CANTO TREZE

 

 

MEU  TRILHO  A  DIVERGIR  SEMPRE  EM  MEUS  PASSOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1584 e 1622 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    1584 – Meu trilho a divergir sempre em meus passos

 

                                                    Meu trilho a divergir sempre em meus passos

                                                    Percorro

                                                    À espera de algum dia escravo forro

                                                    Devir soltando voo nos espaços.

 

                                                    Escassos,

                                                    Os despojos da guerra por que morro

                                                    Mal recobrem as pegadas onde corro

                                                    Meus sonetos de sonho em versos lassos.

 

                                                    Amo e sonho, assento os pés no chão,

                                                    Retrato aquilo que me vem à mão

                                                    E prossigo a intérmina caminhada.

 

                                                    Que conjura

                                                    Me procura

                                                    Baleando-me a cada curva da estrada?

 

 

1585 – Velhos

 

Os velhos nunca estarão

Por inteiro e sempre certos,

Nem sempre terão razão,

Nem sabem tudo ou abertos

 

Andarão à novidade.

Viveram, contudo, mais.

E é por esta qualidade

Que a pós-graduação jamais,

 

Nem os mestrados que houver,

Ciberpasseios acaso,

Poderão contrafazer,

 

Que são mais que a vida a prazo:

- Viveram mais e o que aprendem

Lojas nenhumas nos vendem.

 

 

1586 – Paradoxo

 

É um paradoxo real

O da era nuclear:

Para o colapso letal

Temos de nos preparar

 

Se o quisermos evitar.

Entretanto, isto, afinal,

Mais provável dá lugar

À confrontação final.

 

 

Quão maior for o arsenal,

Maior a dissuasão,

Maior o efeito mortal

 

Se dissuadir for em vão.

É assim, encadeadamente,

Do mundo a espiral demente.

 

 

1587 – Inimigo

 

Se o inimigo é uma besta,

Um doido, um fala-barato,

Será justo que quem presta

Por igual um doido em acto,

 

Um fala-barato seja,

Uma besta tal e qual?

Ao futuro que se almeja,

Protegido do fatal

 

Perigo da hostilidade,

Não basta o que esta não jorra.

O vizinho, de verdade,

 

Para que o outro não morra,

Terá de lhe garantir

Seguro todo o porvir.

  

 

1588 – Trabalho

 

Para muitos o trabalho

Esmaga o tempo, a emoção,

Possui quem lhe fica à mão

Mais que da família o galho

 

Que o liga ao cônjuge, aos filhos.

Quem julgar que é dos problemas

Que se afunda em tais dilemas

Tem de aprender nos sarilhos

 

De quem realmente os tem.

Quantas vezes, afinal,

Estes vivem o equilíbrio

 

Que ao que importa mais convém:

- Laço humano é o principal

E tudo o mais é um ludíbrio.

 

 

1589 – Fio

 

Importa não correr riscos,

Bem no fio da vertente,

Braço ao poder nos apriscos

Que o rebanho lhe consente.

 

Sabemos onde isto leva:

Campos de concentração,

Extermínio leva a leva,

Direitos de rojo ao chão…

 

Mais tarde todos pretendem

Não ter tido, no momento,

De tal nem conhecimento!

 

Deste modo é que se entendem

Com o poder novo, em vista

De o velho manter na pista.

 

 

1590 – Olhos

 

Deus tem muitos rostos.

Não penso que Deus

Ande de olhos postos

Só nos coruchéus

 

De ocidentais gostos,

Que por trás dos véus

A igrejas impostos

Raiam mil e um céus.

 

 

Morará também

Entre os maometanos,

Judeus e budistas,

 

Hindus… Tão além

Vão de Deus os planos

Que trocam-me as vistas!

 

 

1591 – Comuns

 

Desilusão e fadiga

Comuns a todo o casal

Minam relações, formiga

No soco do pedestal.

 

O motivo é exactamente

Por monótona e vulgar

Devir a vida, ao presente,

A qualquer membro do lar.

 

Se ambos invisível ar

Um doutro calham de ser,

Esposos irão restar,

 

Não mais homem nem mulher.

O lar transpõe o perigo:

São bem mais que um doutro o abrigo.

 

 

1592 – Vacilando

 

Vacilando nas trevas

Em busca do caminho,

Dos pecados as levas

Passo pelo cadinho.

 

Num acto pecaminoso,

Bem no meio,

Se esconde, gostoso,

De renascer um anseio.

 

Em todo o pecado

Subjaz o desejo

De encontrar da fuga o lado

 

Que nos dê o ensejo

De escapar ao sufocante

De existirmos, doravante.

  

 

1593 – Busco

 

Que busco na solidão?

De que serve? Para quê?

