CANTO  DEZ

 

 

OUTRO  MUNDO  DE  ALÉM  ME  NEGACEIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1115 e 1255 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    1115 – Outro mundo de além me negaceia

 

                                                    Outro mundo de além me negaceia

                                                    E então me lanço a planar,

                                                    Aqui um pé no lugar,

                                                    Outro no horizonte além da aldeia.

 

                                                    Quando um estrela se alteia

                                                    Sou eu a sonhar,

                                                    No infinito os olhos a pulsar

                                                    Sondando o que a vida me põe cheia.

 

                                                    De repente,

                                                    Descubro que, afinal, de mim ausente,

                                                    Vazio fico, sem alternativa.

 

                                                    Retorno a mim,

                                                    Acolho-me, sereno, em meu confim

                                                    E toda a murcha planta reaviva.

 

 

1116 – Reveses

 

Nos reveses,

Não desistas, persistente:

- Às vezes,

É só um pouco mais à frente.

 

 

1117 – Ficção

 

Ficção e realidade

Sempre uma doutrem divergem

Mas em vida que me agrade

Ambas afinal convergem.

 

 

1118 – Acriançada

 

Literatura infantil

Não é nunca acriançada.

Do mundo traça o perfil:

- É adulta ou falha de entrada.

 

 

1119 – Teatro

 

Do teatro quando saio,

Meus sentidos vão despertos:

Depois da chuva e do raio

Tudo é vivo e os céus, abertos.

  

 

1120 – Jogar

 

O intento

É mais que jogar à bisca:

Você perde cem por cento

Daquilo que não arrisca.

 

 

1121 – Regra

 

Quem quer ser abelha-mestra

Segue a regra da colmeia,

Quem quer conduzir a orquestra

Vira costas à plateia.

 

 

1122 – Sombras

 

As acções, como as lesões,

Infectam ou desinfectam.

As mais velhas transgressões

Que grandes sombras projectam!

 

 

1123  - Dádiva

 

De Deus dádiva maior

Mas em que ninguém aposta

É deveras de supor

Que é uma oração sem resposta.

  

 

1124 – Plano

 

Um plano é só a intenção

A menos que, de imediato,

O trabalho entre em acção,

Transmude um intuito em acto.

 

 

1125 – Grande

 

São mais do que valores:

Qualquer grande homem é aquele

Que nos faz sentir maiores

Na presença dele.

 

 

1126 – Licenciatura

 

Licenciatura é sinal,

Não de produto acabado,

Mas de estar-se preparado

Da vida para o fanal.

 

 

1127 – Fama

 

Buscas fama com ardor

Tal se te amara, desperta.

Despertas só, com horror:

A fama é uma amante incerta.

 

 

1128 – Pensamento

 

Afirmar que o pensamento

Ninguém vai poder olhar

É ignorar todo o elemento

Que em arte anda a negacear.

 

 

1129 – Jovem

 

Um jovem é quem,

Por entre vanglórias,

Esperanças tem

Mais do que memórias.

 

 

1130 – Aceita

 

Aceita!

Para quem a goza,

A vida não tem de ser perfeita

Para ser maravilhosa.

 

1131 – Acaso

 

Pelo acaso dos fados

No crescimento dos ramos,

Nunca andamos, afinal, preparados

Para o que esperamos.

 

 

1132 – Licenciado

 

Ser licenciado é ter

Um de dois jeitos a par:

Tanto aprender a aprender

Como aprender a pensar.

 

 

1133 – Espera

 

Não tenham dó

Do que a vida não quiser:

A espera do prazer é por si só

Um prazer.

 

 

1134 – Conserta

 

Deus conserta um coração

Estalado em mil e um traços

Se lhe pusermos à mão

Os pedaços.

 

 

1135 – Longe

 

Quando não sabemos onde

Nos dirigimos é quando,

Sem ver o que nos responde,

Mais longe vamos andando.

 

 

1136 – Férias

 

As férias dão-nos o meio

De olhar atrás e adiante,

Orientando, de permeio,

A bússola a cada instante.

 

 

1137 – Cumes

 

O melhor dos alpinistas

Não é quem os siderais

Cumes trepa em ínvias pistas,

É quem se diverte mais.

 

 

1138 – Rotina

 

É boa a rotina que há-de

Dar-te o chão de qualquer ida,

Porém a variedade

É que dá sabor à vida.

 

 

1139 – Aprestas

 

Se te aprestas para o jogo,

Incendiado, em frente corre!

Nas lutas entre água e fogo

É sempre o fogo que morre.

