CANTO SETE
OS PÉS ME GRUDA DO
COTIO O SEBO
Escolha um número aleatório
entre 733 e 840 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
733 – Os pés me gruda do cotio o sebo
Os pés
me gruda do cotio o sebo
Nos rastos pegajosos da rotina
E talho a sina
Das normas e dos jeitos que recebo.
O que concebo
Marcas tem da sensatez que atina,
Entre as cordas afina
O acorde harmónico em que a vida embebo.
Dos hábitos o rio
Sigo no rodopio
Dos turbilhões de cada dia.
Por trás de cada qual espreita
Minha fugaz intuição afeita
À madrugada de quanto se anuncia.
734 – Apesar
Apesar de vivermos bem,
Eis-nos insatisfeitos, inquietos,
Que a vida deve ser mais.
Viajamos então pelo mundo além,
Discretos…
Descobrimos os sinais:
- A viagem exterior
Enriquece
A que, interior,
Por dentro floresce.
735 – Hoje
Hoje
A dor de hoje em dia sofre,
À de ontem foge
E à de amanhã fecha teu cofre:
- Os ombros teus carregados
Tem-los logo levantados.
736 – Compreender
Compreender um problema
Só por si nunca o resolve.
É, porém, um lema,
Para quem se envolve,
Principiar de verdade
A tomar responsabilidade:
Pode mudar atitudes,
Modelar comportamentos,
Afloram novas virtudes,
Até ali meros fermentos…
Compreender abre a janela
Do saguão:
Pode a sequela
Ser uma revelação.
737 – Auto-estima
Auto-estima
Não é direito de nascença.
O que ela encima
É uma conquista,
Até devir, por fim, nossa
pertença.
Se nos falta, é tê-la em vista,
Que é tempo de fazer algo:
Escolher ser responsável,
Para conquistar o respeito
De mim próprio – eis como galgo
O viável
Degrau estreito.
E desculpas, disto em lugar,
Deixemo-las de vez de arranjar!
738 – Tempo
É tempo de não ir
Na conversa dos que perdem a vida
Com expedientes para justificar
Cada asneira cometida.
O porvir
É de quem principiar
A aprender com os erros
ocorridos.
- Éramos capazes de ficar
Mais crescidos!
739 – Arte
Arte de envelhecer:
Cada facto
Melhor acolher
E ficar mais grato…
A incrível equação da velhice:
Quanto mais se lhe vai tirando,
Em lugar da sovinice,
De mais dispõe para o que lhe for
restando.
740 – Insensato
Um homem sensato
Adapta-se ao mundo,
O insensato tenta
Adaptá-lo a si.
O aparato
Fecundo
Que inventa
O frenesi
Do progresso, por mais ligeiro,
É do insensato por inteiro.
Que admira,
Afinal,
Se, com tal,
Mais e mais o Homem delira?
- É o insensato
Em acto!
741 – Mestre
O mestre inexperiente pergunta:
Como é que estou a portar-me?
O experiente, em troca, assunta,
Sem mais alarme
Nem disfarce:
- Como é que os alunos estão a
portar-se?
742 – Estranha
Que estranha, a natureza!
Não muda nunca…
Enquanto o solo nos junca
Dos despojos que despreza
Ou por que reza.
Nós é que envelhecemos,
Nós é que nos desviámos.
Não aprendemos
O segredo destes amos,
O sinal
Que perene descansa:
- Permanecer igual
Na perpétua mudança.
743 – Jornalista
Jornalista que se preza,
Paladino da verdade e da justiça,
Corre à liça,
Fecha os olhos à própria safadeza
E, triunfal e jucundo,
Desata a julgar o mundo.
- Hoje como sempre, o lixo
Fá-lo qualquer bicho.
744 – Amadurecer
Se amadurecer dói muito,
Produto
Nada gratuito,
Pode ser óptimo o fruto.
Então compensa
A dor mais intensa.
745 – Acordo
Jamais a má teima
Findará
Num acordo singular:
Quem livros queima
Tarde ou cedo acabará
Homens a queimar.
746 – Técnica
Da técnica a caridade
Contra o logro original da
natureza
Dá-nos a capacidade,
Pela luta e pelo amor,
De, com suor,
A desarmadilhar do que nos pesa.
Pelo amor também,
Que requer ligeiros
(Como nos convier e às vezes
advém)
Galantes e mágicos pedreiros.
747 – Distingue
O que distingue um humano
É não acatar nada tal como for,
Tem de mexer-lhe, trocar de
plano,
Jamais quieto, com suor.
Escrever
É ficar despercebido,
Nada mudar no mundo, na vida
Que haja a sofrer,
Quando, no interior escondido,
Toda a terra é revolvida,
Sem mal se aperceber.
Quieto, sossegado,
- E a minar o mundo por todo o
lado.
748 – Alívio
A vida e o tédio
Deles tenho o dia nédio,
Não são, porém, suportados,
São olhados.
É um alívio, a libertação,
Em cada dia, uma revolução.
Tudo actua, como dantes, sobre
mim.
Doravante, porém, não fica assim:
Não me calo, tremendo,
- Reajo escrevendo!
Ao apontar a dedo,
Perco medo
E o esmagador peso primeiro
Torno, então, de vez leveiro.
749 – Guarda
A escrita nunca te foi
indispensável,
Guarda tua religião dentro de ti.
Deus vem aí
Ao teu encontro, infatigável,
Aí, onde falas contigo,
De terceiros ao abrigo.
Deixa que os mais pela rua
Apregoem a deles.
Respira tu a tua,
Que então não os repeles
E é apenas por tua alma nua
Que te impeles.
Ouve em teu íntimo o segredo,
- Então é que nos compeles
A escapar do degredo.
750 – Osso
O cão
Morre sem jamais ter encontrado
O osso derradeiro algures
enterrado
No chão.
Quantos vestígios da vida
Jamais se hão recuperado!
Embora isto nunca impeça
De ir sendo a busca prosseguida
E cada vez mais depressa.
751 – Rasto
Andará Deus à nossa espera
No cabo do mundo?
Aqui, nem rasto de quimera
De cada dia ao fundo.
Tens de o procurar em ti
Como quem bate a uma porta.
Encontrá-lo-ás aí,
Se ainda existir da sombra morta
Algo que te exorta
Discreto e sem frenesim.
Se eu bem houver entendido,
Temos de ser o pica-pau persistente
Para este Deus duro de ouvido.
E logo me ocorre a mim
Que, se me aplico,
Reparo simplesmente
Que me falta o bico!
752 – Difícil
Que difícil explicar-me,
Quanta banalização!