Bem pouco sei, ou então

Sei demais: "um homem sê!"

 

- É o que ouço a apelar de além.

Devir homem é assumir

Toda a fala que provém

Do mais fundo de existir.

 

Quem pensa na utilidade

Prática não é mais homem

Que qualquer máquina de uso:

 

Já perdeu a identidade,

São só porcas que se somem,

Se calhar, um parafuso…

 

 

1594 – Tempo

 

Quanto tempo ainda à espera?

Mas o tempo não existe

Senão no instante em que estou.

 

Tudo o mais é uma quimera,

Mas a quimera persiste

Porque é no sonho que vou.

 

Que é todo este antigamente?

Só o que nele vejo e sinto,

O que me alegro e me mente,

O que sucumbe e me pinto.

 

O que é todo este futuro

Senão o que aqui projecto?

- Dum lado e doutro, só muro

E, por cima, nem um tecto!

 

 

1595 – Floriu

 

S. Francisco à amendoeira

"Fala-me de Deus!" – ordena.

E logo ela, de carreira,

Floriu: - eis a vida plena!

 

Não há mesmo outra maneira

De O pôr à boca de cena

Senão a vivência inteira

A que o infindo condena.

 

 

É preciso respirar

Até ao fim das entranhas,

São do Espírito tamanhas

 

As ânsias de me tocar:

Ao testemunhar-me assim

Princípio sou quase e Fim.

 

 

1596 – Devém

 

Quando devimos famosos

Devém o mundo pequeno.

Isolados no terreno,

Só logramos ter os gozos

 

Da família, dos amigos,

De quem soubermos melhor.

No regresso do sol-pôr

São os únicos abrigos.

 

A fama, não adivinhas,

Come-me até ao caroço:

Esburgado, em pele e osso,

 

Que é das coisas que são minhas?

- Resta só da intimidade

O luar com que me invade.

 

 

1597 – Autêntica

 

Quando se toca em alguém

A autêntica tradição,

Não é a dele apenas, não,

Que toco como convém:

 

- É sempre também a minha

Que na dele se adivinha.

 

Tal é a qualidade-chave

Duma fala séria e grave:

 

Só quando os participantes

A aprender estão dispostos

Cada qual dos mais restantes

Temos diálogo a postos.

 

Meramente ao ficar juntos

Abre o mistério os assuntos.

 

 

1598 – Medicamento

 

Medicamento que der

Taquicardia e tremor

É tal qual como beber

Café demais ao sol-pôr…

 

Mas uma jovem dirá:

"No café, não, não me centro,

É mais como ao entrar cá

Um galã meu quarto dentro."

 

Para a avó de muita idade,

Qual café nem qual galã!

"É tal quando o lar me invade

 

Um neto meu de manhã."

- Da vida na evocação,

Mapas de cada estação.

 

 

1599 – Emprego

 

Para andar bem sucedido

Num emprego é laborar

Tal se fora prosseguido

Por para si trabalhar.

 

A empresa providencia

O local, o equipamento

E o que mais beneficia,

Mas o que a cada momento

 

Tem de ser executado

E o modo melhor de agir

Sabe-o você por contado.

 

Cabe-lhe a si dirigir,

No palco deste habitáculo,

Então seu próprio espectáculo.

 

 

1600 – Folha

 

Ao pisar a folha seca

Vi a final dimensão:

Realmente morta não,

Não está quando se checa

 

Como em chão húmido alinha

Para ser na Primavera

Árvore que se adivinha

Noutra forma doutra era.

 

 

Finge que nasce e que morre,

Como tudo, aquela folha

E afinal como o mais corre

 

Às novas formas que acolha.

- Somos folha renascida

No imenso oceano da vida.

 

 

1601 – Aberto

 

Diálogo enriquecedor,

Frutuoso,

Só quando cada qual for

Aberto, generoso,

 

À novidade.

Se deveras acreditam

Que há fatias de validade

Que uns com os outros concitam

 

E aprendem,

Poderão redescobrir

Migalhas perdidas da própria tradição.

 

Os encontros mútuos rendem

Toda a luz que então luzir

Com a paz cuja flor cultivarão.

 

 

1602 – Abandone

 

Podemos enriquecer

Uns dos outros as vidas espirituais

Sem tal requerer

Que quenquer abandone os ancestrais.

 

Isto implica compreensão.

Na falta dela,

Falta tolerância e amor.

 

Logo todos se afastarão

Em busca doutra estrela

Que não esmoreça em fulgor.

 

Todos os dogmas transcende

O valor

De quanto acende

O amor.

