CANTO OITO
NAS COISAS
FINDO ME ASSENTANDO OS DIAS
Escolha aleatoriamente
um número entre 841 e 952 inclusive.
Descubra o poema
correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
841 –
Nas coisas findo me assentando os dias
Nas coisas findo me assentando os dias,
Que em chão duro os prendo
E não me rendo
A voos que são meras fantasias.
Das pedras ouço as vagas melodias,
Meu gesto em meu vizinho acendo
E por dentro me vou reconhecendo
Nos degraus de todas as escadarias.
Húmus identifico e a charrua
Que me revolve a terra nua
Das relações que comigo e o mundo tenho.
É com esta pedra de calçada
Que vou calcetando a
estrada
Por onde vou, por onde até mim venho.
842 – Sucesso
Ter sucesso é controlar
O nosso tempo de vida:
Se à maior parte o lograr,
É vitória garantida.
O tempo é a moeda forte
Melhor que acaso acontece.
De vez, porém, gasto à sorte,
Desaparece.
843 – Apenas
Nunca chegamos deveras
A crescer.
Apenas, nas esperas,
Podemos, em lugar,
Aprender
Em público a estar.
E basta,
Que a vida é muito casta.
844 – Telefone
O telefone sublinha
O paradoxo existente
No interligamento que alinha
Incongruente:
Uns aos outros nos liga
Óbvia e aparentemente,
Porém, à distância obriga
Também, inelutavelmente.
A conversa olhos nos olhos
É a melhor ponte entre humanos:
Requeremos, subtis,
Para transpor os escolhos
Dos enganos,
Mil e um pontos nos is,
Toques faciais, postura, gestos,
Atmosfera…
- Quantos aprestos
Para descodificar uma espera!
Quando vou ao telefone
Tudo aquilo anda perdido.
Quanto mais me condicione
À intimidade instantânea,
Mais ilusório o sentido
Da vida contemporânea.
845 – Rumo
O rumo que andamos a trilhar
Na revolução das comunicações
Tem este efeito singular,
Entre outros senões:
- Uns com os outros deixámos de
falar!
846 – Flores
Flores,
Lindas, efémeras, um nada ali,
Até morrerem, murchas as cores…
Flores,
Eis o que é de mim, de ti,
Até de vez quando te fores.
Entretanto brilha
Em nós a maravilha.
- Um nada,
E como alinda a estrada!
847 – Acertar
Acertar numa bola
Não tem grandeza nenhuma.
Os enredos e o humor
Brotam do problema que enrola,
Da tristeza que não se esfuma
E do valor
Que espantosa a Humanidade
Tem para sobreviver
À infelicidade
Da vida que lhe couber.
É um milagre virtualmente
Continuarmos a existir
Milhões de anos, tendo em mente
Tantos contras que suprir.
848 – Varanda
Uma varanda:
A única recompensa verdadeira
Que nos anda
À beira,
Após a torreira
Que nos dão
Os longos dias de Verão.
849 – Unidos
O bem e o mal
Vivem de tal modo unidos
Que ambos formam por igual
Da realidade os sentidos.
Não há nada
Debaixo do humano tecto
Que inteiramente à chegada
Vejamos que é só correcto.
No acto pervertido
Há gérmenes de virtude
Com que à salvação convido
Quem da aparência se ilude.
Em tudo,
O bem e o mal, lado a lado,
Eu de tal maneira os grudo
Que nada os pode ter separado.
Ao meio
Cortar alguém a maçã
É não ver que de permeio
Junta à podre a fruta sã.
850 – Espinhos
Ensanguentamos os dedos
Nos espinhos da rosa.
Os segredos
Da vida!
- Aquilo é que torna deveras
preciosa
A flor colhida!
851 – Guerra
Toda a guerra
É uma guerra negativa:
Bons contra maus, cá na terra,
É uma leitura nociva,
Que a verdade a que se aferra
É sempre verdade esquiva.
Na guerra sempre é de pores:
- Serão maus contra piores.
E nem sequer o teu lado
É de supores
Que do menos mau seja um bocado.
852 – Ausência
A ausência
É um pouco de morte
E, pior sorte,
Um pouco de não-existência.
Ser um não-existido,
Pouco embora pela ausência o
seja,
É bem pior que haver morrido,
Salvo seja!
853 – Aparelho
O aparelho
De Estado, instituição ou partido
É um pendor de estagnação.
Só é coeso graças ao velho
Tecido
De relações de longa duração
Entre os membros componentes.
Em vez de alavanca é travão,
Um estendal de doentes
Do coração:
Nada ali vibra, nada move.
Do aparelho a prova dos nove
É o caixão.
854 – Náusea
Uma coisa é a náusea sofrer
Da garrafa que comprei,
Outra é exactamente igual
proceder
E as palavras escolher
Com que a descreverei.
Ao lê-la, mudei
A dor num prazer,
Em virtude duma estranha lei
Qualquer,
De que mal sei.
Ela é que, porém, me estrutura o
ser
Como palavra de rei.
855 – Fora
Toda a vida se constrói e destrói
Fora de minha vontade.
Meu caminho nunca foi
Por terra firme.
Tanto quanto eu sobrenade
É nas águas onde confirme
Que todo o meu rasto se apaga.
As palavras fogem de mim,
Mal a voz as afaga,
Perdidas algures num insondável
confim.
Os corpos têm desejos infindáveis
Que assustam, ignotos.
O mundo é vazio e silente,
Pontuado de incontáveis
Terramotos.
A morte caminha pelo presente
Escasso
E magoado,
Passo a passo,
A meu lado.
Não tenho à mão,
Para a estrada
Minada,
Nem ao menos um bordão,
Apenas a crença
E a ilusão, e a ilusão…
…Sem que nenhuma, ao fim e ao
cabo, me pertença.
856 – Pesa-me
O Eu que sou
Pesa-me, violento.
Tanto a arrumar, a morrer, lento,
Momento a momento!
Por ora, porém, é vivo que vou,
Sou eu que me habito,
Sou este ente,
Presença em que palpito,
Vulcão neste ir sendo torrente
De lava consciente,
Perene grito
Por trás de tudo o que digo e
faço,
De quanto vejo.
Ora, tal Eu que almejo
E em que permanente me ultrapasso
É para morrer.
Como é possível que venha a
ocorrer?
Sou em mim intimidade,
Evidência única que me invade.
No limite
Que é que me leva a que me
precipite?
- Ou é mera ilusão,
Não caio, enraízo-me no chão?
857 – Voz
O mais forte em mim é a voz
mineral
De fósseis, de pedras, intérmina
matriz
Ancestral
Que em mim germina e condiz
Com quanto a pedras tudo em mim
reduz.
Quando em mim procuro o rosto
original
Que no mundo me traduz,
Não encontro minha angústia, meu
alarme:
Descubro, a provocar-me,
A indiferença bruta
De entre coisas ser esta coisa
diminuta.
858 – Fragilidade
A fragilidade das palavras
E o milagre do encontro que por
elas
Lavras
Connosco e com os mais…
E quantas ignotas caravelas
Que te vivem demais,
Sonhos clandestinos que demoram
A soltar as velas
E que as palavras ignoram!
O que vive em ti saberás?
- Quanta guerra, quanta paz!…
859 – Cegueira
Ver não é um erro,
Só que nem todos aguentam.
A cegueira a que me aferro
Da luz não é intensidade,
Vem dos olhos que me tentam,
Jamais da verdade.
860 – Biblioteca
Biblioteca, o lugar
De aprender conhecimentos,
Enriquecer linguagens
E sonhar, sonhar, sonhar…
Do mundo aos quatro ventos
As mais longínquas paragens
Não ficam do mar além,
Encontramo-las também
Ao alcance do presente,
Afeitas a nossos planos:
- Aqui no interior da mente
E do coração humanos.
861 – Ideia
Ter uma ideia
É tal como apaixonar-me
Quase em prece:
O entusiasmo incendeia
Quando houver beleza e charme
No momento em que a gente se
conhece.
E como uma ideia apetece!
862 – Questão
A iluminação
Não é uma questão de idade.
Uma fagulha no chão
A floresta inteira invade.
Uma insignificante
Cobra venenosa
Pode, belicosa,
Matar-nos o instante.
