CANTO  DOZE

 

 

EM  CLÁSSICAS  PEGADAS BALANCEIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1406 e 1583 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    1406 – Em clássicas pegadas balanceia

 

                                                    Em clássicas pegadas balanceia

                                                    O soneto, ao pascigo encaminhando

                                                    O rebanho de afectos, sempre quando

                                                    Em ternura um amor nos incendeia.

 

                                                    Mas, soltos os cordeiros, é no brando

                                                    Pendor que toda a grei já se semeia,

                                                    O amor transponho aos laços e a candeia

                                                    Dos sonhos alumia todo o bando.

 

                                                    Então conclamo a meu redil as bestas

                                                    Que armam esperas, de punhais na mão,

                                                    Que me angustiam: as questões molestas.

 

                                                    Encurralar-me deixo no saguão

                                                    Das questões sem resposta em que me firo,

                                                    Mas lucidez ao erro em mim prefiro.

 

 

1407 -  Dizer

 

Dizer "desejo-te!" é falar correcto,

"Amo-te muito!" é já perturbador,

"Amo-te mal!" então é de supor

Que de conversa nunca fui objecto.

 

As histórias de fadas vão expor

Que eterno fica o amor, findo o trajecto,

E mentem sempre que exigente, inquieto,

Sempre há-de ser no refulgir do ardor.

 

É uma obra de arte, um regateio, um riso,

Uma longa paciência comungada,

Uma disputa acesa ou um aviso…

 

- Tarefa eternamente inacabada,

Seu alerta maior é o que ajuízo

De dia a dia abrir sempre outra estrada.

 

 

1408 – Inteiro-me

 

Inteiro-me de tua solidão

E a Presença a teu lado permanente

Dentro em ti como em teu rastro igualmente

As pegadas recobre de teu chão.

 

Abraço do Universo em nós presente,

Quem nele nos retoma o coração?

Que braço hospitaleiro esta emoção,

Esta dor vem ungir aqui, silente?

 

 

Conduz-te um dia para um outro reino,

Não adivinhas quando ele intervém

Nem como a nova vívida tem treino,

 

Tem tantos meios de levar-te além.

A um mágico, porém, mui semelhante,

Põe de ti perto quanto foi distante.

 

 

1409 – Rio

 

Vinte e cinco anos são a vida inteira

No rio dos eventos desaguada:

Labor em cachoeira atribulada

Nas ondas refrescando quem se abeira,

 

Afluentes de amigos que a passada

Pelos caminhos rendilhou à beira,

Dos filhos o marulho em cada jeira,

Na rega a amadurar a desfolhada…

 

Açudes de doenças doloridas,

Rápidos perigosos onde há riscos

E a fadiga onde o mar mora mais perto…

 

De vida é um rio mais, que em duas vidas

Da ternura lançámos sempre os iscos:

- Amarmo-nos, que rio no deserto!

  

 

1410 – Útero

 

Em útero materno quando estávamos

Seguros nos sentíamos, bem quentes,

A fome, a insegurança eram ausentes

E o padrão do porvir nisto assentávamos.

 

Ao nascer partilhámos sofrimento,

O mundo inaugurámos a chorar.

Desde então desejámos só voltar

Àquele iniciático elemento:

 

Quero estabilidade onde há mudança,

Um absoluto aqui num eu instável,

Lugar salvo e seguro sem tardança,

 

De confiar por tempo interminável.

Toco o chão, terra firme, confiante,

E logo o amigo estável ei-lo adiante.

 

 

1411 – Invocas

 

Invocas Deus mil vezes cada dia,

Invocas Buda, Cristo ou Maomé

E o coração jamais tocas da fé,

Cheia de raiva a tua fantasia.

 

Se alguém, quando invocas, bate à porta,

Incomodado ficas do barulho,

Da porta o irás correr com o estadulho

Por não te respeitar o que te importa.

 

Que incómodo chamar-te aquelas vezes!

Cuida só como deve andar zangado

Esse teu Deus a quem martirizado,

 

Finalmente, com quanto tu lhe rezes,

Deverás ter, enquanto, anos seguidos,

Lhe andaste a encher em vão sempre os ouvidos.

 

 

1412 – Silêncio

 

Preciso de silêncio para ouvir

As intuições que passarão por mim

Como anjos vaporosos de cetim

Murmúrios leves quase a me induzir.

 

A ideia nova não nos chega enfim

Orquestrada a trompete, a percutir,

Antes em harpa céltica há-de vir,

Flauta de Pã algures do confim.

 

 

Os sons mais importantes duma vida

Podem tão silenciosos ser que passem

Despercebidos muito facilmente.

 

No meio do ruído, a quem convida

Ninguém o escuta: eis como se embaracem

Do mundo novo os rostos que se inventem.

 

 

1413 – Génio

 

Quando o génio do sexo entra no acto,

(Evocativos termos, toques, gestos…)

A alma entra em acção no íntimo pacto

E sentem os amantes manifestos

 

Abismos inefáveis na união,

A vivência devém fácil, gloriosa.

Podemos pensar sexo como bom

Quando sadia habilidade o goza.

 

Porém, saúde e técnica, valiosas

Como serão, não são suficientes

Para do sexo as profundezas dar.

 

Estas, do imaginário nebulosas,

Dizem respeito a quem toca outros entes:

Serão todo o infinito num lugar.

 

 

1414 – Diferentes

 

Que diferentes o seremos todos

É uma matriz de nossa identidade.

De longe apenas temos paridade,

Na proporção em que perdemos modos,

 

Em que não somos nós, na opacidade

Do indefinido a fervilhar de engodos.

A vida é destes, convivendo a rodos,

Que ninguém são, falhando a alteridade.

 

Cada qual é dual e se se encontram,

Se ligam, se aproximam quaisquer dois,

De acordo os quatro não serão depois.

 

Sonhar e agir, dois num, se desencontram:

Como conciliar-se irão então

Com o sonhar e agir do outro em questão?

  

 

1415 – Morte

 

Pela morte vivemos, porque somos

Hoje o que para ontem já morremos.

Pela morte esperamos, que podemos

Crer no amanhã por morte que hoje pomos.

 

Pela morte vivemos, pelos tomos

De sonhos que sonhamos: que sonhemos

Toda a vida é negarmos que vivemos,

Que sonhar é negar vida que fomos.

 

Morremos, aliás, quando vivemos,

Que viver é negar a eternidade:

A morte nos procura e nos invade.

 

É morte quando temos e queremos

E, faça cada qual o que fizer,

É morte quanto quererá querer.

 

 

1416 – Mercê

 

O que criaste para a humanidade

À mercê fica deste esfriamento

Que a Terra sofre agora, já momento

Mais lento e lento inerte, sem idade.

 

O que aos pósteros deste, a identidade

Tua o preenche inteiro, o entendimento

Dele ninguém o tem, nem tegumento

De fruto algum será que ao mundo agrade.

 

Se nas épocas tuas o acolheram,

Já nas vindoiras não o entenderão.

Se apelos teus a todas o estenderam,

 

No abismo derradeiro quem então

Pode impedir que ao fim se precipite

Na pira universal que tudo dite?

 

 

1417 – Sombra

 

Gestos na sombra, somos as janelas

Que escondem por detrás todo o mistério.

Mortais somo-lo todos, pó sidéreo

A tempo certo, gastas as parcelas.

 

Logo que morrem, morrem uns, estrelas

Colapsando, finado todo o império.

Outros vivem um pouco em eco sério

Na memória dum povo onde içam velas.

 

 

Alguns alcançam a memória culta

Da civilização que os há fruído,

Mui raros as do lado hão atingido.

 

No abismo a todos lança a catapulta

Do tempo que nos some finalmente:

- O perene é um desejo, o eterno mente.

 

 

1418 – Mortos

 

Morte somos e morte viveremos,

Nascemos mortos e mortos trespassamos

A vida que ligeiros afloramos

E é mortos já que nós na morte entremos.

 

Já que o que vivo vive o que mudamos

E muda porque passa e nele vemos

Que quanto passa morre, comprovemos

Que, quanto vive, eterno constatamos

 

Que noutro se transmuda e então se nega,

Se furta à vida, transitória prega.

A vida é um intervalo, relação

 

Entre o que foi e o que será, desvão,

Morto parêntesis da morte à morte:

- Vida-condenação ou vida-sorte?

 

 

1419 – Criança

 

Sabe a criança que não é real,

Porém como real trata a boneca,

Até se desgostar quando ela, peca,

Tomba ao chão, fruta podre do quintal.

 

Irrealizar é o que a criança checa

Da vida com finura sem igual.

Bendita a idade errada mas vital

Quando se nega a vida que nos seca,

 

Por sexo não haver, que é só ternura,

Em que a realidade se sonega

Por brincá-la no encanto e formosura!

 

Por tomar por reais, se tal adrega,

As coisas espalhadas pelo chão,

Reais deveras só porque o não são.

 

 

1420 – Valor

 

Não mais valor ao oiro que a um vidrilho

A criança empresta e na verdade o oiro

Valerá mais? A criança com desdoiro

Obscuras olha as raivas, o rastilho

 

Das paixões, dos receios que envencilho

Em gestos de adultez de mau agoiro.

Os ódios e os amores que em vão doiro

Absurdos são deveras que ensarilho.

 

De convenções vestimos a nudez,

No preconceito embrulho olhar directo:

A infantil intuição, que lucidez!

 

Será Deus a criança muito grande

A brincar do Universo pelo tecto,

Travessa das partidas que nos mande?

 

 

1421 – Visão

 

Minha visão de ti seria o leito

Onde minha alma adormecera calma,

Criança adoentada cuja palma

Sonha outra vez com outro céu a jeito.

 

E ouvir-te fora não te ouvir mas preito

Às grandes pontes aos lugares de alma

Que os oceanos ligam onde acalma

A fome e a sede o mar que trago ao peito.

 

Em nós eternas, eis as caravelas,

Em mim o teu sorriso acorda estrelas

No céu interior enluarado.

 

Dormindo chamas-me: no barco, em sonho,

Vislumbro as velas de luar que ponho

Nas longínquas marinhas de meu fado.

 

 

1422 – Infeliz

 

De nossa vida um infeliz acaso

Em que atrasados fomos, ou ridículos,

Ou mesmo reles, são meros fascículos

Incómodos que lemos pelo ocaso

 

Da viagem serena em que os versículos

Em nossa intimidade aram o caso.

No mundo viajantes sempre a prazo,

Ignotos passageiros nos cubículos,

 

 

Vulto demais não deveremos dar

Do percurso aos percalços, contundências

De trajectória por qualquer lugar.

 

Com isto me consolo, que ou consolo

Disto me vem ou vem das aparências:

Real acaba o sonho em que me enrolo.

 

 

1423 – Estupidez

 

A estupidez nos sacrifica vidas

E haveres a qualquer inútil coisa.

Ideais, ambições, neles repoisa

Desvairo de comadres convencidas.

 

Não há império que valha que perdidas

Por ele haja bonecas onde poisa

Um sonho de criança. E não há loisa

De ideal que mereça as perdas idas.

 

É humano tudo e sempre o mesmo o homem:

Inaperfeiçoável e volúvel,

Improgressivo no que quer que o tomem.

 

Das coisas ante o curso irresolúvel,

O sábio quer repouso no horizonte,

A paz na encosta sonha além do monte.

 

 

1424 – Andrajos

 

Quem dera a vida na lonjura alheia,

Quem dera a morte entre pendões ignotos!

Quem dera rei nos meus andrajos rotos

Ser aclamado na avenida cheia!

 

Em eras outras, o melhor ameia

Hoje lá, não nos hojes daqui botos,

Vislumbro coloridos em mil fotos

Bem longe deste aqui que mos cerceia.

 

Queria o que ridículo me mostra,

O nada deste nada que enfim sou

Naquele não ser eu nalguma amostra.

 

Há sempre o que há, porém, e o que devia

Haver, por trilho ser onde não vou,

Escuso escapa sempre à luz do dia.

 

 

1425 – Existe

 

Tudo o que existe existe porventura

Porque outra coisa existe: nada é,

Coexiste tudo, nada fica em pé

Por ele mesmo em vertical postura.

 

Eu nunca existiria, em boa fé,

Com esta consciência que me apura

No modo de existir nesta figura,

Não fora a mesa ali de meu café.

 

Isto é que sinto: que não sinto nada.

Isto é o que penso: de isto nada ser.

Silêncio e noite sou, nesta jornada

 

Com eles, nulo, negação qualquer.

Intervalar espaço dentro em mim,

Sou esquecido deus até ao fim.

 

 

1426 – Anónimos

 

Longínquos como anónimos vivemos,

Disfarçados sofremos ignorados.

Para uns a lonjura é sem cuidados,

Outros os ferem raios seus extremos

 

E uns derradeiros de cotio vemos

Na dolorosa férula dos fados.

Saber quem somos são votos falhados,

Que tradução é sempre o que pensemos,

 

Mesmo o que quero, no final não quero,

Nem porventura ninguém mais o quis.

Tudo isto descobrir o quanto é vero

 

De cada sentimento nos perfis,

Como estranho em si torna o desolado:

- De seus próprios afectos é exilado!

 

 

1427 – Sonhável

 

Saber recuperar de cada evento

De sonhável quanto ele pode ter,

Abandonando o que real tiver

Do mundo exterior no esquecimento,

 

Eis o que o sábio deve pretender

Nele próprio lograr por um momento.

Nunca se permitir do sentimento

Manipulado ou por arrasto ser.

 

 

O autodomínio-mor é indiferença,

Corpo e alma são quinta onde o destino

A vida nos impôs como sentença.

 

De si tem o pudor: nossa presença

A nós é testemunho clandestino,

Pedido, ante um estranho, de licença.

 

 

1428 – Angústia

 

Nossa maior angústia irrelevante,

Na vida do Universo como no imo,

Considerar é firme ter arrimo,

Sabedoria de matriz instante.