O mais elevado carme
Como rasteja no chão!
Com palavras condenados a pensar,
A sentir com palavras,
Para os outros, ao calhar,
Entenderem nossas lavras,
Como ao fim as rotas apontadas
Resultam glabras,
Comedidas,
Ao lado das estradas
Prometidas!
As palavras são pedras,
Toda a vida lutei com elas
E, depois de rasgar tantas
janelas,
Vê como tão pouco medro, tão
pouco medras!
Aqui ando eterno a lutar comigo
Para apanhar minha evidência,
Meu prémio e meu castigo:
- Sei lá o que é desta
existência!
753 – Fadiga
Por que há-de a vida
Ter razão contra nós?
Por que havemos sempre de
atar-lhe os nós
Em fadiga submetida?
Um curso, o lar, os filhos,
Eternamente os mesmos trilhos, os
mesmos trilhos…
- Não, não há maneira
De saltar fora da jeira.
754 – Real
Mais real do que nascer é morrer.
Quem nasce ainda é nada mas se
ilude.
Quem morre é que faz que nada
mude,
É o Universo, puro facto de ser.
Um homem só é perfeito
Se transpôs até os limites,
Se a morte não tiver jeito
De lhe surpreender apetites.
Não por ser gesta esquecida,
Mas por tê-la incorporado
Na plenitude da vida.
Mas como entender tal dado?
A parte animal dum homem,
O que é sono e quer dormir,
Como pesa e o que consomem
Estes passos de não ir!
755 – Fleuma
Amigo,
Tua fleuma desmedida,
Com ela não condigo.
Busca o rasto divino de tua
medida,
O lume clandestino de tua
aparição
Brotando como um grito do
alcantil da serra.
Onde o perdeste, irmão?
O ar monolítico da terra
Como é que tudo te pontua?
Trago o eco perdido de ti
Na hoje erma rua
Onde, num dia de espantos, te
surpreendi.
Onde estás, que não te alcanço,
Entre as pedras e poeiras em que
me canso?
756 – Falhados
Aos quinze anos,
Foi a roupa de dar sorte.
Falhados da sorte os planos,
Foi dum penteado o corte,
Depois, um número ao jogo,
Dias fastos de jogar…
Quinze anos após me arrogo
O segredo de que auguro
A vitória a germinar:
- É bem duro e só bem duro
Trabalhar!
757 – Discutir
Discutir Deus?
Mas que asneira!
Toco Deus, não com a ideia,
É com realidade viva.
A prática leva os céus
A tombar da cumeeira.
A palavra é escada meia
De transpor a porta esquiva.
A realidade
Vive livre de noções.
É dever de quem a invade
Saltar conceitos, chavões,
Até se tornar capaz
Do que ela tem de fugaz.
758 – Bondade
Haja a bondade que houver,
Se houver dinheiro
O homem não enxerga nada.
Esta bicheza danada
Cega e surda a iremos ver,
Se vislumbra tal parceiro:
O dinheiro é a desgraça
Do tempo que passa.
Muito mais que um furacão,
Que o vírus Ébola ou Lassa,
É o dinheiro este vulcão
Que queima os rumos que traça.
Quando ao homem dou dinheiro
É certo que o encegueiro:
Não verá mais nada, não,
Para além daquele argueiro.
759 – Diálogo
O diálogo verdadeiro
Apenas tem lugar
Quando eu e o outro parceiro,
Ambos nos dispomos a mudar.
De dentro como de fora
De meu grupo de pertença
Me negaceia a verdade.
Mas quanto demora
Até que me convença
O que ao fim me persuade!
Se em tal não creio, porém,
Qualquer diálogo é mera perca
De tempo, vida além.
Se a verdade me cerca
E na minha vertente a monopolizo
Pelo diálogo em vão deslizo
E tombo sempre no vazio
Em que falaz me fio.
Terei de acreditar
Que ao dialogar com alguém
Meu íntimo irei mudar,
No poço de meu fundo, como
convém.
Dialogar não é digerir
O outro, desfeito em mim,
Nem por ele deixar-me engolir
Do princípio ao fim.
Dialogar é descobrir
O não-eu
E permitir
Que o bom, bonito e significativo
Que nele cresceu
Me transmude ao vivo.
760 – Primevo
Qualquer diálogo deveras
Deve principiar
De mim próprio nas esferas,
Seu primevo lugar.
Com outrem fazer a paz,
Com o mundo,
Depende de como, a fundo,
Comigo ela me faz.
Se guerreio com meus pais,
Família, comunidade,
As igrejas ancestrais,
Há uma luta de verdade
Aqui no meu interior.
O labor elementar
É olhar bem no meu visor
Como estalado há-de andar.
Devo criar harmonia
De meu imo na paisagem,
No afecto que desvaria
Nas percepções que interagem,
Em meus estados mentais…
Então principia,
Um dia,
A paz a dar-me sinais.
761 – Tocas
Tocas em Cristo e te curas,
Ou em Buda ou Maomé…
E peregrinas a pé
Para as relíquias seguras.
Uma peça de roupa
E ficas curado:
- Como te poupa
O cuidado!
Quanta superstição,
Ilusão e mentira!…
Quando tocas, profundo e apurado,
O amor e a compreensão,
A ponto que isto em ti tudo
revira,
Aí, sim, ficas curado.
E tens Cristo, Buda e Maomé
De pé
A teu lado.
762 – Momento
Vive o momento presente!
Não digas: "vou aguardar
Enquanto o rio for corrente,
Depois, sim, ficarei vivo."
É que, quando ele acabar,
O fado esquivo
Não te dará mais sossego:
"Tenho de arranjar
emprego!"
Depois é o carro, a casa, o lar…
E jamais somos capazes
De vivermos o presente.
Antes que o porvir atrases,
Eternamente adiado,
Repara que é ponto assente
Que o tempo te corre ao lado.
O momento de estar vivo
É este de agora aqui.
Se dele me privo,
Que resta aí?
Adiar-me para diante
Não é ser verdadeiramente.
Na vida, fruir o presente
É o que é deveras importante.
763 – Discutir
Discutir Deus não é usar
A energia da melhor maneira.
Se o Espírito alcançar
Ficarei de Deus à beira,
Não, contudo, num conceito
Mas na realidade viva.
Tenho é de tomar a peito
O real com que conviva:
Ao vivê-lo até ao fundo
É que então de Deus me inundo
E o irradio
Como um rio
A fertilizar o mundo.
