CANTO CATORZE
E ACABO RINDO ALEGRE
AO QUE ME AMEIA
Escolha
aleatoriamente um número entre 1623 e 1756 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1623 – E acabo rindo alegre ao que me ameia
E acabo rindo alegre ao que me ameia,
Mesmo depois de cada lide
Que convide
A vida meia.
E de ironia teço coroas de vide
Sobre quanto coleia,
Viperino, de veneno a bolsa cheia,
A furtar-lhe o membro que ele agride.
E de sarcasmo enxoto
O mundo boto
Que me teima em afogar.
E, assim, rindo de alegria,
Fustigando com sarcasmo ou ironia,
À vida acabo por fim sempre a brindar.
1624 – Piza
A vida, ora aqui, ora acolá,
É a piza de qualquer pessoa:
Mesmo quando é má,
É boa!
1625 – Gatos
Os gatos olham a gente,
Por entre o mobiliário,
Como um ente legendário:
- Mobília de sangue quente.
1626 – Perdoar
Quando um filho tu tiveres
Tudo então perdoar vais
(Mais as razões que elegeres)
A teus pais.
1627 – Anúncios
É possível desvendar
Os ideais duma nação
Se os anúncios reparar
Como são.
1628 – Cortam
O costureiro, a fazenda,
Cabeleireiro, o cabelo,
Ambos cortam. Quem entenda
Para o corte qual é o elo
Que tais artes e oficinas
Encontram, indiferentes,
Quando rasgam viperinas
Na casaca dos ausentes!
Será por contiguidade
Que a tesoira tanto invade?
1629 – Cientistas
Os cientistas isolaram
O gene que aos cientistas
Faz que, mal se precataram,
Só isolam de genes listas!
1630 – Velho
Vejo que ando a ficar velho
Quando quem tem meia-idade
É o amigo em que me espelho,
Não de meus pais a amizade.
1631 – Agricultor
Um agricultor qualquer
Diz, pousando triste o sacho:
- Este ano, se não chover,
Vai tudo por água abaixo!
1632 – Sono
É o homem este animal
Que dormir vai sem ter sono
E que se ergue, por sinal,
Quando mais quer abandono.
1633 – Carrinho
É a política a ilusão
Que há num carrinho de choque:
Mesmo que me jogue ao chão
Acabo sofrendo um toque.
1634 – Conselho
Alguns há que dão conselho
Como se deram um murro:
Sangras um pouco e, ao espelho,
Decides que é voz de burro!
1635 – Evita
Evita a mulher casar,
Chamam-lhe de independência.
Se for homem, em lugar,
Teme o compromisso: que
indecência!
1636 – Enervante
Mais enervante que aquele
Que julga que tudo sabe
É o que a pele
A arranhar-me acabe:
- É quem me torna um torresmo
Porque sabe mesmo!
1637 – Roupa
Nada faz a roupa tua
Passar tão veloz de moda
Como correr para a rua
Dum aumento para a boda.
1638 – Atraso
Nunca vi um atrasado
Que não diga
Que tal atraso danado
Não é ocorrência inimiga
Contra que ele também briga!
1639 – Bêbado
Bêbado não é só bêbado,
Sofrerá de alcoolismo
E este é que faz que ele beba do
Que mais fundo rasga o abismo.
Os criminosos não são
Meramente criminosos,
Da sociedade serão
Vítimas sem quaisquer gozos.
Os miúdos que se drogam,
Em problemas familiares
São carentes que se afogam,
Sem as culpas mais vulgares.
Falhados? Para falhar
Foram sempre programados:
Quem os pode incriminar?
Não passam duns desgraçados!
Mesmo em política a culpa
Mora sempre no outro lado:
Não cumprir tem a desculpa
De se ter sido enganado.
Resulta, pois, que hoje em dia
Ninguém tem culpa de nada,
Sempre é doutrem a avaria
Que a vida traz maltratada.
1640 – Neve
Tomba a neve invernal
Por todo o algar:
Alguém anda a exagerar
No pó de talco celestial…
1641 – Fama
Melhor fama é a de escritor:
Basta para arranjar mesa,
Mas não chega a ter calor
Para alguém, a chama acesa,
Ir à mesa interromper
Enquanto ele está a comer.
1642 – Sessenta
No carro a sessenta à hora,
Ao telemóvel falando,
Será que o final produto
É que andaremos agora
Conversando, conversando,
A um quilómetro o minuto?
1643 – Segurança
De segurança o melhor
Sistema nunca inventado
É espelho retrovisor
Com um polícia espelhado.
1644 – Livre
Um homem livre deveras
É o que pode recusar
Convites para jantar
Sem desculpas nem esperas.
1645 – Partos
Da sala de partos,
"força!"
- Gritam ali mesmo ao lado.
"Força!" – aqui é comandado,
Enquanto outra mãe se esforça.