Potencial rei é
Qualquer príncipe bebé.
Todo o jovem tem
O poder de ser iluminado
E de mudar, logo além,
O mundo de lado a lado.
E os mais vamos aprender
A desvendar
A nós próprios ao querer-
-Nos estudar.
Inesperado
Faísca o génio,
Jamais dele o fado
Obedece a qualquer convénio.
Onde, porém, faísca,
É o lugar
Que se arrisca
De vez a nos desvelar.
863 – Rega
Ódio, violência,
Medo e discriminação
Na comunidade são
A rega para as sementes
Da demência,
Ódio, violência,
Medo e discriminação
A crescerem, dementes,
Fio intérmino de retrós,
Por dentro de nós.
864 – Antes
Antes de orar, praticar.
Montanhas eram montanhas
E os rios eram os rios.
Durante anos, devagar,
Foram ganhas
Vitórias aos desafios:
Montanhas deixam de o ser
E nos rios quem vai crer?
Agora compreendo tudo
Tal qual como deverei.
De novo transmudo
A lei:
As montanhas são montanhas
E os rios também são rios…
As malhas, porém, que apanhas
Mais camadas têm de fios:
Em cada particular, o todo
Vês agora deste modo.
865 – Padeiro
Deus não faz o mundo, não,
Como o padeiro, o pão.
Do supremo nunca poderei falar
Em termos do histórico patamar.
O fundamento ontológico,
O nómeno,
Não é um mero pormenor lógico
Ou um aspecto do fenómeno.
Há uma dupla dimensão
Numa mesma realidade
E há uma relação,
Fenómeno-fenómeno não,
Antes fenómeno-númeno que nos
invade.
Quando lhes ato o nó,
Porém,
Ao mesmo tempo advém
Que os dois reinos são um só.
866 – Espírito
O marinheiro,
Por estranho que pareça,
É de espírito caseiro:
Arrasta com ele a casa e a essa
- O navio,
E dele a terra natal
- O mar ancestral.
Do que o rodeia no imutável
corropio,
A costa da estranja,
O exótico rosto,
A versátil imensidão que a vida
abranja,
Sem o velado encanto do mistério,
Deslizam, fugazes, do posto,
Dum desdém que os ignora sob o
império.
Para ele, mistério, apenas o do
mar,
Amante de toda a vida,
Incapaz, como o destino, de
alguém o devassar.
O mais, poeira revolvida,
Basta um passeio ocasional,
Uma pândega no local,
E fica o segredo dum continente
exposto.
Mais, não vale a pena:
A terra firme, desvelado o rosto,
É por demais pequena.
867 – Trabalhar
De trabalhar não gosto.
Que bom é ser calaceiro,
A meditar no belo rosto
Daquilo de que poderia ser o
empreiteiro!
Nenhum homem gosta, aliás,
Embora adore o que o labor traz,
Não apenas o que fruirmos,
Mas a oportunidade
De nos descobrirmos:
Aquela realidade
Por dentro dos outros e de nós
Que ninguém mais pode
descortinar.
De fora apenas irão reparar
No espectáculo amável ou atroz,
Nunca certos ficarão
Do que deveras significa
A misteriosa coalisão
Que por dentro me edifica.
868 – Batuque
Um batuque na floresta…
Que traço de fantasia
Por dentro de mim se apresta
A procurar-lhe a magia?
De tudo o espírito é capaz,
Que dentro dele há tudo,
Tanto o passado me traz
Como o porvir com que me iludo.
Há no primitivismo
Alegria, dor, devoção,
Coragem, raiva… - o abismo
Da verdade em primeira mão,
Da máscara do tempo despida
Que hoje no-la mostra diluída.
869 – Torres
Torres de comércio e habitação,
Ambiciosamente fora da terra,
Acima da corrupção,
Livres do que a memória encerra,
Inteiramente viradas ao futuro…
- Os alicerces no vazio os
dependuro.
870 – Princípio
Onde as torres abundam
Mora o princípio ambicioso:
O céu é o limite.
Logo o secundam
O jovem desgostoso
Mais o estranho palpite
Que o leva a trepar às alturas,
De arma em punho,
Dele a imprimir o testemunho
Varrendo a tiro as figuras
Que formigam pelo chão:
Vingam-se os deuses do fanfarrão,
A ambição de progresso alteia a
torre
E a humildade ou dispersa ou
morre.
Na torre perco a raiz,
Perco a terra e o lugar,
Das ruínas o matiz
Já me não liga ao meu lar,
À terra de meu passado,
Aí purgado da ambição.
Ergo a torre descuidado,
Sofro logo a punição.
Quão mais vou pelo céu dentro
Mais preciso das ruínas,
Senão em meu lar nem entro,
Perco alma pelas esquinas.
A torre não é poder,
É produto de ansiedade,
São as ameias do medo.
Os meus limites temer,
Fronteiras da humanidade,
É o que me quebra o sossego.
Sem à-vontade
Em nosso recanto,
É a fuga para longe e acima.
Das ruínas o encanto
É que me enlaçam ao clima
De antanho:
Emprestam-me da sabedoria
O ganho
Que me alimenta cada dia.
871 – Ruído
Um ruído
Não vislumbro bem
Que sentido
Tem.
Dum cão um latido,
Porém,
A natureza inteira
Me põe à beira,
Bebo o encantamento do horizonte
Como duma fonte,
A noite silente
Fica em mim presente.
As gotas da chuva tamborilam no
tecto,
No peitoril da janela,
E a natureza desperta-me o afecto
Do devaneio,
Vogo na vida de barco à vela
Com mil sonhos de permeio.
Das entregas o camião
Trambulha estrada fora
E a tiro de canhão
Manda-me embora.
Os operários quebram cimento
E me estremecem de tormento.
Um carro buzina
E tudo em mim desafina.
E desatina.
Como é aflitivo
Este barulho em que vivo!
872 – Medo
A xenofobia,
O medo dos estrangeiros,
É infecção que infectaria,
Hoje em dia,
As almas dos pioneiros.
Não é só medo, porém,
É uma ansiedade que afecta
Tudo o que de nós provém.
A raiz (quem a detecta?)
É a fuga ao desconhecido.
E este, ao fim, é a natureza:
A interior que tanto olvido,
A exterior que me não preza.
Tudo o mais são derivados
Dos monstros daqui gerados.
873 – Força
A força que inaugura a caminhada
Permite vergar a inércia pesada,
Anterior a qualquer começo,
Que nos atrela ao estabelecido,
O antigo idealiza em que tropeço,
Tolhido.
Satisfeito, fico inerte,
É meu estado mortal:
Impede-me que desperte
Para entrar num rumo vivo,
Estimulante e fundamental,
Sem o qual
Não sobrevivo.
Encantado pelos cantos de sereia
Ulisses não torna mais
Ao lar que o norteia
Nem já dele ouve os sinais.
Na produtividade febril,
O fanático mundo desencantado
É pelo fascínio ameaçado
De ser tão servil
Que, não criativo, é tudo
automatizado.
Parece vitalidade
Mas é espírito de morte:
Reproduz, imita, copia, invade
De tal sorte
Que ninguém consiga
Tornar coisa alguma sua amiga.
A força que inaugura a caminhada
É que há-de a inércia vergar-nos
dominada.
874 – Sonho
Meu sonho é do mistério sugestão,
Jamais de meus problemas
Solução.
Aponta-me os dilemas:
O que quer que seja que me torna
pessoa,
É matéria de que sou feito
E matéria que não tem a ver
comigo.
Meus sonhos são eu em tudo quanto
de mim voa
E ao mesmo tempo não são
Naquilo em que a meu peito
Falta abrigo.
São a realidade e a ilusão.
É meu meu sonho
E também não:
Se dele disponho,
Bem mais ele é de mim meu dono e
meu patrão.
875 – Deuses
Os deuses partiram sem no-lo dar
a entender,
Deus e Adão já não caminham,
Lado a lado, no frescor do
anoitecer.
Por trás das doenças doravante se
adivinham
Os olhos renegados dum deus
qualquer:
Quando o sagrado um povo
abandonou,
Também o encantamento desaparece,
As asas do sonho cancelam o voo,
A paisagem das magias emurchece.
