CANTO  OITO

 

 

NAS  COISAS  FINDO  ME  ASSENTANDO  OS  DIAS

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 841 e 952 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                          841 – Nas coisas findo me assentando os dias

 

                                                    Nas coisas findo me assentando os dias,

                                                    Que em chão duro os prendo

                                                    E não me rendo

                                                    A voos que são meras fantasias.

 

                                                    Das pedras ouço as vagas melodias,

                                                    Meu gesto em meu vizinho acendo

                                                    E por dentro me vou reconhecendo

                                                    Nos degraus de todas as escadarias.

 

                                                    Húmus identifico e a charrua

                                                    Que me revolve a terra nua

                                                    Das relações que comigo e o mundo tenho.

 

                                                    É com esta pedra de calçada

                                                    Que vou calcetando a estrada           

                                                    Por onde vou, por onde até mim venho.

 

 

842 – Sucesso

 

Ter sucesso é controlar

O nosso tempo de vida:

Se à maior parte o lograr,

É vitória garantida.

 

O tempo é a moeda forte

Melhor que acaso acontece.

De vez, porém, gasto à sorte,

Desaparece.

 

 

843 – Apenas

 

Nunca chegamos deveras

A crescer.

Apenas, nas esperas,

Podemos, em lugar,

Aprender

Em público a estar.

 

E basta,

Que a vida é muito casta.

 

 

844 – Telefone

 

O telefone sublinha

O paradoxo existente

No interligamento que alinha

Incongruente:

 

 

Uns aos outros nos liga

Óbvia e aparentemente,

Porém, à distância obriga

Também, inelutavelmente.

 

A conversa olhos nos olhos

É a melhor ponte entre humanos:

Requeremos, subtis,

Para transpor os escolhos

Dos enganos,

Mil e um pontos nos is,

Toques faciais, postura, gestos,

Atmosfera…

- Quantos aprestos

Para descodificar uma espera!

 

Quando vou ao telefone

Tudo aquilo anda perdido.

Quanto mais me condicione

À intimidade instantânea,

Mais ilusório o sentido

Da vida contemporânea.

 

 

845 – Rumo

 

O rumo que andamos a trilhar

Na revolução das comunicações

Tem este efeito singular,

Entre outros senões:

- Uns com os outros deixámos de falar!

  

 

846 – Flores

 

Flores,

Lindas, efémeras, um nada ali,

Até morrerem, murchas as cores…

Flores,

Eis o que é de mim, de ti,

Até de vez quando te fores.

Entretanto brilha

Em nós a maravilha.

 

- Um nada,

E como alinda a estrada!

 

 

847 – Acertar

 

Acertar numa bola

Não tem grandeza nenhuma.

Os enredos e o humor

Brotam do problema que enrola,

Da tristeza que não se esfuma

E do valor

Que espantosa a Humanidade

Tem para sobreviver

À infelicidade

Da vida que lhe couber.

 

É um milagre virtualmente

Continuarmos a existir

Milhões de anos, tendo em mente

Tantos contras que suprir.

 

 

848 – Varanda

 

Uma varanda:

A única recompensa verdadeira

Que nos anda

À beira,

Após a torreira

Que nos dão

Os longos dias de Verão.

 

 

849 – Unidos

 

O bem e o mal

Vivem de tal modo unidos

Que ambos formam por igual

Da realidade os sentidos.

 

Não há nada

Debaixo do humano tecto

Que inteiramente à chegada

Vejamos que é só correcto.

 

No acto pervertido

Há gérmenes de virtude

Com que à salvação convido

Quem da aparência se ilude.

 

Em tudo,

O bem e o mal, lado a lado,

Eu de tal maneira os grudo

Que nada os pode ter separado.

 

Ao meio

Cortar alguém a maçã

É não ver que de permeio

Junta à podre a fruta sã.

 

 

850 – Espinhos

 

Ensanguentamos os dedos

Nos espinhos da rosa.

Os segredos

Da vida!

 

- Aquilo é que torna deveras preciosa

A flor colhida!

 

 

851 – Guerra

 

Toda a guerra

É uma guerra negativa:

Bons contra maus, cá na terra,

É uma leitura nociva,

Que a verdade a que se aferra

É sempre verdade esquiva.

 

Na guerra sempre é de pores:

- Serão maus contra piores.

 

E nem sequer o teu lado

É de supores

Que do menos mau seja um bocado.

 

 

852 – Ausência

 

A ausência

É um pouco de morte

E, pior sorte,

Um pouco de não-existência.

 

Ser um não-existido,

Pouco embora pela ausência o seja,

É bem pior que haver morrido,

Salvo seja!

 

 

853 – Aparelho

 

O aparelho

De Estado, instituição ou partido

É um pendor de estagnação.

Só é coeso graças ao velho

Tecido

De relações de longa duração

Entre os membros componentes.

Em vez de alavanca é travão,

Um estendal de doentes

Do coração:

Nada ali vibra, nada move.

Do aparelho a prova dos nove

É o caixão.

 

 

854 – Náusea

 

Uma coisa é a náusea sofrer

Da garrafa que comprei,

Outra é exactamente igual proceder

E as palavras escolher

Com que a descreverei.

 

Ao lê-la, mudei

A dor num prazer,

Em virtude duma estranha lei

Qualquer,

De que mal sei.

Ela é que, porém, me estrutura o ser

Como palavra de rei.

 

 

855 – Fora

 

Toda a vida se constrói e destrói

Fora de minha vontade.

Meu caminho nunca foi

Por terra firme.

Tanto quanto eu sobrenade

É nas águas onde confirme

Que todo o meu rasto se apaga.

As palavras fogem de mim,

Mal a voz as afaga,

Perdidas algures num insondável confim.

Os corpos têm desejos infindáveis

Que assustam, ignotos.

O mundo é vazio e silente,

Pontuado de incontáveis

Terramotos.

A morte caminha pelo presente

Escasso

E magoado,

Passo a passo,

A meu lado.

 

Não tenho à mão,

Para a estrada

Minada,

Nem ao menos um bordão,

Apenas a crença

E a ilusão, e a ilusão…

…Sem que nenhuma, ao fim e ao cabo, me pertença.

 

 

856 – Pesa-me

 

O Eu que sou

Pesa-me, violento.

Tanto a arrumar, a morrer, lento,

Momento a momento!

Por ora, porém, é vivo que vou,

Sou eu que me habito,

Sou este ente,

Presença em que palpito,

Vulcão neste ir sendo torrente

De lava consciente,

Perene grito

Por trás de tudo o que digo e faço,

De quanto vejo.

Ora, tal Eu que almejo

E em que permanente me ultrapasso

É para morrer.

Como é possível que venha a ocorrer?

 

Sou em mim intimidade,

Evidência única que me invade.

 

No limite

Que é que me leva a que me precipite?

 

- Ou é mera ilusão,

Não caio, enraízo-me no chão?

 

 

857 – Voz

 

O mais forte em mim é a voz mineral

De fósseis, de pedras, intérmina matriz

Ancestral

Que em mim germina e condiz

Com quanto a pedras tudo em mim reduz.

Quando em mim procuro o rosto original

Que no mundo me traduz,

Não encontro minha angústia, meu alarme:

Descubro, a provocar-me,

A indiferença bruta

De entre coisas ser esta coisa diminuta.

 

 

858 – Fragilidade

 

A fragilidade das palavras

E o milagre do encontro que por elas

Lavras

Connosco e  com os mais…

E quantas ignotas caravelas

Que te vivem demais,

Sonhos clandestinos que demoram

A soltar as velas

E que as palavras ignoram!

O que vive em ti saberás?

- Quanta guerra, quanta paz!…

 

 

859 – Cegueira

 

Ver não é um erro,

Só que nem todos aguentam.

A cegueira a que me aferro

Da luz não é intensidade,

Vem dos olhos que me tentam,

Jamais da verdade.

 

 

860 – Biblioteca

 

Biblioteca, o lugar

De aprender conhecimentos,

Enriquecer linguagens

E sonhar, sonhar, sonhar…

Do mundo aos quatro ventos

As mais longínquas paragens

Não ficam do mar além,

Encontramo-las também

Ao alcance do presente,

Afeitas a nossos planos:

- Aqui no interior da mente

E do coração humanos.

 

 

861 – Ideia

 

Ter uma ideia

É tal como apaixonar-me

Quase em prece:

O entusiasmo incendeia

Quando houver beleza e charme

No momento em que a gente se conhece.

E como uma ideia apetece!

