana

Brota da consciência dos que a compõem.

Resistir, recusar viver pela lei antiga,

Reinante no mundo donde emana

E que profana,

Não se impõem

Senão quando alguém desliga

De vez

De qualquer afloramento

Do caos e da insensatez,

A todo o momento.

 

 

817 – Perenemente

 

Política militante em trajecto,

Batalhadora e pejada de canseiras,

Sempre habitada por um projecto:

Ser barqueiro de fronteiras.

 

A vida como um poema:

Procura do sentido como bodo

E, como tema,

A beleza sempre inacabada do Todo.

 

A alegria,

No maravilhoso concerto do ser,

De ter sido admitido, um breve dia,

No jogo de encaixe dos fragmentos.

E depois preencher

A própria casa com todos os elementos.

Reentrar na fila para brincar,

Ainda uma vez, doutrem pela mão,

Escutar,

Através doutros sentidos,

A sinfonia de acordes e bramidos

Do ser perenemente em formação.

 

 

818 – Mundo

 

O mundo é o meu corpo,

Meu corpo de eternidade.

A vaga, quando a encorpo,

Não conhece a morte, distendida à imensidade.

Conhece a metamorfose,

O intérmino renascer

Na outra vaga que vier.

Não tem pena nem psicose

Da espuma que lhe ocorrer,

Como eu não de meus limites.

De meus limites conjunto

É meu corpo de fronteiras,

Leiras

De meus apetites

De defunto:

Antes, depois, dentro, fora,

Causas, desejo, sofrimento

E medo a toda a hora

Que em meu corpo eu mesmo invento.

 

Toda a degradação do ser

Por ser parcial, provisório,

A falsa morte a temer

Como um depois além da vida,

Ilusório

Se a morte fora entendida.

É teu corpo o mundo inteiro.

É tua consciência

Dos homens a história inteira.

Quando me abeiro

Da inteligência

Desta fronteira sem fronteira,

Acaba toda a violência,

Vivo em paz, rumando da paz na esteira.

 

 

819 – Génio

 

O génio é uma mutação

Repentina.

Não se multiplicarão

Só porque alguém se destina

Desde logo a devir bom,

A melhorar gradualmente

Até devir excelente,

Que nada disto culmina

Numa genialidade.

Simplesmente, por acaso,

Alguém nasce um certo dia

E esta individualidade,

Sem qualquer esforço ou prazo,

Tem tal toque de magia.

Compete então aos demais

Imitarem-lhe os sinais.

Qualquer semente perdida

Pode então retomar vida.

 

 

820 – Diferente

 

É diferente: parece satisfeito…

Não anseia por fama nem glória,

Aos milhões não presta preito,

E planos para avançar na vida, que vanglória!

 

De algum modo, é um recuo ao passado,

Quando o mundo não era, como doravante,

Tão complicado

E as coisas simples eram o mais importante.

 

…O trágico, porém, é que estas o continuam a ser,

Mesmo ao ninguém o crer.

 

 

821 – Fama

 

O dinheiro e a fama, é curioso,

Não podem sair connosco,

Tomar comigo um copo de espumoso,

Aquecer-me na cama onde me enrosco…

 

Nem conversam. Nem cantam.

Nem podem ter filhos,

Nem deles criar-nos os sarilhos

Que nos encantam…

 

O dinheiro e a fama…

- Afinal, quem os proclama?

  

 

822 – Odeio

 

Odeio o reformador,

Odeio o revolucionário

Que apenas olha ao que for

Um mal

Primário,

Superficial,

Muito embora cause abalo,

E que se propõe curá-lo

Agravando o fundamental.

 

Um médico ao corpo são

Adapta o corpo doente.

Na vida social não

Sabemos no paciente

Onde ocorre um aleijão

Ou dum porvir a semente.

 

Só o humilde vai ao fundo

Do poço onde jorra o mundo.

 

 

823 – César

 

Todo o César o peito alteia

Da ambição que o toma:

"Antes o primeiro na aldeia

Que o segundo em Roma!"

 

Ninguém com o lema,

Porém, confessará que atrema,

Se ele é quem mora dentro da cobiçada redoma.

 

 

824 – Ler

 

Ler é sonhar

Doutrem pela mão.

Ler mal e por alto é da mão me libertar

Que me conduz pelo trilho do chão.

 

Quem é superficial na erudição,

Do sentido, porém, a mergulhar no fundo,

Tem

O condão

De ler bem

E ser profundo.

 

 

825 – Sair

 

Agir,

Quando apraza,

É contra si próprio reagir:

Influir

É sempre sair de casa.

 

Caracol

Dentro da casca

No chão se atasca,

Nada então bole.

Põe os corninhos ao sol

E logo acaba

Estriando o chão de baba.

 

 

826 – Preferível

 

Será preferível dar,

Mais que receber.

O que dá finda a ganhar

E finda a perder

Quem apenas receber.

 

Nos livros não vem

E não é vulgar,

Mas quem

À vida se atém,

Ali é que a descobre a palpitar:

 

Quem vive de receber

Não vê o laço que o anda a prender.

Ora, a vida, ao que persuade

É à liberdade.

 

 

827 – Experiência

 

Jamais a mãe

Uma experiência de avó

Detém.

Quando o filho chora, morta de dó,

É logo o fim do mundo.

 

Ora,

Bastante longe da dor de ter filhos

Sempre uma avó já mora

E do prazer fecundo

De os amamentar sem empecilhos.