 

Em meio a tal angústia, para o cimo

Trepar é inteira usufruir adiante

Sabedoria que na dor garante

Que dos abismos não me prende o limo.

 

Ao momento da dor, a dor humana

Tingirá do infinito que não tem,

Que nada de infinito em nós emana.

 

A desmedida dor não nos convém,

Nem há-de valer mais, quando a pesemos,

Que ser a mera dor que ali sofremos.

 

 

1429 – Paro

 

A um tédio que parece de loucura,

A uma angústia a escorrer para além dela,

Paro hesitante este eu que se rebela,

Hesita em ver-me deus minha procura.

 

Dor de ignorar mistérios, negra estrela,

Dor de nos não amarem, de mistura,

Dor de pesar a vida esta fundura,

Sufocando e prendendo em cada cela,

 

Dor de dentes, de pés muito apertados,

Quem pode ponderar qual é maior,

Se não há nunca metros adequados?

 

Se o não vejo em mim, quanto mais nos mais!

E, no geral, em quanto fica a dor

Ponderada ante os entes siderais?

 

 

1430 – Grandeza

 

Orgulho é da grandeza viver certo,

Vaidade é se os demais em nós a vêem.

Ambos os sentimentos que nos lêem

Não têm de avançar longe nem perto,

 

Que diferentes são, mas que nos dêem

Conjugáveis momentos é o desperto

Desejo que cultivo em meu deserto,

Na timidez em quem outros nem crêem.

 

Temor duma grandeza que, ignorada,

Nos outros não confia, que o confronto

De opiniões primárias finda em nada.

 

Vaidade sem orgulho, sem grandeza,

É que audácias cultiva em seu pesponto:

Nada tem a perder quem nada preza.

 

 

1431 – Brinquedos

 

Deus criou-me criança e assim fiquei.

Por que deixou que a vida me batesse,

Me roubasse os brinquedos, me esquecesse

No recreio sozinho, sem mais grei,

 

A amarrotar o bibe onde falece

A mão fraca de lágrimas de rei

Destronado do colo que nem sei?

Se acarinhado quis que eu me acrescesse,

 

Por que jogaram fora meu carinho?

Quando na rua uma criança vejo

A chorar exilada no caminho,

 

Dói-me nela este horror de meu ensejo

Perdido, dia a dia mais exausto,

Ante a adultez que passa a rir em fausto.

 

 

1432 – Feliz

 

Em nada creio em animais felizes,

Que para ser feliz urge sabê-lo.

Não há felicidade em pesadelo

Como em dormir sem sonhos nem matizes,

 

Senão em despertar, quebrando o selo,

Aliviado de dormir sem crises,

Pois a felicidade tem raízes

Extra-felicidade, ao percebê-lo.

 

 

Não se é feliz senão ao conhecer,

Mas tal saber me torna já infeliz,

Que feliz no passado me irei ver,

 

Largando atrás a festa por um triz.

Conhecer é matar, cá como em tudo,

Pois não saber nem ser é sobretudo.

 

 

1433 – Vários

 

De nós são vários cada qual, são muitos,

Uma prolixidade em multidão:

Aquele que despreza dele o chão,

Não é quem risos lhe alegrou gratuitos.

 

De nosso ser no exército, fortuitos

Rostos de muita espécie brotarão

Que diferentemente sentirão:

Aqui sou quem escreve estes intuitos,

 

Quem ri de ali não ter outro trabalho,

Quem, vendo o céu lá fora o goza pleno,

Quem tudo isto medita em vago aceno…

 

Este mundo de gente que baralho

Se compacta diverso, por destino,

Neste uno corpo com que mal atino.

 

 

1434 – Preso

 

É tédio sentir caos e que é tudo.

O aborrecido preso em cela estreita

Se vê e o desgostoso a vida afeita

A algemá-lo ao algoz vê sobretudo.

 

O tédio vê-se preso sem escudo

À liberdade fruste a que se ajeita

Duma cela infinita donde espreita.

Sobre aqueles, paredes a miúdo

 

Da cela a desabar vão soterrá-los:

A quem do mundo a pequenez desgosta

Pode aos grilhões duma só vez serrá-los.

 

Na cela do infinito não há costa,

Nem nos podem fazer viver por dor

Algemas que ninguém nos anda a pôr.

 

 

1435 – Campo

 

O campo é sempre onde jamais estamos,

Ali há sombras, sombras verdadeiras,

Verdadeiro arvoredo e sementeiras…

A vida é hesitação do que admiramos

 

E do que interrogamos: nestas leiras,

Na dúvida, o final ponto ditamos.

O milagre é a preguiça que enfeitamos

Inventando-o num deus que tem canseiras.

 

Os deuses sempre foram e serão

A perene inconfessa incarnação

Do que nós nunca poderemos ser.

 

De todas as hipóteses fadiga,

O campo a que nenhuma estrada liga

É quanto sou e não logrei viver.

 

 

1436 – Possuo

 

Meu corpo não possuo, se sou ele,

Minha alma não possuo, se sou ela.

De meu espírito que entendo dele

Se ele é que entende uma qualquer sequela?

 

Nem corpo nem verdade em nossa tela

Detemos, a ilusão é que me impele

Ou nem sequer, que sombra se revela,

Fantasmas somos dum engano imbele.

 

Oca vida por dentro e mais por fora,

Quem as fronteiras viu da própria alma

A ponto de afirmar: sou eu agora?

 

Sei que o que sinto o sinto eu, porém.

Não sei quem sou: como hei-de ter eu calma

Se o que possuo nunca o sei também?

 

 

1437 – Amar

 

Não podemos amar, é uma ilusão.

Se amar é possuir, que é que possui?

O corpo, não, que sempre restitui,

Senão absorveria e que senão!

 

E as almas possuí-las, como então?

Nem minha alma por minha ao fim se intui,

Entre alma e alma quanto abismo flui

De serem almas sem haver portão!

 

 

Que possuímos, que nos leva a amar?

Alma, corpo ou beleza, nem sequer…

Um corpo lindo ter não é a lindeza

 

No abraço lhe reter que o abraçar.

Fica o afecto que em mim dentro houver

E a memória também que, ao fim, mo lesa.

 

 

1438 – Procura

 

Da verdade a procura – a subjectiva

Da convicção, ou objectiva, então,

Da realidade, ou social, cativa

Do dinheiro ou poder ou persuasão –

 

Sempre consigo traz, aos que se dão

Generosos à freima que os activa,

A descoberta (e em primeira mão)

Da inexistência de verdade viva.

 

Da vida a sorte grande sai somente

Aos que acaso comprarem lotaria

E o prémio a si próprio se desmente.

 

Apenas qualquer arte tem valia,

Que no meio do fruste frenesi

É quem nos tira, no final, daqui.

 

 

1439 – Compreende

 

Ninguém compreende o outro, somos ilhas

No mar da vida que entre nós acorre

A definir-nos e a mentira corre,

Que o mar separa unindo maravilhas.

 

Por mais que alguém se esforce a rumar quilhas

Na esteira doutrem, a esperança morre,

Não sabe mais que o que a palavra escorre,

Sombras disformes da verdade filhas.

 

Amo os conceitos porque não sei nada

Do que me exprimem da vivência do imo,

Jardim selado onde não tenho entrada.

 

Com quanto me for dado me contento,

De longe imaginando o que há no cimo.

Vislumbro e é tudo: eis nosso entendimento.

 

 

1440 – Preocupa-me

 

Preocupa-me deveras a consciência

De outro eu ser para os outros que não eu,

Que figura farei no corpo meu,

E moralmente até, qual a evidência.

 

Habituados todos a de seu

Considerarem primordial essência

A mental, sendo os mais, por excelência,

Físicos seres ante o olhar que os viu,

 

Aos outros raramente os contemplamos

Como seres mentais, de intimidade.

No amor apenas, no conflito, vamos

 

Consciência retomar e com verdade,

De os outros serem sobretudo um imo

Como eu em mim no meu mais fundo cimo.

 

 

1441 – Problema

 

Nenhum problema tem a solução,

Nenhum de nós desata o górdio nó,

Ou desistimos ou cortamos só.

Com sentimento acaso se porão

 

Questões de inteligência, quando a mó

Cansou de remoer e a conclusão

Não a terei por timidez à mão,

Por buscar um apoio em meio ao pó,

 

Por aos outros e à vida retornar…

Duma questão jamais todo o elemento

À mão terei: então como lidar?

 

Para a verdade falta-nos frumento

E na mente moinhos que culminem

As farinhas moendo que a dominem.

 

 

1442 – Beleza

 

Por que há beleza em arte? Porque é inútil.

E a vida por que é feia? Porque é fins,

Toda intenções, propósitos e afins…

Dela os caminhos são para se ir, útil,

 

Dum ponto ao outro, nada nela é fútil.

Quem dera o trilho feito sem confins,

Onde os passos não sigam farolins,

Viagem sem pontos, túnica inconsútil!

 

 

Quem dera a vida feita duma estrada

Pelo meio dum campo iniciada,

A meio doutro finda na paisagem!

 

Beleza da ruína: a nada serve…

Doçura do passado é o que preserve

Nada ser senão sonho da viagem.

 

 

1443 – Invisíveis

 

Tão invisíveis somos mutuamente!

Já meditaste em quanto ignoraremos?

Vemo-nos e, afinal, nunca nos vemos,

Ouvimo-nos e a voz dentro nos mente,

 

Que escutamos é a voz que dentro temos.

Dos outros a palavra, erro inclemente

De nosso ouvir, naufrágio do que eu tente,

O sentido distorce que alcancemos.

 

Lemos volúpias onde os outros deixam

Cair dos lábios sons sem mais alcance:

São nossos os sentidos que os enfeixam.

 

Dos regatos a voz que te interpretas,

Das árvores murmúrio que descanse,

Da prisão tudo é sonho a escoar das gretas.

 

 

1444 – Ouvido

 

Não amas o que eu digo, com ouvidos

Com que eu me ouço dizê-lo e sei lá bem,

Ao falar alto, se o que escuto vem

Deste meu imo com iguais sentidos!

 

Se eu erro ouvindo-me em conceitos tidos

E me pergunto neles que contêm,

Quanto me entenderão outros que nem

De meu imo vislumbres têm vividos?

 

De que ininteligências não é feito

Qualquer saber que um outro tem de nós!

Alguém ser entendido não é o jeito

 

De imos complexos, findarão sem voz.

Os simples que outros podem compreender

É que ao fim tal em mente nem vão ter.

 

 

1445 – Ânsias

 

As ânsias de atingir ai quanto aquém

Do que atingimos ficarão por fim!

Que bom rezar contigo atento assim

Do desespero litania além!

 

Não vejo obra de artista que também

Mais perfeita não venha, como eu vim,

A poder transmudar-se: um folhetim

Num romance amanhã por fim devém.

 

Verso por verso lido, o maior poema

Pouco terá que melhorar não possa,

Imenso mais a repintar um tema.

 

Reparar nisto é dum artista a mossa

Que em seu trabalho enoita a fantasia

E nem no sono a calma mo alivia.

 

 

1446 – Vivo

 

Não vivo, vogo em vida real, que as naus

São naus de sonho, mal em nós aflore

O poder de sonhar que nos demore

Até das vidas ir transpondo os vaus.

 

Não viver quando sonha faz que more

No sonhador um ror de génios maus,

Tal não sonhar, se vive, ata calhaus

Aos pés de homem de acção que não vigore.

 

Por mais que tenha um sonho, mais terei

Meu corpo possuído em carne e osso.

Por mais que viva a vida em plena acção,

 

Mais do tropeço noutrem vivo a lei.

Se mato o sonho, então matar-me posso,

Só realizando-o ponho o mundo à mão.

 

 

1447 – Entender

 

Entender como é que outra gente existe,

Como almas há que são não sendo a minha,

Alheia consciência à que amarinha

Por mim além e que nem tem despiste…

 

Um homem ante mim falando um chiste

Com gestos que serão uma adivinha

E que eu decifro como a tal convinha,

Estranho semelhante é que eu registe…

 

 

O mesmo, todavia, a ilustração,

Personagem de conto ou cena em palco

Se me antolham, contudo não o são.

 

Ninguém descobre um outro, que o desfalco

Da existência real que lhe convém,

Títere é de nenhuma alma refém.

 

 

1448 – Figuras

 

De tempos idos há figuras gradas,

Espíritos em livros que maiores

Realidades são do que os senhores

Que nos falam do cimo das montadas,

 

Indiferenças aos balcões pregadas,

Olhar de acaso à esquina dum temor,

Transeunte a roçar da rua a dor,

Invisível na teia das passadas.

 

Os outros mais não são do que paisagem

Ignorada por nós na trilha havida.

Mais meu é meu herói que na voragem

 

Se foi das eras mas que oferta vida.

Os mais são carne e osso, como postas

Sangrando em talho a morte em montra expostas.

 

 

1449 – Indiferente

 

Tudo o que haver parece de desprezo

Entre um homem e um homem ignorado

Permite indiferente quanto ao lado

Se mate gente sem sentir, por vezo,

 

Como entre os assassinos, ou que, aceso

O tiro, em tal nem creia algum soldado.

Ninguém presta atenção, mui descuidado

A que os mais almas são num imo coeso.

 

O merceeiro certo dia à frente

Germina como um ente espiritual

E pasmo fico, vendo-o diferente.

 

Se ele morrer só resta, no final,

A breve saudação que de cotio

Trocámos de automático fastio.

 

 

1450 – Boçal

 

Como irrita a boçal felicidade

De todos estes homens que não sabem

Quão infelizes são! Em si não cabem,

Cheios de tudo quanto, na verdade,

 

Os iria angustiar, caso não gabem

Algum dia a soez fatuidade.