 

 

862 – Questão

 

A iluminação

Não é uma questão de idade.

Uma fagulha no chão

A floresta inteira invade.

Uma insignificante

Cobra venenosa

Pode, belicosa,

Matar-nos o instante.

Potencial rei é

Qualquer príncipe bebé.

Todo o jovem tem

O poder de ser iluminado

E de mudar, logo além,

O mundo de lado a lado.

 

E os mais vamos aprender

A desvendar

A nós próprios ao querer-

-Nos estudar.

 

Inesperado

Faísca o génio,

Jamais dele o fado

Obedece a qualquer convénio.

 

Onde, porém, faísca,

É o lugar

Que se arrisca

De vez a nos desvelar.

 

 

863 – Rega

 

Ódio, violência,

Medo e discriminação

Na comunidade são

A rega para as sementes

Da demência,

Ódio, violência,

Medo e discriminação

A crescerem, dementes,

Fio intérmino de retrós,

Por dentro de nós.

 

 

864 – Antes

 

Antes de orar, praticar.

Montanhas eram montanhas

E os rios eram os rios.

Durante anos, devagar,

Foram ganhas

Vitórias aos desafios:

Montanhas deixam de o ser

E nos rios quem vai crer?

 

Agora compreendo tudo

Tal qual como deverei.

De novo transmudo

A lei:

As montanhas são montanhas

E os rios também são rios…

 

As malhas, porém, que apanhas

Mais camadas têm de fios:

Em cada particular, o todo

Vês agora deste modo.

 

 

865 – Padeiro

 

Deus não faz o mundo, não,

Como o padeiro, o pão.

 

Do supremo nunca poderei falar

Em termos do histórico patamar.

 

O fundamento ontológico,

O nómeno,

Não é um mero pormenor lógico

Ou um aspecto do fenómeno.

Há uma dupla dimensão

Numa mesma realidade

E há uma relação,

Fenómeno-fenómeno não,

Antes fenómeno-númeno que nos invade.

 

Quando lhes ato o nó,

Porém,

Ao mesmo tempo advém

Que os dois reinos são um só.

 

 

866 – Espírito

 

O marinheiro,

Por estranho que pareça,

É de espírito caseiro:

Arrasta com ele a casa e a essa

- O navio,

E dele a terra natal

- O mar ancestral.

 

Do que o rodeia no imutável corropio,

A costa da estranja,

O exótico rosto,

A versátil imensidão que a vida abranja,

Sem o velado encanto do mistério,

Deslizam, fugazes, do posto,

Dum desdém que os ignora sob o império.

 

Para ele, mistério, apenas o do mar,

Amante de toda a vida,

Incapaz, como o destino, de alguém o devassar.

O mais, poeira revolvida,

Basta um passeio ocasional,

Uma pândega no local,

E fica o segredo dum continente exposto.

 

Mais, não vale a pena:

A terra firme, desvelado o rosto,

É por demais pequena.

 

 

867 – Trabalhar

 

De trabalhar não gosto.

Que bom é ser calaceiro,

A meditar no belo rosto

Daquilo de que poderia ser o empreiteiro!

Nenhum homem gosta, aliás,

Embora adore o que o labor traz,

Não apenas o que fruirmos,

Mas a oportunidade

De nos descobrirmos:

Aquela realidade

Por dentro dos outros e de nós

Que ninguém mais pode descortinar.

 

De fora apenas irão reparar

No espectáculo amável ou atroz,

Nunca certos ficarão

Do que deveras significa

A misteriosa coalisão

Que por dentro me edifica.

 

 

868 – Batuque

 

Um batuque na floresta…

Que traço de fantasia

Por dentro de mim se apresta

A procurar-lhe a magia?

 

De tudo o espírito é capaz,

Que dentro dele há tudo,

Tanto o passado me traz

Como o porvir com que me iludo.

 

Há no primitivismo

Alegria, dor, devoção,

Coragem, raiva… - o abismo

Da verdade em primeira mão,

Da máscara do tempo despida

Que hoje no-la mostra diluída.

 

 

869 – Torres

 

Torres de comércio e habitação,

Ambiciosamente fora da terra,

Acima da corrupção,

Livres do que a memória encerra,

Inteiramente viradas ao futuro…

- Os alicerces no vazio os dependuro.

 

 

870 – Princípio

 

Onde as torres abundam

Mora o princípio ambicioso:

O céu é o limite.

Logo o secundam

O jovem desgostoso

Mais o estranho palpite

Que o leva a trepar às alturas,

De arma em punho,

Dele a imprimir o testemunho

Varrendo a tiro as figuras

Que formigam pelo chão:

Vingam-se os deuses do fanfarrão,

A ambição de progresso alteia a torre

E a humildade ou dispersa ou morre.

 

Na torre perco a raiz,

Perco a terra e o lugar,

Das ruínas o matiz

Já me não liga ao meu lar,

 

À terra de meu passado,

Aí purgado da ambição.

Ergo a torre descuidado,

Sofro logo a punição.

 

Quão mais vou pelo céu dentro

Mais preciso das ruínas,

Senão em meu lar nem entro,

Perco alma pelas esquinas.

 

A torre não é poder,

É produto de ansiedade,

São as ameias do medo.

Os meus limites temer,

Fronteiras da humanidade,

É o que me quebra o sossego.

Sem à-vontade

Em nosso recanto,

É a fuga para longe e acima.

Das ruínas o encanto

É que me enlaçam ao clima

De antanho:

Emprestam-me da sabedoria

O ganho

Que me alimenta cada dia.

 

 

871 – Ruído

 

Um ruído

Não vislumbro bem

Que sentido

Tem.

Dum cão um latido,

Porém,

 

A natureza inteira

Me põe à beira,

 

Bebo o encantamento do horizonte

Como duma fonte,

 

A noite silente

Fica em mim presente.

 

As gotas da chuva tamborilam no tecto,

No peitoril da janela,

E a natureza desperta-me o afecto

Do devaneio,

Vogo na vida de barco à vela

Com mil sonhos de permeio.

 

Das entregas o camião

Trambulha estrada fora

E a tiro de canhão

Manda-me embora.

 

Os operários quebram cimento

E me estremecem de tormento.

 

Um carro buzina

E tudo em mim desafina.

E desatina.

 

Como é aflitivo

Este barulho em que vivo!

 

 

872 – Medo

 

A xenofobia,

O medo dos estrangeiros,

É infecção que infectaria,

Hoje em dia,

As almas dos pioneiros.

Não é só medo, porém,

É uma ansiedade que afecta

Tudo o que de nós provém.

A raiz (quem a detecta?)

É a fuga ao desconhecido.

E este, ao fim, é a natureza:

A interior que tanto olvido,

A exterior que me não preza.

 

Tudo o mais são derivados

Dos monstros daqui gerados.

 

 

873 – Força

 

A força que inaugura a caminhada

Permite vergar a inércia pesada,

Anterior a qualquer começo,

Que nos atrela ao estabelecido,

O antigo idealiza em que tropeço,

Tolhido.

 

Satisfeito, fico inerte,

É meu estado mortal:

Impede-me que desperte

Para entrar num rumo vivo,

Estimulante e fundamental,

Sem o qual

Não sobrevivo.

 

Encantado pelos cantos de sereia

Ulisses não torna mais

Ao lar que o norteia

Nem já dele ouve os sinais.

 

Na produtividade febril,

O fanático mundo desencantado

É pelo fascínio ameaçado

De ser tão servil

Que, não criativo, é tudo automatizado.

Parece vitalidade

Mas é espírito de morte:

Reproduz, imita, copia, invade

De tal sorte

Que ninguém consiga

Tornar coisa alguma sua amiga.

 

A força que inaugura a caminhada

É que há-de a inércia vergar-nos dominada.

 

 

874 – Sonho

 

Meu sonho é do mistério sugestão,

Jamais de meus problemas

Solução.

Aponta-me os dilemas:

O que quer que seja que me torna pessoa,

É matéria de que sou feito

E matéria que não tem a ver comigo.

Meus sonhos são eu em tudo quanto de mim voa

E ao mesmo tempo não são

Naquilo em que a meu peito

Falta abrigo.

 

São a realidade e a ilusão.

 

É meu meu sonho

E também não:

Se dele disponho,

Bem mais ele é de mim meu dono e meu patrão.

 

 

875 – Deuses

 

Os deuses partiram sem no-lo dar a entender,

Deus e Adão já não caminham,

Lado a lado, no frescor do anoitecer.