764 – Jesus
Jesus é Nosso Senhor,
Nosso Pai e professor,
Nosso irmão e nós também:
O único lugar
Onde o podemos alcançar
E ao Reino de Deus além,
Pesados contras e prós,
É dentro de nós.
- E nada mais lhe convém.
765 – Martelar
Quando, ao martelar um prego,
Martelo um dedo,
De dor cego,
Trato dele num credo!
Não diz a mão direita à esquerda:
Por ti farei um acto de caridade,
Que apenas então o mérito se
herda
Em verdade.
Faz o que pode para ajudar,
Socorre, lesta,
Preocupada em findar
Com a dor funesta.
Tal é a generosidade:
Por outrem faz o que pode
Sem que lhe agrade
Ver aquele a quem acode
Como um ajudado
E a si como quem ajuda.
O outro bem encarado
Neste espírito se transmuda.
766 – Prática
Prática religiosa…
Enquanto, porém, praticas,
Se qual é o mundo que goza
Não verificas
E que mundo anda a sofrer,
Vidas a morrer de fome,
Toda a injustiça que houver
No pendor que à mão se tome,
Não és mesmo praticante,
Andas a tentar fugir.
O pior é que adiante
Não há mais para onde ir:
Prisioneiro ficas
Do vazio mascarado a que te
aplicas.
767 – Tradição
Nenhuma tradição monopoliza
A verdade,
Apenas nos enraíza
O sonho da divindade.
Temos de coligir o melhor
De toda e qualquer tradição
E juntos remover a tensão
Entre um e outro pendor,
Dum modo capaz
De dar oportunidade à paz.
Precisamos de nos juntar
E cotejar os matizes,
Caminhos bem fundo procurar
Até todos retornarmos às raízes.
768 – Contemplar
Contemplar é a chave.
Ao devir de algo consciente,
Devirei esclarecido.
Quando um copo de água trave
Para bebê-la intensamente
Com meu ser inteiro envolvido,
Toquei a forma inicial:
Bebo, lúcido, o germe seminal.
A esta luz,
Em alegria, paz, contentamento,
Se me traduz
O mais humilde esclarecimento.
769 – Ver
O budista e o cristão
Semelhança e diferença
Querem ver da tradição
Que a cada qual deles pertença.
É bom
A laranja ser laranja
Como a banana, banana:
A cor, cheiro e gosto que tudo
abranja
Em cada qual difere e não dana.
Olhando-as profundamente,
Ambas são frutos deveras.
Quando ir mais fundo tente
Vejo a chuva e o sol
Das primaveras,
A terra e os minerais,
A luz inteira do arrebol
Como em ambos dão sinais.
Autêntica vivência da pedra angular
Torna uma religião
Um lar
De verdadeira tradição:
Tudo são cadilhos humanos.
Darão estabilidade,
Paz, amor ou alegria,
Compreensão, liberdade,
Em quaisquer planos
Que o coração requereria.
Semelhança e diferença
Moram lá,
Difere cada pertença
Na ênfase que cada fruto lhe dá.
Em cada fruto
Encontro ácido e glucose
Em graus divergentes.
Não afirmo que este é o
verdadeiro produto,
Aquele, o falso, nem que a
necrose
O deveria eliminar da vida das
gentes.
770 – Primordial
Diálogo verdadeiro
É o que leva à tolerância.
Falta a vivência primordial por
inteiro?
Logo a intolerância
Ocupa o lugar cimeiro
E a confiança esmorece.
O autêntico ecumenismo floresce
Em escolas diferentes
No seio da multímoda tradição.
Aprendem uns com os outros as
sementes
Para restaurar o húmus do chão
E poderão os campos desagregados,
Unidos de novo, ser de novo
cultivados.
771 – Partilham
Budistas e cristãos
Partilham a sabedoria
Como irmãos
Que a vida separaria.
Partilhar não quer dizer
Que as raízes espirituais
Próprias abandone quenquer,
Doutrem convertido à fé e
rituais.
Estáveis e felizes,
Apenas os enraizados
Na tradição e cultura
Que deles são matrizes.
Sofrerão, danados,
Delas sobre a sepultura
Quando delas transviados.
Os desenraizados são
Fantasmas esfomeados
Até retornarem à própria
tradição.
Todos, pois, deverão
Encaminhar os desencaminhados
Para o respectivo chão,
Mesmo que seja
O mais estranho ao dos próprios
cuidados
E ao que deles cada qual almeja.
772 – Importante
Num mundo desencantado
É importante atingir
Algum lado,
Fingir,
Num gesto fidalgo,
Empreender algo.
Ora, o tempo de jardim
Não leva a lugar nenhum,
A meus ritmos porá fim.
Minha alma, porém, posta em
jejum,
É aqui que vem retouçar,
Quando a ambição é contida,
Mantida no limiar
Do pulsar da vida.
É no jardim que aprendo a me
promover:
Ajudo as plantas a crescer.
773 – Ouvir
Ouvir o silêncio,
O coração a bater,
Minha alma a respirar…
Convence-o,
Ao botão da vida activa,
Aflitiva,
Quando te aprouver,
A se desligar.
Liga o amplificador
Dos cantos de alma.
Da natureza o clamor
Atinge-te na calma
Com que na pedra te sentaste,
Olhando o mar.
Na tranquilidade interior
Finalmente reparaste
Como tuas ânsias poderão alto
soar.
774 – Coluna
A imaginação
É profunda e central.
Coluna vertebral,
Em vão
A rotulamos de superficial,
Esquecendo que a vida
Construída
Para nós e para o mundo
É modelada e limitada
Pelo perímetro fecundo
Da fantasia nela aplicada.
As realidades são
Como as imaginamos.
Imaginação
É criatividade:
O modo como elevamos
As paredes da vida
Provém da agilidade
Da imaginação envolvida.
775 – Última
Vivemos num mundo de objectos
De alma privados
E tornar-nos quietos
Objectos inanimados
É a última sina que queremos.
As coisas do mundo, todavia,
Querem ser vistas e tocadas
E os objectos que temos
Por comuns, no dia-a-dia,
Têm almas veladas.
Desvendamo-las pelo modo como os
fazemos,
Tratamos e respeitamos.
Como entes sexuais
O mesmo em nós descortinamos,
O próprio olhar tem abismos tais,
O enigma de observar…
O valor e o prazer
Podemos reconquistar
De ser
Objectos de olhares sexuais
Tímidos e sérios,
Pejados de mistérios.
776 – Trocarão
Para qualquer alma do sexo
apreciar,
Nossos gostos e valores actuais,
Em primeiro lugar,
Trocarão de sinais.