  

 

1603 – Cânticos

 

Ao correr de nossas vidas

Poderemos procurar

De alma os cânticos do lar:

Passear nas avenidas,

 

Ou então na natureza,

Num riacho, uma cascata,

Uma encosta tão pacata

Que o barulho se despreza…

 

Águas caindo ou correndo,

Os ventos uivando feros

São ecos de alma em meu peito.

 

A música que encomendo

São encobrimentos meros

Quando a falta disto aceito.

 

 

1604 - Surpresa

 

Que surpresa descobrir

O livro escrito por mim

Pelo mundo fora a ir

Por conta própria e assim

 

A meus intentos alheio!

Quanta gente o produziu!

Nenhum controlo me veio

Do trajecto que seguiu,

 

Nem da forma por que é lido

Ou tratado ou acolhido…

 

Uma vida própria tem.

Não teria imaginado:

Vai pelo caminho além

Dos pais tal filho alongado.

 

 

1605 – Curso

 

Um curso breve sobre o encantamento:

Saia na noite próxima estrelada,

Espreite para o céu, respire o vento…

O cientista não, não sabe nada!

 

Afirmam que as estrelas cintilantes

Como os planetas são globos de pedra,

Mas nossos sentimentos derivantes

Confirmam neles que a magia medra.

 

 

As estrelas enfeitiçam,

Fito-as e eis-me a entrar em transe,

Vivências que nos enliçam,

Arenas de alma onde eu dance.

 

Quando elas tanto em alma significam,

Como é que na ciência nada pontificam?

 

 

1606 – Desporto

 

Do desporto o encantamento

É poder distanciar

Da lei física em que assento

Todo o dia meu rumar.

 

Apresenta-nos um mundo

Que é real, porém aparte,

Não limitado, no fundo,

Da lei física que acarte.

 

Como um mágico, um atleta

Mostra a potencialidade

Oculta, mas que é verdade,

Na natureza secreta.

 

Neste sentido, em desporto,

Uma arte oculta reporto.

 

 

1607 – Tento

 

Eu não tento conquistar,

Sequer controlar a vida,

Com ela me harmonizar

Busco na forma devida.

 

Nem quero determinar

Como a vida me irá ser,

Quero, sim, participar

Nos rostos que ela tiver,

 

Seguindo os sinais que levam

Onde houver desejos de alma,

Onde os fados que relevam

Me aguardam com minha palma.

 

Então, pois, vogo no barco

Daquilo que  nunca abarco.

  

 

1608 – Descoberta

 

Fazer sexo com alguém

É vê-lo profundamente.

Quem a vez primeira o tem

A vida vê diferente,

 

Dum modo mui renovado,

Transformador, reanimado.

 

O sexo é deveras gnose,

Descoberta do sagrado:

Do inconsciente arranca a pose

Do que há-de ser revelado.

 

Quando as almas são despidas

Da roupagem protectora,

Descobertas repetidas

Ocorrerão de hora a hora.

 

 

1609 – Voa

 

Eros voa através do ar

E pode-nos transportar.

 

Quando anseio por alguém

Sou convidado a mover-me,

Vou para fora, além

Para um mundo novo em germe.

 

Eis então outro motivo

Para temer o erotismo,

A sexualidade ao vivo:

Do equilíbrio são o abismo.

 

São, porém, a própria fonte

De nossa vitalidade,

Da animação do horizonte

Que me escora na verdade.

 

 

1610 – Compreender

 

Eros sempre é transgressão

De algum tipo lá envolvida.

Se o não compreender, então,

O que ocorre em minha vida

 

De liberto a sensação

Não me dará desmedida

Que a plena realização

Do sexo traz envolvida.

 

 

Muitos a interpretação

Darão de pecaminoso

Ao que é uma revelação

Do que em nós é numinoso:

 

- Para além de meus palpites

Deus transgride-me os limites.

 

 

1611 – Arte

 

Qualquer arte de viver

Anda mais relacionada

Com encontrar um lugar

 

Para a inspiração que houver

De borbotar, germinada

Dos possíveis no amplo mar,

 

Do que com qualquer projecto

Feito a partir da ansiedade.

Na verdade, esta abordagem,

 

Cria para a vida o tecto

A que o Ego a persuade:

Por aqui pára a viagem.

 

O outro é o rumo do artista:

- Tem sempre o infinito em vista.

 

 

1612 – Desafio

 

Nosso desafio é ver,

Olhar abrangente e penetrante,

Buscando a visão do mundo que houver

Dentro e além do óbvio que me ficar diante.

 

Contemplar uma imagem

É ficar absorto nela,

A ver de longe a miragem

Duma estrela.

 

O sexo ao vislumbre inspira,

À espiadela, ao olhar,

Modos de acender a pira,

 

De na imagem se fixar:

Na vida sexual

A presença duma ausência é fundamental.