Como a vegetal vida lhes agrade,

O que sofrem passou e faz que acabem

 

Sem bulirem nas almas. Vivem vidas

Como quem, dor de dentes a sofrer,

Uma fortuna recebeu qualquer,

 

A de ir vivendo sem notar, sumidas

As graças de ser deus com os demais…

- E amo-os tanto, aos queridos vegetais!

 

 

1451 – Sente

 

De quem não sente é o mundo, a condição

Para ser prático é ser insensível.

Para agir, a vontade impreterível

Terá de conduzir firme uma acção.

 

Ora, o que a acção estorva, imprevisível,

É a sensibilidade: a projecção

Da personalidade sobre o chão

De homens atapetado, é bem credível

 

Que se atravesse no caminho alheio,

O estorve, fira, esmague ao que convier.

Para agir, pois, importa que o receio

 

Das dores e alegrias de quenquer

O não acolha: logo é o mundo externo

Lixo banal sob o tacão superno.

 

 

1452 – Estratego

 

Para o estratego toda a vida é guerra

E síntese da vida é uma batalha.

Joga com vidas como quem baralha

As cartas, caia embora um naipe em terra.

 

Pois dele que seria se se aferra

Ao que enoita em mil lares tanta poalha,

Aos corações ardendo como palha

No fragor que das bombas tudo aterra?

 

 

Se fôramos humanos, que seria?

Nem civilização se nos erguia,

Se sentimos deveras os efeitos…

 

Quem agir há-de ser um bem-disposto,

Quem rege é que insensível gere o posto.

- Triste, só quem de sentir tem os jeitos.

 

 

1453 – Atentamente

 

Escrevo atentamente recurvado

A história inútil dum evento obscuro,

Contabilista no covil escuro

Duma qualquer empresa obnubilado.

 

E a fantasia segue com cuidado

A rota do navio que procuro

Inexistente por detrás do muro,

Na esteira dum onírico eldorado.

 

As duas trilhas igualmente claras,

Visíveis ante mim se me apresentam,

A das laudas que nunca me são caras

 

Como a dos sonhos que irreais se inventam.

Repentina, porém, a lauda cresce

E logo o barinel desaparece.

 

 

1454 – Novas

 

Novas imagens, só com alma nova.

Baldado esforço, se sentir quiseres

Mundo novel sem inovado seres,

Desde o sentir ao imo, atento à prova.

 

Tudo é como o sentires – como aprova

O que já viste mesmo sem o veres.

A novidade, para um dia a teres,

Só se o senti-la em ti também se inova.

 

Muda de alma, portanto, e vê lá como,

Que, do nascer à morte, lentamente,

Como o corpo evolui, evolui ela.

 

Rápido arranja novo olhar de tomo:

Como um corpo, ela, ocasional, consente

Que o morbo acaso cures sem sequela.

 

 

1455 – Comprador

 

O comprador do inútil sempre mais

Sábio vai ser que acaso se julgar:

Compra pequenos sonhos, com vagar,

Criança ao adquirir sombras reais.

 

As inutilidades tem-nas tais

As conchinhas na praia junto ao mar,

Por onde o mundo inteiro navegar

Feliz irá o petiz como jamais,

 

Dormirá com as mais lindas na mão…

Se alguém lhas perde ou tira, arranca-lhe alma,

Rasga aos pedaços dedos de ilusão.

 

Vai chorar ele como um deus a quem

Roubaram a recém-criada palma

E o mundo que gerou lhe morre além.

 

 

1456 – Absurdo

 

É tudo absurdo na mundana vida.

Este os dias empenha no dinheiro

Nem tem filhos para quem, videiro,

O legue, nem um céu lhe compra a lida.

 

Aquele a ganhar fama vai ligeiro

Para depois de morto e a sobrevida

Nela nem crê que algures o convida.

Outrem o que não quer busca lampeiro,

 

Um lê para saber, inutilmente,

Inútil outro goza e crê viver…

- Todo o horizonte, no final, nos mente,

 

Que sempre além brota um além qualquer,

Toda a chegada vai ser fatalmente

Nova partida para nunca ser.

 

 

1457 – Eléctrico

 

Neste eléctrico vou, reparo lento

No pormenor de quem me vai diante.

No vestido da moça vejo o instante

Do labor com que o fez cada instrumento.

 

Orla-a de leve a gola coleante

E as mãos da bordadeira logo invento,

De costurar a máquina apresento

E a fábrica por trás onde se implante.

 

 

Sigo os gerentes, mais secretarias,

Vidas domésticas, amor de todos,

As angústias e os sonhos, fantasias…

 

Ante os olhos, o mundo, de mil modos,

Discretamente corre à minha beira:

No eléctrico ao fim vivo a vida inteira.

 

 

1458 – Nosso

 

Aquilo que foi nosso, por acaso

Embora dum convívio, da ilusão,

Só porque nosso foi é nós então.

E quem daqui partiu, mesmo que a prazo,

 

Em mim não foi apenas um ganhão,

Foi um vital recanto a que deu azo,

Que é visceral e humano, era o meu caso,

Substância em minha vida, agora um vão.

 

Hoje fui diminuído, já não sou

Exactamente o mesmo: ele partiu…

O que ocorre onde vivo, em mim correu,

 

O que finda em meu mundo em mim findou.

Tudo o que foi, se o vi, já me não mora,

Meu ganhão, meu ganhão foi-se-me embora!

 

 

1459 – Vencem

 

Uns no amor vencem, outros na política,

Outros em arte acaso vencerão…

Aqueles a vantagem narrarão,

Aventura de amor não é somítica.

 

Mas deixam tanta dama paralítica

Que é fatal que as suspeitas crescerão.

Outros, porém, ministros têm à mão,

O que se antolha já tese apodíctica.

 

Uns sádicos serão, outros brutais

Com as crianças e as mulheres, tais

Que embora irão, as contas sem pagar…

 

- Deste enxurro de sombras uma cura

É conhecer direito a vida dura

Que o valor, ao correr, irá julgar.

 

 

1460 – História

 

A história nega o que seria certo,

Há tempos de ordem em que tudo é vil,

De desordem os há de alturas mil,

Quantas vezes o longe anda tão perto!

 

As decadências são ao que é viril

Muitas vezes um tempo bem desperto

E as épocas de força, vago acerto

De fraquezas de espírito senil.

 

Tudo por fim se cruza e se mistura,

Não há verdade mais que a de supô-la.

Tanto nobre ideal no estrume apura,

 

Tantas ânsias o enxurro além rebola!

A história não oferta um tempo justo

E aquilo que eu for sendo sou-o a custo.

 

 

1461 - Pena

 

O amor, não, arredores, arredores

É que por fim a pena valerão.

Dele à cor ilumina a repressão

Mais que a clareza de viver-lhe humores.

 

Há virgindades, sim, que entenderão

Quanto a paixão em luz funde os fulgores,

Agir compensa mas confunde teores,

É possuir ser possuído e então

 

É perder-se, portanto, de seguida.

A ideia atinge, sem ferir deveras,

Da realidade os traços com medida.

 

Ao agir a transmudo e ali me perco:

Perco a realidade fementida

E de mim próprio nem sequer me acerco.

 

 

1462 – Esquina

 

Dobro uma esquina além, da padaria

Sai um cheirinho a pão duma fornada

Que minha infância acorda de assentada,

Fadas da aldeia dançam a magia,

 

Um forno novo e a massa levedada

Levantam-se infantis e por um dia

Reinam duendes entre a pedraria

De antanho que morreu na vida andada.

 

 

Cheira-me a frutas e do tabuleiro

Vem-me o quintal antigo com abelhas

E o meu vizinho a chegar lá primeiro…

 

E, de repente, ignoro as lendas velhas,

Capaz de pontapear mesmo o destino:

- Indiscutivelmente, eis-me menino!

 

 

1463 – Sordidez

 

Da sordidez de sermos nos liberta

Uma obra de arte, embora nos iluda:

Enquanto aqui mal doutrem nos acuda

O nosso nem sentimos nem desperta.

 

O amor, o sono, a droga, a porta aberta

São para o mesmo que por arte muda.

Só, cada qual desilusão nos gruda:

Farta o amor, sono acorda, a droga, certa,

 

O mesmo corpo arruina que estimula.

Arte não desilude, que a ilusão,

Admitida de início, se acumula,

 

E sonhar quem o vai pôr em questão?

Minhas não sendo, as artes deliciam,

Rasto dos deuses quando apareciam.

 

 

1464 – Tédio

 

O tédio é talvez, no fundo do imo,

A falha de lhe não dar uma crença,

Desolação de criança muda e tensa

Sem o brinquedo-deus, perdido ao cimo.

 

De mão que o guie precisão, presença,

Mas que não sente no rumar sem mimo,

Caminho escuro onde só calca o limo,

Noite de quem nem mesmo sequer pensa…

 

De nem saber pensar trilha sem nada,

Ao tédio um deus lhe falta por seu guia:

Quem deus tem não tem tédio na jornada.

 

Sem crenças, nem a dúvida bulia,

Ao pensar falta a escada inexistente

De à verdade trepar solidamente.

 

 

1465 – Libertar

 

Fazer outrem sentir o que sentimos,

De si os libertar, arte será,

A personalidade nossa lá

Lhes propondo, a librá-los para os cimos.

 

O que sinto, no ser vero que está

No meu segredo, tal jamais o abrimos,

É o incomunicável onde arrimos

Resguardo no sigilo que em mim há.

 

Terei de traduzir meus sentimentos

Na linguagem dele, de tal modo

Que o que sinto ele o sinta por momentos.

 

Nele então devirei comum ao todo,

Embora empobrecendo a verdadeira

Natura do que sou na voz primeira.

 

 

1466 – Mentir

 

Mentir, no fundo, é como compreender,

Desde a infantil mentira de sonhar

À da noção de a outrem conformar

Minha existência que o não pode ser.

 

Mentira é linguagem tal qualquer

Palavra absurda que tenta em lugar

Da emoção íntima algum som trocar

Que traduzi-la nunca irá poder.

 

Da ficção que é mentira nos servimos

Para nos entendermos com os mais.

Com a verdade nunca o atingimos,

 

Minto as artes ao serem sociais:

O poema mente a fala, a regra impondo,

E em lendas, no que minto, a vida sondo.

 

 

1467 – Fingir

 

Fingir é amar, nem vejo nunca um riso,

Um significativo olhar que não

Medite, de repente, na intenção

Por trás do rosto em frente que diviso.

 

O estadista que compra a votação,

Barregã que o cliente atrai ao piso,

Aquele de comprar-nos teve o siso,

Esta, de ser comprada o intuito chão.

 

 

Não fugimos, por mais que nós queiramos,

A uma fraternidade universal,

Fingida embora em muitos de seus tramos.

 

Deveras uns aos outros, afinal,

Verdade é, bem ou mal, que nos amamos,

Mentir ainda é um beijo que trocamos.

 

 

1468 – Mestres

 

Desconfio dos mestres que o não podem

Ser com primária transparência clara.

Estranhos incapazes, não depara

Neles ninguém com que é que nos acodem.

 

Estranhos os aceito, mas gostara

Que provem, quando as flâmulas sacodem,

Que à norma superiores no que engodem

Serão, não o impotente que mascara.

 

Que um matemático erre uma adição

É comum, mas não é por ignorância:

Perdoo um erro, é a nossa condição.

 

Que ignore o que é somar como alguém soma,

Rejeito, por trás disto há traficância,

Que um mestre de ocultismo não me embroma.

 

 

1469 – Delícia

 

Tal como todo o grande apaixonado

A delícia da perda minha adoro,

Em que um gozo de entrega que devoro

O sofro inteiramente em todo o lado.

 

Escrevo então o que não hei pensado,

Num devaneio, o termo onde demoro

A fazer festas ao petiz de coro,

A ser levado ao colo bem mimado.

 

São frases bem fortuitas, fluidez

De água esquecida, arroio de abandono,

Maretas misturando à pequenez.

 

Ideias trémulas por mim perpassam

Num cortejo de sedas em que ao sono

Indistintos há sóis que me ultrapassam.

 

 

1470 – Algo

 

Se esta vida algo tem de agradecer

Da vida para além de que gozamos,

Este dom é que a nós nos ignoramos:

Nem uns aos outros nem a nós sequer

 

Nos descobrimos no que em nós houver.

Abismo escuro é o poço que habitamos

Que na pele do mundo não pintamos

Nem em nós próprios nem noutrem qualquer.

 

Ninguém se amara se se descobrira,

Toda a vaidade logo se extinguira

E morreria de anemia de alma.

 

Outrem ninguém desvenda e ainda bem,

Que se o desvenda logo vê também

Qual o íntimo demónio que o empalma.

 

 

1471 – Casados

 

Mal casados são todos os casados,

Que cada qual consigo guardará

O diabo que nele mora já,

Príncipe ou anjo no imo mal sonhados,

 

Rosto subtil em que o par nunca está.

Ignoram os felizes deslumbrados

O que os atrai ou frustra em tais pecados.

Menos feliz é quem viu acolá,

 

Mas não conhece, a marca da ameaça.

Só num ou noutro arranco fruste, acaso,

Aflora este aguilhão que o mal trespassa,

 

Numa ou noutra aspereza a que der azo:

Na palavra, porém, mais casual

Germina esconsa a férula infernal.

 

 

1472 – Máscaras

 

De máscaras no baile que vivemos,

Basta o agrado do traje, em baile é tudo.

Servos das luzes somos neste entrudo:

Tal na verdade, assim na dança iremos.

 

Nem para nós conhecimento temos

Do grande frio, em noite de veludo,

Que lá fora enregela o parque mudo,

Nem o corpo mortal por baixo vemos 

 

Dos trapos que afinal lhe sobrevivem.

De tudo nada vemos quanto, a sós,

Acreditamos que é cerne de nós,

 

Onde as raízes fundas se me arquivem.

Afinal é a paródia da verdade

Que minto como minha identidade.