Temos de aprender a entrar
No jardim dos sentidos
Com abandono e confiança,
Não sendo já movidos
Pela esperança
De entender a meia-luz das
sensações
Quando lhes mergulhamos nos
saguões.
A vivência mística, depois,
Na realidade, modo de operar e no
valor,
Teremos de nos propor,
Por entre os difíceis róis
Duma cultura que apenas acredita
No que mede e prova,
Não no que medita
E joga morto na cova.
Dois trilhos inseparáveis,
Lados da mesma moeda,
Só juntos serão viáveis
Até que a porta nos ceda.
Espiritualidade e sensação
Uma à outra se alimentam,
Não são inimigas, não:
Sensação afasta o ego
Das mil coisas que atormentam
E a que tanto sinto apego.
Liberto então, como jamais,
Metas espirituais.
777 – Evite
O corpo do espírito evite
separar.
Em termos dualistas
Nem sequer pensar,
É, para o lograr,
A melhor das pistas.
O sexo e quanto obremos,
Todos os objectos e eventos,
Por mais seculares que os
vislumbremos
Contêm espirituais elementos.
Vivendo não-dualista filosofia,
Sexo é espiritualidade.
Se a qualquer hora do dia
O espírito separo da
corporeidade,
Com tal divórcio conexo
Terei decerto problemas com o
sexo.
778 – Aprofunda
Torna tua espiritualidade
Sexual.
Tua afectividade
Aprofunda com toda a variação
individual
Das linguagens do afecto.
Como o monge no mosteiro,
Dá tecto
E visibiliza
Os mil modos com que o amor
inteiro
Nos mobiliza
E a todos o prodigaliza.
Podes ser afectuoso
Com amigos e vizinhos:
Sexualizas, gostoso,
A vizinhança de carinhos.
Ao inundar de ternura
Cônjuges e enamorados
Ao mundo dás a figura
De intenso viver em todos os
bocados.
Ao nutrir afectos
Por animais,
Lugares e objectos,
Ao espírito eriges tectos
Sentimentais
Que, radicalmente sexuais,
Serão, a vida inteira, teus
predilectos.
Todos estes afectos dão
À comunidade humana uma visão,
Um ponto de vista, uma filosofia,
Provinda da mais sublime
meditação
E leitura do dia-a-dia.
Alma para o ânimo,
Cônjuge do coração para o
enamorado da mente,
Corpo visível para o espírito
oculto,
- Tudo isto é vida semear
Quando o desânimo
Consente
Em ler-se estulto
E transpor o limiar:
Devir integralmente sexual
Quão integralmente espiritual.
779 – Saboreando
O afecto
É a maneira de acabar
De corpo e espírito com o
dualismo.
De modo correcto
Usar
O corpo para lograr
Do ego transpor o abismo,
Saboreando a beleza do mundo,
A beleza física de quem se ama,
E eis como de espírito me inundo,
Como a emoção em cada gesto se
acama.
É apenas usar corpos e sentidos
Numa prática espiritual
Pejada de erotismo,
É acolher, por igual,
O belo e os prazeres comedidos:
As sensações de que me crismo,
E a que fiel sou tão pouco,
afinal.
780 – Devém
Sem sensualidade,
A religião devém árida e
agressiva.
Sem espiritualidade,
O materialismo em que viva
Devém vazio, insatisfatório,
De violência compulsiva.
Ambos encontram resolução
Na alma do sexo
E é ilusório
Qualquer caminho que, em vão,
Lhes evite o mútuo amplexo.
Descobrimos nas encruzilhadas
Que as duas grandes forças
Não são inimigas declaradas.
Embora por uma ou outra torças,
Ambas te atraem e perdes a razão
Quando ambas as não semeias em
teu chão.
781 – Urge
Se apenas passa a existir
O propagandeado,
Para quê vestir
De modesto a véstia?
- É que urge não pôr de lado
A virtude que reside na modéstia.
Apenas as mil formas da virtude
Erguem o mundo que nos não ilude.
782 – Grandes
Cabeça permanentemente
De grandes ideais pejada
Ou dum santo é uma semente
Ou dum fanático a estrada.
O mundo, presentemente,
A capacidade esgotada
Tem de santificar gente:
Para o fanático eis a porta de
entrada.
E, neste processo,
Anda o mundo a fabricá-los em
excesso.
783 – Erro
O erro do eficiente
É crer que deve operar
Em exclusivo com a mente.
Qualquer labor é de homens que
precisa,
Não de máquinas de calcular.
A emoção,
A imaginação,
Isto é que nos avisa
Da vantagem
Que sobre a máquina temos.
Não é miragem,
O segredo
Não é eliminar o que vivemos,
É acatá-lo desde cedo,
Com ele aprender
A conviver
E a canalizá-lo,
Orientá-lo.
Já que não podemos
Eliminá-lo
Sem, no gesto que o despreza,
Eliminarmos a humana natureza.
784 – Inocência
Nunca à inocência da infância
Poderemos nós voltar
Literalmente.
Às almas, porém, qualquer ânsia
Como a pode limitar
Um mero facto literal,
Simplesmente?
A inocência pode ser restaurada
E a virgindade germinal
Renovada:
Nossa atitude,
De nós próprios a consciência,
Nosso estilo de vida e de
virtude,
Feridas de ausência,
No ponto de partida
Poderão buscar guarida.
É viável cultivar
Psíquica virgindade
E uma pureza de altar
Quando as percorra
Mesmo através duma sexualidade
Activa,
Desde que por ela morra,
Desde que por ela viva.
785 – Falta-nos
No sexo conjugal
Falta-nos acaso às vezes
Apreciá-lo no que vale,
Nos benefícios e prazeres,
Nos gestos corteses,
Devido a o apetite de novidade,
Diluído entre os deveres,
Se estender à sexualidade.
Muitos no mundo vivem
No seguro reconfortante
Da tradição com que convivem
E tal estilo de vida,
De raiz no que é constante,
Ancorado na narrativa vivida,
Estende-se ao sexo
Onde a tradição assume
A forma da familiaridade e do
costume.
Do erotismo o nexo
Com a comunitária história
Não o deteriora,
Antes, em regra, o beneficia, o
melhora,
Alimentando-o da individual e
colectiva memória.
786 – Confundir
Confundir vida com fantasia,
Eis o risco.
Alguns trocam de parceiros
Como quem procuraria
Fora do aprisco,
Personificados,
Os amantes de alma inteiros.
Ou ficam desencantados
Quando o sexo não corresponde
Às vivências imaginárias.