  

 

1613 – Sabes

 

Se já te divorciaste

Sabes o que é uma agonia.

Diferes, depois do dia

Em que a ferro te marcaste.

 

Depois nunca mais tomaste

As decisões à ligeira.

Sabes lá se estás à beira

Do abismo onde tropeçaste!

 

Quando a decisão moral

De alma nos fica pejada

É mais rito de passagem,

 

Iniciação ritual:

É o saber colhido à estrada

Onde há marcas de coragem.

 

 

1614 – Antro

 

No antro da mendicidade,

Feliz da derrota inteira

Com a ralé que degrade

A quem do génio se abeira

 

E não foi mais que o mendigo

Do sonho, em busca de abrigo,

 

Eis-me na anónima massa

Dos que não têm poder

Para vencer quanto passa,

Nem a renúncia sequer

 

Para vencer pelo avesso

Aquilo com que tropeço.

 

Aqui vou, inteiro nada,

Nem sequer sei se na estrada…

 

 

1615 – Sempre

 

Sempre o poeta nasceu

Depois de ele haver morrido,

Que só depois que morreu

Lhe apreciam o que há sido.

 

Agir é que é verdadeiro,

Sou então o que quiser,

Tenho é de o querer inteiro.

Êxito é um êxito ter,

 

Não é ter condições dele.

Condições dum palacete

Terreno que o não repele

 

As terá como compete.

Mas onde um palácio vi

Se o não ergueram ali?

 

 

1616 – Lábios

 

Lábios de criança

Nas mãos moribundas

Livram-nas, fecundas,

Da morte que avança.

 

O outro irrompe e alcança

No ermo as mais profundas

Brechas onde abundas

Em solidão mansa.

 

De amor um sinal

E a morte fugiu:

À solidão, fim!

 

O eu visceral,

Verdadeiro eu,

É Deus dentro em mim.

 

 

1617 – Projecto

 

É a ressurreição:

Uma vida nova

Com o outro à mão

Que o projecto inova.

 

Já despontarão,

Postos sempre à prova,

Germes da invenção

Que ao porvir nos mova.

 

Metro do absoluto,

Abrem-se ao maior,

Sempre outro o produto.

 

Transcendendo além

Seja lá o que for

Cresço, Deus também.

 

 

1618 – Fragrância

 

O perfume que te dou

Que é que perfuma, afinal?

Mais me perfuma o que sou,

No amor de que dou sinal,

 

Que te perfuma teu voo,

Que não precisas de tal.

A fragrância que voou

Deste meu gesto dual

 

É a ternura respirando

Nas freimas do dia-a-dia,

Quando as mãos nos damos, quando

 

A alvorada principia:

- Como um frasco de perfume

O amor inteiro resume!

 

 

1619 – Mais

 

Que há na aragem mais que ar alto

Que não é nada e me encanta?

Que há no céu cor de cobalto

Que, sem ter cor, mais espanta?

 

Que é das nuvens acolá

Mais do que uns meros reflexos

Dum sol doméstico já

Que nem sei se andam conexos?

 

Em tudo que há senão eu?

O tédio, o maldito tédio

Que me afecta sem remédio

 

É que não vejo no céu

Senão apenas a mim:

- Todo o além é meu confim.

 

 

1620 – Gozar

 

Aprende a gozar em tudo

Não o que é, mas sobretudo

 

As ideias que provoca,

Os sonhos que em ti coloca.

 

Aquilo que é jamais é,

Mas um sonho é sempre um sonho.

Nada toques com teu pé,

Que se tocas, o medonho

 

É que o sonho morrerá

E aquilo que for tocado

É que ao fim ocupará

A sensação de teu lado.

 

São dois mundos em confronto

E o sonho é que marca o ponto.

 

 

1621 – Estrada

 

Qualquer estrada, qualquer,

Leva mesmo ao fim do mundo.

Se o fim do mundo vier,

Se foi mesmo ao fim e ao fundo,

 

Consumou-lhe a volta inteira,

Finda na estação primeira.

 

Na realidade, o fim,

Como o princípio tal qual,

É ideia que tenho em mim

Onde os talho por igual.

 

É sempre em nós que as paisagens

Paisagem têm, não fora,

Só que inúmeras viagens

A descobri-lo demora.

 

 

1622 – Parece

 

Parece imoral agir:

O pensamento parece

Degradado ao se exprimir

Em termos onde tropece,

 

Que o tornam dos outros coisa,

Que o tornam compreensível

À cabeça onde ele poisa,

Um prisioneiro irremível.

 

Se não fora compreendido

Seria puro sentido.

 

Não serviria de nada,

Senão ser dentro uma estrada

 

Que ninguém percorreria.

- Mas era no imo uma via.