Era na música das ninfas a
canção,
Em nossas palestras a voz das
fadas,
Duendes e gnomos no labor em
função,
Anjos a volitar das Trindades nas
badaladas…
Quando o perito nos obriga a
seriedade,
Nos aprisiona na literalidade,
Morre o sonho e a fantasia,
Fica o pragmatismo, o empenho na
mais-valia.
E a força para atingir a meta
Vai murchando, discreta.
Eis como a medicina nos mata
De lhaneza chata
E as filosofias de mudar fados
Impedem de sermos transmudados.
876 – Algo
Algo em nós procura
Com paixão
O dado e a informação.
O que a frágil alma, insegura,
Espera avidamente
É uma história que a tente.
Informar-me é colher dados,
Metê-los em armazém
Para serem usados
Como me convém.
Um conto mexe mais fundo,
Tem personagens, intrigas,
Ambientes do vário mundo,
Tensões, colisões e brigas
Que à vida emprestam textura.
Dão-me a pista de quem sou,
Do que a vida me procura:
- Pelo conto aprendo e vou.
877 – Lugar
Para as almas as histórias são o
trilho
Com lugar reservado para elas,
Onde alívio encontram do sarilho
De sobreviver do quotidiano às
sequelas.
Nas histórias reflicto para além
da razão,
Abandono os limites da paisagem,
À minha alma oferto a evasão,
O sabor de ser,
O outro lado da viagem:
O que ela, enfim, mais preza – o
prazer.
878 – Fé
A fé não te elucida do mistério,
Torna-te dele parte.
Não ter fé mantém-te aparte,
Sem o refrigério
De te eliminar, acaso,
O mistério, a prazo.
A fé
Não prova Deus.
Nem prova que Deus não é
A falta dela.
Ei-los aí, os céus:
Para além,
Porém,
Onde a janela?
879 – Einstein
Como Einstein teve razão,
É, para a Alemanha, um alemão
E, para a França, do mundo um
cidadão.
Se, ao invés, fora um erro que
escreveu,
Hoje, para a Alemanha, era um
verme judeu,
E teria de estrangeiro em França
o labéu.
Quando em nome de dois países
Dois grupos entre eles competem,
Os vencedores as glórias repetem
As glórias de ancestrais raízes,
- Nos ditos vitoriosos de seu
povo.
Ao contrário, os estrangeiros
Vencidos
Serão por aqueles tidos
Por humildes derradeiros,
Rasquidos
Sem esperança de renovo
Nem credíveis parceiros.
Para a comunidade destes, porém,
Heróicos conquistaram o segundo
lugar,
Enquanto os vencedores, para
eles, com desdém,
Em penúltimos se limitaram a
ficar.
Iguais os factos permanecerão,
Mas como igualar-lhes a
validação?
Não é o facto, é o valor
Que desempata entre o frio e o
calor
Do gesto humano
A que me irmano.
880 – Levar
Deixamo-nos levar pelas
histórias,
De tanto entusiasmo e
encantamento,
Sem perceber da vida que as
memórias
Não as enquadram em nenhum
momento.
Dão os escritores
A impressão de que a vida
Tem de enredo cores
Com malha à medida
- E da vida a espuma
Não quadra a nenhuma.
Do real o alcance
Troca-nos as voltas:
A vida é um romance
Mas de folhas soltas.
881 – Causam
À distância,
O raio e o trovão,
Em científica discussão,
Não causam medo nem ânsia.
Podemos acreditar,
Finalmente,
Que os iremos decifrar,
Descodificar integralmente.
Nos segundos, porém,
Após a queda dum raio
Na proximidade de alguém,
Quando o coração em desmaio
Batuca acelerado
E o sangue corre disparado,
Ficamos a conhecer mais
intimamente
O raio e o trovão
Do que com a nossa mente
Algum dia o serão.
O encontro vivo e perturbador
Com o numinoso
Dá-nos a lição
Que nenhum estudioso
Poderá supor:
- O estudo
Não é tudo;
Ante o que me aterra ou agrada,
Ao fim e ao cabo, não é nada.
882 – Tribo
A tribo primitiva esmorece
E se desmorona
Quando o numinoso que a abona
Desaparece.
Perdida a razão de ser
Como a orgânica grupal,
Acaba a se dissolver,
Desintegrando-se ao final.
Encontramo-nos agora
Todos em tais condições.
Doravante quem adora
Algo perdido na aurora,
No despontar das razões?
Perdemos algo que nunca
Chegámos a compreender,
O ídolo o chão nos junca
Quebrado aos pés de quenquer.
Despimos tudo do mistério
E da numinosidade.
Findou a idade
Do nosso império.
Nada mais é sagrado…
- E nós já não temos lado!
883 – Paredes
Paredes escritas da prisão,
Vida oculta…
Como não
Ver na grande cidade
Como a vida ignorada vive inulta
Por trás de tantas paredes de
alvaiade
Repintadas e legendadas
Pelos novos presos do anonimato?
São aprisionados em liberdade,
De caras camufladas,
Pintando, ao deus-dará, o próprio
retrato:
"Olhem, estou aqui, salvo
seja,
Embora ninguém me veja!"
Mil panos de parede
Pintados, esborratados ao acaso…
Que poderia, vede,
Ser pior, em qualquer caso,
Que o sentimento de perder
O próprio ser?
A maioria
Não tem o poder de afirmar
A própria individualidade:
- Eis o que lhe geraria
De aprisionamento
O sentimento
Fundo e sem par
No emprego, no bairro, na cidade…
Resta o grito
Esborratado
No muro, na parede de delito,
A pingar da chaga do lado.
884 – Mundo
O mundo em que vivemos preza
Bem pouco a beleza.
Cidades que funcionam
Mas são feias,
Casas que de nós se adonam,
De custos a dobrar pagos a meias,
Nunca obrigatoriamente belas,
Com porta mas sem janelas…
A beleza é dispensável,
Cuidamos.
Mas para as almas é o inadiável
Que buscamos
Antes de quase tudo,
Com anseio avassalador e mudo.
Cerne da sexualidade,
É a fonte-mor do prazer
Que nos invade
Quando o amor nos acolher.
885 – Caminho
Contemplação
É caminho espiritual.
No sexo é religião
Com uma carga emocional.
A linguagem que usamos
Do sexo para falar
Ou é física ou vulgar,
Ou, para além destes ramos,
É tão idealizada
Que dele a espiritualidade
Jamais é por nós captada.
Às vezes, na verdade,
Usamos clínicos termos
Para nos distanciar,
Talvez a nos protegermos
De seu poder singular.
De igual jeito,
O plebeísmo vulgar
Pode ter idêntico efeito.
À distância,
Qualquer aura de sagrado,
Apagada minha ânsia,
Não a vislumbro em nenhum lado.
886 – Curiosidade
Nossa curiosidade sexual
Compulsiva
Olha para o corpo erótico,
afinal,
Religiosamente:
Com devoção viva
E objectivo transcendente.
Através do corpo vemos
Um pouco de alma e, portanto,
O mistério que vivemos
Da própria vida é um recanto.
O compulsivo momento
Deste sexual olhar
Quão pouco fundo o alimento
Acaba por revelar.
Ante um ícone sagrado
É da espiritualidade
Que estamos sempre em presença.
Perdemos em todo o lado
A noção da santidade
Do sexo como pertença:
Olhá-lo, então, é tomado
Como um acto errado,
Quando, em religião,
É apenas veneração.
887 – Teoria
Toda a teoria mental
É inútil, por fim.
A filosofia mais genial
Lê, verosímil, o Universo.
Uns séculos após, enfim,
Eis o reverso:
É um parágrafo ignorado na
antologia
Da história da filosofia.
A glória é uma ilusão:
Quanto maior o sabor,
Pior
A fatal
Incompreensão
Final.
888 – Segredo
Afectuoso poder ser e sensual,
Eis o segredo para eliminar
tensões
Entre a sexualidade e a vida
espiritual.
Não é suprimindo o sexo
Mas mudando-lhe as expressões
Que alguém
Devém
Espiritualizado.
Todo o místico amplexo
É na carne consumado:
Em todo o mundo, os mosteiros
São guardiões da cultura,
Viveiros
Da beleza
Na arquitectura, literatura,
pintura, escultura,
No rito e canto de quem reza…
É Vénus presente e hilariante
No papel de manter
E bom uso dar constante
Às conquistas da meditação,
Da oração,
Da vida comum que acontecer.