Teremos de aprender
Em dois mundos a viver,
Ali onde
Se misturam sonho e vida
Em proporções várias,
Acolhendo o que ambos valida
E tanto nos importa.
Então, entre os dois polos
Abrimos a porta
A podermos sobrepô-los,
De vez em quando,
Com a vida pelo sonho navegando.
787 – Desejos
Dos desejos o fruto
Aprender a colher
É o radical produto
Duma educação que o pretenda ser.
Porque cedo ou tarde demais
O colhemos,
Temos
Problemas reais.
Quando o recolhemos cedo,
Devém a vida confusa.
Quando tarde, é a medo,
O vazio nos acusa,
De arrependimento e remorso
tolhidos,
Acabamos deprimidos.
Para a hora exacta
É que uma educação verdadeira
Nos precata,
Certeira.
788 – Trama
Como o sexo é abrangente
Não pode ser separado,
De tão envolvente,
Da trama da vida
E do rosto afivelado.
Anda frequentemente
Implicado
Na corrida
Encadeada, descomedida,
De eventos e transições.
Em selvagens confusões
Envolve quem ânsia sexual
Sentir inesperada,
Involuntária, malfadada,
Quando ela for abismal
E com foros de fatal.
É útil encontrar modos
De se concentrar na alma
Para, com calma,
Vitais decisões evitar a rodos
Imediatas
Que, ao invés, requerem
ponderações pacatas.
Mau é ficar pressionado
Para alguma coisa empreender
Em lugar de continuar passivo,
dominado
Por emoções e imagens
De dor e prazer,
Que, nas demoras,
Concomitantemente desfilam
paisagens
Atraentes e perturbadoras.
Ao final, o fito
É que assim de minhas tensões me
desquito.
789 – Medo
Nosso medo colectivo
Da homossexualidade,
A condenação ao vivo
Da pública personalidade,
O nosso puritanismo
Ante imagens sexuais,
O constante ilusionismo
Com ansiedades fatais
Ante o poder da mulher,
Todo o nosso moralismo
Ante o sexo, é de esconder
Os amores com que cismo,
Reprimidos, coarctados.
Se ao invés foram libertos,
Reconhecidos, eram fados
Com novos rumos abertos
A desafiar a rotina.
Trariam vida nova
A uma civilização mofina
Que tão pouco se renova
Que a alma que ainda tiver
Anda rápida a morrer.
Nos sintomas da infecção
Germinam sempre as sementes
Da revitalização.
Se quisermos, entrementes,
Nova sensibilidade,
Vida nova de verdade,
O que temos de fazer
É de olhar atentamente
Para os problemas que houver,
Sem cair ingenuamente
Em compensações quaisquer.
Sugere a pornografia
Que podemos considerar
Que a imagem sexual valeria
Mais que seu actual lugar.
Sugere o divórcio em aumento
Que precisará de espaço
A ideia de casamento
Que é mais que o nó que houver no
laço.
O estupro, a violação,
Implicam que é de supor
Que não aprendemos a lição
Do poder que tem o amor.
O sexo na comunicação
Implica
Que temos de alicerçar no chão
Uma comunidade eroticamente rica.
Teremos coragem de ser rijos,
De abandonar algum dia
Nossos esconderijos
De moralismo e hipocrisia?
Que mais nos importaria:
Filhos gerentes de dados,
Ou com um pouco de sabedoria
Oriunda de nossos cuidados?
De tantos moralismos
prisioneiros,
Das ricas possibilidades da vida
Com eles nos protegemos,
interesseiros,
Em prudência comedida.
Não confiamos a sério
Na sexualidade.
Atraídos dela pelo império,
Quando nos invade
Não suportamos que complique
Nossa vida nem nossos planos.
Impedindo que imaginosa se
aplique,
Findamos, afinal, menos humanos.
790 – Afirmar
Afirmar a vida
Em lugar de reprimi-la
Não nos predispõe, ao deixar de
negar-nos,
A tentarmos, de seguida,
Compensar-nos
Com gratificações mais
entretenimento em fila
Intranquila
E desmedida.
Afirmar a vida,
Ao invés, vai serenar-nos,
Na paz da plenitude prosseguida.
791 – Melhor
Melhor é cama de palha
Livre de medo
Que cama doirada,
Mesa com vitualha
E o degredo
Duma mente perturbada.
792 – Desafios
As ofertas e desafios da vida
comum
Ao aceitar,
Poderemos encontrar
A dádiva da vitalidade
Sem pé atrás nenhum.
Dela a falta deprime nossa idade
Em negror profundo
Que fere inteiro o mundo.
Acolher
Sinceramente, porém,
Requer
Que aceitemos também
Os momentos
De perda, falha e desilusão
Que acompanham uma vida plena,
Como elementos
De seu chão,
Da maior à mais pequena.
Eros não é tão relacionado
Com nossa apreciação
De indivíduos, eventos e objectos
Dum mundo novo revelado
Quanto com estoutros aspectos:
Acolher cada qual ser amado
E perseguido
Pelo fado,
Pela vida que o houver
distinguido.
É uma ilusão julgar
Que somos sujeitos
Na vida diária.
A pedra angular,
Nunca atrabiliária,
É que, em múltiplos aspectos,
Somos objectos,
Aqueles a quem os desafios são
feitos,
E não apenas
Os que protagonizam as cenas.
Ao aceitá-lo, então
É que nos invade
O dom
Da vitalidade.
793 – Perfeito
O perfeito não existe.
Chora o santo, o que é humano,
E Deus calado persiste.
Ante o enigma dos céus,
O santo amar podemos sem engano,
Mas como amar a Deus?
794 – Digna
Qualquer alma digna de si
Quer viver a vida até o limite.
Contentar-me com o que recebi
É de escravo meu palpite,
Pedir mais é de criança,
Mais conquistar é de louco
E tudo o mais que se alcança
Tem sempre sabor a pouco.
Resta o frágil equilíbrio
De tudo e nada ludíbrio.
795 – Fechada
Abrir-lhe-ei as janelas,
Os quartos lhe arejarei…
Casa fechada são filomelas
Em que o canto já não é rei,
É a planta
Que esqueceram de regar,
Onde ave nenhuma canta,
Morrendo, de seca a estiolar.
Abrir-lhe-ei as janelas,
Os quartos lhe arejarei
E, em festa, lhe acenderei as
velas
De lei.
Casa fechada
Tem de ser aberta e arejada.
- Todos somos gente
Que precisa de ar,
Que precisa de respirar
Decente
Em sua morada,
Inevitável fogo ardente
Em pleno mar.