 

 

1140 – Acaso

 

Ao acaso encobrem véus

Mentindo-te o que nele haja:

Um acaso é sempre Deus

Quando incógnito viaja.

 

 

1141 – Força

 

A força que houver nos céus

Sempre acaba vindo à tona:

Mesmo que abandones Deus,

Jamais ele te abandona.

 

 

1142 – Algo

 

Repara bem na medida

Que a vida nos menoscaba:

Quando algo acaba na vida

Nem tudo na vida acaba.

 

 

1143 – Diálogo

 

Um diálogo deveras

Só existe quando nós cremos

Que de Deus mil faces veras

Nas religiões mil teremos.

 

 

1144 – Jarra

 

O mundo se ilude

E perde o tesoiro:

A flor da virtude

Murcha em jarra de oiro.

 

 

1145 – Memórias

 

O ganho

Das memórias que procuro:

As histórias que conto de antanho

Dão forma ao futuro.

 

 

1146 – Cuidam

 

Do descuidado

Cuidam as aves dos céus.

Pobre fado!

- Do cuidadoso cuida Deus.

 

 

1147 – Maneira

 

Sobre as coisas falar

É um tema banal,

Sobre a maneira, porém, de as olhar,

Que perspectiva tão excepcional!

 

 

1148 – Único

 

Ser único e ser reconhecido

É sempre contraditório:

O único jamais pode ter existido,

Como então reconhecer-lhe o envoltório?

 

 

1149 – Ladrão

 

Anda um ladrão no meu quarto,

Entra lá quando eu lá entro,

De lá parte quando parto…

…É o espelho ou é o meu centro?

 

 

1150 – Palavra

 

A palavra é uma pedra

E o que nela vive é escassa

Alma que por ela medra

E passa.

 

 

1151 – Instante

 

Eu escrevo a segurar

Nas minhas inábeis mãos

O instante que cintilar,

Não se esgueire nos desvãos.

 

 

1152 – Fome

 

A fome da humana condição

Requer largueza de estilo,

Não se esgota nunca, não,

Num estômago tranquilo.

 

 

1153 – Lindas

 

Qual é o malefício

Das pequenas coisas belas?

Gosto de fogo-de-artifício,

- Mas que lindas as estrelas!

 

 

1154 – Mede

 

Hesita,

Mede se é virtude ou vício.

A vista mais bonita

É à beira do precipício.

 

 

1155 – Bom

 

O que de bom se fizer

Numa vida de bondade

É o que irá permanecer

Para toda a eternidade.

 

 

1156 – Conseguir

 

Se digo "vamos fazer",

Nunca então ninguém faz nada.

Conseguir o que quiser

Só se agir agindo a estrada.

 

 

1157 – Suportamos

 

A evidência

É que a vida às vezes quer

Mais paciência

Que a que suportamos ter.

 

 

1158 – Mundo

 

Se acerto, ninguém recorda;

Quando errar, ninguém esquece…

- Quem acorda, quem acorda

Este mundo que anoitece?

 

 

1159 – Saída

 

Dite-o

A quem não quer viver já:

- Qualquer saída será

Entrada para outro sítio.

 

 

1160 – Loucura

 

Infeliz de quem não teve

Nem pretexto nem vontade

De qualquer loucura breve

A quebrar-lhe a opacidade!

 

 

1161 – Problema

 

O problema de ficar

Todo o tempo a olhar atrás

É de vez te ires virar

E já porvir não terás.

 

 

1162 – Génio

 

Um homem de génio não

Erra quando não acerta,

Que um erro dele é um portão

Para a nova descoberta.

 

 

1163 – Sonhos

 

Os sonhos são importantes.

Não podemos, ao criarmos,

Fazer nada, agora ou dantes,

Se antes não o imaginarmos.

 

 

1164 – Música

 

As palavras são caneta

Do coração, mas a palma

Leva-a a música, completa:

Música é caneta de alma!

 

 

1165 – Perderá

 

Perderá qualquer pessoa

As pequenas alegrias

Enquanto esperar, à toa,

A grande todos os dias.

 

 

1166 – Eleição

 

Uma eleição é uma aposta

No futuro a ser gerado,

Não o teste a ver se gosta

Do popular no passado.

 

 

1167 – Felicidade

 

É o além

Que me convém.

Felicidade é saber

Que poderei, se quiser…

 

 

1168 – Cegos

 

Para os cegos a visão

É a porta do paraíso,

Mas para os que vêem, não,

Nem vêem o prejuízo.

 

 

1169 – Deveras

 

Ouvir deveras o melro cantar,

Mergulhar no delírio do céu azul,

É o germe do Espírito alcançar,

Bem dentro em meu imo, sob o véu de tule.