Da sexual paixão
Os mosteiros
Constituem uma sublimação
Ao devirem lugares hospitaleiros.
889 – Ferramenta
A buscar vida moral
A ferramenta mais valiosa
É a consciência.
Dando um íntimo sinal,
Esta voz especiosa
Quer, porém, um bom ouvinte.
Actualmente, a evidência
Da maioria é o requinte
No que é do mundo exterior.
Quando sofisticados
Deviremos no interior?
Empenhados
Em novos inventos,
Pouco de nós despendemos
Em técnicas de interioridade:
O imaginário perdemos,
A intuição é vacuidade…
Virados para fora,
Não ouvimos os avisos,
A falta de fé já nada adora,
Confiamos mais então
Nos juízos
Do que na intuição.
É fácil invalidar a consciência,
Geralmente
Com um argumento, uma false
evidência
Convincente.
Destituídos de ferramenta moral,
Acabamos com uma consciência
meramente material.
890 – Roma
Sempre que Roma decai
O circo é omnipresente,
Em todo o lado há coliseus.
A política ali vai,
A economia é conivente
E a vida inteira, sem véus,
Alimenta a corrente…
Assim, pois, a perversão
Se encobriu duma espantosa
Técnica realização:
Hoje o porvir ainda a goza.
Do pensamento a riqueza
Decaiu em proporção:
O teatro que criaram
Com recursos que espantaram
Quem hoje o preza?
Só farsas e pantomimas…
Não merece a glória
Dumas rimas
Nem memória.
Ora, hoje o circo é a televisão
E o teatro, é o cinema…
- Por trás da magnificência da
ilusão
Não admira que o mundo gema.
891 – Sagrado
Todo o sagrado se esconde,
Como por engano,
Lá onde
Mora o profano.
Tarde ou cedo,
Quando dele aparte,
Tornado vazio segredo,
Não há divino que nele acarte.
Assim é que, por este lado,
Todo o profano é sagrado.
892 – Nunca
Nunca o sexo é literal,
Não é simples nem linear.
Por histórias invisíveis vívido
devém,
Pela história singular
E pessoal
Que cada qual dentro contém.
Inelutavelmente,
Sexo é mito.
Às vezes, transgredir, desafiar o
conflito
É um grito
Independente,
Profundamente Libertador
E aprazível.
Mulher que aprecia
Um homem viril, insensível,
Minotauro do amor,
Encontra magia
Em cenas de escravidão,
No teatro da devassidão…
Há celebridades
Chupando dedos dos pés,
Usando roupas e personalidades
Do outro sexo assumido de través…
Quantos rituais
Empreendem os casais,
Quantas fantasias
Do imaginário sexual
De cada qual
Lhe reanimam os dias!
O sexo nunca é literal,
É prenhe de magias.
893 – Amante
O amante misterioso
Pode estar presente
A vida inteira,
Quando constantemente
De nós se abeira,
Prazeroso,
Num ou noutro personagem
Atraente,
Ora distante, ora abordável,
Acaso mera ficção imaginável,
Alimento apenas duma listagem
Evanescente.
O amante interior
Também pode apenas ser sentido
Como ânsia, como fervor
Jamais correspondido,
Deixando-nos reduzidos à mera
Busca e espera.
E pode tomar a forma
Duma transição de vida,
Como o sonho que a informa
E lhe empresta a medida,
Já que esta mudança
Apenas o desejo a alcança
E a projecta, de seguida,
Em cosmogónica dança
Nebulosamente apetecida,
Pelos trilhos do mundo repartida.
894 – Divorciado
Quando o divorciado devolve
O filho ao colo da mãe,
Um paladar de independência
recuperada
O revolve,
De mistura também
Com um vazio de perda consumada.
Um beijo de despedida
E o retorno à casa que fita
É já preocupar-se à medida
Da próxima visita
E lutar contra o arreigado
Sentimento de ler-se culpado.
Que ocorre à criança
Que apenas a mulher alcança?
Será feliz,
Adaptada à vida?
Qual do mar a matriz
Na profundeza desmedida?
895 – Prancha
A prancha mais alta da piscina…
Dias inteiros a olhar-lhe o
desafio.
Depois trepámos os degraus como
uma sina,
Por dentro a tremer de frio.
Lá de cima, quanto mais altura!
E só dois modos de escapar dali:
Da derrota os degraus de má
figura
Ou o mergulho da vitória em
frenesi.
Parámos da prancha na ponta,
Tremendo ao sol quente,
Com um medo de morte a ter em
conta,
Urgente.
Inclinámo-nos demais para a
frente,
Tarde demais para voltar atrás
E zás,
Mergulhámos de repente.
A prancha mais alta estava
conquistada,
O resto do dia foi sempre a
mergulhar!
Trepando a um milhar
De pranchas, cada qual mais
alteada,
Demolimos o medo, protagonizamos
planos:
- Tornamo-nos humanos.
896 – Corpo
Tem um corpo uma cidade
E dele os núcleos sexuais são
valiosos,
Um rio a percorrer serenidade,
Um parque nacional de recantos
umbrosos,
Uma bela fachada,
De algumas cúpulas os seios,
Uma ou outra erecção fálica
hasteada,
Partes privadas nalguns meios…
Os jardins importam em
particular:
Neles a alma desliza
Pela beleza, com o vagar
De que precisa.
Tem um corpo uma cidade,
Erótico a prender-me
A afectividade
Bem por baixo da epiderme.
897 – Prenhe
Uma estrada romântica
Prenhe de lembranças e natureza,
Uma ponte romântica
Plena de mistérios e beleza,
Satisfazer poderão
A primária
Fome diária
De belo e de reflexão.
Estradas e pontes,
Túneis de verdura
E horizontes,
De rios e regatos a frescura,
Mais pelas almas que pelo corpo
farão,
Levam-nos para lugares
Na imaginação
E memória,
Tanto quanto no mapa.
Sob a capa
Simplória
Dos olhares,
Ambas são fundamente sexuais
E a sexualidade
Do mundo e de nós próprios nunca
mais
Persuade,
Prejudicada,
Quando estradas e pontes fica
assente
Que são uma empreitada
Para transporte de objectos
puramente.
898 – Imagens
As imagens sexuais
Nos filmes, na internet, nas ruas
da cidade,
Exageradas, autónomas, banais,
Indesejáveis no primarismo da
boçalidade,
São tais
Por não compreendermos a
importância
Duma estrada, um prédio, uma
estância
De trabalho sensuais.
O que não temos a imaginação
De incorporar em nossas vidas
Assombrar-nos-á como tentação,
Em valorações obscuras,
fementidas.
Não há meio termo:
Ou rasgamos uma bela estrada
Ou a feia logo destruirá,
mal-assombrada,
A cultura que, enfermo,
Tentei erigir.
Tal é nossa sorte:
Sexo ou morte.
- E não há como fugir.
899 – Revelam
Na vida moderna,
O moralismo,
Do sexo a obsessão,
Revelam quanto ainda não
Descobrimos nem o abismo
Nem a cumeeira superna
Da sexualidade.
Em termos puramente pessoais
Lhe moldamos a identidade,
Sem vislumbrarmos jamais
Quanto noutras culturas é
encarada
Como força cósmica sagrada.
Mantemos o sexo escondido
Cuidando que, ao não vê-lo,
afinal,
Assim defendido,
Não nos poderá fazer mal.
Como todo o elemento de alma
poderoso,
Porém,
Ao sexo convém
Manifestar-se, imperioso.
Caso contrário,
Sofreremos o retorno
Súbito do reprimido,
E o sexo, vário,
Opera por suborno,
Negativo, incontrolável,
indefinido,
E toda a vitalidade
Ocorre que se degrade.
É que o sexo alegra a vida,
Empresta vivacidade.
Quando escondido por medo,
Insípida devém,
De seguida,
Toda a vida a que refém
Escravo me concedo,
Transmudado por dentro em
zé-ninguém.
Tudo o que é ledo
E que por tal me retém,
Porque tanto me convém
Jamais então convém a meu credo.