796 – Trepar
Mais vale arriscar
Trepar à figueira
Tentando alcançar um figo
Do que se deitar
Sob ela à lazeira
A olhar o próprio umbigo,
Aguardando na toca
Que ele lhe caia na boca.
797 – Pertenço
Não me indigno,
Que é dos fortes;
Não me resigno,
Que é dos nobres;
Não me calo, que o silêncio
É dos grandes que dão mortes.
Não sou forte, nobre, grande,
Pertenço ao mundo dos pobres,
Pense-o
Ou não.
Sofro e sonho, longe do que me
comande,
Sei que não valho um tostão.
Queixo-me porque sou fraco
Como um caco.
Entretenho-me a arranjar
O sonho em conformidade
Com o melhor, para o achar
Belo em minha inanidade.
798 – Amanhã
Tudo para amanhã se prepara,
Embora o amanhã nunca chegara.
O presente é uma ponte:
Todo o mundo geme
A olhar para o horizonte
A que aspira e teme.
Ah! Não haver um idiota que se
lembre de atirar
A ponte pelo ar!
799 – Espíritos
Espíritos inquietos
Mas não aventureiros,
Atormentados, indiscretos,
Mas incapazes de viver inteiros
No presente,
Vergonhosos cobardes,
Há apenas uma grande aventura:
A que ruma, persistente,
Todas as manhãs e tardes,
Ao imo que ela inaugura,
Ao eu, ao interior
Onde não conta tempo nem espaço,
Nem a gesta-mor
De nenhum homem-de-aço.
Esta é a única aventura
Que, mesmo acabada,
Perdura
Em realidade transmudada.
800 – Braços
Os braços embora ao estender
Para agarrar, para me prender,
Fique tão sem nada como dantes,
A verdade é que encontro a jóia
rara,
Fruto do que teime
No rosário dos instantes,
E que jamais procurara:
- Encontrei-me!
Não é viver o que procuro,
É dizer-me,
É ser-me
Além do muro.
801 – Rato
Tenho de aprender a viver com a
escumalha,
A nadar, rato de esgoto,
Ou serei pino da malha,
Ou me afogo, o gesto boto.
Se me juntar à manada
Tenho a vida imunizada:
Para ser aceite e apreciado
Terei de me anular,
Indistinguível do gado
Regulamentar.
Poderei sonhar
Se sonhar como ele.
Quando outro sonho em mim apele,
Nem serei um cidadão
Nem deveras patriota.
Um pouco abaixo de cão,
Nem terei cota.
802 – Objectos
Animados ou inanimados,
Todos os objectos têm diferentes
Vertentes
Inerradicáveis de nenhum dos
lados.
O que sou quando sou gente
É tão inerradicável
Quanto então for diferente:
Mesmo que seja inviável
Sou urgente.
Trepo ao meu arranha-céus
Sem elevador, janelas
Donde gritar escarcéus
Nem adivinhar procelas.
Quem não se cansa a subir
Será logo um perdedor:
Não há inquilinos a vir,
Se os quiser, dê-lhes suor.
Os outros arranha-céus
Dão-lhe o que você requer?
Nos recantos que são meus
Há somente o que eu puser.
E aposto
Que isto tem muito mais gosto.
803 – Apenas
Apenas os olhos dos justos
Nunca se iluminam.
Apenas os justos
O segredo jamais dominam
Da camaradagem humana.
É dos justos que dimana
A criminalidade contra o Homem.
São os justos
Os verdadeiros monstros que nos
consomem.
São os justos
Que nos exigem a impressão
digital,
Que nos provam que morremos
Quando embora nos encontremos,
Por sinal,
Perante eles em carne e osso.
São os justos
Que nos impõem nomes arbitrários,
Nomes falsos com que não posso,
Que apõem datas mentidas em
registos atrabiliários
E, depois de nos terem assim
cativos,
Nos enterram vivos.
O demónio da rectidão…
Prefiro o ladrão,
O vadio, o assassino:
Do que eles poderei ser mais
ladino.
E mil vezes prefiro então
Alguém com estatura
E qualidade,
Com a lisura
De ter com ele próprio lealdade.
804 – Esperam
Quando chegamos ao limite
Do que esperam de nós,
Ficamos logo após
Ante o eterno palpite:
- Sermos nós, sermos nós!
805 – Sei
Sei lá bem prever
O que irá ocorrer!
Desconfio
É que se quiser apanhar boleia
Do navio que zarpou da areia
Terei de estar à beira do rio.
806 – Dilaceram-me
Dilaceram-me duas vidas:
Aqui, o caos, o absurdo, a
violência,
A miséria, a dominação sofridas;
Ali, o idílio maravilhoso da
quintessência
Em que o filósofo brinca às
contradições
Como numa guilhotina de papelões.
Procuro um itinerário-guia
Que na tempestade dos desejos
Me serviria
Como sextante entre os arquejos,
Aquilo que, soltas as velas,
Me oriente entre as estrelas.
Entre ambas as margens, o navio
Vai navegar por que rio?
807 – Convencido
A verdadeira defesa,
Verdadeira dissuasão:
Um povo convencido da grandeza
Dos valores que dele são.
Em caso de guerra ou de invasão,
Nenhum eventual adversário pode,
confiado,
Aguardar dele qualquer
colaboração,
Mesmo que o haja inteiramente
dominado.
808 – Defender
O que devemos defender é o homem,
O homem à imagem de Deus,
A irradiar em toda a pele
A centelha divina que mora dentro
dele,
Onde se somem e retomem
Todos os potenciais que forem
seus.
Quenquer que oprima estas
possibilidades
Prepara a derrota,
Quaisquer que sejam de armas as
quantidades,
Porque conduz um povo a tomar
nota
Da fé que tiver:
- Do que tem a defender.
Inviável
Na triagem,
É apenas o povo sem mensagem:
Este é indefensável.
809 – Objectivo
O primeiro objectivo é que os
marginalizados
Neles mesmos recuperem confiança.
Vivem habituados
A abandonar o mar dos problemas
Aos políticos, aos padres, a
qualquer santa aliança.
Agirem por eles próprios é o
primeiro dos lemas:
Construirem escolas, rasgarem
janelas,
Abrirem caminhos,
Trabalho conjunto em pequenas
courelas
Entre vizinhos…
- Talvez depois brotem deste
galho
Germinais comunidades de trabalho
Com a autonomia
De quem é capaz de erguer a cara
à luz do dia.
810 – Regime
Temos uma conjuntura subversiva
Quando um regime político,
económico ou social
Não permite à maioria que viva.
Os filhos morrem-lhes antes dum
ano
Por haver apenas um hospital
Para trezentos mil utentes
Deste engano.