 

 

1170 – Ilusão

 

É uma ilusão o que encurta

As veras metas da vida:

- A linha mais curta

É sempre a mais comprida.

 

 

1171 – Batalhas

 

As batalhas aprendi

A escolher em que me envolvo:

- Que é que isto importa daqui

A um ano? Um mês? Se o não solvo?

 

 

1172 – Novas

 

Se estivermos bem atentos

Aprenderemos decerto

Notícias novas aos centos

E cada dia mais perto.

 

 

1173 – Acordas

 

Se acordas a respirar, parabéns

De verdade:

- Tens

Outra oportunidade!

 

 

1174 – Aprecio

 

Quando honro e aprecio a vida

No que de mais belo tem,

Dela fundo vivo a lida,

Protejo-a no que nela advém.

 

 

1175 – Poço

 

O poço está dentro em nós,

Se cavarmos fundo agora

Jorrarão águas após.

- Que justifica a demora?

 

 

1176 – Quanto

 

A vida é tão criativa

Quanto destrutiva for,

Que a nova é sempre cativa

Da que morreu anterior.

 

 

1177 – Dizê-lo

 

Não tenho nada a dizer

E eis-me a dizê-lo algum dia:

- Há-de ser

Poesia.

 

 

1178 – Mistérios

 

Lembrança dos mistérios é o encanto,

Por trás oculta a musa e o museu

E a música que canto

De olhar longo a percorrer o céu.

 

 

1179 – Esforço

 

A natureza é um lugar encantado,

A cultura, um esforço de sustento

Do evocado

Encantamento.

 

 

1180 – Esperança

 

O dia em que Deus criou

A esperança decerto era

O mesmo em que inaugurou

O portal da Primavera.

 

 

1181 – Laboro

 

Debalde me o sonho inclina,

No projecto mal me auguro…

- O que laboro é que ensina

A ver mesmo o que procuro.

 

 

1182 – Exemplo

 

Um bom exemplo é divino,

Seja lá qual ele seja.

Bom exemplo é como um sino:

Chama o povoado à igreja.

 

 

1183 – Anónimo

 

É sempre a palavra acaso

A palavra que Deus usa,

Ao encaminhar um caso,

Quando anónimo se escusa.

 

 

1184 – Conjunto

 

A vida não é uma história

Mas um conjunto de peças

À espera de ter a glória

Duma história com que a teças.

 

 

1185 – Contra-senso

 

Contra-senso cultivado

Tem um tom bem mais profundo

Que o sentido declarado:

Toca as raízes do mundo.

 

 

1186 – Poeta

 

O poeta é quem sente

De todas as coisas a poesia

Superabundantemente,

Apesar do dia-a-dia.

 

 

1187 – Encantamento

 

O encantamento não é

Mais que espiritualidade

Enraizada, a tomar pé

Na terra em profundidade.

 

 

1188 – Preciso

 

Sendo o mundo uma ilusão,

É preciso se iludir

De alguma forma, senão

Ninguém triunfa a seguir.

 

 

1189 – Corpo

 

O corpo é de alma uma parte

Percebida dos sentidos

Que se não coloca aparte:

São mil mundos convividos.

 

 

1190 – Algures

 

A verdade perigosa

Mais que humano qualquer feito

É crer que algures se goza

Dum mundo de vez perfeito.

 

 

1191 – Munir-nos

 

Se houve mesmo uma intenção

Ao munir-nos dum pescoço,

Não é de encolhê-lo, não,

É esticá-lo o mais que posso.

 

 

1192 – Oportunidade

 

Que oportunidade alcança

Quem à espera cansa a vista?

A oportunidade dança

Com quem já dançar na pista.

 

 

1193 – Lugar

 

Não há como retornar

A um lugar inalterado

Para descobrir, a par,

Como em nós tudo há mudado.

 

 

1194 – Vida

 

Sempre a vida nos enrola

Em mil tramas cada via.

A vida será uma escola

Mas que a ninguém licencia.

 

 

1195 – Manifestada

 

Todo o mártir ganha a palma

Dos testemunhos sofridos:

É qualquer corpo sempre alma

Manifestada aos sentidos.

 

 

1196 – Sentidos

 

Quando para o corpo olhamos

É ver alma o desafio:

Como em sentidos me fio

Quando alma é o que vasculhamos?

 

 

1197 – Noite

 

A beleza de alma é percebida

Pelos sentidos, fugaz lanterna

Na noite dos medos escondida…

- Contudo, é eterna!