900 – Nasci
Nasci num tempo em que a maioria
A crença em Deus
Havia
Perdido,
Pelo mesmo motivo que os seus
A haviam tido,
À Fé:
- Sem ter porquê!
E como é humano criticar porque
sente,
Não porque pensa,
A maioria imediatamente
Trocou pela Humanidade
Em Deus a crença.
Como, porém, pertenço à
marginalidade
Daquilo a que pertenço,
Não vejo apenas a multidão
Dos que meus são,
Mas também o imenso
Território de solidão
Que ao lado
Nos há sempre acompanhado.
Então,
Deus jamais de vez abandonei
Nem definitivo à Humanidade me
dei:
Deus, mesmo improvável, pode ser,
Deveria então ser adorado;
A Humanidade, espécie animal como
qualquer,
Não é mais digna de adoração
Que outra das mil que pelo mundo
se arrastarão.
O culto da Humanidade
Revive templos antigos
Em rituais
De Liberdade, Igualdade e
Fraternidade:
Outrora animais
Eram deuses amigos
E, tais quais,
Os deuses em que tropeças
Têm de animais as cabeças.
901 – Tecendo
Toda a vida é uma cadeia
Onde vou tecendo palha,
A distrair-me da ideia,
Como calha.
Esta visão pessimista,
Trágica e de desespero,
Ao nada salvar da lista,
Incomoda, é um exagero.
Mas que é que prova a valia
Daquilo que produzimos?
Certo é que nos distraía,
Não tal preso sem arrimos,
Dele o destino a driblar,
Mas tal donzela a almofada
A bordar,
Distraindo-se com nada.
Esta vida é uma estalagem,
Cismo,
Onde me vou demorar
Até que chegue ao lugar
A carruagem
Do abismo.
Sei lá bem onde me leve,
Se demora ou será breve!
Posso a estalagem olhar
Como prisão:
Sou compelido a aguardar
Nela. Ou então
Será canto convivial:
Com os mais me encontro aqui…
De impaciência não dou, porém,
sinal,
Nem à multidão jamais me reduzi.
Fechem-se no quarto, moles na
cama,
Os insones que apenas esperam,
Converse na sala
Quem ama,
Com músicas e fala
Que se esmeram
E me afagam
Enquanto brandas se apagam.
Sento-me à porta da vida,
Embebo meus olhos na paisagem,
Canto lento a comedida
Paragem,
Enquanto espero.
Para todos chega à noite a
carruagem,
A brisa entretanto gozo que
venero,
Com ânimo calmo e puro.
Nada mais pergunto nem procuro.
902 – Mora
O homem fatal,
Afinal,
Mora nos sonhos
De cada qual,
Do mais vulgar
Aos mais medonhos.
Romantismo? É revirar
As lantejoilas do pano
Do nosso quotidiano:
Todos sonham,
No secretismo
Do mais íntimo do ser,
Com o imperialismo
De que disponham
Na escravidão de todos e de
quenquer,
Na entrega de toda a mulher,
Na adoração
Dos povos de toda a nação,
E, nos mais nobres,
Na veneração
De todas as eras
Deste mundo de pobres…
Muito poucos
Dos habituados do sonho às
esperas
São tão loucos
Que riam sem fim
Desta mania de sonhar assim.
903 – Procura
Sou alguém
Que procura ao acaso,
Fora inelutavelmente de prazo,
Ignorando onde fora oculto o
objecto
Que nem me explicaram o que era.
Às escondidas com ninguém
Jogo discreto,
Por sina mera, por sina mera…
Algures há um subterfúgio
transcendente,
Uma divindade fluída
Que não mente (e tanto me mente!)
Permanentemente ausente,
Apenas ouvida
Vagamente
De fugida,
Insistentemente,
Obsessivamente,
Como longa despedida…
- Mas que vida! Mas que vida!
904 – Ténue
Entre mim e a vida
Um vidro ténue nos separa.
Por mais nítida que a veja,
Quem nela bem repara,
Repara que ela convida,
Eventualmente regala,
Mas ninguém que o almeja
Pode tocá-la.
905 – Insolúveis
São insolúveis os problemas:
Um problema haver
É não haver solução.
Procurar um facto, querer lemas,
É o facto não ter,
Nem dos lemas o guião.
Um lugar
É ter onde ir:
- Pensar
É não saber agir.
906 – Dentro
Por dentro de nós mesmos
transeuntes eternos,
Não há paisagem senão o que
somos.
A descida aos infernos
É do que dispomos.
Nada temos porque nem a nós nos
temos,
Nada temos porque nada somos.
E que seremos?
E que fomos?
Que mãos estenderei para que
Universo?
Ilusório é todo o céu,
Comigo sempre ao fim é que
converso.
O Universo não é meu: sou eu.
907 – Imenso
Descomedida
A vida exaltam
Os que têm na vida
Um grande sonho e faltam.
Outros nenhum sonho têm
E faltam também.
No fim,
Que resta?
O Universo, enfim,
Dorme a sesta
Sobre o imenso cemitério de mim.
908 – Véspera
É a véspera o que trazemos
Cada dia que vivemos.
Vésperas acarretar
Como quem carreia pedras
É a vida.
Quando a carga suportar
Já não podes, já não medras,
É o fim de tua medida.
Só teu derradeiro dia
De véspera não chamaria.
E, mesmo assim, até onde
Então
Sabe alguém se corresponde
Ou não?
909 – Auxílio
O auxílio dos olhos importa
Tanto quanto o que por eles é
visto.
É o que me transporta
Ao que existo.
O que os dedos de melhor
Sempre souberam fabricar
Foi o oculto revelar,
Seja lá ele o que for.
O que a mente haja entendido
Como conhecimento
Foram os dedos que lho terão
trazido
E lho ensinaram, momento a
momento.
910 – Cremos
Nunca nos deveríamos sentir
seguros
Do que cremos ser:
Bem pode ocorrer
Que, mesmo sem nos vermos em
apuros,
Já no presente
Estejamos a ser coisa bem
diferente.
E é normal
De tal nem haver
Sequer sinal.
Tanto mais quanto nem houve
intento
De modelar o momento.
E sempre ele me modela,
Fatal,
A mim, seu cão à trela.
911 – Balança
Não é o mesmo o peso
Do que um homem sente, um dia,
E o que, surpreso,
O braço da balança registaria.
Os sinais
Plenos,
Ora são para mais,
Ora para menos,
E os diferenciais,
Por mais pequenos,
Nunca são iguais.
A união
Dentro e fora
Não tem afinal mútua tradução
No tempo que nos demora.
912 – Difícil
Quão difícil é nos separar
Daquilo que fizemos,
Coisa, sonho ou gente do lugar!
…Mesmo quando, na ocasião,
Por nossa própria mão,
Já o aniquilemos.
913 – Mudez
Cada pessoa é uma ilha
E não é certo,
Que, se o fundo marinho a não
perfilha,
Breve é um deserto,
Das correntes perdida
Que lhe alimentam a vida.
Cada pessoa é um silêncio, cada
pessoa.
E apregoa
Cada qual no silêncio que é o
seu,
No silêncio que é,
A mudez do céu
Aqui de pé.
914 – Sabemos
O que sabemos que irá ocorrer
É como se já houvera ocorrido,
As expectativas mais do que
anulam qualquer
Surpresa que tente escapar do
olvido,
Embotam as emoções e as
banalizam,
Sem o antes e o depois que as
balizam.
Já foi vivido
O que havia a desejar ou a temer
Enquanto o desejou ou temeu
quenquer.
915 – Muro
Entre o simples e o sábio
O muro é o vocabulário:
Um lábio,
Eis o fadário.
Às coisas e às ideias acontece
Como a um corpo que se descarna:
Tudo apodrece,
Do tempo arranhado pela sarna,
E novos músculos de ideias tomam
o lugar
Do que dos ossos se nos despegar.
916 – Prazer
É prazer presente
O prazer da fama futura.
A fama (que não dura)
É que é só futuramente.
E ela é que mente,
Perjura.
917 – Natureza
Tudo o que acontece
Com algum significado
Aparece
Como um dado
Cuja estrutura fica na memória
Como sendo, por natureza,
contraditória:
Noite e dia,
Sim e não,
Realidade e fantasia,
Cabeça e coração…
918 – Favo
Exteriormente,
Um grande favo de mel,
Com os zângãos a amarinhar pelo
presente
Num frenesim de trabalho em
tropel.