 

 

1473 – Iguais

 

Tudo quanto pensamos ou sentimos,

Tudo quanto dissermos ou fizermos,

Igual máscara traz em iguais termos.

Por mais que ande a despir o que vestimos

 

Nunca chegamos à nudez que intuímos:

Não é de tirar fatos, de alma enfermos.

De corpo e alma vestidos, traje ao sermos

A nós pegado como musgo e limos,

 

Vivemos, infelizes ou felizes,

Ou nem mesmo sabendo que é q            ue somos,

O breve tempo dado nas matrizes

 

Só para distrair, comendo os pomos,

Criança ao faz-de-conta em jogos sérios

Pelo quintal, como quem brinca a impérios.

 

 

1474 – Engano

 

É o que não somos tudo quanto somos,

Vemos engano no que andava certo,

Razão não temos justando um concerto…

Deste Universo o rol quem ler nos tomos

 

Do saber e da crença, gera os gnomos

Que inseminam adeptos longe e perto.

Da nova crença cada qual coberto,

Véstia que nunca vê, tem logo assomos

 

Dum inspirado, a máscara esquecida.

Desconhecendo os outros como a nós,

Revoluteamos gráceis contradanças

 

Ante a nudez dos astros distraída.

Da ilusão presas, continuamos sós,

Mas rimos confundidos de esperanças.

 

 

1475 – Mal

 

Dum lado existe o mal, é realidade,

Dum outro anda a razão desta existência.

Sofística não é tal evidência,

Mas ajustada com subtil verdade.

 

A existência do mal, necessidade

De tal ordem se antolha à consciência

Que a não pode negar, nem por premência

De nos mentir servil duplicidade.

 

Da existência do mal uma maldade

É que pode por nós não ser aceite,

Mas a raiz me obriga a que eu a estreite.

 

O problema, então, continuidade

Mantém, tempo além, como um papão,

Que eterna dura a nossa imperfeição.

 

 

1476 – Relojoeiro

 

Relojoeiro imperfeito, os pormenores

Do ajustamento ao governar o mundo

Onde leremos lapsos, bem no fundo,

Como lê-los do plano sem vectores?

 

Em tudo vemos claro e, se aprofundo,

Algo escapa ao traçado dos valores,

Mas é de ponderar se tais pendores

Não terão um igual pano de fundo.

 

Como um poeta ritmos finos pode

Dum arrítmico verso entremear

E ao fim um ritmo melhorado acode,

 

Assim todo o Universo, ao se ritmar,

Nele ao intercalar uma arritmia,

Sublinha majestoso a melodia.

 

 

1477 – Estranhíssima

 

Dentro me bate, súbita, estonteante,

Das coisas a estranhíssima presença.

Não tanto a natural, cuja sentença

Determinista ou por instinto adiante

 

Me afecta já, mas muito mais gritante

São arruamentos, homens, toda a densa

Mole de empregos, o letreiro, a avença,

Comunidade além seguindo avante…

 

 

Este homem, inconsciente como um cão,

Fala por inconsciência doutra ordem

E se organiza ainda em igual chão!

 

Impregna ao mundo a Mente a que me grudo,

Seus dentes todo o Cosmos traçam, mordem,

Deus, lá detrás, é mesmo alma de tudo.

 

 

1478 – Vítima

 

Inevitável vítima da dor,

Qualquer humanal alma sofre até

Do que esperara e em que punha fé:

Sofre a surpresa dum mesquinho amor

 

Como se pleno o houvera de supor;

Quem por oco e vazio o mundo vê

Um raio o atinge quando outrem o lê

Como um nada entre tudo em derredor.

 

Sinceros foram no que creram, viram

Destes desastres previsíveis, certos,

Mas que tem isto a ver com a emoção?

 

As surpresas ao imo lhe serviram

A não ter dias de amargor desertos:

Viver é ter na dor algum quinhão.

 

 

1479 – Cansamos

 

De tudo nos cansamos, todavia

De compreender, não, compreender…

Difícil de atingir é o que se quer

Daquilo donde tudo principia.

 

De pensar nos cansamos porque a via

Para no fim a conclusão deter

É a de que quanto mais pensar quenquer,

Mais analisará tudo à fatia.

 

Ora, quanto mais ele analisar,

Mais irá distinguir, feita em migalhas

A questão de que menos fica a par.

 

Quão mais avança no tecer das malhas,

Bem menos, afinal, lhe fica à mão

A pretendida e fruste conclusão.

 

 

1480 – Procura

 

Toda a vida é a procura do impossível

Sempre através do inútil, eras fora.

Busquemos o impossível, fado agora,

Do inútil através: trilho visível

 

Não há por outro ponto. E que demora!

À lucidez trepemos, porém, crível

De que nada buscamos de exequível,

Que possamos obter, com dor embora,

 

Bem como em nada passo que mereça

Um carinho nem mesmo uma saudade:

Tudo nos desilude e bem depressa.

 

Compreendamos, pois, e, com verdade,

Enfeitemos grinaldas que emurchecem

Enquanto nossas vidas não fenecem.

 

 

1481 – Subordinar

 

Não se subordinar a nada, a nada,

Nem a um amor, nem a uma ideia, ter

A independência longa de não crer

Nem na verdade (jamais é lograda…),

 

Nem, se a captara, na vantagem grada

De a dominar, tal é a postura a haver

Na intimidade do que não viver

Sem reflectir. A queda que há na estrada

 

É pertencer: mulher, ideal ou credo,

Carreira laboral , são cela e algemas.

Ser é continuar livre. Uma ambição

 

É um fardo atando-me o cordel do medo

E as conjunturas puxam-no, se extremas:

- Eis, pois, como eu já me não tenho à mão.

 

 

1482 – Feliz

 

Feliz quem não exige mais da vida

Do que espontaneamente ela lhe dá,

Pelo instinto do gato se guiará

Que busca o sol onde ele nos convida.

 

Feliz quem abdicou e desde já

Contempla o mundo, eventos de seguida,

Impressões debicando de fugida

Como alheias matrizes de acolá.

 

 

Feliz, por fim, quem abdicar de tudo

E a quem, porque de tudo já abdicou,

Nada vai ser tirado, sobretudo.

 

O leitor nato, o asceta e o campónio,

Eis os felizes que a simpleza arou,

Tão livres que os nem toca algum demónio.

 

 

1483 – Criança

 

Eu em criança já escrevia versos,

Eram bem maus os versos que escrevia,

Porém perfeitos eu julgá-los-ia.

Não terei nunca mais os gestos tersos

 

Que o prazer falso dêem da magia

De o perfeito criar nos universos.

Bem melhor hoje escrevo os meus diversos

Sonhos de despertar um novo dia,

 

Mas que infinitamente abaixo vão

Daquilo que eu pressinto que podia

Escrever na integral maturidade!

 

Choro meus versos maus de infante, são

Como um meu filho morto choraria

E a esperança final de mim se evade.

 

 

1484 – Existir

 

Ah, de existir quem poderá salvar-me?

Não é morte que quero nem é vida,

É o que das profundezas me convida,

Na cova diamante a negacear-me

 

Quando não é viável a descida.

Mundo de apelo e de infiel alarme,

Tão inviável quanto tem de charme,

Céu que me chama mas não dá guarida.

 

Que falta faz um deus que é verdadeiro

No cadáver vazio do céu alto,

De alma fechada, onde não há parceiro!

 

E mesmo havendo-o, o cárcere é infinito:

Porque infinito, sem fronteira a salto,

Como pode escapar-lhe o nosso grito?

 

 

1485 – Buscado

 

Tudo quanto buscado tenho em vida,

De buscar fui eu próprio que o deixei.

Sou distraidamente o que busquei,

No sonho fica a busca já esquecida.

 

Mais real que o buscado é a mão erguida

Buscando, revolvendo o que é de lei,

Deslocando, assentando, já nem sei…

No meio fica a meta lá perdida.

 

Tudo o que tenho é como o céu distante,

De luz farrapos a iludir o nada,

Vida a fingir, que a morte doira adiante,

 

Sorrir triste à verdade consumada.

Aquele sou que não sabe buscar,

Rei dum deserto onde nem tem lugar.

 

 

1486 – Diversas

 

Tenho as opiniões desencontradas,

As crenças tenho mais diversas que há.

É que jamais actuo, cá ou lá,

Nem penso ou falo ideias partilhadas,

 

Age por mim alguma fada má,

Pensa, conversa um sonho às cavalgadas,

Um assaltante meu que espreita estradas

Em que me encarno por momentos já.

 

Vou a falar e fala um outro eu,

De meu apenas sinto um vácuo imenso,

Uma incapacidade de sandeu

 

Perante quanto é vida a refulgir.

Nunca aprendi os gestos do que penso,

Nunca aprendi deveras a existir.

 

 

1487 – Outono

 

Cada Outono que vem fica mais perto

Do derradeiro Outono que teremos.

Primavera e Verão iguais extremos

Aproximam serenos, é bem certo,

 

Só que um Outono lembra, a descoberto,

De tudo o acabamento que esquecemos

Quando as folhas caídas mal as vemos,

O triste húmido tempo anda em aberto.

 

 

Resquício de tristeza antecipada,

Há uma mágoa vestida para a viagem

No sentimento vagamente atento

 

À descoloração que vai na estrada.

Uma acalmia velha na voragem

Alastra do Universo onde sou vento.

 

 

1488 – Passaremos

 

Sim, passaremos todos, passa tudo,

Nada fica do que usa sentimentos,

Do que enluvou a morte e polimentos,

Nem do que o invejou, eterno miúdo.

 

Luz igual ilumina o rosto mudo

Do santo e de quem vive fingimentos,

Como igual falta dela, nos momentos

Do nada eterno em que já nada iludo.

 

No redemoinho em que enfim tudo jaz

Jóias ou tangas, ceptros, tanto faz,

Reis e crianças, tudo leva o vento.

 

Tudo é nada, de pó sombra mexida:

Frente ao abismo aberto, a voz gemida

De estrelas e almas varre o lixo lento.

 

 

1489 – Aurora

 

Uma aurora no campo faz-me bem,

Aurora na cidade, bem e mal.

Portanto, mais que bem me faz, real,

Que esperança maior me traz e tem,

 

Como a toda a esperança lhe convém,

Aquele travo a longe, a dar sinal

Duma saudade de algo que, afinal,

Mais realidade não vai ter além.

 

A madrugada na província existe,

Da cidade a manhã mais me promete.

Aquela faz viver a quem lhe assiste,

 

Esta leva a pensar quem a acomete.

E eu sempre hei-de sentir, maldito ser,

Que mais vale pensar do que viver.

 

 

1490 – Vulgaridade

 

Vulgaridade é lar, cotio materno.

Depois duma incursão aos cumes de arte,

Da inspiração dos montes ido aparte,

Nos penhascos oculto onde me hiberno,

 

Sabe a tudo quanto é quente no Inverno

Retornar à estalagem onde acarte

Risos felizes, dos alarves parte,

Beber com eles como parvo interno,

 

Tal e qual tudo como Deus nos fez,

Contente do Universo que me é dado,

Do talhe e do matiz de minha tez…

 

Deixo aos demais o mais, aos que hão trepado

Montanhas (para onde ora não salto)

Para não fazer nada lá no alto.

 

 

1491 – Doem

 

Os sentimentos que mais doem são,

São, como as mais pungentes emoções,

Os dos absurdos feitos ocasiões:

As ânsias de impossíveis que me dão

 

Por impossíveis serem sempre em vão,

Saudade do jamais e seus senões

Que podia ter sido nos saguões,

A mágoa de outrem não ser nunca, não,

 

O insatisfeito subsistir do mundo…

Os meios tons criam em nós dorida

Paisagem de poente que enfim somos.

 

Sentir-me é um campo então, frio, infecundo,

Onde um rio sem barcos molha a vida

Entre as margens cortadas de meus gomos.

 

 

1492 – Esperança

 

Sem esperança, a vida é um impossível,

Com esperança devirá vazia.

Não desespero – espero, que hoje em dia,

A vida é um quadro externo inexprimível

 

Que a mim me inclui. Assisto à fantasia

Como comédia sem enredo crível,

Divertimento dum olhar sensível,

Bailado desconexo onde mexia

 

 

A folha ao vento de íntima paisagem,

Neblinas onde o sol muda de cor,

Arruamento antigo de viagem

 

No acaso desconforme dum alvor…

- Em grande parte sou quanto isto escrevo

E antes da espera de mim sou coevo.

 

 

1493 – Incógnito

 

Assisto incógnito ao gradual vazio,

Ao desfalecimento em minha vida

De toda a meta que me foi querida.

Não há nada em que eu ponha um desafio,

 

De momento horizonte em que confio,

Até do instante sonho de fugida,

Que se me não tenha desfeito, erguida

Nuvem de pó dum vaso que o desvio

 

Tombou da altura e esmigalhou na estrada.

Sempre o destino procurou primeiro

Levar-me a amar ou procurar, de entrada,

 

O que dispôs direito em meu carreiro,

Para no tempo imediato eu ver

Que o não teria nem podia ter.

 

 

1494 – Dura

 

Por muito dura que te seja a vida,

Tens a felicidade, homem vulgar,

Do privilégio bom de a não pensar.

Viver a vida como é decorrida,

 

Exteriormente, como um cão a envida,

Assim homens gerais vão operar,

E assim a deveremos enfrentar

Para a alegria agir nela contida.

 

Pensar é destruir a paz do berço,

Já que pensar é sempre decompor.

Se em mistérios da vida fora terso,

 

As almas espiando em pormenor,

Matar-se-ia o homem assustado

Para não vir a ser guilhotinado.

 

 

1495 – Pó

 

Um grão de pó é cada um de nós

Que levantou da vida o vento e logo

Após cair deixou. Por desafogo,

Teremos de arrimar-nos, já que sós,

 

A um esteio qualquer e, enquanto vogo,

De atar a mão pequena doutra aos nós,

Que a hora é incerta, nem há pais, avós,

Que o céu é sempre longe, ignoto fogo,

 

E a vida é sempre alheia, por meu mal.