Por trás das doenças doravante se adivinham

Os olhos renegados dum deus qualquer:

Quando o sagrado um povo abandonou,

Também o encantamento desaparece,

As asas do sonho cancelam o voo,

A paisagem das magias emurchece.

 

Era na música das ninfas a canção,

Em nossas palestras a voz das fadas,

Duendes e gnomos no labor em função,

Anjos a volitar das Trindades nas badaladas…

 

Quando o perito nos obriga a seriedade,

Nos aprisiona na literalidade,

 

Morre o sonho e a fantasia,

Fica o pragmatismo, o empenho na mais-valia.

 

E a força para atingir a meta

Vai murchando, discreta.

 

Eis como a medicina nos mata

De lhaneza chata

 

E as filosofias de mudar fados

Impedem de sermos transmudados.

 

 

876 – Algo

 

Algo em nós procura

Com paixão

O dado e a informação.

O que a frágil alma, insegura,

Espera avidamente

É uma história que a tente.

 

Informar-me é colher dados,

Metê-los em armazém

Para serem usados

Como me convém.

 

Um conto mexe mais fundo,

Tem personagens, intrigas,

Ambientes do vário mundo,

Tensões, colisões e brigas

 

Que à vida emprestam textura.

Dão-me a pista de quem sou,

Do que a vida me procura:

- Pelo conto aprendo e vou.

 

 

877 – Lugar

 

Para as almas as histórias são o trilho

Com lugar reservado para elas,

Onde alívio encontram do sarilho

De sobreviver do quotidiano às sequelas.

Nas histórias reflicto para além da razão,

Abandono os limites da paisagem,

À minha alma oferto a evasão,

O sabor de ser,

O outro lado da viagem:

O que ela, enfim, mais preza – o prazer.

 

 

878 – Fé

 

A fé não te elucida do mistério,

Torna-te dele parte.

Não ter fé mantém-te aparte,

Sem o refrigério

De te eliminar, acaso,

O mistério, a prazo.

 

A fé

Não prova Deus.

Nem prova que Deus não é

A falta dela.

Ei-los aí, os céus:

Para além,

Porém,

Onde a janela?

 

 

879 – Einstein

 

Como Einstein teve razão,

É, para a Alemanha, um alemão

E, para a França, do mundo um cidadão.

 

Se, ao invés, fora um erro que escreveu,

Hoje, para a Alemanha, era um verme judeu,

E teria de estrangeiro em França o labéu.

 

Quando em nome de dois países

Dois grupos entre eles competem,

Os vencedores as glórias repetem

As glórias de ancestrais raízes,

- Nos ditos vitoriosos de seu povo.

Ao contrário, os estrangeiros

Vencidos

Serão por aqueles tidos

Por humildes derradeiros,

Rasquidos

Sem esperança de renovo

Nem credíveis parceiros.

 

Para a comunidade destes, porém,

Heróicos conquistaram o segundo lugar,

Enquanto os vencedores, para eles, com desdém,

Em penúltimos se limitaram a ficar.

 

Iguais os factos permanecerão,

Mas como igualar-lhes a validação?

 

Não é o facto, é o valor

Que desempata entre o frio e o calor

 

Do gesto humano

A que me irmano.

 

 

880 – Levar

 

Deixamo-nos levar pelas histórias,

De tanto entusiasmo e encantamento,

Sem perceber da vida que as memórias

Não as enquadram em nenhum momento.

 

Dão os escritores

A impressão de que a vida

Tem de enredo cores

Com malha à medida

- E da vida a espuma

Não quadra a nenhuma.

 

Do real o alcance

Troca-nos as voltas:

A vida é um romance

Mas de folhas soltas.

 

 

881 – Causam

 

À distância,

O raio e o trovão,

Em científica discussão,

Não causam medo nem ânsia.

 

Podemos acreditar,

Finalmente,

Que os iremos decifrar,

Descodificar integralmente.

 

Nos segundos, porém,

Após a queda dum raio

Na proximidade de alguém,

Quando o coração em desmaio

Batuca acelerado

E o sangue corre disparado,

Ficamos a conhecer mais intimamente

O raio e o trovão

Do que com a nossa mente

Algum dia o serão.

 

O encontro vivo e perturbador

Com o numinoso

Dá-nos a lição

Que nenhum estudioso

Poderá supor:

- O estudo

Não é tudo;

Ante o que me aterra ou agrada,

Ao fim e ao cabo, não é nada.

 

 

882 – Tribo

 

A tribo primitiva esmorece

E se desmorona

Quando o numinoso que a abona

Desaparece.

 

Perdida a razão de ser

Como a orgânica grupal,

Acaba a se dissolver,

Desintegrando-se ao final.

 

Encontramo-nos agora

Todos em tais condições.

Doravante quem adora

Algo perdido na aurora,

No despontar das razões?

 

Perdemos algo que nunca

Chegámos a compreender,

O ídolo o chão nos junca

Quebrado aos pés de quenquer.

 

Despimos tudo do mistério

E da numinosidade.

Findou a idade

Do nosso império.

 

Nada mais é sagrado…

- E nós já não temos lado!

 

 

883 – Paredes

 

Paredes escritas da prisão,

Vida oculta…

Como não

Ver na grande cidade

Como a vida ignorada vive inulta

Por trás de tantas paredes de alvaiade

Repintadas e legendadas

Pelos novos presos do anonimato?

São aprisionados em liberdade,

De caras camufladas,

Pintando, ao deus-dará, o próprio retrato:

"Olhem, estou aqui, salvo seja,

Embora ninguém me veja!"

 

Mil panos de parede

Pintados, esborratados ao acaso…

 

Que poderia, vede,

Ser pior, em qualquer caso,

Que o sentimento de perder

O próprio ser?

 

A maioria

Não tem o poder de afirmar

A própria individualidade:

- Eis o que lhe geraria

De aprisionamento

O sentimento

Fundo e sem par

No emprego, no bairro, na cidade…

 

Resta o grito

Esborratado

No muro, na parede de delito,

A pingar da chaga do lado.

 

 

884 – Mundo

 

O mundo em que vivemos preza

Bem pouco a beleza.

 

Cidades que funcionam

Mas são feias,

Casas que de nós se adonam,

De custos a dobrar pagos a meias,

Nunca obrigatoriamente belas,

Com porta mas sem janelas…

 

A beleza é dispensável,

Cuidamos.

Mas para as almas é o inadiável

Que buscamos

Antes de quase tudo,

Com anseio avassalador e mudo.

Cerne da sexualidade,

É a fonte-mor do prazer

Que nos invade

Quando o amor nos acolher.

 

 

885 – Caminho

 

Contemplação

É caminho espiritual.

No sexo é religião

Com uma carga emocional.

 

A linguagem que usamos

Do sexo para falar

Ou é física ou vulgar,

Ou, para além destes ramos,

É tão idealizada

Que dele a espiritualidade

Jamais é por nós captada.

 

Às vezes, na verdade,

Usamos clínicos termos

Para nos distanciar,

Talvez a nos protegermos

De seu poder singular.

De igual jeito,

O plebeísmo vulgar

Pode ter idêntico efeito.

 

À distância,

Qualquer aura de sagrado,

Apagada minha ânsia,

Não a vislumbro em nenhum lado.

  

 

886 – Curiosidade

 

Nossa curiosidade sexual

Compulsiva

Olha para o corpo erótico, afinal,

Religiosamente:

Com devoção viva

E objectivo transcendente.

 

Através do corpo vemos

Um pouco de alma e, portanto,

O mistério que vivemos

Da própria vida é um recanto.

 

O compulsivo momento

Deste sexual olhar

Quão pouco fundo o alimento

Acaba por revelar.

 

Ante um ícone sagrado

É da espiritualidade

Que estamos sempre em presença.

Perdemos em todo o lado

A noção da santidade

Do sexo como pertença:

Olhá-lo, então, é tomado

Como um acto errado,

Quando, em religião,

É apenas veneração.

 

 

887 – Teoria

 

Toda a teoria mental

É inútil, por fim.

A filosofia mais genial

Lê, verosímil, o Universo.

Uns séculos após, enfim,

Eis o reverso:

É um parágrafo ignorado na antologia

Da história da filosofia.

 

A glória é uma ilusão:

Quanto maior o sabor,

Pior

A fatal

Incompreensão

Final.

 

 

888 – Segredo

 

Afectuoso poder ser e sensual,

Eis o segredo para eliminar tensões

Entre a sexualidade e a vida espiritual.

Não é suprimindo o sexo

Mas mudando-lhe as expressões

Que alguém

Devém

Espiritualizado.