Interiormente, um matadoiro,
Com cada homem a matar o vizinho
E a chupar-lhe, como bom agoiro,
O tutano dos ossos bem regado a
vinho.
Superficialmente,
Um mundo ousado, viril.
Realmente,
Um bordel
Gerido por uma horda vil,
Com os nativos tornados alcaiotes
E os míseros estrangeiros a
venderem
A própria carne e sangue em
pacotes
Aos que mais derem.
Todos ignoram o que é sentar
E ficar satisfeito,
Ouvir o apelo
De quem apelar
Não é preceito.
Cada continente,
Alheio ao atropelo,
Dorme profundamente
E o sono desenrola o enorme
pesadelo.
919 – Morte
Deveio a cidade
Um imenso cemitério
Em que os homens lutam pelo
refrigério
Duma morte decente, de qualidade.
A minha própria vida
A um sarcófago se assemelha
Construído por medida
A partir de minha morte:
Ando às voltas na floresta
revelha,
Em pleno caos, à sorte.
Pegada aqui,
Marca acolá,
Não terei já,
No frenesi,
Da terra a pá?
920 – Reino
A vida
Da infância,
Completamente restringida,
Parece à partida um universo
ilimitado.
Do adulto a ganância,
Por inteiro da infância
libertado,
É um reino, afinal, a diminuir
constantemente.
Quando nos metem na escola
Estamos perdidos:
É um cabresto assente
A sacola
À roda do colo dos gemidos.
O pão perde o gosto,
A vida também.
Obtê-lo paga imposto
E mais importa ao que ali convém
Obtê-lo que comê-lo.
É tudo calculado,
Pré-programado
E paga selo.
Quanto mais o adulto avança
Mais a cadeia o alcança.
921 – Empurrarem
Até nos empurrarem para o
trabalho
O mundo era muito pequeno
E nós vivíamos dele na beira,
Do desconhecido na fronteira.
Todas as potencialidades que
valho
Eram, porém, o meu terreno.
Depois, cada salto
Deste pleno
É quanto me falto.
922 – Civilizado
Ser civilizado, que condenação!
Chegamos do mundo ao fim
E nada temos, no frenesim,
Que suporte o terror da solidão.
Ser civilizado é ter
necessidades,
Ter a vida complicada.
Ora, quem acabou de correr as
herdades
Não devia precisar de nada…
923 – Fixos
Vivemos como um rochedo
Feliz em pleno oceano:
Desde cedo,
Sem dano,
Vivemos fixos, enquanto o que nos
rodeia
Turbilhona em movimento.
Fixos na realidade duma cadeia
Em que não é fixo nenhum
elemento,
Até mesmo o rochedo mais feliz e
mais forte
Presumo que um dia será por
inteiro dissolvido
E devirá fluído
Como o oceano donde nasceu,
Onde cresceu
E onde um dia vogará na morte.
924 – Cultura
A cultura cria
Uma falsa genealogia,
Uma falsa consciência:
A evidência
De haver nascido há mil anos
Com o primeiro homem e seus
arcanos,
De não ter outras raízes
Que não sejam da história dele as
matrizes.
Cenário de livros e de ilusões,
Cria um outro mundo
Em que na terra não há furacões
Nem estrelas no céu profundo.
Mas é tão belo o mundo da
cultura!
À falta de porvir, deu-me um
passado,
Das freimas e dos sonhos a
figura,
Das crenças e religiões todo o
traçado
E, deformando isso,
Dos impérios e das guerras o
enguiço.
De longe olhado,
O sangue derramado
Se evapora,
Perde toda a realidade que
apavora.
Toda a história
Não é mais que do crime
A memória
Deturpada:
O genocídio dos Índios é a
chamada
Sublime
Descoberta da América;
O tráfico de negros e a
escravatura
São mera peripécia da feérica
Alvorada
Que inaugura
O Novo Mundo;
Guerra do Ópio, esmagamento de
sipaios,
Mera amostra do fecundo
Fardo do homem branco e seus
desmaios…
Levaram-me a crer
Que o mundo real sob cujas
bandeiras
Deverei viver
É o das ideias imaculadas,
Desfraldadas
Sobre as cavernas verdadeiras
Das vidas adiadas.
A humanidade é um covil de
ladrões
E de alienados,
Mas o absurdo, a falta de
sentido, é um dos senões
De que os fados
Eternamente marcaram a
existência:
A sabedoria é perder a ilusão
De que podemos mudar do mundo a
essência
E afastarmo-nos de qualquer
acção.
Estamos cuidadosamente fechados
No casulo:
Nada de trágico pode ocorrer aos
resguardados
Fora da consciência em que me
anulo.
925 – Comprometer
Comprometer a vida
É uma escolha
Sem qualquer fundamento
objectivo.
Uma fé embaraçadora é a medida
Do que dali recolha,
Que me pode colocar, se ma não
esquivo,
Fora de todos os caminhos.
Decisão imprescindível
Que todos tomamos sozinhos
Para que o resto, a vida,
Tenha um sentido vivível.
Desesperadamente indemonstrável,
Tal é a fé,
Afirmação sem provas.
Crêem que à ciência é viável
Pôr de pé
As novas
Que nos respondam às questões.
Ela é mero parêntesis, todavia,
Entre as interrogações
A que ninguém resposta fundaria
Acerca das causas primeiras
E das metas derradeiras.
O ateísmo depura os céus,
Recusa qualquer deus que não seja
Deus,
Última etapa, impoluta,
Antes da fé absoluta.
O centro de quenquer
Não mora no indivíduo, comunidade
ou nação:
Para o caos e a desordem vencer
Terei de postular que há um
produto
Fora de mão:
- Existe um centro absoluto.
926 – Palavra
Entre nós não havia
Sequer
Uma palavra para designar
A propriedade de quenquer.
Ninguém se sentia
Dono do lugar,
Quanto mais da criação!
Tudo era da Terra-mãe e do
Sol que a fecunda.
Ninguém é dono do chão
Nem da chuva que o inunda.
As plantas, os animais,
O húmus, a soalheira,
Dos rios os caudais,
O borralho da lareira,
- Ajudam-nos a viver,
Como o trabalho que houver,
Como a vida das águias, do
jaguar,
Do milho, da montanha…
Tudo em comunidade, a par,
Nada pode ser separado, que nada
ganha.
Propriedade não tem sentido
Num mundo em que nada vive
isolado,
Homens e coisas, tudo reunido
No mesmo braçado.
Moral é viver
Da lei do mundo segundo os
palpites:
Ela a todos liga e a quenquer
A uma comunidade sem limites.
Indivíduo, propriedade, Estado,
Tudo o que fecha e isola um
elemento
Do Universo contra o Todo
entranhado,
Vem doutro lado
Com o signo do tormento,
Para dar cabo do tecido do mundo,
Esventrar as florestas,
Devorar os solos,
Matar os homens e as bestas,
Num monturo imundo
A avassalar do Equador aos Pólos.
Até o trabalho devir forçado
Todo o labor era uma festa:
Dois terços do tempo eram esta
Celebração do eldorado,
Governar era gerir a fantasia
Para todo o mister viver uma
alegria.
Cósmico comunismo,
Com a religião visceral que lhe
subjaz
A emprestar-lhe vera dimensão
sagrada,
Transcende, veraz,
O provincianismo
De qualquer consagrada
Caminhada
Rumo ao socialismo.
Entre nós não havia
Sequer
A palavra que designaria
A propriedade de quenquer.
927 – Tecnocrata
O ciberantropo
Deveio computatropa:
O tecnocrata já não convida para
um copo,
Pelos media dominado,
Não tem cozinha nem copa,
Tudo é virtualizado,
A mente humana desdobra em rigor
O modelo dum computador.
Ignora que é do homem colocar
A questão do primeiro princípio e
do fim derradeiro
E a do sentido que os unificar,
Singular
E cimeiro.
Recusar a questão de fins e meios
É mais que filosofia:
Com o poder actual da tecnologia,
É colocá-la na mão dos receios,
É pôr um gigante ao serviço
De qualquer instinto animal,
mesmo enfermiço.