O mais alto de nós é o sabedor

Mais próximo dum oco que é geral:

 

De tudo incerto, finda no estupor.

Pode ser que nos guie uma ilusão,

Da consciência é que não é o guião.

 

 

1496 – Actividade

 

Em nossa actividade superior

Tudo na morte participa: é morte.

Um ideal o que é? Jogar à sorte,

Já que da vida nos não serve o teor.

 

Como arte o que é, senão um negador

Da vida, recusada por consorte?

A estátua é um corpo morto, fixo o corte

Para a morte fixar tempo maior.

 

Mesmo o prazer, uma imersão na vida,

Imersão antes em nós próprios traz,

Laços à vida por fim faz que elida,

 

Da sombra uma morte é do que é capaz.

Um dia a mais na vida, na sequela,

Não é mais do que um dia a menos nela.

 

 

1497 – Teorias

 

Teorias de iludir o inexplicável,

Morais de convencer onde há virtude,

Política o problema que se ilude

Persuadindo de que é solucionável,

 

A vida resumamos na atitude

Conscientemente estéril, tolerável,

Que, se não dá prazer, torna evitável

A dor sentirmos presa como grude.

 

 

A civilização seu auge atinge

Quando estéril descobrem os que a vivem

Todo o esforço, que o fado nunca finge:

 

Todos nós somos servos algemados

A leis universais que nos arquivem,

Homens e deuses são subordinados.

 

 

1498 – Desprovido

 

Desprovido de apoios encontrei

O mundo nesta idade a que pertenço,

Nem para o afecto nem sequer bom senso.

Trabalho destrutivo foi a lei

 

De anteriores gerações que andei

Da incerta religião lendo no censo,

Na moral sem esteios de consenso,

Na política a agir sem ver a grei.

 

Em angústia moral plena nascemos,

Em metafísico vazio já,

Politiqueiros no exorcismo aos demos.

 

Ébrias de fórmulas externas lá,

As gerações que a nós nos precederam

Aluíram tudo quanto nos cederam.

 

 

1499 – Argumentos

 

De meros argumentos de razão,

De objectos perceptíveis fascinados,

Na crença os fundamentos abalados,

Os ancestrais vão revolver o chão.

 

Crítica bíblica só mitos são

De lendas e poemas rendilhados,

Os evangelhos são amontoados

Incertos de crendices, tudo vão.

 

Sem crença nem moral, esquadrinharam

As regras de viver como as doutrinas

E incertos findam de certeza alguma.

 

Acordaram as novas que abalaram.

Na indisciplina que hoje marca as sinas,

Não vê o mundo, afinal, a que é que ruma.

  

 

1500 – Criticismo

 

O criticismo fruste em nossos pais,

Se legou que é impossível ser cristão,

Contentamento não legou à mão

Com que vivêramos de tais sinais.

 

Se a descrença nas fórmulas morais

Nos legou, não legou a contenção

De indiferente às regras viver chão,

Que humanamente o não poderei mais.

 

Se a política meta resta incerta,

Certo é que indiferente não nos fica.

Nossos pais destruíram com experta

 

Alegria o cimento que edifica.

Destruíram sem ver tudo a rachar-se:

- Herdámos a ruína dum disfarce.

 

 

1501 – Mórbidos

 

Na vida de hoje o mundo só pertence

Aos estúpidos, frios, agitados.

O direito a viver, nos termos dados,

Ou triunfar, não são já de quem vence,

 

Conquista-se, ao invés, tudo convence,

Pelos caminhos mórbidos, transviados,

Em que serão por norma conquistados

Portões num manicómio que os adense:

 

Uma incapacidade de pensar,

Da loucura primeiro limiar;

Uma amoralidade convencida,

 

De quem é inimputável a medida;

Hiperexcitação dum activismo

Que alegres nos afunda em pleno abismo.

 

 

1502 – Escriturário

 

Tudo em mim poderei me imaginar,

Uma vez que não sou, que não sou nada.

Se alguma coisa fora, de assentada,

Outrem já me não lia em meu lugar.

 

Qualquer escriturário, na esplanada,

Imperador se ocorre vislumbrar,

Coisa que um rei, no gesto devagar,

Nunca arriscar podia em tal jogada.

 

 

Pois que outro rei que não o rei que for

Pode ele sonhar ser além de si?

O cume é solitário no fulgor

 

E a neve cega, à luz do frenesi.

A realidade do que ali chegou

Não o deixa sentir mais nenhum voo.

 

 

1503 – Monotonizando

 

É monotonizando uma existência

Que um incidente torno em maravilha.

O caçador dos leões perde a trilha

Se igual repete sempre igual vivência.

 

O cozinheiro, o novo que armadilha,

Modesto apocalipse na aparência,

São, por exemplo, uns murros que a decência

Levou alguém a dar nalgum pandilha.

 

Quem de Lisboa sai corre o infinito,

Se vira em Sintra vai voar a Marte,

- Se antes se recolheu a um canto estrito.

 

Quem a Terra correu, se outra vez parte,

Diante não encontra novidade,

Que é sempre o mesmo novo o que o invade.

 

 

1504 – Sábio

 

Pode um homem, se sábio for deveras,

O teatro gozar do mundo inteiro

Sentado, sem falar, muito caseiro,

De alma alegre enfrentando embora feras.

 

Rotinizar a vida, que primeiro

De rotina, à partida, não há esferas:

Anódino o cotio, as esperas

Vão atender ao toque mais leveiro.

 

Em meio ao meu trabalho quotidiano,

Embaciado, inútil, sempre igual,

Visões de bergantins a todo o pano

 

Brotam de ilhas num sonho boreal…

- Se este pedaço retiver de céu,

Foi que nada seria dantes meu.

  

 

1505 – Contento-me

 

Contento-me, afinal, com muito pouco:

Com ter findado a chuva e haver um sol

Bom neste sul feliz e haver um rol

De amarelas bananas onde apouco

 

As pintas pretas a que fico mouco,

A vendedeira a retirar a mole

Com que me acalma o medo que em mim bole,

Os passeios da Rua Pedro, o Louco,

 

Um qualquer Tejo a me servir de fundo,

Azul esverdeado em bagas de oiro…

- Breve recanto que de riso inundo,

 

Canto doméstico de infante loiro,

Lar da ternura onde a agradar converso

Em meio à infinidade do Universo.

 

 

1506 – Lúcido

 

Releio lúcido o que tenho escrito,

Bem demoradamente, trecho a trecho,

E acho que tudo é nulo no que mexo,

Mais me valera nunca o ter por fito.

 

Reino ou frase, o atingido sempre o fecho

Na pior parte dum real quesito:

O de saber que é um perecível mito,

Seja o que for que ali valer o entrecho.

 

O que sinto e me dói em quanto fiz

É que fazê-lo não valeu a pena.

No tempo que perdi, que foi feliz,

 

Ganhei apenas a ilusão pequena,

Ora desfeita, de algo ter valido:

Feito ou não, tudo ao fim é igual rasquido.

 

 

1507 – Dói

 

O que me dói é que o melhor é mau

E que outrem o faria bem melhor.

Em arte ou vida o que farei é pôr

Cópia imperfeita dum rio sem vau:

 

Desdiz não só da perfeição do pau

Com que tentei o enxurro em vão transpor,

Mas mais deste imo que julguei supor

Que moldaria o tosco varapau.

 

 

Por dentro somos ocos e por fora,

Párias de antecipar e de promessa.

Com vigor de alma fiz da lauda a escora,

 

Crendo em magia do que nunca esqueça,

Supondo que escrevia o que escrevia,

E, afinal, serradura era o que havia!

 

 

1508 – Escapar

 

O meu desejo é de escapar, fugir,

Fugir ao que conheço, é meu e que amo,

Não para as índias da pantera ou gamo,

Não para um sul qualquer deste existir,

 

Mas para um vão recanto onde me acamo,

Que tenha em si não ser este meu ir.

Mais estes rostos não quero a sorrir,

Estes hábitos, dias que me tramo.

 

Repousar quero, alheio à mascarada,

Quero o sono a chegar-me como vida

E não como repouso da jornada.

 

Cabana à beira-mar, gruta escondida,

Falésia de montanha hão-de-mo dar…

- Em mim apenas não tenho lugar.

 

 

1509 – Escravatura

 

A escravatura é a maior lei da vida,

Porque tem de cumprir-se e não há fuga,

Refúgio nem revolta. E quem madruga,

Nasce escravo ou devém-no ou lhe é infligida

 

A escravidão. A liberdade haurida,

No passo fruste que ela nos estuga,

O peso prova em nós do que nos suga,

No amor cobarde em busca por medida.

 

Eu mesmo que a cabana quereria

Irei partir sabendo que a rotina

Morando em mim, em mim sempre a veria?

 

Eu mesmo que ao sufoco tudo inclina

Onde por fim é que melhor respiro

Se o mal é dos pulmões, não do que aspiro?

  

 

1510 – Obediente

 

Crente ou descrente, obediente sou,

Caseiro e servo em minhas percepções,

Das horas de as reter preso aos grilhões:

Fatalmente serei, por onde vou,

 

Sob o pálio do céu que me arrastou,

Escravo de enquadrá-las aos milhões,

Incompreendido e mudo, em solidões

Vestindo a vida, que o tambor soou

 

Para cumpri-la. E cumpro, sem porquê,

Gestos e passos, marcações, maneiras…

Até que a festa acabe o rapapé,

 

Se desmontem as tendas destas feiras,

Para eu ir comer pitéus de gala

Nas tendas que há-de haver fora da sala.

 

 

1511 – Figurantes

 

Nós outros, a viver como animais

Com maior ou menor complexidade,

O palco atravessamos da verdade,

Tais figurantes que não falam mais,

 

Contentes da imbecil solenidade

Do itinerário de não-ir jamais.

Homens e cães, pulgas e génios, tais

Quais são, a serem brincam na cidade,

 

Sem pensar, sob a calma das estrelas.

Os místicos da morte e sacrifício

Sentem, ao menos, cruas as querelas

 

Mágicas do mistério: o exercício

Liberta-os ao tapar o sol visível,

Plenos são, de vazios do sensível.

 

 

1512 - Iguais

 

Homens e bestas muito iguais convivem:

Inconscientemente são lançados

Entre as coisas e o mundo a tal fadados;

Divertem-se, a intervalos, do que vivem;

 

Orgânico igual curso ambos revivem;

Além não pensam de conceitos dados,

Só vivem ao que vivem destinados…

O gato ao sol mil réstias quer que o crivem,

 

 

Na vida é um homem que se espoja e dorme:

Nem um nem outro se livrou da lei

De fatalmente ser à lei conforme.

 

Os maiores a glória de imortais

Buscam, no frenesim de quem é rei,

E da glória não são parte jamais.

 

 

1513 – Rua

 

Embora em redor rua o que fingimos

Que somos e jamais somos deveras,

Porque coexistimos pelas eras,

Impávidos ficar logo assumimos,

 

Não porque justos somos ou sentimos,

Mas porque somos nós, férteis quimeras.

E sermos nós é nada com esferas

Externas ter a ver, mesmo se as vimos

 

Fluir, ainda que fluam sobre quanto

Para elas seremos. Deve a vida

Para os melhores ser, não gasto pranto,

 

Antes um sonho breve que convida,

Que, portanto, recusa aos que estão prontos,

Recusa, por alheios, os confrontos.

 

 

1514 – Desagradável

 

O que desagradável vem na vida,

Ridículas figuras que actuemos,

Palavras infelizes que lavremos,

Lapsos duma virtude decaída,

 

- São meros acidentes (mesmo extremos)

De fora, embora nossos de fugida,

Inaptos a causarem-nos ferida.

A dor de dentes tal como a vivemos,

 

Calos da vida, nódoas que incomodam,

Nossos embora, têm de supor

Um corpo apenas onde se acomodam.

 

Se esta atitude acaso a minha for,

Do mundo externo ponho-me ao abrigo

E de mim próprio, meu outro inimigo.

 

 

1515 – Revolução

 

A revolução gritam todo o dia,

O desconforto me enche de desdém:

Dói-me na inteligência que haja alguém

Que creia alterar algo em gritaria.

 

A violência é sempre uma mania

Que a estupidez esbugalhada tem.

O revolucionário e também

O reformador, nada os alumia,

 

Igual é o erro: impacientes vão

O mundo externo e os outros transmudar,

Quando só neles é que eram urgentes

 

Mudas no ser, nos actos, na ilusão…

De si se evadem, logo então mudar

É não mudar-se e acabam impotentes.

 

 

1516 – Imaginário

 

De meu imaginário a ficção,

Se for cansar, não dói nem nunca humilha:

Numa amante impossível jamais brilha

O dolo do carinho, a falsidão,

 

A astúcia das carícias que me pilha.

Não me abandona a minha criação

Nem deixa de servir-me a refeição:

Quão mais livre, mais justa lhe ato a cilha.

 

Cataclismos do cosmos angustiam

Se nos atingem, erram sol e estrelas

E eu nem vejo tais mundos sobre nós.

 

De sonhos que supremos já se viam,

Hoje, porém, se fosso em escudelas,

Como vangloriar-me, murcha a voz?

 

 

1517 – Dentro

 

Criar dentro de mim uma política

Com Estado, partido, evoluções

E ser eu isso tudo, as criações,

Um panteísta deus, na real mítica

 

Nação-eu, cerne do acto de milhões,

Ser corpos e almas, toda a ideia crítica,

Ser a terra que pisam apodíctica,

Ser tudo e não o ser, noutros torrões,

 

 

- Mais um sonho que não logro incarnar!

Se o incarnar, irei morrer decerto

Do sacrilégio de ir de Deus tão perto

 

Que o divinal poder vou usurpar,

O de meus pesadelos sobretudo,

- O infinito poder de sermos tudo!