Todo o místico amplexo

É na carne consumado:

 

Em todo o mundo, os mosteiros

São guardiões da cultura,

Viveiros

Da beleza

Na arquitectura, literatura, pintura, escultura,

No rito e canto de quem reza…

 

É Vénus presente e hilariante

No papel de manter

E bom uso dar constante

Às conquistas da meditação,

Da oração,

Da vida comum que acontecer.

 

Da sexual paixão

Os mosteiros

Constituem uma sublimação

Ao devirem lugares hospitaleiros.

 

 

889 – Ferramenta

 

A buscar vida moral

A ferramenta mais valiosa

É a consciência.

Dando um íntimo sinal,

Esta voz especiosa

Quer, porém, um bom ouvinte.

 

Actualmente, a evidência

Da maioria é o requinte

No que é do mundo exterior.

Quando sofisticados

Deviremos no interior?

Empenhados

Em novos inventos,

Pouco de nós despendemos

Em técnicas de interioridade:

O imaginário perdemos,

A intuição é vacuidade…

Virados para fora,

Não ouvimos os avisos,

A falta de fé já nada adora,

Confiamos mais então

Nos juízos

Do que na intuição.

 

É fácil invalidar a consciência,

Geralmente

Com um argumento, uma false evidência

Convincente.

Destituídos de ferramenta moral,

Acabamos com uma consciência meramente material.

 

 

890 – Roma

 

Sempre que Roma decai

O circo é omnipresente,

Em todo o lado há coliseus.

 

A política ali vai,

A economia é conivente

E a vida inteira, sem véus,

Alimenta a corrente…

 

Assim, pois, a perversão

Se encobriu duma espantosa

Técnica realização:

Hoje o porvir ainda a goza.

 

Do pensamento a riqueza

Decaiu em proporção:

O teatro que criaram

Com recursos que espantaram

Quem hoje o preza?

 

Só farsas e pantomimas…

Não merece a glória

Dumas rimas

Nem memória.

 

Ora, hoje o circo é a televisão

E o teatro, é o cinema…

- Por trás da magnificência da ilusão

Não admira que o mundo gema.

 

 

891 – Sagrado

 

Todo o sagrado se esconde,

Como por engano,

Lá onde

Mora o profano.

 

Tarde ou cedo,

Quando dele aparte,

Tornado vazio segredo,

Não há divino que nele acarte.

 

Assim é que, por este lado,

Todo o profano é sagrado.

 

 

892 – Nunca

 

Nunca o sexo é literal,

Não é simples nem linear.

Por histórias invisíveis vívido devém,

Pela história singular

E pessoal

Que cada qual dentro contém.

 

Inelutavelmente,

Sexo é mito.

Às vezes, transgredir, desafiar o conflito

É um grito

Independente,

Profundamente Libertador

E aprazível.

 

Mulher que aprecia

Um homem viril, insensível,

Minotauro do amor,

Encontra magia

Em cenas de escravidão,

No teatro da devassidão…

 

Há celebridades

Chupando dedos dos pés,

Usando roupas e personalidades

Do outro sexo assumido de través…

 

Quantos rituais

Empreendem os casais,

Quantas fantasias

Do imaginário sexual

De cada qual

Lhe reanimam os dias!

 

O sexo nunca é literal,

É prenhe de magias.

 

 

893 – Amante

 

O amante misterioso

Pode estar presente

A vida inteira,

Quando constantemente

De nós se abeira,

Prazeroso,

Num ou noutro personagem

Atraente,

Ora distante, ora abordável,

Acaso mera ficção imaginável,

Alimento apenas duma listagem

Evanescente.

 

O amante interior

Também pode apenas ser sentido

Como ânsia, como fervor

Jamais correspondido,

Deixando-nos reduzidos à mera

Busca e espera.

 

E pode tomar a forma

Duma transição de vida,

Como o sonho que a informa

E lhe empresta a medida,

Já que esta mudança

Apenas o desejo a alcança

E a projecta, de seguida,

Em cosmogónica dança

Nebulosamente apetecida,

Pelos trilhos do mundo repartida.

 

 

894 – Divorciado

 

Quando o divorciado devolve

O filho ao colo da mãe,

Um paladar de independência recuperada

O revolve,

De mistura também

Com um vazio de perda consumada.

 

Um beijo de despedida

E o retorno à casa que fita

É já preocupar-se à medida

Da próxima visita

E lutar contra o arreigado

Sentimento de ler-se culpado.

 

Que ocorre à criança

Que apenas a mulher alcança?

 

Será feliz,

Adaptada à vida?

Qual do mar a matriz

Na profundeza desmedida?

 

 

895 – Prancha

 

A prancha mais alta da piscina…

Dias inteiros a olhar-lhe o desafio.

Depois trepámos os degraus como uma sina,

Por dentro a tremer de frio.

 

Lá de cima, quanto mais altura!

E só dois modos de escapar dali:

Da derrota os degraus de má figura

Ou o mergulho da vitória em frenesi.

Parámos da prancha na ponta,

Tremendo ao sol quente,

Com um medo de morte a ter em conta,

Urgente.

 

Inclinámo-nos demais para a frente,

Tarde demais para voltar atrás

E zás,

Mergulhámos de repente.

 

A prancha mais alta estava conquistada,

O resto do dia foi sempre a mergulhar!

Trepando a um milhar

De pranchas, cada qual mais alteada,

 

Demolimos o medo, protagonizamos planos:

- Tornamo-nos humanos.

 

 

896 – Corpo

 

Tem um corpo uma cidade

E dele os núcleos sexuais são valiosos,

Um rio a percorrer serenidade,

Um parque nacional de recantos umbrosos,

Uma bela fachada,

De algumas cúpulas os seios,

Uma ou outra erecção fálica hasteada,

Partes privadas nalguns meios…

Os jardins importam em particular:

Neles a alma desliza

Pela beleza, com o vagar

De que precisa.

 

Tem um corpo uma cidade,

Erótico a prender-me

A afectividade

Bem por baixo da epiderme.

 

 

897 – Prenhe

 

Uma estrada romântica

Prenhe de lembranças e natureza,

Uma ponte romântica

Plena de mistérios e beleza,

Satisfazer poderão

A primária

Fome diária

De belo e de reflexão.

 

Estradas e pontes,

Túneis de verdura

E horizontes,

De rios e regatos a frescura,

Mais pelas almas que pelo corpo farão,

Levam-nos para lugares

Na imaginação

E memória,

Tanto quanto no mapa.

 

Sob a capa

Simplória

Dos olhares,

Ambas são fundamente sexuais

E a sexualidade

Do mundo e de nós próprios nunca mais

Persuade,

Prejudicada,

Quando estradas e pontes fica assente

Que são uma empreitada

Para transporte de objectos puramente.

 

 

898 – Imagens

 

As imagens sexuais

Nos filmes, na internet, nas ruas da cidade,

Exageradas, autónomas, banais,

Indesejáveis no primarismo da boçalidade,

São tais

Por não compreendermos a importância

Duma estrada, um prédio, uma estância

De trabalho sensuais.

O que não temos a imaginação

De incorporar em nossas vidas

Assombrar-nos-á como tentação,

Em valorações obscuras, fementidas.

 

Não há meio termo:

Ou rasgamos uma bela estrada

Ou a feia logo destruirá, mal-assombrada,

A cultura que, enfermo,

Tentei erigir.

 

Tal é nossa sorte:

Sexo ou morte.

- E não há como fugir.

 

 

899 – Revelam

 

Na vida moderna,

O moralismo,

Do sexo a obsessão,

Revelam quanto ainda não

Descobrimos nem o abismo

Nem a cumeeira superna

Da sexualidade.

Em termos puramente pessoais

Lhe moldamos a identidade,

Sem vislumbrarmos jamais

Quanto noutras culturas é encarada

Como força cósmica sagrada.

 

Mantemos o sexo escondido

Cuidando que, ao não vê-lo, afinal,

Assim defendido,

Não nos poderá fazer mal.

 

Como todo o elemento de alma poderoso,

Porém,

Ao sexo convém

Manifestar-se, imperioso.

 

Caso contrário,

Sofreremos o retorno

Súbito do reprimido,

E o sexo, vário,

Opera por suborno,

Negativo, incontrolável, indefinido,

E toda a vitalidade

Ocorre que se degrade.

 

É que o sexo alegra a vida,

Empresta vivacidade.

Quando escondido por medo,

Insípida devém,

De seguida,

Toda a vida a que refém

Escravo me concedo,

Transmudado por dentro em zé-ninguém.