O computantropo
É o derradeiro avatar do
pitecantropo:
Algum vestígio de humano,
Só por engano.
928 – Dogmatismo
O dogmatismo engendra a
inquisição:
Se a verdade absoluta,
definitiva, acabada,
Detenho em minha mão,
A que dela correr desviada,
É evidente,
É a dum doente
A internar em clínica mental,
Ou a dum perverso refece,
Dum criminoso, dum funesto
canibal
Que então merece,
Sem compaixão,
O patíbulo ou a prisão.
Tal é o destino
De qualquer funcionário do
absoluto,
Quer o desatino
Seja
O produto
Duma seita, dum partido ou duma
igreja.
Dogmatismo-inquisição:
Guerra santa, cruzada,
Guerra de religião,
Residência vigiada,
Gulag, campo de recuperação,
Política perseguição…
- Sempre a mesma receita aviada:
O definitivo Sim que, afinal, é
Não.
A vida viva
Jamais é definitiva.
929 – Pensamento
O pensamento é esterilizado,
A esquemas simples reduzido,
Em dogmas transformado
Que hão permitido,
Num partido
Como em qualquer igreja,
Definir o herético que maldito
seja.
Os esquemas, como uma cortina,
Impedem que a realidade
Se decifre, se defina,
E a história por fazer
Mantém a opacidade
Perante quenquer.
Este dogmatismo,
Naturalmente,
Da ruptura gera o abismo
Mais o julgamento de traição
Que consente
E provoca a excomunhão.
930 – Parte
Não há deveras um adversário:
O meu contrário
Faz parte de mim
Como eu dele até ao fim.
A vida vive em perpétua permuta
Com o Universo,
O bom caçador não disputa,
Funde-se à natureza como seu
reverso.
Defender-me dum assaltante
É utilizar,
Em primeiro lugar,
Dele a força que jogar diante.
Aquele que ataca
O equilíbrio quebra anterior:
Abandona o lugar, já não aplaca
A harmonia do Universo que não
pode repor.
Atacar é já ser derrotado:
Defender-se não é vencer,
É deixar correr o fado
E, por uma defesa que não é,
sequer,
Golpe baixo nem contra-agressão,
Ajudar a recoser até ao fim
Os efeitos do inicial rasgão,
De modo que assim
O corte veda
- E é do atacante a queda.
931 – Problema
O problema económico é religioso:
Põe em causa os fins e o sentido
da vida.
Tem um credo tenebroso:
Produzir mais e mais depressa,
não importa o quê,
Na medida
Em que útil, prejudicial,
Inútil ou mesmo mortal
Como o armamento,
Ponha de pé
Um rendimento.
E tem dogmas, a economia,
Pelos grandes apóstolos
definidos,
Os computantropos tecnocratas:
A ciência, como a técnica,
poderia
Todos os nossos problemas ver
respondidos,
Todos os desejos que acatas;
Todo o tecnicamente viável
É uma fatalidade desejável.
E tem uma moral:
Os maiores desejos urge ter
E encontrar o instrumental
De os satisfazer.
Tem mesmo uma liturgia,
A economia:
O marketing e a publicidade
A forjar a cada dia
Uma nova necessidade.
E tem um clero:
O dos meios de comunicação,
A condicionar os povos, não vão
cair no desespero,
Para buscarem a felicidade
E a salvação
Nesta forma de acumulação.
É muito significativo que os
crentes
Na religião
Da economia
Tenham a mania
De se confessar indiferentes.
Assim, discretos,
São dela agentes
Secretos
E, por isso, tanto mais
eficientes.
932 – Pista
De automóveis a corrida
É um brasão
Da desenvolvimentista
Nova religião:
Na pista,
De seguida,
Cada bólido começa
A furar como uma verruma,
Cada vez mais depressa, cada vez
mais depressa,
- Para não ir a parte nenhuma!
933 – Herdámos
A História
Com os acontecimentos,
Violências, guerras, dominações,
Ocupa muito mais memória
Que os eventos
Donde herdámos construções.
Mais que o trabalho eterno do
camponês
Que, em quarenta séculos
assegurou
O quotidiano da vida,
À nossa paisagem talhou
O jaez
E o rosto da comida.
Mais que o labor de poetas e de
artistas
Que delinearam os possíveis
E lhes semearam frágeis pistas
De afectos em vergéis
apetecíveis.
As espadas e as vitórias
Apenas deles alguns poucos
Garantiram, inglórias.
Mas os historiadores continuam
moucos
E o jornalismo, história do
presente,
Não escuta o que anda em vias de
nascer.
A voz de milhões de homens,
sempre ausente
Desta história do desviver,
É a daqueles em que fermentarão
Os sinais deveras da criação:
Técnica, amor, poesia, dança,
- As pequenas sementeiras da
esperança.
934 – Povo
Quando um povo tem uma fé
verdadeira,
Perante qualquer exército vai até
ao fim,
Mesmo se este dispõe de meios de
primeira
A arrasar-lhe o jardim.
Os estrategos tecnocratas que
avaliam
Pela potência de fogo e da
logística
Invariavelmente os cálculos
extraviam:
A fé não entra na estatística.
O erro crónico
É que a fé, imponderável como a
brisa,
Não a contabiliza
Nenhum circuito electrónico.
935 – Antes
O mundo ocidental
Não é deveras ateu, antes é
politeísta:
Dinheiro, poder, vida sexual
Integram uma lista
De valores absolutos
Que, sem tergiversações,
Se impõem, impolutos,
Às antigas religiões.
Aos ancestrais estes deuses levam
a palma
Mesmo na vida mais pacata e
calma.
936 – Morte
A morte não é o fim,
É a plenitude duma vida
Embebida de eternidade,
Dum mundo que a mim
Me convida
E me invade,
Em cujo projecto me aplico
E assim definitivamente
justifico.
937 – Convidado
A democracia
É um convidado vulnerável e
exigente
Que requer em cada dia
A atenção de toda a gente.
Bem longe do fito dela
É servir de panaceia:
Mero ponto de partida, apela
Aos possíveis a que ameia.
Uma mesa neutralmente disponível
Arrumo para sobre ela
Colocarmos a iguaria mais
apetecível.
Se esta é bonita ou feia,
Venenosa ou monstruosa,
Como ocorre volta e meia,
Não é culpa da mesa ou das
vitualhas,
Mas nossa, que nossa mão é que lá
poisa
Quer a comida saborosa,
Quer a pejada de falhas.
Ou outrem o mal fez, no intervalo
De nossa distracção,
E nós não tivemos a preocupação
De retirá-lo.
938 – Arrependimento
Arrependimento do que fizemos
Pelo tempo é amenizado.
Do que não fizemos
É que, inapelável, o teremos
De ver consumado.
939 – Herói
Um herói,
Quando o caso deu para o torto,
Por mais que herói tenha sido
quando o foi,
Se é um herói morto,
Não deixa de estar morto.
- É o que dói.
940 – Escravos
Os homens de acção
Escravos involuntários
Dos do entendimento são.
As coisas não valem senão
De juízos pelos rosários
Que delas se farão,
Ao dar-lhes interpretação.
Uns, portanto, as coisas criam
Que outros que nem as viam
Mudam em significação,
De modo que, transfundidas,
Se tornem vidas.
Narrar
É, portanto, criar
E viver, neste sentido,
É ser vivido.
941 – Estalagem
A meio caminho
Entre a fé e a crítica,
A estalagem mítica
Da razão
E, nela, o secreto cadinho
Da ilusão.
A razão é a fé no que se pode
Compreender sem fé.
Mas é uma fé que ainda lhe acode,
Pois compreender é
Pressupor, indesmentível,
Que há-de haver algo de
compreensível.
942 – Tomamos
Somos morte
E o que tomamos por vida
É a vida real dormida,
Morte do que a sério somos,
Quando para este lado tomámos o
transporte.
Os mortos nascem, não morrem,
Maduros pomos
Que para o chão de lá tombam e
correm…
Andam trocados os mundos para
nós:
Quando cremos
Que vivemos
Andamos mortos, aqui a sós.
Vamos viver
Quando estivermos moribundos
E a raiz de lá, ignorante destes
mundos,
Desatar a crescer.
943 – Repugno
Como condenação
Repugno a vida real,
Repugno o sonho ideal
Como ignóbil libertação.