 

 

1518 – Encontrei-me

 

Encontrei-me no mundo certo dia

E até lá, se vivi, não o senti.

Se, ao não saber, o passo me tolhi,

Todos pasmaram porque eu não seguia

 

Para onde, afinal, ninguém sabia,

Na encruzilhada, eu, desperto ali,

Que nem donde viera percebi…

Vi-me em cena e o papel não entendia

 

Que os outros declamavam de imediato

Sem por igual também o compreenderem.

De pagem me vestiram belo fato

 

Sem rainha a quem vénias se deverem.

Denuncio a mensagem que era em branco…

- E todos rindo até tombar do banco!

 

 

1519 – Exterioridade

 

Do nascimento à morte um homem vive

De exterioridade o mesmo servo,

Tal como os animais, todo ele nervo,

De si às trelas de que não se prive.

 

Vegeta toda a vida, não revive

(Comigo acalmo quanto enfim me enervo),

Normas o guiam, tal na mata ao cervo,

Que nem vê que andarão em quanto esquive.

 

Que por elas se guia nem o sabe,

Ideias, sentimentos, actos são

Tudo nele inconsciente até que acabe.

 

De consciência não por falta, não,

Mas porque nele não há nunca duas:

- Vislumbre de ilusão, eis minhas ruas.

 

 

1520 – Conhecer-me

 

Conhecer-me a mim próprio será errar,

É o enigma mais negro do Universo.

Desconhecer-se é o fito bem diverso

Se conscientemente o busco a par.

 

Se conscienciosamente o procurar

Com ironia activa desconverso.

Não há nada maior, a quem é terso,

Mais próprio de quem for grande, sem par,

 

Que a análise paciente e expressiva

Dos modos de nos nós desconhecermos,

Da inconsciência a consciência viva,

 

Sombras autónomas prender nos termos:

Fumo só poderei reter à mão,

Poesia do sol-pôr duma ilusão.

 

 

1521 – Lonjura

 

Do imo a Deus a lonjura é a natureza.

Tudo o que um homem diz, exprime ou faz,

Nota à margem dum texto ineficaz

É, que apagado foi tudo o que reza.

 

Do sentido da nota, com destreza,

Mais ou menos tiramos o capaz

Sentido que andaria lá por trás

Do que, sina apagada, assim nos lesa.

 

Mas fica eterna a dúvida, entretanto:

Será que o pressuposto, a implicação,

As posso retirar deste recanto?

 

E depois vem uma final lição:

Conforme de focagem o vector,

Os sentidos possíveis são um ror.

 

 

1522 – Contrastar

 

Um homem contrastar com animais

(Por um lado animal é racional,

Por outro, doentio é animal,

Mais além, peças usa instrumentais…),

 

Tudo serão verdades parciais.

Toda a definição é lateral,

Sempre imperfeita, que não dá sinal

De que seguras não há raias mais:

 

 

Incônscia a vida humana é talqualmente

A do animal, submissa a leis profundas

Que fora o instinto regem fatalmente,

 

Como a razão, nas várzeas mais fecundas.

Somos apenas um instinto em gérmen,

Tão pobre que ainda apenas mero é sémen.

 

 

1523 – Esticar

 

Afinal, estes homens obtiveram

Tudo aquilo que a mão pode atingir

Só de esticar o braço, sem bulir.

O braço lhes varia, no resto eram

 

Iguais: que inveja despertar puderam?

Sempre julguei virtude prosseguir

O inalcançável, mesmo sem porvir,

Viver onde não sou, quando se esperam

 

Vidas mais vidas ao morrer que quando

Vivo se foi e conseguir, enfim,

Sempre algo de difícil, malucando

 

No absurdo de vencermos, no confim:

- Ir nos obstáculos vergar, jucundos,

A própria realidade ao fim dos mundos.

 

 

1524 – Esforço

 

Todo o esforço, qualquer que seja o fim

Para que tenda, sofre, ao incarnar-se,

Os desvios que a vida impõe, disfarce

Que o torna noutro esforço: nele vim

 

A servir outros fins, consuma enfim

Às vezes o contrário que alcançar-se

Pretendera, no gesto que me esgarce

A roupagem que visto em meu confim.

 

Um fim pequeno apenas vale a pena,

Que inteiro então se pode efectivar:

Se uma fortuna acaso é o que me acena,

 

Posso-a atingir, que é pouco, e recontar.

Mas o mundo servir ou a cultura,

Meu imo melhorar, que é que mo apura?

 

 

1525 – Pena

 

Pena tenho de quem sonha o provável,

O legítimo, o próximo, bem mais

Do que dos que do estranho são rivais,

Devaneando longínquos no inviável.

 

Os que sonham à grande, por demais

São doidos, acreditam no inefável

E, feliz, são o fantasista adiável,

Mil devaneios embalando ideais.

 

Quem sonha o viável corre o risco a sério

De sofrer de fatal desilusão:

Não me pesa ser dono dum império,

 

Mas não dar o recado a um artesão.

O impossível já nisto priva dele,

O viável prende ao mundo a minha pele.

 

 

1526 – Corrido

 

Há muito tempo, há muito, não escrevo,

Têm corrido meses sem que viva,

Íntimo estagno da ilusão cativa,

Sem pensar nem sentir, em que me cevo?

 

Uma fermentação rumina esquiva

Nas folhas que apodrecem de meu trevo:

Escrevo, existo, sonho que não devo,

Quatro folhas da sorte e não me activa.

 

As ruas serão ruas para mim,

Respondo no trabalho consciente,

Mas distraído a adormecer-me, assim,

 

Por detrás do labor, como um vidente.

Há muito não existo: estou, estou…

- E ninguém me distingue de quem sou.

 

 

1527 – Estrada

 

Qualquer estrada, mesmo a de nenhures,

Te leva, firme, até ao fim do mundo.

Se for seguida toda, longe e fundo,

À partida retorna que inaugures.

 

De modo que do mundo o fim que augures

É aquela mesma terra onde me fundo.

O mais alto que trepo, o mais que afundo,

Nunca saio de meu sentir algures.

 

 

De nós mesmos jamais desembarcamos,

Jamais a outrem nós, enfim, chegamos

Senão outrando-nos da imagem nossa.

 

Veras paisagens, só por nós criadas,

Que, deuses delas, são tal qual geradas:

Sete partidas minha oitava engrossa.

 

 

1528 – Cruzou

 

Quem todo o mar cruzou, cruzou somente

Dele mesmo o monótono roteiro.

De mais mares que os mais todo eu me inteiro,

De mais serras que a Terra me apresente,

 

Cidades já vi mais que o existente,

Dos rios de nenhures eu me abeiro

Fluindo sob o meu olhar leveiro…

Se viajara encontrava a cópia ausente

 

Do que sem viajar vira, contemplando.

Visitam outros, peregrinos vagos,

Países que visito, rei do mando.

 

Já lá fui porque fui de uvas os bagos,

Assim feitos em deus, na libertária

Minha só criatura imaginária.

 

 

1529 – Produtos

 

Pestes, tormentas, guerras, são da cega

Mesma força produtos operando

De inconscientes micróbios ao comando,

De raios, de água incônscia sob a rega,

 

Ou de homens inconscientes sob o mando.

Terramoto ou massacre, é que um adrega

Pegar a faca, o punhal outro pega.

O monstro indiferente usará, quando

 

Se serve, o pedregulho das alturas,

Como a pedra do ciúme ou da cobiça:

O pedregulho cai, mata ternuras,

 

Cobiça ou ciúme o braço armado atiça

E mata mundo além. Tudo é um monturo

De instintos onde brilha o sol mais puro.

 

 

1530 – Cósmico

 

Quão mais contemplo o cósmico espectáculo,

Fluxo e refluxo do mundo dos dados,

Mais os prestígios falsos, enganados,

Me parecem às pompas um obstáculo,

 

Ficção de rejeitar de meu cenáculo.

Marcha multicolor de usos e fados,

Rumar de multidões, urbes e prados,

Impérios ou igrejas sob um báculo,

 

Tudo é mito e ficção, um pesadelo

De sombras remexendo esquecimento.

A apreensão final deste novelo

 

Enredado de mortos, cinza ao vento,

É a vacuidade que há dum "já sei tudo!"

Na indiferença em paz dum olhar mudo.

 

 

1531 – Ditosos

 

Ditosos os autores pessimistas!

Amparam-se de terem algo feito,

Se alegram do entendido e à dor, com jeito,

Mundial se integram. Não consto das listas,

 

Não me queixo do mundo, não o enjeito

Em nome do Universo, vãs conquistas

Sofro, sem descobrir se o mal que enquistas

É da dor ou se humano é haver tal preito.

 

Aliás, que importa a mim se é certo ou não?

Sofro, gamo ferido, sei lá bem

Se merecidamente, na caçada

 

Em que o tiro o dispara qualquer mão.

Eu não sou pessimista, não, porém,

Sou triste de tão preso na jogada.

 

 

1532 – Dispo

 

Quando dispo de mim esta pelagem,

Ocorre-me talvez não estar nu

Da nudez que suponho que eu e tu

Sofremos ao presente na roupagem.

 

Talvez ainda haja vestes de viagem

Impalpáveis cobrindo este tabu

Da eterna ausência de alma no acaju

Que nas malas transporto de mensagem.

 

 

A eterna ausência de alma verdadeira!

Pensar, sentir, querer, estagnações

Podem ser duma mais funda maneira,

 

Doutro íntimo pensar: são volições

Em que eu ando perdido em labirinto

Do que deveras sou, deveras sinto.

 

 

1533 – Amamos

 

Nunca amamos ninguém, mas uma ideia

Que fazemos de alguém, nosso conceito:

A nós mesmos, a nós, prestamos preito,

A nós, pois, nos amamos, paixão meia.

 

No amor sexual buscamos o perfeito

Prazer que é nosso à mediação alheia.

Noutro pendor a ideia é que medeia

O mesmo prazer nosso, sem mais jeito.

 

O onanista é completo nesta lógica

De amor que não disfarça nem se engana,

Fecha o cerco, sem meta escatológica.

 

Ao conhecermos, nós desconhecemos,

Dizemos "amo-te" e ao fim quem se dana

Somos nós que afinal nunca nos vemos.

 

 

1534 – Romântico

 

De amor romântico ama quem amar,

Que é veste ou traje, em fantasia orlado,

Por nosso imaginário fabricado

Para as aparições dele adornar,

 

Revestindo-as do encanto que almejar.

Como eterno não é, o traje é fadado

A durar tanto quanto houver durado.

Sob a veste do ideal que se formar,

 

Eis o corpo em rasgões esfacelado,

Onde ajustámos roupas de encantar.

O amor romântico, após ter andado,

 

É uma desilusão a caminhar.

Só se constante tece renovado

Véu de magia quem constante amar.

 

 

1535 – Estonteado

 

Quando estonteado ergo a cabeça breve

Dos livros onde cato o sonho alheio,

Sinto náusea da vida que não veio

E a vida me desgosta que me teve,

 

Como um remédio de veneno cheio.

Sinto com visão clara como é leve

E fácil afastar-me, como deve

Agir quem quer pular fora do veio:

 

Vivemos pelo agir, pela vontade.

Quem não sabe querer, mendigo ou génio,

Na impotência se aplana que o degrade.

 

Afirmar-me que importa do milénio

Espírito, alma, guia que o inspira

Se for mero ajudante de mentira?

 

 

1536 – Encontra

 

Daqueles sou que a mulher conta que ama

E, quando o encontra, nunca reconhece.

Ou, quando o reconhece, logo esquece

Que o não reconheceu na vera trama.

 

Delicadeza dum sentir refece

Sofro atento, a desdenhar-lhe a rama.

Romântica textura em mim se acama,

Protagonismo, não, não me acontece.

 

Uma ideia não tenho, não, de mim,

Nem a de me faltar qualquer ideia.

Nómada sou da consciência, assim,

 

Tresmalham-se os rebanhos na alcateia

De lobos de meu imo e o que é mais trágico

É trágico eu não ser por trás do mágico.

 

 

1537 – Agregando

 

Nenhuma ideia entra a circular

Senão nela agregando a estupidez.

O colectivo é estúpido, uma vez

Que um pensamento nele ao se filtrar,

 

Paga imposto de logo abandonar

Da inteligência o mais da sensatez.

Na mocidade somos dois à vez:

Coexiste a inteligência que alcançar

 

 

Da inexperiência mais a parvoíce,

São duas consciências, alta e baixa.

Só noutra idade se unem que se visse,

 

Daí a fruste acção que aquela enfaixa.

Quem for superiormente inteligente

Da pretensão abdica, é um quase ausente.

 

 

1538 – Sempre

 

É sempre no presente que aqui vivo:

Futuro não conheço e o meu passado

Já o não tenho, varrido para o lado.

As possibilidades dum, esquivo,

 

Pesam-me como no outro o nada ousado.

Nem esperança nem saudade arquivo,

Minha vida é o contrário decisivo

Do que alguma vez nela hei desejado.

 

Sabendo o que ela foi até o momento,

Para amanhã que presumir, senão

Que não vai ser o que presumo e tento?

 

Nunca fui mais que um simulacro em mim,

O meu passado é meu rotundo não,

Viro a lauda e do texto anoto o fim.

 

 

1539 – Outro

 

Viver é ser meu outro, nem sentir

É viável se hoje o que ontem senti sente:

Sentir não era mas lembrar o ausente

Cadáver vivo de ontem a bulir.

 

Do quadro apagar tudo no porvir,

Ser novo ao novo alvor, mal o pressente,

Uma revirgindade permanente,

Eis o que importa ter e prosseguir.

 

Do mundo o primordial é a madrugada:

Nunca este rosa amarelando veio

A encosta pincelar de olhos vidrada,

 

Jamais houve a actual hora, nem tal luz,

Nem o vadio ser meu pelo meio

E amanhã noutro eu tudo reluz.