 

 

1198 – Caverna

 

Alma tem lugar ao sol

Mas à caverna reduz

O melhor que tem no rol

E que jamais traz à luz.

 

 

1199 – Poeta

 

O poeta adequado

É o que poetar selvagem,

De intelecto inebriado

No néctar de ignota viagem.

 

 

1200 – Fé

 

É ter fé acreditar

Que existirá mais caminho

Do que aquele que avistar

Mais do que além adivinho.

 

 

1201 – Normal

 

O normal nunca o perfilo

Nos reinos nunca encontrados,

O normal é sempre aquilo

A que andamos habituados.

 

 

1202 – Depressa

 

Tão depressa muda tudo

Que na notícia em directo

Páginas da História mudo

E ouço-as virar-se em concreto.

 

 

1203 – Jovem

 

O jovem não tem da vida

Experiência de anotar

Que o mau momento convida

A dar tempo, há-de passar.

 

 

1204 – Infância

 

Pouco importa

O que eu auguro,

- Toda a infância abre uma porta

E por ela entra o futuro.

 

 

1205 – Nunca

 

Nunca nós nos realizamos.

No que cada tem de seu

Dois abismos abarcamos:

Um poço fitando o céu.

 

 

1206 – Olhos

 

Nos olhos humanos, a evidência

Terrível e calma:

O aviso fatal da consciência,

Grito clandestino de haver alma.

 

 

1207 – Mente

 

Mantendo a mente liberta

Nas horas de contemplar

Deixo em mim a porta aberta

Para a ideia que brotar.

 

1208 – Terrível

 

O que temo que aconteça

É terrível nas esperas

E bem mais que quando meça

O que acontece deveras.

 

 

1209 – Passado

 

Passado não é passado,

É modo de me enganar:

As coisas que parecem ter passado,

Afinal, nunca acabam de passar.

 

 

1210 – Mau

 

Para ir tendo à mão

O mistério de existir,

Mau não é ter uma ilusão,

Mau é se iludir.

 

 

1211 – Estupidez

 

É estupidez, te asseguro,

O presente perder o lugar

Só por medo de não vir a ganhar

O futuro.

 

 

1212 – Céu

 

Para que o céu se abra,

Muitas vezes é preciso que o deixe:

- Que uma porta glabra

De vez se feche.

 

 

1213 – Ouves

 

Como não ouves o apelo

Dos céus?

Tudo o que há de belo

Traz o jeito de Deus.

 

 

1214 – Viagem

 

Nascer, a viagem

Tempo além.

A morte conduz a carruagem,

A vida também.

 

 

1215 – Meio

 

Oração e acção: no meio do frenesi

Perdemos a noção dos céus.

Reza como se nada mais contara para ti,

Trabalha como se nada mais contara para Deus.

 

 

1216 – Almas

 

Para as almas, o medo da morte

É o medo de perder,

Ao acaso da sorte,

As razões de agir e de viver.

 

 

1217 – Mudar

 

A revolução, a miúdo,

A todos arranca as peles…

- Os revolucionários querem mudar tudo,

Excepto eles próprios, excepto eles.

 

 

1218 – Graça

 

A graça não contradiz

A natureza que ajude,

Todos os rostos lhe diz,

Apela-lhe à plenitude.

 

 

1219 – Barricada

 

O muro e a barricada não é seguro

Que entupam igual rumo a seguir.

A barricada é o contrário dum muro:

- É para abrir.

 

 

1220 – Tocam

 

As artes tocam no fundo:

Dançar

É aprender a respirar

Ao ritmo do mundo.

 

 

1221 – Encarando

 

Encarando a vida como instrumento

Duma energia mais elevada

É que ela pode visar, na estrada,

A plenitude a cada momento.

 

 

1222 – Provisória

 

Que é que nos mede?

Cada corpo é a encarnação

Provisória dum turbilhão

Que nos excede.

 

 

1223 – Traço

 

Cada sofrimento tem um rosto.

O número deles evidencia quanta estrutura

No homem desfigura

O traço de Deus suposto.

 

 

1224 – Paz

 

Paz não é da guerra ausência,

Mas justiça.

Todos os dias, em consequência,

Nova batalha atiça.

 

 

1225 – Caminho

 

Bater no fundo a vantagem

Tem de o rumo que o redima,

Único para a viagem,

Ser a trepar para cima.

 

 

1226 – Metafísica

 

A vida é metafísica às escuras,

Com um vago rumor de deuses

E o desconhecimento da via que procuras

Como rota única dos adeuses.