Vivo, entretanto, o mais sórdido
quotidiano
Da vida real (e não é por engano)
E o mais intenso e constante do
sonho
(E o facto é que a tal me
predisponho).
Sou o escravo à sesta embriagado:
Duas misérias num só corpo
condenado.
944 – Todas
Ter umas opiniões
A si próprio é andar vendido.
Não as ter, são as razões
De viver descomedido.
Tê-las todas não é meta:
- É ser poeta.
945 – Caça
Mal iniciada a caça ao
prisioneiro,
Tudo é imprevisível,
Menos a morte, certa por inteiro,
No termo do sendeiro percorrível.
Contra a fatalidade apenas
resulta
Adiar pela corrida.
E a atitude é sempre estulta
Se o ignora quando contra outrem
dirigida.
Nunca é jogo a sério
Até que a vítima acabamos sendo
nós:
Do jogo é o império
Que desta vida nos desata os nós.
E nós, desde que nascemos
Fomos a peça de caça:
Quando embora não o vemos,
Não escapamos ao tiro que nos
traça.
946 – Coisas
Não vemos as coisas como são
Mas como acreditamos que sejam,
Olhamos o sombrio saguão
Através do espelho onde se
entrevejam.
Contudo, o espelho mais escuro,
Embaciado por estranhos e
entranhados pós,
É este espelho impuro,
Inseguro,
Em que nos olhamos a nós.
947 – Problemas
Sempre um homem tem mais medo
Dos problemas que hão-de vir
Mais tarde ou mais cedo,
Do que alguma vez há-de sentir
Pelos que já teve.
Fiel ao que andar habituado
Perene se mantém, leve,
Por outro lado,
Antes de arriscar qualquer
mudança.
Poderá falar de como gostaria
De escapar aos outros vivos.
Sempre os mortos, todavia,
É que, esquivos,
Lhe farão o mal que o alcança.
É aos mortos que jazem quietos
No lugar,
Que o não tentam agarrar,
Secretos, discretos,
Que ele jamais logra escapar.
948 – Recusa
A mente
Tem a faculdade de escamotear
O que a consciência, presente,
Se recusa a assimilar.
Felizmente, felizmente:
- Ou de mim ia acabar
Eternamente ausente,
Sem lugar em meu lugar
Onde a verdade me mente
Até podê-la agarrar.
949 – Ladeira
A vida é uma encosta.
Ao trepar,
Olhamos para os cimos
E felizes nos sentimos
Da aposta
A ganhar.
Chegados ao topo,
Descobrimos, de repente,
Atingido o escopo,
Da ladeira a vertente,
A descida e, no derradeiro
recorte,
O fim: a morte.
Ao treparmos,
Tudo vai mui lentamente.
Quando começa
O alcantil descendente,
Ao deslizarmos,
Tudo corre mui depressa.
Na juventude, que alegria,
Tanto que se esperaria
E que não chega nunca mais!
Depois, já ninguém espera nada
Além duma tarde sossegada
Até cerrar os portais.
950 – Descobrimos
Descobrimos de repente a morte,
Sem porquê nem a propósito,
E tudo na vida muda.
Sinto-a minar-me, corte a corte,
De verme a formar depósito,
A roer-me o que me iluda.
Dei por isto lentamente,
Mês a mês, hora a hora,
A abalar-me, persistente,
Uma casa que demora
A abater, cheia de gente.
Tanto me desfigurou
Que já nem me reconheço.
Não tenho nada de mim,
Do homem que iluminou
Fresco e forte e sem tropeço
Os meus vinte anos sem fim.
Branco deveio o castanho
Cabelo de antigamente
Com a lentidão no amanho
Dum camponês previdente,
Sábio, perverso no ganho.
Retirou-me a pele lisa,
Os meus músculos, os dentes,
Todo o meu corpo de então,
Deixa-me alma que me avisa,
Desesperada, entrementes,
Que ela em breve tomba ao chão.
A morte velhaca, docemente,
Terrivelmente destrói
Meu ser, segundo a segundo.
Sinto-me morrer, jacente,
Pois o que quer que faça mói
O grão que restar no mundo.
Cada passo me aproxima,
Cada movimento em vão
E cada respiração
De me vir cair em cima
Da morte a desolação.
Respirar, dormir, beber,
Trabalhar, comer, sonhar,
Tudo aquilo que fizer,
Qualquer que seja o lugar,
- É morrer!
Vaga sombra de fumo,
Viver é morrer, em resumo.
Que espero ainda?
Amor?
- Um beijo faz que prescinda
Impotente, do fervor.
Dinheiro?
Para quê?…
- Para pagar um parceiro,
Bebermos até
Nenhum se ter de pé?
A glória?
- Nos baldões da sorte,
Que importa a vitória
Se o que resta ao fim é a morte?
Cobre a terra e enche o espaço,
Descubro-a por toda a parte,
No letal abraço
Que pelo Universo se reparte.
Os insectos esmagados no caminho,
As folhas que tombam,
O pêlo branco na barba do
vizinho,
O coração me arrombam
Com o grito:
- Ei-lo aí, o fim maldito!
Estraga o que faço e vejo,
O que como e bebo,
O que adoro e invejo,
O luar de que me embebo,
O alvor e o mar,
O rio, a brisa do ar…
Ninguém volta mais.
Guardam de estátuas as formas,
Cunhos de objectos repetidamente
iguais.
De mim perderam as normas,
Não, não voltarei jamais.
Biliões e biliões nascerão
Com rosto igual ao meu.
Nenhum deles serei eu,
Ao mundo a estender a mão.
A quem dirigir o grito de socorro?
Em que poderemos crer?
Ao certo, apenas morro,
Nada me pode aqui prender.
Pensa nisto, que verás
Tudo duma outra maneira.
Que importam ideologias,
Ao fim e ao cabo meras
sensaborias,
Aliás,
Fementindo a vida inteira?
Que importa um amor traído,
Um clube de futebol,
Um partido,
Da pública despesa o rol?
Que importa a religião,
Costumes da região,
Culturas várias dos povos?
Conservantismos, renovos,
Onde irá tudo parar?
Tudo são listas de enganos.
São mais cinco biliões de anos
Para a Terra, a fumegar,
Ser como um tição na grelha,
Na periferia
Desta gigante vermelha
Em que o Sol se fina um dia.
Há mesmo desproporção
Entre a inteligência haurida
E nossa irremediável vida:
Se eu fora como o meu cão
Não dava pela desgraça
E em tudo acharia graça.
Como os medíocres são,
Como a alimária que passa…
Como o ignorante é feliz
Que nada vê de raiz!
951 – Formidando
O formidando desenvolvimento
Dos meios audiovisuais
Cujo incremento
Revolucionou as comunicações,
Monopoliza cada vez mais
O tempo do ócio e do
entretenimento,
Arrebatando-o às sugestões
Da leitura.
Inaugura,
No futuro imediato,
Uma colectividade moderníssima,
Eriçada de computadores, ecrãs,
Mas, de facto,
Sem livros no que a configura.
É uma tribo estranhíssima,
De tanga todas as manhãs,
Comunidade mágico-religiosa
À margem da modernidade,
Da Amazónia ou da Gorongoza,
Mundo cibernético na verdade
Incivilizado,
Sem espírito, à venda no mercado,
Onde vislumbramos logo após
Uma humanidade
De robôs.
Não tendo à mão
As escritas,
Regride-nos a razão
Ao tempo dos palafitas.
952 – Pequeno
Ser pequeno é desvantagem:
Trabalhos de casa para levar a
eito,
Tarefas domésticas por triagem,
Irmãos bebés sem respeito
Pelo território alheio…
E é também uma grande sorte
Ser criança:
Encontro uma moeda no passeio
E sinto-me rico e forte,
Uma pedrinha a mão alcança
De fóssil com formato
E vejo-me super-homem a voar nos
céus,
Um formigueiro desacato
E sinto-me Deus…
Para a criança, morrer,
É cair, levantar-se, sacudir a
perna
E desatar a correr:
Para ela a vida é eterna.
De algum modo tem razão:
Quando alguém vive, brinca, chora
E ama simultaneamente,
O tempo já ali não
Mora,
- Não existe, simplesmente.