 

 

1540 – Sonhar

 

Eu nunca fiz senão sonhar, tem sido

Este o sentido em minha vida inteira.

Nem preocupação mais verdadeira

Que a vida interior eu terei tido.

 

A maior dor da vida se há esbatido,

Aberta a fresta para a minha feira

Dentro em mim a mover-se à luz fagueira,

Um mundo ao lado do falaz vivido.

 

Não pretendi mais ser que um sonhador,

Tenaz pertenço ao que não sou nem pude,

A poesia no não meu vou pôr,

 

Maravilha-me aquilo a que ela alude.

Nunca amei, pois, senão coisa nenhuma,

Eterno ansiei pelo meu ser de bruma.

 

 

1541 – Supera

 

O sonhador supera alguém activo,

Não que o sonho supere a realidade,

Mas é mais prático e  melhor persuade,

Nele um prazer mais variado, vivo.

 

Homem de acção é o sonhador, furtivo,

Que a vida é mais mental, e a validade

Dela será bem mais mentalidade,

Que a valoro conforme for meu crivo.

 

O sonhador é um emissor de notas

Que na cidade do íntimo circulam

Como as do mundo real, com iguais cotas.

 

Que importa se não forem convertíveis,

Se as mais deveras também não calculam

E os romances reais são os legíveis?

 

 

1542 – Reconhecer

 

Reconhecer o real como ilusão

E a ilusão como forma do real

É tão inútil como, ao fim, fatal.

Para mesmo existir contemplação,

 

O real é premissa à conclusão

Inatingível e o que o sonho vale

Será das contingências com que abale

Tudo quanto for digno de atenção.

 

 

Tudo é caminho ou antes um estorvo,

Conforme de o focar a perspectiva,

E assim o multiplico enquanto o sorvo.

 

Então, ao contemplar, fujo da aldeia,

É o mundo inteiro a mim que me cativa:

Deserto ou cela é do Infinito a cheia.

 

 

1543 – Meditar

 

Ao meditar ocorrem uns momentos

Em que, embora sem ver, tudo é já visto,

Tudo é já velho e gasto e, se persisto,

Do que mudar não mudo os elementos:

 

De meditar serão meros eventos.

Mil ânsias de viver explodem, quisto

Dos sentidos gritando que eu existo,

Penso de modo táctil, tegumentos

 

Na esponja-objecto, a embebê-la de água.

Temos então a mossa que arrepia,

Fadiga de emoções de meditar,

 

Noite do avesso, o apreço a virar mágoa.

Todo o infinito em mim o sinto um dia

Forro negro apertado em mal-trajar.

 

 

1544 – Deus

 

Onde está Deus, embora não exista?

Quero rezar, chorar e arrepender-me

Do que não cometi, gozar ser verme

Perdoado em carícia de conquista.

 

Regaço de chorar, perder de vista

A noite de Verão onde aquecer-me,

Junto à lareira, abandonada inerme,

Ternuras explorar onde me invista…

 

Uma ama velha à cabeceira antiga,

Berço pequeno para dormir contos,

Atenção morna que embalada briga…

 

E tudo à grande, estrelas em mil pontos

Da robustez descomunal de Deus,

Naquela verdade última dos céus.

 

 

1545 – Arrumo

 

Quando arrumo num canto os artifícios,

Meus brinquedos de imagens e de frases,

Tão pequeno me encontro entre os vorazes

Casarões, já de mim sem mais resquícios,

 

Que triste sinto apenas malefícios.

Quem sou quando não brinco? Órfão sem bases,

Da fera de sentir preso às tenazes,

Tirito ante o real sem mais auspícios.

 

De meu pai sei o nome, que era Deus,

Mas o nome não dá de ideia nada,

Chamo por ele e dou-lhe traços meus…

 

Quando acaba tudo isto, esta jornada?

- Se um dia Deus me viera enfim buscar,

Me dera amor e se deixara amar…

 

 

1546 – Descobrir

 

Talvez a descobrir venham um dia

Que tudo dimensões do mesmo espaço

Constitui, que num único, igual laço,

Nem corpo nem espírito, uniria.

 

Num plano, vivo corpo em cada traço,

Noutro qualquer, sou alma de magia

E noutro ainda acaso mais vivia,

Tanto é o real em nós que o nem abraço!

 

O que chamamos Deus é doutro plano,

Não da lógica espácio-temporal,

Modo outro de existirmos, em si lhano,

 

Dimensão outra a sermos do real.

O sonho nela cruza dimensões:

- Divino é um rasto em nossos corações.

 

 

1547 – Montanhas

 

No alto ermo das montanhas naturais

Temos, ao lá treparmos, privilégios.

Somos mais altos, pois, nos sortilégios

De toda esta estatura, do que os mais

 

Altos montes, nos píncaros seus régios.

O cume, em tal lugar, é o que pisais

Sob os pés firmes. Somos principais

Ante o mundo visível, mesmo egrégios

 

 

Planaltos em redor findam mais baixo.

A vida é aquela encosta que ali desce,

Planície que além dorme no riacho.

 

Esta altura que temos não a temos:

Altura minha, de alto a ver, não cresce,

É o que calco que faz que nos alcemos.

 

 

1548 – Malícia

 

Em nós tudo é malícia e acidente,

Não sou mais alto, no alto, em minha altura:

Melhor respira o rico, se afigura,

O célebre mais livre então se sente,

 

Um título de nobre é um trono assente…

E um artifício tudo é que inaugura:

Se trepei, alto é o alto que se apura,

No monte nasce alguém, é um acidente,

 

Ao topo nos guindaram e nem vimos…

Grande é o que reparar, do vale ao céu,

Que não é o longe, conta é o que atingimos:

 

Em dilúvio, no monte é o lugar meu;

Nos raios e no vento, aos vales imos…

- Sábio possíveis é mais ter de seu.

 

 

1549 – Paisagem

 

Uma paisagem é um estado de alma,

Mas, desde que a paisagem é paisagem,

Não é um estado de alma nem miragem.

Ao concretizar, crio, arte de Talma

 

Em palco já deixou de ter a palma

Do sonho, do projecto, da viagem…

Vejo, mesmo que sonhe com coragem:

Sonho e real, não é o mesmo que me acalma.

 

Independentemente de mim cresce

Erva, choverá nela e o sol a doira

E a serrania antiga além floresce,

 

Ao vento que a penteia, infanta moira…

Em mim, porém, é que desenho a imagem,

- Qualquer estado de alma é uma paisagem.

 

 

1550 – Ternura

 

De repente, a ternura por este homem,

Pela vulgaridade humana igual,

Pelo quotidiano lar banal,

Humilde, alegre e bom dos que lá comem…

 

O inocente viver, quase animal,

Destas costas vestidas, sem que as tomem

Análises, questões que nos consomem,

A caminhar ali, mui natural…

 

Afecto igual perante alguém que dorme,

Tudo o que dorme infantil é de novo,

Dormindo, o criminoso lhe é conforme.

 

Inconscientes imos e vivemos,

Ninguém sabe o que sabe e o que reprovo

É que ternura mais não cultivemos.

 

 

1551 – Imposto

 

O mais antigo imposto à inteligência,

Fadada de ilusões mortas inteiras

E do que delas crivam as peneiras,

É na vida a consciência da inconsciência.

 

Das ilusões as perdas mais ligeiras,

De as ter a minha inútil evidência,

De constatá-las na final ausência,

Mágoa de as ter mantido por parceiras,

 

Vergonha de as ter crido olhando o fim…

- Ai quanta inteligência inconsciente!

Do pensamento o manto de cetim,

 

Filosofia, fé dum imo ausente,

- De automatismos todos usarão

Como um fígado gera a secreção.

 

 

1552 – Superfície

 

Da superfície e do bruxedo presa,

Sinto-me homem às vezes, convivendo

Com alegria, existo com clareza.

Sobrenado e me agrada ir recebendo

 

Um ordenado e a casa ir recolhendo.

Sinto o tempo sem ter dele a despesa

E qualquer coisa orgânica, pudendo,

Me encanta, lúbrico pitéu à mesa.

 

 

Nem medito, nem penso, amo o jardim,

Algo de estranho e pobre há nos recantos:

Sinto-os bem quando mal me sinto a mim.

 

Da civilização eis os encantos,

Na natureza anónima mudança.

- Errado irei, mas que alegria dança!

 

 

1553 – Emprestamos

 

Ao ignoto emprestamos nossas cores

Do conhecido: a morte é um mero sono,

Pois fora o reproduz; e, se lhe abono

Outra vida, é por outros ter penhores…

 

Mal-entendidos fundam os melhores

Quadros de crenças de que enfim me adono

E as esperanças que elevar ao trono

Vivem das côdeas de cozer fervores,

 

Pobres crianças, jogam aos felizes.

Assim é toda a vida evoluída:

Civilizar é apor numas matrizes

 

O nome que não tomam por medida.

Depois sonhamos sobre o resultado

- E eis como o engano nos transmuda o fado.

 

 

1554 – Nova

 

O nome falso e o sonho verdadeiro

A nova realidade nos criaram,

Reais objectos noutros se tornaram,

Que noutros os tornámos por inteiro:

 

Manufacturo real. E o que requeiro

De igual matéria-prima é o que formaram

Nela as artes que noutra a transmudaram,

Mesma já não, quando me dela abeiro.

 

Mesa de pinho é pinho e também mesa:

Sento-me à mesa, não me sento ao pinho,

Tal é do nome-sonho esta grandeza.

 

O amor é instinto, é sexo comezinho,

Mas por instinto ninguém ama, então,

Se amo, ergo ao mundo um outro mundo à mão.

 

 

1555 – Rapazote

 

Descreve o rapazote "o gajo grosso,

Tão grosso que nem vira ali a escada".

Descreve ele melhor, duma assentada,

Que quando sente, porque esquece o fosso

 

Que o distancia do imbecil destroço.

Olho quem nem degraus vira nem nada,

Resto de humanidade atropelada,

O declive palpando junto ao poço:

 

Prosápia do que não ousou fazer,

Festa de pobre bicho de consciência

Vestindo o incônscio imo que tiver,

 

Piadas arrancando à paciência…

- Que pena o monstruoso animal reles

Feito de sonhos, côdeas, vagas peles!

 

 

1556 – Penumbra

 

A vida é na penumbra um movimento,

Vivo no lusco-fusco da consciência,

Incerto do que sou, sem evidência,

Uma vaidade algures, um momento.

 

Do intervalo de cena um elemento,

Pela fresta entrevejo a florescência

Dum cenário talvez, duma inocência:

Todo o mundo é confuso e nevoento.

 

Do cume distinguir tento no vale

As vidas que contemplo à luz do cimo,

Só paisagem confusa do que animo.

 

Véspera de acordar onde me iguale,

Sofro-me, invólucro que sou de mim,

E abafo a conclusão até ao fim.

 

 

1557 – Alfobre

 

Sou alfobre de gestos, mal se esboçam,

De termos que meus lábios nem pensaram,

De sonhos que esqueci, mal me sonharam…

Sou ruínas de prédios, não remoçam,

 

Nunca além das ruínas se elevaram

Porque alguém se fartou, entre os que fossam

Nos caboucos, do suor que não endossam,

Do plano e destas mãos que o germinaram.

 

 

Um sonho esvaziado, um ódio fraco,

São mero pedestal sujo da terra

Em que se finca tosco, feito um caco,

 

Para a estátua do tédio que me encerra,

De mim na interminável despedida.

Bendito quem de ninguém fia a vida!

 

 

1558 – Chefe

 

Chefe do exército se sonha um dia

Cada um que da cauda lhe fugiu,

A lama do ribeiro o grito ouviu

Da vitória afinal que ninguém via.

 

Migalhas entre as nódoas que cobria

A toalha (e ninguém a sacudiu),

Cada interstício delas já se encheu,

De homens-pó na fissura que se abria.

 

Meus pobres companheiros de sonhar

Altos sonhos, que inveja e que desprezo!

Comigo os pobres nem a quem contar

 

Encontram o poema que mais prezo.

Asfixiados, de existir morremos

Sem que nos a viver habilitemos.

 

 

1559 – Pendular

 

O velho pendular vai lentamente,

Não vai bêbado, não, vai sonhador:

Talvez espere, olhar no inexistente…

Deus nos conserve aos sonhos o fulgor,

 

Mesmo inviáveis, e nos ponha à frente

Os bons, embora de fugaz valor:

Hoje sonho em Índias do Oriente,

Amanhã, da lareira no calor.

 

Qualquer dos sonhos será o mesmo sonho,

Que todos sonhos são de meu sonhar

E neles no presente o porvir ponho.

 

Mudem-me os fados embora de lugar

Os devaneios meus de que disponho,

Não me roubem o meu dom de sonhar!

 

 

1560 – Propósito

 

Meu propósito, sempre que se ergueu,

Por mão do sonho, acima do cotio,

E um momento na altura, por um fio,

Criança no baloiço me sentiu,

 

De cada vez como ela me desceu

Até o chão do jardim à beira-rio,

Da derrota a saber todo o fastio,

Sem uma espada nem pendão de meu.

 

Dos que cruzam o acaso, a maioria

Arrasta pelas ruas o projecto

Do exército incapaz, sem pendão-guia.

 

Todos minha derrota e meu afecto

Terão, poetas coitados da miséria,

A rir do mundo, esta fatal pilhéria.

 

 

1561 – Alma

 

A final alma em tudo é o ambiente,

Cada qual tem um rosto que é de fora,

Intersecta em três linhas quem lá mora:

Matéria, meio e como o leu a gente.

 

Este tampo é madeira, mesa e um ente

Dentre o mobiliário que decora

A quadra: entende-o só quem se assenhora

Do contexto em que lhe ele se apresente.

 

Ser coisa é ser lugar de atribuição,

Dizer que a planta gosta será falso,

Que um rio corre, um poente é uma aflição…

 

Mas tudo vem de fora e eu vou no encalço:

A humanal alma é um raio de sol que anda

A erguer do chão o estrume que comanda.