 

 

1227 – Absurdo

 

Gestos grandes ou pequenos,

Tudo é absurdo. Pôr de pé

Um jogo de falsa fé?

- Ainda é o sonho o que o é menos.

 

 

1228 – Estupidez

 

O que mais me maravilha

Do que a estupidez geral

É a inteligência que brilha

Da estupidez no sinal.

 

1229 – Rei

 

Se eu domara o maior sonho,

Que houvera para sonhar?

Se da paisagem disponho,

Que impossível apontar?

 

 

1230 – Gigantes

 

Dos gigantes a mãe sempre a humildade

É, que tudo se resume

A que dum vale se vê sempre a imensidade

E meras pequenas coisas dum cume.

 

 

1231 – Adianta

 

De que adianta correr

E tornar o longe perto

Se afinal não se estiver

No caminho certo?

 

 

1232 – Coincidências

 

Coincidências que hão-de ser

Senão o truque que Deus

Inventou de olhar aos seus

E anónimo se manter?

 

 

1233 – Narra

 

Narra, que na tua prosa

Há sonhos que acaso amarram:

Influem no que alguém goza

Doutrem os lábios que narram.

 

 

1234 – Pedir

 

Com a vontade me meço

No que de mim projectar.

Pedir, peço,

Mas pedir não é alcançar.

 

 

1235 – Sonho

 

O sonho dum acordado

Como outro sonho é qualquer:

Desenho a que anda inclinado

Mais memórias que tiver.

 

1236 – Quinze

 

O sentimento e a verdade

Têm um metro esquisito:

Pelos quinze anos de idade

Tudo é infinito.

 

 

1237 – Manter

 

Saber não ter ilusões

É deveras requerido

Para um sonho sem senões

Poder manter no sentido.

 

 

1238 – Fecha

 

Em tudo repara enquanto

Teus olhos olham despertos.

Fecha os olhos e vê quanto

Não logras deles abertos.

 

 

1239 – Doloroso

 

O mais doloroso em nós

É o que não somos deveras

E a tragédia-mor, após,

Na ideia ocorre em que o leras.

 

 

1240 – Pegadas

 

Em minhas pegadas arrolo

O que sou.

É fincando os pés no solo

Que as aves desprendem voo.

 

 

1241 – Criador

 

O curioso repara e pergunta: "por quê?"

O criador sonha e, na ilusão,

Pergunta, já de pé:

"Por que não?"

 

 

1242 – Jogo

 

O jogo da vida é duro,

Não há como o futurar,

Mas jogar pelo seguro

Não é jogar.

 

1243 – Enquanto

 

Enquanto medras,

Não analises demais,

Não levantes tantas pedras:

- Sabes lá o que debaixo encontrar vais!

 

 

1244 – Livros

 

O dinheiro em livros gasto

É sempre disseminado

Como as sementes num pasto

Donde germina o gramado.

 

 

1245 – Livrarmo-nos

 

Teremos de estar dispostos

A livrarmo-nos da vida

Planeada, para a postos

Vir a que aguarda em seguida.

 

 

1246 – Trabalho

 

Por atacado ou à peça,

O que importa é começar.

Trabalho que não começa

Leva mais tempo a acabar.

 

 

1247 – Frestas

 

Abre frestas para o lado,

Mesmo ao que não se anuncia,

Que acaso é o não convidado

Que faz melhor companhia.

 

 

1248 – Sério

 

Teu sério querer

Torna-te adivinho:

Se a vontade quer,

Abre-se um caminho.

 

 

1249 – Silente

 

Mesmo se se der

Silente aos que o tomem,

Sempre algo a aprender

Há com um grande homem.

 

 

1250 – Êxito

 

Fora embora busque abrigo,

Mais vem ele do que faço:

Do êxito o pior inimigo

Sempre é o medo do fracasso.

 

 

1251 – Agarrada

 

De ser agarrada a vida

Pelos colarinhos gosta,

Que digam: "minha querida,

Estou contigo na aposta!"

 

 

1252 – Máscaras

 

Todos máscaras usamos.

Sempre, porém, chega aquele

Momento em que as não logramos

Tirar sem tirar a pele.

 

 

1253 – Valor

 

Um valor não é tendência

Da moda de qualquer lado

Que possa, em qualquer pendência,

Ser a gosto negociado.

 

 

1254 – Felicidade

 

Felicidade não é

Final estado a atingir,

É uma maneira, com fé,

De viajar e prosseguir.

 

 

1255 – Passo

 

Um pouco de tudo aquilo

Por que passo fica nos mais,

Nada se perde no rio tranquilo

Que não finda jamais.