 

Tudo o que é ledo

E que por tal me retém,

Porque tanto me convém

Jamais então convém a meu credo.

 

 

900 – Nasci

 

Nasci num tempo em que a maioria

A crença em Deus

Havia

Perdido,

Pelo mesmo motivo que os seus

A haviam tido,

À Fé:

- Sem ter porquê!

 

E como é humano criticar porque sente,

Não porque pensa,

A maioria imediatamente

Trocou pela Humanidade

Em Deus a crença.

Como, porém, pertenço à marginalidade

Daquilo a que pertenço,

Não vejo apenas a multidão

Dos que meus são,

Mas também o imenso

Território de solidão

Que ao lado

Nos há sempre acompanhado.

 

Então,

Deus jamais de vez abandonei

Nem definitivo à Humanidade me dei:

Deus, mesmo improvável, pode ser,

Deveria então ser adorado;

A Humanidade, espécie animal como qualquer,

Não é mais digna de adoração

Que outra das mil que pelo mundo se arrastarão.

O culto da Humanidade

Revive templos antigos

Em rituais

De Liberdade, Igualdade e Fraternidade:

Outrora animais

Eram deuses amigos

E, tais quais,

Os deuses em que tropeças

Têm de animais as cabeças.

 

 

901 – Tecendo

 

Toda a vida é uma cadeia

Onde vou tecendo palha,

A distrair-me da ideia,

Como calha.

 

Esta visão pessimista,

Trágica e de desespero,

Ao nada salvar da lista,

Incomoda, é um exagero.

 

Mas que é que prova a valia

Daquilo que produzimos?

Certo é que nos distraía,

Não tal preso sem arrimos,

Dele o destino a driblar,

Mas tal donzela a almofada

A bordar,

Distraindo-se com nada.

 

Esta vida é uma estalagem,

Cismo,

Onde me vou demorar

Até que chegue ao lugar

A carruagem

Do abismo.

Sei lá bem onde me leve,

Se demora ou será breve!

 

Posso a estalagem olhar

Como prisão:

Sou compelido a aguardar

Nela. Ou então

Será canto convivial:

Com os mais me encontro aqui…

 

De impaciência não dou, porém, sinal,

Nem à multidão jamais me reduzi.

 

Fechem-se no quarto, moles na cama,

Os insones que apenas esperam,

Converse na sala

Quem ama,

Com músicas e fala

Que se esmeram

E me afagam

Enquanto brandas se apagam.

 

Sento-me à porta da vida,

Embebo meus olhos na paisagem,

Canto lento a comedida

Paragem,

Enquanto espero.

Para todos chega à noite a carruagem,

A brisa entretanto gozo que venero,

Com ânimo calmo e puro.

Nada mais pergunto nem procuro.

 

 

902 – Mora

 

O homem fatal,

Afinal,

Mora nos sonhos

De cada qual,

Do mais vulgar

Aos mais medonhos.

Romantismo? É revirar

As lantejoilas do pano

Do nosso quotidiano:

Todos sonham,

No secretismo

Do mais íntimo do ser,

Com o imperialismo

De que disponham

Na escravidão de todos e de quenquer,

Na entrega de toda a mulher,

Na adoração

Dos povos de toda a nação,

E, nos mais nobres,

Na veneração

De todas as eras

Deste mundo de pobres…

 

Muito poucos

Dos habituados do sonho às esperas

São tão loucos

Que riam sem fim

Desta mania de sonhar assim.

 

 

903 – Procura

 

Sou alguém

Que procura ao acaso,

Fora inelutavelmente de prazo,

Ignorando onde fora oculto o objecto

Que nem me explicaram o que era.

Às escondidas com ninguém

Jogo discreto,

Por sina mera, por sina mera…

 

Algures há um subterfúgio transcendente,

Uma divindade fluída

Que não mente (e tanto me mente!)

Permanentemente ausente,

Apenas ouvida

Vagamente

De fugida,

Insistentemente,

Obsessivamente,

Como longa despedida…

- Mas que vida! Mas que vida!

 

 

904 – Ténue

 

Entre mim e a vida

Um vidro ténue nos separa.

Por mais nítida que a veja,

Quem nela bem repara,

Repara que ela convida,

Eventualmente regala,

Mas ninguém que o almeja

Pode tocá-la.

 

 

905 – Insolúveis

 

São insolúveis os problemas:

Um problema haver

É não haver solução.

Procurar um facto, querer lemas,

É o facto não ter,

Nem dos lemas o guião.

Um lugar

É ter onde ir:

- Pensar

É não saber agir.

 

 

906 – Dentro

 

Por dentro de nós mesmos transeuntes eternos,

Não há paisagem senão o que somos.

A descida aos infernos

É do que dispomos.

 

Nada temos porque nem a nós nos temos,

Nada temos porque nada somos.

E que seremos?

E que fomos?

Que mãos estenderei para que Universo?

 

Ilusório é todo o céu,

Comigo sempre ao fim é que converso.

O Universo não é meu: sou eu.

 

 

907 – Imenso

 

Descomedida

A vida exaltam

Os que têm na vida

Um grande sonho e faltam.

 

Outros nenhum sonho têm

E faltam também.

 

No fim,

Que resta?

O Universo, enfim,

Dorme a sesta

Sobre o imenso cemitério de mim.

 

 

908 – Véspera

 

É a véspera o que trazemos

Cada dia que vivemos.

Vésperas acarretar

Como quem carreia pedras

É a vida.

Quando a carga suportar

Já não podes, já não medras,

É o fim de tua medida.

 

Só teu derradeiro dia

De véspera não chamaria.

E, mesmo assim, até onde

Então

Sabe alguém se corresponde

Ou não?

 

 

909 – Auxílio

 

O auxílio dos olhos importa

Tanto quanto o que por eles é visto.

É o que me transporta

Ao que existo.

 

O que os dedos de melhor

Sempre souberam fabricar

Foi o oculto revelar,

Seja lá ele o que for.

 

O que a mente haja entendido

Como conhecimento

Foram os dedos que lho terão trazido

E lho ensinaram, momento a momento.

 

 

910 – Cremos

 

Nunca nos deveríamos sentir seguros

Do que cremos ser:

Bem pode ocorrer

Que, mesmo sem nos vermos em apuros,

Já no presente

Estejamos a ser coisa bem diferente.

 

E é normal

De tal nem haver

Sequer sinal.

 

Tanto mais quanto nem houve intento

De modelar o momento.

 

E sempre ele me modela,

Fatal,

A mim, seu cão à trela.

 

 

911 – Balança

 

Não é o mesmo o peso

Do que um homem sente, um dia,

E o que, surpreso,

O braço da balança registaria.

 

Os sinais

Plenos,

Ora são para mais,

Ora para menos,

E os diferenciais,

Por mais pequenos,

Nunca são iguais.

 

A união

Dentro e fora

Não tem afinal mútua tradução

No tempo que nos demora.

 

 

912 – Difícil

 

Quão difícil é nos separar

Daquilo que fizemos,

Coisa, sonho ou gente do lugar!

…Mesmo quando, na ocasião,

Por nossa própria mão,

Já o aniquilemos.

 

 

913 – Mudez

 

Cada pessoa é uma ilha

E não é certo,

Que, se o fundo marinho a não perfilha,

Breve é um deserto,

Das correntes perdida

Que lhe alimentam a vida.

 

Cada pessoa é um silêncio, cada pessoa.

E apregoa

Cada qual no silêncio que é o seu,

No silêncio que é,

A mudez do céu

Aqui de pé.

 

 

914 – Sabemos

 

O que sabemos que irá ocorrer

É como se já houvera ocorrido,

As expectativas mais do que anulam qualquer

Surpresa que tente escapar do olvido,

Embotam as emoções e as banalizam,

Sem o antes e o depois que as balizam.

 

Já foi vivido

O que havia a desejar ou a temer

Enquanto o desejou ou temeu quenquer.

 

 

915 – Muro

 

Entre o simples e o sábio

O muro é o vocabulário:

Um lábio,

Eis o fadário.

 

Às coisas e às ideias acontece

Como a um corpo que se descarna:

Tudo apodrece,

Do tempo arranhado pela sarna,

E novos músculos de ideias tomam o lugar

Do que dos ossos se nos despegar.

 

 

916 – Prazer

 

É prazer presente

O prazer da fama futura.

A fama (que não dura)

É que é só futuramente.

E ela é que mente,

Perjura.