É o que destrói a ordem divina,
É a subversão instalada de mundos
doentes
Que directamente nos atinge
E sempre finge
Que connosco combina.
Ora, esta desordem destruir
É que é construir,
Não é mantê-la
Que abre qualquer janela.
Ao contrário, como realidade
morta,
Fecha-nos, definitiva, a porta.
811 – Célula
Criar a célula viva
Dum novo tecido social,
Assim principiou a iniciativa
De cada corrente espiritual
De impacto mundial:
Foi em Benares para o budismo,
Em Jerusalém para o cristianismo,
Em Medina para o Islão…
E delas, afinal, mal colhemos
refrigérios,
Pervertidas como foram e serão
Pelo poder dos impérios.
812 – Daninha
Pode a mudança da pedagogia
Dar em pedagogia da mudança?
- A erva corredoira que se enfia
Na calçada tanto entrança
Que consegue destruir
Pedra a pedra, as defesas,
Num distante porvir,
Das mais esmagadoras fortalezas.
813 – Ídolos
Nunca precisei de ídolos de
madeira ou da razão,
Fabricados com a mão
Ou com a lógica:
Faria de mim um ateu
supersticioso
Qualquer prova demagógica.
É de ímpio orgulhoso
Afirmar que Deus existe:
O ser é das coisas que eu liste?
Deus não é desta família,
É o acto que as faz ser.
Dele à imagem, para o homem
existir é viver,
O que o leva a ser uma perene
vigília,
Que não se demonstra, antes se
mostra.
Não é por um exercício de
pensamento
Que a pérola retiro da ostra,
Mas por um esforço, momento a
momento,
Da vida inteira.
Testemunho vivo de Deus é quem
emparceira,
Através da acção embebida de fé,
Com a presença que nos tem de pé:
Tornar visível o invisível,
Dele com a beleza e o apelo
indizível.
814 – Filho
Os escravos obedecem por medo do
inferno,
Os mercenários, por desejo do
Paraíso.
Terno
E com mais siso,
O melhor
É cada filho de Deus que obedece
por amor.
Ao integrista,
Porém,
Só o argumento da autoridade
convém.
Fica, então, fora da lista:
É o único crente
Obediente
Que, definitivamente,
Nenhuma salvação consente.
815 – Vontade
Em lugar de pretender deduzir
Dos textos sagrados
A política do porvir
Ou uma doutrina comunitária
qualquer,
Importa, em todos os
desfiladeiros e valados
Da conjuntura histórica que
houver,
Induzir,
A partir daqueles para quem ser
pobre é não ter nada,
Qual o rumo
Da vontade revelada.
Os condenados da terra, em
resumo,
Impõem outra leitura
De qualquer sagrada escritura.
816 – Muda
Qualquer muda numa comunidade
humana
Brota da consciência dos que a
compõem.
Resistir, recusar viver pela lei
antiga,
Reinante no mundo donde emana
E que profana,
Não se impõem
Senão quando alguém desliga
De vez
De qualquer afloramento
Do caos e da insensatez,
A todo o momento.
817 – Perenemente
Política militante em trajecto,
Batalhadora e pejada de
canseiras,
Sempre habitada por um projecto:
Ser barqueiro de fronteiras.
A vida como um poema:
Procura do sentido como bodo
E, como tema,
A beleza sempre inacabada do
Todo.
A alegria,
No maravilhoso concerto do ser,
De ter sido admitido, um breve
dia,
No jogo de encaixe dos
fragmentos.
E depois preencher
A própria casa com todos os
elementos.
Reentrar na fila para brincar,
Ainda uma vez, doutrem pela mão,
Escutar,
Através doutros sentidos,
A sinfonia de acordes e bramidos
Do ser perenemente em formação.
818 – Mundo
O mundo é o meu corpo,
Meu corpo de eternidade.
A vaga, quando a encorpo,
Não conhece a morte, distendida à
imensidade.
Conhece a metamorfose,
O intérmino renascer
Na outra vaga que vier.
Não tem pena nem psicose
Da espuma que lhe ocorrer,
Como eu não de meus limites.
De meus limites conjunto
É meu corpo de fronteiras,
Leiras
De meus apetites
De defunto:
Antes, depois, dentro, fora,
Causas, desejo, sofrimento
E medo a toda a hora
Que em meu corpo eu mesmo
invento.
Toda a degradação do ser
Por ser parcial, provisório,
A falsa morte a temer
Como um depois além da vida,
Ilusório
Se a morte fora entendida.
É teu corpo o mundo inteiro.
É tua consciência
Dos homens a história inteira.
Quando me abeiro
Da inteligência
Desta fronteira sem fronteira,
Acaba toda a violência,
Vivo em paz, rumando da paz na
esteira.
819 – Génio
O génio é uma mutação
Repentina.
Não se multiplicarão
Só porque alguém se destina
Desde logo a devir bom,
A melhorar gradualmente
Até devir excelente,
Que nada disto culmina
Numa genialidade.
Simplesmente, por acaso,
Alguém nasce um certo dia
E esta individualidade,
Sem qualquer esforço ou prazo,
Tem tal toque de magia.
Compete então aos demais
Imitarem-lhe os sinais.
Qualquer semente perdida
Pode então retomar vida.
820 – Diferente
É diferente: parece satisfeito…
Não anseia por fama nem glória,
Aos milhões não presta preito,
E planos para avançar na vida,
que vanglória!
De algum modo, é um recuo ao
passado,
Quando o mundo não era, como
doravante,
Tão complicado
E as coisas simples eram o mais
importante.
…O trágico, porém, é que estas o
continuam a ser,
Mesmo ao ninguém o crer.
821 – Fama
O dinheiro e a fama, é curioso,
Não podem sair connosco,
Tomar comigo um copo de espumoso,
Aquecer-me na cama onde me
enrosco…
Nem conversam. Nem cantam.
Nem podem ter filhos,
Nem deles criar-nos os sarilhos
Que nos encantam…
O dinheiro e a fama…
- Afinal, quem os proclama?
822 – Odeio
Odeio o reformador,
Odeio o revolucionário
Que apenas olha ao que for
Um mal
Primário,
Superficial,
Muito embora cause abalo,
E que se propõe curá-lo
Agravando o fundamental.
Um médico ao corpo são
Adapta o corpo doente.
Na vida social não
Sabemos no paciente
Onde ocorre um aleijão
Ou dum porvir a semente.
Só o humilde vai ao fundo
Do poço onde jorra o mundo.