 

 

1562 – Romântica

 

Da distracção romântica me rio,

Mas devir célebre, como era bom!

E da meiguice o delicado tom,

Ir em triunfo, o mágico atavio…

 

Mas quando este meu píncaro vigio,

Um outro qualquer eu me rirá com

Familiar, muito broeiro tom:

Famoso, vejo o fato meu no fio,

 

 

No trono, vejo-me a mancar na escola,

O aplauso bate à rotineira vida

E me amesquinha num caseiro sonho.

 

Em meu império, castas, nem de esmola,

E à sagração nenhum amor convida,

Morrerei com escritos que em mim ponho.

 

 

1563 – Estrago

 

À medida que à fé varre o tufão

Fica o estrago visível da ruína,

A que causara e aquela a que se inclina

E a que, da falta dela, arrasa o chão.

 

Vêem-se agora as almas tais quais são,

Na desgraça patente enquanto sina,

Na inermidade vaga que as destina,

E um cristianismo vem sem ilusão.

 

Com ele o romantismo então floresce,

A confundir o que nos é preciso

Com o que desejamos e não cresce.

 

O indispensável fatalmente viso,

O desejável, não, e é uma doença

Se busco a lua, tal se me pertença.

 

 

1564 – Nu

 

Dum corpo nu a sensual beleza

Apenas sentem as nações vestidas.

Vale o pudor por sensuais medidas,

Como a energia uma barreira a entesa.

 

A artificialidade afinal preza

Na naturalidade gozar vidas:

Destas campinas gozo ali floridas

Por não viver em plena natureza.

 

Não sente a liberdade quem não vive

Constrangido jamais. Civilizar

É pretender que o natural motive,

 

O artificial indu-lo a apreciar.

Um por outro tomar não conviria,

Que o natural humano é uma harmonia.

 

 

1565 – Anseio

 

Quantas vezes anseio pela paz

Que agora infringirei ao ser decente!

Entre as naturais coisas mora assente

Todo o definitivo que, falaz,

 

A civilização perdeu atrás,

Mesa de pinho onde o pinhal presente

Dilui-se entre o verniz tão de repente

Que ninguém é de o acordar capaz.

 

Eis-me na natureza, mas saudoso:

Nascer fez-me a cultura uma outra vez

E o artificial é mais viscoso.

 

Não o quero, que vejo a pequenez,

Mas amo o Tejo e o casario à beira

E a flor mais colorida é tal ladeira.

 

 

1566 – Isolamento

 

Talhou-me o isolamento à imagem dele,

Doutrem me atrasa uma vulgar presença,

Que o pensamento nem me lê sentença

Com outrem a arranhar-me minha pele.

 

A sós comigo sou capaz de intensa

De espírito resposta que atropele,

Rápida, os imprevistos a que apele

A aparição da inoportuna ofensa.

 

Tudo se me sumiu, doutrem diante,

Ao fim dum quarto de hora sonolento,

Em fantasia apenas sou brilhante.

 

Convidam-me a jantar e que violento!

De véspera já de ânsia ando a sofrer

E não aprendo nunca isto a aprender.

 

 

1567 – Pequenez

 

De estreita ser, a pequenez da aldeia

O mundo vasto que de longe aponta

Na mira tem, que o toma dela à conta,

Da lonjura horizonte que lhe ameia.

 

E deste modo da cidade à teia

Escapa, lhe alargando a malha pronta

A nos prender, e ao invés lhe apronta

A vastidão que só longes semeia.

 

 

Vou à varanda e sobre o meu telhado

Vislumbro o céu e os incontáveis astros,

Liberto-me a voar, pardal alado,

 

Mil universos crio, aqui de rastros.

As águas chilras no reflexo a vê-las,

Quanto sonho do abismo anda às estrelas!

 

 

1568 – Dói-me

 

Dói-me a vida e apavora de mistério:

Sobre nós vem, fantasma informe, e tremo

Do pior medo, a incarnação que temo,

Disforme, do não-ser. Ou dela o império

 

Atrás de nós visível, quando a sério

Me não virar, é o rio onde não remo

Da verdade abismal por que aqui gemo

Dum desconhecimento, enfim, sidéreo.

 

Horror hoje me anula mais roedor:

Não querer pensamento nem desejo,

Nunca ter sido nada, um desespero…

 

Da cela do infinito preso-mor,

Como fugir, se é cela quanto vejo?

- Para fora de Deus, eis onde ir quero!

 

 

1569 – Anonimato

 

Do anonimato ergo a cabeça ao claro

Conhecimento de existir e vejo

Que o que tenho pensado e sido é o pejo

Do engano e da loucura: se me encaro,

 

Estranho quanto fui, que ao fim reparo

Que não sou. Minha vida então revejo:

Eu nem representei, naquele ensejo,

Representaram-me, num gesto avaro.

 

São subordinações tudo o que tenho

A um ente falso que julguei ser eu,

A conjunturas que cri respirar.

 

Agora desterrado é que devenho,

Solitário num povo que foi meu:

- Não, eu nunca fui eu, de mim a par!

 

 

1570 – Descaminho

 

Fui erro e descaminho, não vivi,

Apenas de consciência e pensamento

O tempo de existir mal preenchi.

A sensação que tenho, de momento,

 

É que, depois dum sonho, acordo aqui,

Do pesadelo após o vão tormento,

Encegueirado à luz do que acendi,

Entre o que sinto e vejo, um pé de vento.

 

Ninguém saber de si será viver

E mal saber de si é conhecer,

Sabê-lo de repente cresta tudo:

 

Uma vez tudo consumido, após

Nus nos deixamos mesmo até de nós:

- Foi um momento e eis-me um doente agudo.

 

 

1571 – Nunca

 

Penso às vezes que nunca sairei

Dos paredões aqui da minha rua:

Por quanta eternidade continua!…

Prazer nem glória nem poder busquei,

 

Na liberdade apenas apostei

Como quem a pegada impõe na Lua.

Dos fantasmas da fé à razão crua

Passar não é jamais mudar de lei,

 

É somente mudado ser de cela.

As artes vão livrar dos manipansos

Obsoletos e soltam-nos a vela.

 

A personalidade reencontrar

Será sempre perder dela os ripansos

E a própria fé, no fim, vem-no abonar.

 

 

1572 – Paredes

 

Nem as reles paredes do meu quarto,

Nem as carteiras velhas do trabalho,

Nem mesmo a rua pobre onde me valho

De humildes vitualhas que me acarto,

 

Nem minhas fatais cartas de baralho,

O engulho formam no imo de mim farto,

Da quotidianidade que não parto,

De enxovalhantes vidas onde calho.

 

 

São os que de hábito me cercam, falam,

Me desconhecem conhecendo bem,

Que a garganta do espírito me entalam.

 

O vulgar me converte em pedro-sem

Perdido no apeadeiro de desvio,

De terceira entre trens de que não fio.

 

 

1573 – Escravos

 

Escravos somos vagos do exterior,

Manhã de sol campinas abre às vielas,

Sombra de nuvens fecha-nos janelas

E mal me abrigo em meu quarto interior.

 

Se a noite vem do dia entre sequelas,

Lento se alarga do íntimo o pendor

De que despertar devo em meu torpor.

E o labor não se atrasa, à luz das velas,

 

Antes se anima em toques de magia.

Nem sequer trabalhamos, recreamo-nos

Dos grilhões com a freima, em fantasia.

 

É dos serões o chá, por onde vamo-nos

Estirando, entre o gato e a velha tia,

E o labor sai feliz: nele geramo-nos!

 

 

1574 – Literatura

 

Arte com pensamento já casada,

Gera a literatura a realidade.

Algo afirmar conserva-lhe a verdade,

O terror lhe varrendo da fachada:

 

Mais verde é o campo na palavra dada

Que no verdor que o Abril fora invade

E a flor tem cor que a fantasia lhe há-de

Mais colorir do que a que ao vivo agrada.

 

Se mover é viver, então contar

É deveras, por fim, sobreviver.

Um dia bom só tem longo lugar

 

Se o constelo de flores, poema a ser,

Se o livro do exterior tão passageiro

E o encastro na História em corpo inteiro.

 

 

1575 – Fraternidade

 

Tem a fraternidade subtilezas,

Uns governam o mundo, outros o são.

De quantidade diferenças vão

Do milionário cujo ter tu prezas

 

Ao mentor aldeão que menosprezas;

De qualidade, porém, nunca irão.

Abaixo destes, nós, a mão na mão,

Amorfa procissão de vagas rezas:

 

Ali o dramaturgo atabalhoado,

E o mestre-escola além, poeta de génio,

Os Camões todos da miséria ao lado,

 

O balconista, o moço que é fretado,

O Fernando Pessoa do milénio,

- Saúde, fraternais, me hão desejado.

 

 

1576 – Esfinges

 

Esfinges nos tornarmos, mesmo falsas,

A ponto de quem somos nem sabermos…

De resto, isto é o que somos sem o vermos,

Que o que és jamais o sabes nem realças.

 

O acordo com a vida pega as alças,

De mim me ergue, discordo-me em tais termos

Que me quedo perdido pelos ermos,

Visto de absurdo, um deus dentro de calças.

 

Implanto teorias a agir contra,

O acto fundo na ideia que o condena,

Um caminho talhei que não se encontra

 

Nos trilhos a que o passo meu acena,

As atitudes tenho como os gestos

Do que não somos, nem sequer nos restos.

 

 

1577 – Imagem

 

A minha imagem, tal qual eu a via,

De meu íntimo sempre andou ao colo.

Eu não podia ser senão o rolo

Curvo e débil que sou no que sentia.

 

Um príncipe serei de fantasia

Num cromo de álbum velho que algum tolo

Oferta em dia de anos, junto ao bolo

Da criança que de há muito já morria.

 

 

Amar-me então é ter pena de mim,

Se alguém um dia a mim me descrever,

Se calhar reinarei acaso assim.

 

O problema é que não começo a ser

E de mim sou meu arlequim de entrudo:

Deus é ser eu e não ser isto tudo.

 

 

1578 – Libertar-me

 

Se quero libertar-me dos eventos

Que minha vida oprimem de estrutura,

De súbito por outros se afigura

Que cercado acabei, duros tormentos.

 

Tal se uma inimizade os elementos

Na teia incerta cultivaram dura

Contra mim, contra a intérmina procura

Que levo vida além, rangendo os dentes.

 

Do pescoço a mão tiro que sufoca.

Na mão que a tira me vem preso um laço

Que estrangula no gesto que reboca.

 

Afasto-o com cuidado e as mãos enlaço

Em meu próprio pescoço, até aos nervos:

- Haja ou não deuses, somos deles servos.

 

 

1579 – Ambições

 

Grandes ambições tive, sonhos grandes,

Tal qual a costureira, o amolador,

Que os sonhos são em todos de supor,

Diverge é com que força os tu demandes.

 

Em sonho, igual serás a quem comandes,

Distingues-te em diplomas de valor,

Pelas actividades que hás-de apor,

Em alma és sempre igual, andes o que andes.

 

Orientes exóticos, Lapónias,

Bem sei que os há, tal como as Amazónias,

Como há cosmopolitas deslumbrados…

 

Tivera embora o mundo em minha mão,

Sempre este pedagogo serei chão,

Com borboletas-poemas nos telhados.

 

 

1580 – Perdendo

 

De Cascais a Lisboa, devaneio,

Hora para ir, hora para vir,

Antecipadamente gozo a rir,

Olhando o Tejo grande, a vida a cheio.

 

Em meditações vagas a fluir

Me fui perdendo algures pelo meio,

Vi paisagens aquosas sem recheio

E retornei sem nada discernir.

 

Não seria capaz de descrever

O pormenor mais ínfimo da viagem,

O mais pequeno trecho de visível.

 

Lucrei a consciência de não ver

Ou de ver, porém outra paisagem…

- Chego e não chego a conclusão credível.

 

 

1581 – Confessar

 

Que há-de alguém confessar que sirva ou valha?

O que ocorre é de todos ou só meu:

Não é novo além, cá não se entendeu.

Escrevo contra a febre que me calha,

 

Não importa o que diga, mera gralha

Num texto que não tem valor de seu.

Bordo meias da mágoa que viveu

E sentimentos como quem faz malha.

 

Teço de mim figuras de cordel

Que entre os dedos crianças nas mãos trocam,

Cuidando em não falhar o laço fiel.

 

Viro a mão, fica a imagem diferente,

Recomeço, mais gestos me convocam:

Viver é fazer meia a um sonho ausente.

 

 

1582 – Tendência

 

Tudo em mim é tendência para ser

A seguir outra coisa, uma impaciência

De imo com ele próprio, na inocência

Inoportuna dum bebé qualquer.

 

Tudo a me interessar, nada a prender,

Atendo a tudo, o sonho em previdência,

O tique facial em evidência

De quem me fala – e perco o que disser!

 

 

Não o escuto, noutro algo vou pensando,

O menos da conversa é o que ela disse

De meu ou doutrem, a voá-la é que ando.

 

Repito-me, reconto-me em sandice:

Sou sempre dois, distantes dos dois lados,

Siameses irmãos jamais pegados.

 

 

1583 – Cadeira

 

Sempre que da cadeira levantei

Meus sonhos não sonhados à deriva,

É a dupla dor: a de ser nulos priva

Com a de o sonho não ser sempre a lei.

 

Algo deles ficou na sombra esquiva

Entre o serem e a aresta em que os pensei.

Fui génio mais do que nos sonhos sei,

E menos que na vida morta-viva.

 

Eis a minha tragédia de homem-quase,

Deus falhado na cauda do cometa,

Sempre em redor do Sol sem que me abrase.

 

Este corredor sou resvés da meta

Tombando ao chão num hausto derradeiro

Quando até lá corri sempre em primeiro.