 

 

917 – Natureza

 

Tudo o que acontece

Com algum significado

Aparece

Como um dado

Cuja estrutura fica na memória

Como sendo, por natureza, contraditória:

Noite e dia,

Sim e não,

Realidade e fantasia,

Cabeça e coração…

 

 

918 – Favo

 

Exteriormente,

Um grande favo de mel,

Com os zângãos a amarinhar pelo presente

Num frenesim de trabalho em tropel.

 

Interiormente, um matadoiro,

Com cada homem a matar o vizinho

E a chupar-lhe, como bom agoiro,

O tutano dos ossos bem regado a vinho.

 

Superficialmente,

Um mundo ousado, viril.

Realmente,

Um bordel

Gerido por uma horda vil,

Com os nativos tornados alcaiotes

E os míseros estrangeiros a venderem

A própria carne e sangue em pacotes

Aos que mais derem.

Todos ignoram o que é sentar

E ficar satisfeito,

Ouvir o apelo

De quem apelar

Não é preceito.

 

Cada continente,

Alheio ao atropelo,

Dorme profundamente

E o sono desenrola o enorme pesadelo.

 

 

919 – Morte

 

Deveio a cidade

Um imenso cemitério

Em que os homens lutam pelo refrigério

Duma morte decente, de qualidade.

 

A minha própria vida

A um sarcófago se assemelha

Construído por medida

A partir de minha morte:

 

Ando às voltas na floresta revelha,

Em pleno caos, à sorte.

 

Pegada aqui,

Marca acolá,

Não terei já,

No frenesi,

Da terra a pá?

 

 

920 – Reino

 

A vida

Da infância,

Completamente restringida,

Parece à partida um universo ilimitado.

 

Do adulto a ganância,

Por inteiro da infância libertado,

É um reino, afinal, a diminuir constantemente.

 

Quando nos metem na escola

Estamos perdidos:

É um cabresto assente

A sacola

À roda do colo dos gemidos.

O pão perde o gosto,

A vida também.

Obtê-lo paga imposto

E mais importa ao que ali convém

Obtê-lo que comê-lo.

É tudo calculado,

Pré-programado

E paga selo.

 

Quanto mais o adulto avança

Mais a cadeia o alcança.

 

 

921 – Empurrarem

 

Até nos empurrarem para o trabalho

O mundo era muito pequeno

E nós vivíamos dele na beira,

Do desconhecido na fronteira.

Todas as potencialidades que valho

Eram, porém, o meu terreno.

 

Depois, cada salto

Deste pleno

É quanto me falto.

 

 

922 – Civilizado

 

Ser civilizado, que condenação!

Chegamos do mundo ao fim

E nada temos, no frenesim,

Que suporte o terror da solidão.

 

Ser civilizado é ter necessidades,

Ter a vida complicada.

Ora, quem acabou de correr as herdades

Não devia precisar de nada…

 

 

923 – Fixos

 

Vivemos como um rochedo

Feliz em pleno oceano:

Desde cedo,

Sem dano,

Vivemos fixos, enquanto o que nos rodeia

Turbilhona em movimento.

 

Fixos na realidade duma cadeia

Em que não é fixo nenhum elemento,

Até mesmo o rochedo mais feliz e mais forte

Presumo que um dia será por inteiro dissolvido

E devirá fluído

Como o oceano donde nasceu,

Onde cresceu

E onde um dia vogará na morte.

  

 

924 – Cultura

 

A cultura cria

Uma falsa genealogia,

Uma falsa consciência:

A evidência

De haver nascido há mil anos

Com o primeiro homem e seus arcanos,

De não ter outras raízes

Que não sejam da história dele as matrizes.

Cenário de livros e de ilusões,

Cria um outro mundo

Em que na terra não há furacões

Nem estrelas no céu profundo.

Mas é tão belo o mundo da cultura!

 

À falta de porvir, deu-me um passado,

Das freimas e dos sonhos a figura,

Das crenças e religiões todo o traçado

E, deformando isso,

Dos impérios e das guerras o enguiço.

De longe olhado,

O sangue derramado

Se evapora,

Perde toda a realidade que apavora.

Toda a história

Não é mais que do crime

A memória

Deturpada:

O genocídio dos Índios é a chamada

Sublime

Descoberta da América;

O tráfico de negros e a escravatura

São mera peripécia da feérica

Alvorada

Que inaugura

O Novo Mundo;

Guerra do Ópio, esmagamento de sipaios,

Mera amostra do fecundo

Fardo do homem branco e seus desmaios…

 

Levaram-me a crer

Que o mundo real sob cujas bandeiras

Deverei viver

É o das ideias imaculadas,

Desfraldadas

Sobre as cavernas verdadeiras

Das vidas adiadas.

 

A humanidade é um covil de ladrões

E de alienados,

Mas o absurdo, a falta de sentido, é um dos senões

De que os fados

Eternamente marcaram a existência:

A sabedoria é perder a ilusão

De que podemos mudar do mundo a essência

E afastarmo-nos de qualquer acção.

Estamos cuidadosamente fechados

No casulo:

Nada de trágico pode ocorrer aos resguardados

Fora da consciência em que me anulo.

 

 

925 – Comprometer

 

Comprometer a vida

É uma escolha

Sem qualquer fundamento objectivo.

Uma fé embaraçadora é a medida

Do que dali recolha,

Que me pode colocar, se ma não esquivo,

Fora de todos os caminhos.

 

Decisão imprescindível

Que todos tomamos sozinhos

Para que o resto, a vida,

Tenha um sentido vivível.

 

Desesperadamente indemonstrável,

Tal é a fé,

Afirmação sem provas.

Crêem que à ciência é viável

Pôr de pé

As novas

Que nos respondam às questões.

Ela é mero parêntesis, todavia,

Entre as interrogações

A que ninguém resposta fundaria

Acerca das causas primeiras

E das metas derradeiras.

O ateísmo depura os céus,

Recusa qualquer deus que não seja Deus,

Última etapa, impoluta,

Antes da fé absoluta.

 

O centro de quenquer

Não mora no indivíduo, comunidade ou nação:

Para o caos e a desordem vencer

Terei de postular que há um produto

Fora de mão:

- Existe um centro absoluto.

 

 

926 – Palavra

 

Entre nós não havia

Sequer

Uma palavra para designar

A propriedade de quenquer.

Ninguém se sentia

Dono do lugar,

Quanto mais da criação!

Tudo era da Terra-mãe e do Sol  que a fecunda.

Ninguém é dono do chão

Nem da chuva que o inunda.

As plantas, os animais,

O húmus, a soalheira,

Dos rios os caudais,

O borralho da lareira,

- Ajudam-nos a viver,

Como o trabalho que houver,

Como a vida das águias, do jaguar,

Do milho, da montanha…

Tudo em comunidade, a par,

Nada pode ser separado, que nada ganha.

Propriedade não tem sentido

Num mundo em que nada vive isolado,

Homens e coisas, tudo reunido

No mesmo braçado.

 

Moral é viver

Da lei do mundo segundo os palpites:

Ela a todos liga e a quenquer

A uma comunidade sem limites.

Indivíduo, propriedade, Estado,

Tudo o que fecha e isola um elemento

Do Universo contra o Todo entranhado,

Vem doutro lado

Com o signo do tormento,

Para dar cabo do tecido do mundo,

Esventrar as florestas,

Devorar os solos,

Matar os homens e as bestas,

Num monturo imundo

A avassalar do Equador aos Pólos.

 

Até o trabalho devir forçado

Todo o labor era uma festa:

Dois terços do tempo eram esta

Celebração do eldorado,

Governar era gerir a fantasia

Para todo o mister viver uma alegria.

 

Cósmico comunismo,

Com a religião visceral que lhe subjaz

A emprestar-lhe vera dimensão sagrada,

Transcende, veraz,

O provincianismo

De qualquer consagrada

Caminhada

Rumo ao socialismo.

 

Entre nós não havia

Sequer

A palavra que designaria

A propriedade de quenquer.

 

 

927 – Tecnocrata

 

O ciberantropo

Deveio computatropa:

O tecnocrata já não convida para um copo,

Pelos media dominado,

Não tem cozinha nem copa,

Tudo é virtualizado,

A mente humana desdobra em rigor

O modelo dum computador.

 

Ignora que é do homem colocar

A questão do primeiro princípio e do fim derradeiro

E a do sentido que os unificar,

Singular

E cimeiro.

 

Recusar a questão de fins e meios

É mais que filosofia:

Com o poder actual da tecnologia,

É colocá-la na mão dos receios,

É pôr um gigante ao serviço

De qualquer instinto animal, mesmo enfermiço.