823 – César
Todo o César o peito alteia
Da ambição que o toma:
"Antes o primeiro na aldeia
Que o segundo em Roma!"
Ninguém com o lema,
Porém, confessará que atrema,
Se ele é quem mora dentro da
cobiçada redoma.
824 – Ler
Ler é sonhar
Doutrem pela mão.
Ler mal e por alto é da mão me
libertar
Que me conduz pelo trilho do
chão.
Quem é superficial na erudição,
Do sentido, porém, a mergulhar no
fundo,
Tem
O condão
De ler bem
E ser profundo.
825 – Sair
Agir,
Quando apraza,
É contra si próprio reagir:
Influir
É sempre sair de casa.
Caracol
Dentro da casca
No chão se atasca,
Nada então bole.
Põe os corninhos ao sol
E logo acaba
Estriando o chão de baba.
826 – Preferível
Será preferível dar,
Mais que receber.
O que dá finda a ganhar
E finda a perder
Quem apenas receber.
Nos livros não vem
E não é vulgar,
Mas quem
À vida se atém,
Ali é que a descobre a palpitar:
Quem vive de receber
Não vê o laço que o anda a
prender.
Ora, a vida, ao que persuade
É à liberdade.
827 – Experiência
Jamais a mãe
Uma experiência de avó
Detém.
Quando o filho chora, morta de
dó,
É logo o fim do mundo.
Ora,
Bastante longe da dor de ter
filhos
Sempre uma avó já mora
E do prazer fecundo
De os amamentar sem empecilhos.
Então, quando o choro mirra,
Distingue, sábia, ao ver
Se é duma doença qualquer,
Se duma birra.
A lonjura
Permite a sabedoria.
- Que é duma cultura
Que a velhice ignora, dia a dia,
Desprezível fancaria
Condenada em vida à sepultura?
828 – Consciente
Devir consciente não salva
ninguém.
A limpar ajuda o olhar,
Porém,
E então leva a evitar
Prevenido,
O risco previsível
E o obstáculo sabido.
E eis como a vida é mais vivível.
829 – Indiscriminada
Uma indiscriminada tolerância
Mina a determinação
De dizer não
Ao terrorismo, à ganância,
Ao extremismo malsão…
- Tolerância unilateral
É mais uma chave do mal.
830 – Nunca
Nunca duvidei
Que me trairiam
E, porém, pasmei
Quando os que fingiam
Me traíram, afinal.
Quando chegou o que esperei,
Bem real,
Sempre foi inesperado
Para mim.
O mérito ser algures apreciado?!
- Não, jamais é credível assim…
831 – Mistérios
Logrei compreender
Que os maiores mistérios, os mais
fascinantes,
São para saborear, não para
resolver,
E o mistério nos rodeia a todos
os instantes.
Para dele surpreender a
fermentação,
Basta-me, humilde,
Prestar atenção.
832 – Rotular
Há o perigo de rotular alguém,
Não pelo que for ou fizer
Mas pelo gene que tem:
De discriminado se ver
Por se calhar daqui a quarenta
anos
A doença incurável ou a propensão
Poderem vir a causar danos
Que eventualmente nem ocorrerão.
E a democracia,
Então,
Devirá genocracia,
Mais uma forma de discriminação.
833 – Muro
A esperança
É a mais cruel virtude.
Um muro de cinismo alcança
Afastar quanto a dor desilude,
Mas a esperança os portões
escancara
E, a todo o momento,
Ao homem logo se lhe depara
Sofrimento.
834 – Crenças
As falsas crenças, de infundadas,
São,
Para nossas almas frustradas,
Um grilhão.
Só quando nos agarramos
A quem deveras somos,
Livres nos encontramos
E pomos.
835 – Olhar
Quem a Terra olhar quiser
Convenientemente
A distância deve manter
Prudente
Que lho permita fazer.
Não é de nariz no espelho posto
Que verás teu rosto.
836 – Iguais
Como é que, sendo tão iguais em
todo o lado,
Numa terra pequena,
Onde praticar o mal é tão
dificultado
Que qualquer oportunidade
Quase a condena
A inexistente privacidade,
Todos acabam inventando
Maior quantidade
De perversidade
Atribuindo-a aos mais
Que à frente lhes vão passando
Inconscientes e leais?
Na grande metrópole, o desacato,
Diluído na multidão,
Prolifera ao desbarato.
O intento de alcançar
A paz definitiva é vão:
Não existe tal lugar.
837 – Hábito
O hábito de usar a religião
Como chave-mestra para tudo…
Conforme é Inverno ou Verão
Eles vestem ou despem o
sobretudo.
Se faz bom tempo, é uma bengala,
Se calor, é guarda-sol,
À chuva, à margem da gala,
É o guarda-chuva que bole.
Se a sair nada os exorta,
Caseiros,
Fica à porta,
Nos bengaleiros.
Há milhões assim
Que ligam tanto ao bom Deus
Como à primeira camisa a que
puseram fim
Entre os trastes seus.
Não toleram ouvir mal dele,
Mas cada qual é o primeiro,
Quando importa à própria pele,
A tomá-lo como alcoviteiro:
Amor clandestino numa hospedaria,
Não, que infame difamar!
É, porém, inofensiva bonomia
O mesmo amor proibido ao pé do
altar…
Deus, a imensa capa
Sem tempo nem lugar onde,
Sob a qual toda a escroqueria se
esconde
E escapa.
838 – Sucesso
O dilema
Em quanto nos ocupa
Não é que auras se frustram ou
geram.
O sucesso é um problema
Que apenas preocupa
Os que dele nunca algum tiveram.
E não ser reconhecido
Que é que importa
A quem à vida deu sentido
Abrindo-lhe mais uma porta?
839 – Lê
Quem não lê, lê raro ou apenas
lixo
Pode falar muito, que sempre dirá
pouco,
Dispõe dum repertório de bicho,
Os termos mínimos dum louco.
Limitado intelectual
E indigente de pensamento,
O conceito com que se apropria do
real
Não se livra do elemento
Da palavra:
Nesta é que reconhece e persuade
E com isto lavra
A consciência da realidade.
Quão mais pobre
O discurso,
Mais real há que além lhe sobre
Da vida no percurso.
Sem termo nem conceito,
A vida acaba-lhe esvaziada a
eito.
840 – Inventos
Os inventos concretos
Dos grandes criadores literários
Abrem-nos os olhos aos aspectos
Ignorados e secretos
Da condição humana.
- Quem aos destinatários
Doravante engana?
Quem impune os profana,
Dotados como doravante vão,
Na nova condição,
De demiúrgicos imaginários?