Então, quando o choro mirra,

Distingue, sábia, ao ver

Se é duma doença qualquer,

Se duma birra.

 

A lonjura

Permite a sabedoria.

- Que é duma cultura

Que a velhice ignora, dia a dia,

Desprezível fancaria

Condenada em vida à sepultura?

 

 

828 – Consciente

 

Devir consciente não salva ninguém.

A limpar ajuda o olhar,

Porém,

E então leva a evitar

Prevenido,

O risco previsível

E o obstáculo sabido.

E eis como a vida é mais vivível.

 

 

829 – Indiscriminada

 

Uma indiscriminada tolerância

Mina a determinação

De dizer não

Ao terrorismo, à ganância,

Ao extremismo malsão…

 

- Tolerância unilateral

É mais uma chave do mal.

 

 

830 – Nunca

 

Nunca duvidei

Que me trairiam

E, porém, pasmei

Quando os que fingiam

 

Me traíram, afinal.

Quando chegou o que esperei,

Bem real,

Sempre foi inesperado

Para mim.

O mérito ser algures apreciado?!

- Não, jamais é credível assim…

 

 

831 – Mistérios

 

Logrei compreender

Que os maiores mistérios, os mais fascinantes,

São para saborear, não para resolver,

E o mistério nos rodeia a todos os instantes.

Para dele surpreender a fermentação,

Basta-me, humilde,

Prestar atenção.

  

 

832 – Rotular

 

Há o perigo de rotular alguém,

Não pelo que for ou fizer

Mas pelo gene que tem:

De discriminado se ver

Por se calhar daqui a quarenta anos

A doença incurável ou a propensão

Poderem vir a causar danos

Que eventualmente nem ocorrerão.

 

E a democracia,

Então,

Devirá genocracia,

Mais uma forma de discriminação.

 

 

833 – Muro

 

A esperança

É a mais cruel virtude.

Um muro de cinismo alcança

Afastar quanto a dor desilude,

Mas a esperança os portões escancara

E, a todo o momento,

Ao homem logo se lhe depara

Sofrimento.

 

 

834 – Crenças

 

As falsas crenças, de infundadas,

São,

Para nossas almas frustradas,

Um grilhão.

 

Só quando nos agarramos

A quem deveras somos,

Livres nos encontramos

E pomos.

 

 

835 – Olhar

 

Quem a Terra olhar quiser

Convenientemente

A distância deve manter

Prudente

Que lho permita fazer.

Não é de nariz no espelho posto

Que verás teu rosto.

 

 

836 – Iguais

 

Como é que, sendo tão iguais em todo o lado,

Numa terra pequena,

Onde praticar o mal é tão dificultado

Que qualquer oportunidade

Quase a condena

A inexistente privacidade,

Todos acabam inventando

Maior quantidade

De perversidade

Atribuindo-a aos mais

Que à frente lhes vão passando

Inconscientes e leais?

 

Na grande metrópole, o desacato,

Diluído na multidão,

Prolifera ao desbarato.

 

O intento de alcançar

A paz definitiva é vão:

Não existe tal lugar.

 

 

837 – Hábito

 

O hábito de usar a religião

Como chave-mestra para tudo…

Conforme é Inverno ou Verão

Eles vestem ou despem o sobretudo.

Se faz bom tempo, é uma bengala,

Se calor, é guarda-sol,

À chuva, à margem da gala,

É o guarda-chuva que bole.

Se a sair nada os exorta,

Caseiros,

Fica à porta,

Nos bengaleiros.

 

Há milhões assim

Que ligam tanto ao bom Deus

Como à primeira camisa a que puseram fim

Entre os trastes seus.

Não toleram ouvir mal dele,

Mas cada qual é o primeiro,

Quando importa à própria pele,

A tomá-lo como alcoviteiro:

Amor clandestino numa hospedaria,

Não, que infame difamar!

É, porém, inofensiva bonomia

O mesmo amor proibido ao pé do altar…

 

Deus, a imensa capa

Sem tempo nem lugar onde,

Sob a qual toda a escroqueria se esconde

E escapa.

 

 

838 – Sucesso

 

O dilema

Em quanto nos ocupa

Não é que auras se frustram ou geram.

O sucesso é um problema

Que apenas preocupa

Os que dele nunca algum tiveram.

 

E não ser reconhecido

Que é que importa

A quem à vida deu sentido

Abrindo-lhe mais uma porta?

 

 

839 – Lê

 

Quem não lê, lê raro ou apenas lixo

Pode falar muito, que sempre dirá pouco,

Dispõe dum repertório de bicho,

Os termos mínimos dum louco.

 

Limitado intelectual

E indigente de pensamento,

O conceito com que se apropria do real

Não se livra do elemento

Da palavra:

Nesta é que reconhece e persuade

E com isto lavra

A consciência da realidade.

 

Quão mais pobre

O discurso,

Mais real há que além lhe sobre

Da vida no percurso.

Sem termo nem conceito,

A vida acaba-lhe esvaziada a eito.

 

 

840 – Inventos

 

Os inventos concretos

Dos grandes criadores literários

Abrem-nos os olhos aos aspectos

Ignorados e secretos

Da condição humana.

- Quem aos destinatários

Doravante engana?

Quem impune os profana,

Dotados como doravante vão,

Na nova condição,

De demiúrgicos imaginários?