 

O computantropo

É o derradeiro avatar do pitecantropo:

Algum vestígio de humano,

Só por engano.

 

 

928 – Dogmatismo

 

O dogmatismo engendra a inquisição:

Se a verdade absoluta, definitiva, acabada,

Detenho em minha mão,

A que dela correr desviada,

É evidente,

É a dum doente

A internar em clínica mental,

Ou a dum perverso refece,

Dum criminoso, dum funesto canibal

Que então merece,

Sem compaixão,

O patíbulo ou a prisão.

Tal é o destino

De qualquer funcionário do absoluto,

Quer o desatino

Seja

O produto

Duma seita, dum partido ou duma igreja.

 

Dogmatismo-inquisição:

Guerra santa, cruzada,

Guerra de religião,

Residência vigiada,

Gulag, campo de recuperação,

Política perseguição…

- Sempre a mesma receita aviada:

O definitivo Sim que, afinal, é Não.

 

A vida viva

Jamais é definitiva.

 

 

929 – Pensamento

 

O pensamento é esterilizado,

A esquemas simples reduzido,

Em dogmas transformado

Que hão permitido,

Num partido

Como em qualquer igreja,

Definir o herético que maldito seja.

 

Os esquemas, como uma cortina,

Impedem que a realidade

Se decifre, se defina,

E a história por fazer

Mantém a opacidade

Perante quenquer.

 

Este dogmatismo,

Naturalmente,

Da ruptura gera o abismo

Mais o julgamento de traição

Que consente

E provoca a excomunhão.

 

 

930 – Parte

 

Não há deveras um adversário:

O meu contrário

Faz parte de mim

Como eu dele até ao fim.

 

A vida vive em perpétua permuta

Com o Universo,

O bom caçador não disputa,

Funde-se à natureza como seu reverso.

Defender-me dum assaltante

É utilizar,

Em primeiro lugar,

Dele a força que jogar diante.

 

Aquele que ataca

O equilíbrio quebra anterior:

Abandona o lugar, já não aplaca

A harmonia do Universo que não pode repor.

 

Atacar é já ser derrotado:

Defender-se não é vencer,

É deixar correr o fado

E, por uma defesa que não é, sequer,

Golpe baixo nem contra-agressão,

Ajudar a recoser até ao fim

Os efeitos do inicial rasgão,

De modo que assim

O corte veda

- E é do atacante a queda.

 

 

931 – Problema

 

O problema económico é religioso:

Põe em causa os fins e o sentido da vida.

 

Tem um credo tenebroso:

Produzir mais e mais depressa, não importa o quê,

Na medida

Em que útil, prejudicial,

Inútil ou mesmo mortal

Como o armamento,

Ponha de pé

Um rendimento.

 

E tem dogmas, a economia,

Pelos grandes apóstolos definidos,

Os computantropos tecnocratas:

A ciência, como a técnica, poderia

Todos os nossos problemas ver respondidos,

Todos os desejos que acatas;

Todo o tecnicamente viável

É uma fatalidade desejável.

 

E tem uma moral:

Os maiores desejos urge ter

E encontrar o instrumental

De os satisfazer.

 

Tem mesmo uma liturgia,

A economia:

O marketing e a publicidade

A forjar a cada dia

Uma nova necessidade.

 

E tem um clero:

O dos meios de comunicação,

A condicionar os povos, não vão cair no desespero,

Para buscarem a felicidade

E a salvação

Nesta forma de acumulação.

É muito significativo que os crentes

Na religião

Da economia

Tenham a mania

De se confessar indiferentes.

Assim, discretos,

São dela agentes

Secretos

E, por isso, tanto mais eficientes.

 

 

932 – Pista

 

De automóveis a corrida

É um brasão

Da desenvolvimentista

Nova religião:

Na pista,

De seguida,

Cada bólido começa

A furar como uma verruma,

Cada vez mais depressa, cada vez mais depressa,

- Para não ir a parte nenhuma!

 

 

933 – Herdámos

 

A História

Com os acontecimentos,

Violências, guerras, dominações,

Ocupa muito mais memória

Que os eventos

Donde herdámos construções.

 

Mais que o trabalho eterno do camponês

Que, em quarenta séculos assegurou

O quotidiano da vida,

À nossa paisagem talhou

O jaez

E o rosto da comida.

 

Mais que o labor de poetas e de artistas

Que delinearam os possíveis

E lhes semearam frágeis pistas

De afectos em vergéis apetecíveis.

 

As espadas e as vitórias

Apenas deles alguns poucos

Garantiram, inglórias.

 

Mas os historiadores continuam moucos

E o jornalismo, história do presente,

Não escuta o que anda em vias de nascer.

 

A voz de milhões de homens, sempre ausente

Desta história do desviver,

É a daqueles em que fermentarão

Os sinais deveras da criação:

Técnica, amor, poesia, dança,

- As pequenas sementeiras da esperança.

 

 

934 – Povo

 

Quando um povo tem uma fé verdadeira,

Perante qualquer exército vai até ao fim,

Mesmo se este dispõe de meios de primeira

A arrasar-lhe o jardim.

 

Os estrategos tecnocratas que avaliam

Pela potência de fogo e da logística

Invariavelmente os cálculos extraviam:

A fé não entra na estatística.

 

O erro crónico

É que a fé, imponderável como a brisa,

Não a contabiliza

Nenhum circuito electrónico.

 

 

935 – Antes

 

O mundo ocidental

Não é deveras ateu, antes é politeísta:

Dinheiro, poder, vida sexual

Integram uma lista

De valores absolutos

Que, sem tergiversações,

Se impõem, impolutos,

Às antigas religiões.

Aos ancestrais estes deuses levam a palma

Mesmo na vida mais pacata e calma.

 

 

936 – Morte

 

A morte não é o fim,

É a plenitude duma vida

Embebida de eternidade,

Dum mundo que a mim

Me convida

E me invade,

Em cujo projecto me aplico

E assim definitivamente justifico.

 

 

937 – Convidado

 

A democracia

É um convidado vulnerável e exigente

Que requer em cada dia

A atenção de toda a gente.

Bem longe do fito dela

É servir de panaceia:

Mero ponto de partida, apela

Aos possíveis a que ameia.

Uma mesa neutralmente disponível

Arrumo para sobre ela

Colocarmos a iguaria mais apetecível.

Se esta é bonita ou feia,

Venenosa ou monstruosa,

Como ocorre volta e meia,

Não é culpa da mesa ou das vitualhas,

Mas nossa, que nossa mão é que lá poisa

Quer a comida saborosa,

Quer a pejada de falhas.

Ou outrem o mal fez, no intervalo

De nossa distracção,

E nós não tivemos a preocupação

De retirá-lo.

 

 

938 – Arrependimento

 

Arrependimento do que fizemos

Pelo tempo é amenizado.

Do que não fizemos

É que, inapelável, o teremos

De ver consumado.

 

 

939 – Herói

 

Um herói,

Quando o caso deu para o torto,

Por mais que herói tenha sido quando o foi,

Se é um herói morto,

Não deixa de estar morto.

- É o que dói.

 

 

940 – Escravos

 

Os homens de acção

Escravos involuntários

Dos do entendimento são.

As coisas não valem senão

De juízos pelos rosários

Que delas se farão,

Ao dar-lhes interpretação.

 

Uns, portanto, as coisas criam

Que outros que nem as viam

Mudam em significação,

De modo que, transfundidas,

Se tornem vidas.

 

Narrar

É, portanto, criar

E viver, neste sentido,

É ser vivido.

 

 

941 – Estalagem

 

A meio caminho

Entre a fé e a crítica,

A estalagem mítica

Da razão

E, nela, o secreto cadinho

Da ilusão.

 

A razão é a fé no que se pode

Compreender sem fé.

Mas é uma fé que ainda lhe acode,

Pois compreender é

Pressupor, indesmentível,

Que há-de haver algo de compreensível.

 

 

942 – Tomamos

 

Somos morte

E o que tomamos por vida

É a vida real dormida,

Morte do que a sério somos,

Quando para este lado tomámos o transporte.

Os mortos nascem, não morrem,

Maduros pomos

Que para o chão de lá tombam e correm…

Andam trocados os mundos para nós:

Quando cremos

Que vivemos

Andamos mortos, aqui a sós.

 

Vamos viver

Quando estivermos moribundos

E a raiz de lá, ignorante destes mundos,

Desatar a crescer.

 

 

943 – Repugno

 

Como condenação

Repugno a vida real,

Repugno o sonho ideal

Como ignóbil libertação.

Vivo, entretanto, o mais sórdido quotidiano

Da vida real (e não é por engano)

E o mais intenso e constante do sonho

(E o facto é que a tal me predisponho).

Sou o escravo à sesta embriagado:

Duas misérias num só corpo condenado.

 

 

944 – Todas

 

Ter umas opiniões

A si próprio é andar vendido.

Não as ter, são as razões

De viver descomedido.

Tê-las todas não é meta:

- É ser poeta.

 

 

945 – Caça

 

Mal iniciada a caça ao prisioneiro,

Tudo é imprevisível,

Menos a morte, certa por inteiro,

No termo do sendeiro percorrível.

 

Contra a fatalidade apenas resulta

Adiar pela corrida.

E a atitude é sempre estulta

Se o ignora quando contra outrem dirigida.

 

Nunca é jogo a sério

Até que a vítima acabamos sendo nós:

Do jogo é o império

Que desta vida nos desata os nós.

 

E nós, desde que nascemos

Fomos a peça de caça:

Quando embora não o vemos,

Não escapamos ao tiro que nos traça.

 

 

946 – Coisas

 

Não vemos as coisas como são

Mas como acreditamos que sejam,

Olhamos o sombrio saguão

Através do espelho onde se entrevejam.

 

Contudo, o espelho mais escuro,

Embaciado por estranhos e entranhados pós,

É este espelho impuro,

Inseguro,

Em que nos olhamos a nós.

 

 

947 – Problemas

 

Sempre um homem tem mais medo

Dos problemas que hão-de vir

Mais tarde ou mais cedo,

Do que alguma vez há-de sentir

Pelos que já teve.

Fiel ao que andar habituado

Perene se mantém, leve,

Por outro lado,

Antes de arriscar qualquer mudança.

Poderá falar de como gostaria

De escapar aos outros vivos.

Sempre os mortos, todavia,

É que, esquivos,

Lhe farão o mal que o alcança.

É aos mortos que jazem quietos

No lugar,

Que o não tentam agarrar,

Secretos, discretos,

Que ele jamais logra escapar.

 

 

948 – Recusa

 

A mente

Tem a faculdade de escamotear

O que a consciência, presente,

Se recusa a assimilar.

Felizmente, felizmente:

- Ou de mim ia acabar

Eternamente ausente,

Sem lugar em meu lugar

Onde a verdade me mente

Até podê-la agarrar.

 

 

949 – Ladeira

 

A vida é uma encosta.

Ao trepar,

Olhamos para os cimos

E felizes nos sentimos

Da aposta

A ganhar.

 

Chegados ao topo,

Descobrimos, de repente,

Atingido o escopo,

Da ladeira a vertente,

A descida e, no derradeiro recorte,

O fim: a morte.

 

Ao treparmos,

Tudo vai mui lentamente.

Quando começa

O alcantil descendente,

Ao deslizarmos,

Tudo corre mui depressa.

 

Na juventude, que alegria,

Tanto que se esperaria

E que não chega nunca mais!

Depois, já ninguém espera nada

Além duma tarde sossegada

Até cerrar os portais.

 

 

950 – Descobrimos

 

Descobrimos de repente a morte,

Sem porquê nem a propósito,

E tudo na vida muda.

Sinto-a minar-me, corte a corte,

De verme a formar depósito,

A roer-me o que me iluda.

 

Dei por isto lentamente,

Mês a mês, hora a hora,

A abalar-me, persistente,

Uma casa que demora

A abater, cheia de gente.

 

Tanto me desfigurou

Que já nem me reconheço.

Não tenho nada de mim,

Do homem que iluminou

Fresco e forte e sem tropeço

Os meus vinte anos sem fim.

 

Branco deveio o castanho

Cabelo de antigamente

Com a lentidão no amanho

Dum camponês previdente,

Sábio, perverso no ganho.

 

Retirou-me a pele lisa,

Os meus músculos, os dentes,

Todo o meu corpo de então,

Deixa-me alma que me avisa,

Desesperada, entrementes,

Que ela em breve tomba ao chão.

 

A morte velhaca, docemente,

Terrivelmente destrói

Meu ser, segundo a segundo.

Sinto-me morrer, jacente,

Pois o que quer que faça mói

O grão que restar no mundo.

 

Cada passo me aproxima,

Cada movimento em vão

E cada respiração

De me vir cair em cima

Da morte a desolação.

 

Respirar, dormir, beber,

Trabalhar, comer, sonhar,

Tudo aquilo que fizer,

Qualquer que seja o lugar,

- É morrer!

 

Vaga sombra de fumo,

Viver é morrer, em resumo.

 

Que espero ainda?

Amor?

- Um beijo faz que prescinda

Impotente, do fervor.

 

Dinheiro?

Para quê?…

- Para pagar um parceiro,

Bebermos até

Nenhum se ter de pé?

 

A glória?

- Nos baldões da sorte,

Que importa a vitória

Se o que resta ao fim é a morte?

 

Cobre a terra e enche o espaço,

Descubro-a por toda a parte,

No letal abraço

Que pelo Universo se reparte.

 

Os insectos esmagados no caminho,

As folhas que tombam,

O pêlo branco na barba do vizinho,

O coração me arrombam

Com o grito:

- Ei-lo aí, o fim maldito!

 

Estraga o que faço e vejo,

O que como e bebo,

O que adoro e invejo,

O luar de que me embebo,

O alvor e o mar,

O rio, a brisa do ar…

 

Ninguém volta mais.

Guardam de estátuas as formas,

Cunhos de objectos repetidamente iguais.

De mim perderam as normas,

Não, não voltarei jamais.

Biliões e biliões nascerão

Com rosto igual ao meu.

Nenhum deles serei eu,

Ao mundo a estender a mão.

 

A quem dirigir o grito de socorro?

Em que poderemos crer?

Ao certo, apenas morro,

Nada me pode aqui prender.

 

Pensa nisto, que verás

Tudo duma outra maneira.

Que importam ideologias,

Ao fim e ao cabo meras sensaborias,

Aliás,

Fementindo a vida inteira?

Que importa um amor traído,

Um clube de futebol,

Um partido,

Da pública despesa o rol?

Que importa a religião,

Costumes da região,

Culturas várias dos povos?

Conservantismos, renovos,

Onde irá tudo parar?

Tudo são listas de enganos.

 

São mais cinco biliões de anos

Para a Terra, a fumegar,

Ser como um tição na grelha,

Na periferia

Desta gigante vermelha

Em que o Sol se fina um dia.

 

Há mesmo desproporção

Entre a inteligência haurida

E nossa irremediável vida:

Se eu fora como o meu cão

Não dava pela desgraça

E em tudo acharia graça.

Como os medíocres são,

Como a alimária que passa…

 

Como o ignorante é feliz

Que nada vê de raiz!

 

 

951 – Formidando

 

O formidando desenvolvimento

Dos meios audiovisuais

Cujo incremento

Revolucionou as comunicações,

Monopoliza cada vez mais

O tempo do ócio e do entretenimento,

Arrebatando-o às sugestões

Da leitura.

Inaugura,

No futuro imediato,

Uma colectividade moderníssima,

Eriçada de computadores, ecrãs,

Mas, de facto,

Sem livros no que a configura.

É uma tribo estranhíssima,

De tanga todas as manhãs,

Comunidade mágico-religiosa

À margem da modernidade,

Da Amazónia ou da Gorongoza,

Mundo cibernético na verdade

Incivilizado,

Sem espírito, à venda no mercado,

Onde vislumbramos logo após

Uma humanidade

De robôs.

 

Não tendo à mão

As escritas,

Regride-nos a razão

Ao tempo dos palafitas.

 

 

952 – Pequeno

 

Ser pequeno é desvantagem:

Trabalhos de casa para levar a eito,

Tarefas domésticas por triagem,

Irmãos bebés sem respeito

Pelo território alheio…

 

E é também uma grande sorte

Ser criança:

Encontro uma moeda no passeio

E sinto-me rico e forte,

Uma pedrinha a mão alcança

De fóssil com formato

E vejo-me super-homem a voar nos céus,

Um formigueiro desacato

E sinto-me Deus…

 

Para a criança, morrer,

É cair, levantar-se, sacudir a perna

E desatar a correr:

Para ela a vida é eterna.

 

De algum modo tem razão:

Quando alguém vive, brinca, chora

E ama simultaneamente,

O tempo já ali não

Mora,

- Não existe, simplesmente.