E tal é a competição
Que em nossas vidas entrou
Que, mal um bebé gritou
Enchendo de ar o pulmão,
Logo a mãe, feliz, cansada,
Murmura, como é de lei,
Triunfalmente:
"Ganhei!",
Tal se fora uma jogada!
1646 – Dois
Dois lados da discussão
Quem os ouve, incomodado,
Não é quem discute, não,
Mas o vizinho do lado.
1647 – Aumento
Para ter um bom aumento
Pede entrevista ao patrão,
De teu desempenho, lento
Realça a nobre função,
Fala-lha então do futuro
E como quer crescimento…
Ameia depois, seguro,
Despedir-te. Sem lamento,
Despede-te após de vez.
Sai para um lugar bem pago
Mal chegado o fim do mês.
- Falaste, que não és gago,
Porém já com outra oferta
De emprego na porta aberta!
1648 – Passar
"Eu qualquer coisa faria
Para passar esta prova!"
- Insinua a moça, um dia,
Como quem dá fruta nova.
"Qualquer coisa?" – o
professor
Quer saber se ouvira certo.
"Qualquer coisa!" – com
ardor
Roça-lhe a moça bem perto.
"Mas então," – murmurou
ele
- "Se o que lhe importa é
passar,
Se apenas for o que a impele,
- Era capaz de estudar?…"
1649 – Gerente
Gerente de hipermercado
Olha o novo vendedor:
"Clientes por atacado?"
"Um!" "Apenas um?!
Que horror!
E de quanto foi a venda?"
"Onze mil contos."
"O quê?!
Conte para que eu entenda!"
"Vendi-lhe este anzol, não
vê?
Depois, cana e carretel.
Perguntei-lhe onde é que iria.
Costa fora – disse-me ele.
Logo um barco eu sugeria.
E, quando o carro que tinha
Viu que o barco não puxava,
Mostrei-lhe a zona vizinha
Onde um bólido brilhava.
Comprou-o, maravilhado."
"E a quem vem por um anzol
Vendeu tal amontoado?!"
"A verdade é que do rol
O anzol nem sequer constava.
Ele queria aspirinas,
Que a mulher se lamentava
De dores picando finas.
Disse-lhe eu: fica estragado
Todo o seu fim-de-semana,
É melhor ir ao pescado
Enquanto a dor se lhe
aplana."
1650 – Guerra
Declararam guerra, com furor,
E se a guerra pesa!
- Sempre é, porém, melhor
Do que aparecer de surpresa…
1651 – Sol
Para todos ao sol há um lugar,
Particularmente
Quando todos se querem sentar
À sombra simplesmente.
1652 – Cara
- Que cara horrível, amigo!
- Em Março morreu-me a mãe,
Vinte mil contos comigo
De herança deixou também.
Em Abril morreu-me o pai,
Dele herdei trinta mil contos…
- A morte levando vai
E nós nunca estamos prontos!
- Ainda por cima uma tia
Morreu-me no mês transacto.
Deixou-me lá uma fatia
De cem mil contos, de facto.
- Triste coincidência rara,
Mas que vida desgraçada!
- A quem o dizes! Repara,
Por enquanto, este mês, nada…
1653 – Sopre
Deixa que sopre o vento
Através de teu cabelo
Enquanto ainda houver o alento
De algum pêlo…
1654 – Média
A quantidade de sono
Precisa, em média, jamais
Requer de alguém o abandono:
- É só uns dez minutos mais!
1655 – Telemóveis
Os telemóveis acabam
No mais estranhado aceno:
Os homens se gabam
De ter o mais pequeno…
1656 – Manso
Dantes ocorriam vidas
Com um manso desespero,
Hoje tudo são corridas
Frente à TV que nem quero…
1657 – Tapa
A minha fina cintura,
Os meus braços musculados…
- Como odeio esta gordura,
Tapa-me em todos os lados!
1658 – Estilista
Estilista é quem despreza
Do belo qualquer regalo:
"Nada estraga uma beleza,
Estou cá para prová-lo!"
1659 – Copo
Um copo está meio cheio
Ou está meio vazio?
Qual o fio
De permeio?
- No copo que tens à mão,
Vai depender
A solução
De o estares a encher
Ou então
A beber…
1660 – Menino
O menino de seis anos
A foto do primo vê
Mais velho um pouco, mas crê
Que ela é de si, sem enganos.
É grande o que tem vestido?
- Sou eu quando era crescido!
1661 – Cliente
Na maioria dos casos
O cliente é satisfeito
Se eu entrego antes dos prazos
E a conta não levo a peito.
1662 – Importa
A maior parte de nós
Não se importa de ouvir críticas,
Sejam embora inverídicas.
Questão é darem-nos voz
Mas respeitando a qualquer
Outra pessoa que houver…
1663 – Despedido
Ser despedido é a maneira
De a natureza o recado
Mandar de que andava à beira
De eu ficar no emprego errado.
1664 – Políticas
Políticas simpatias
Mudam ao mudar dos anos.
Na Universidade se as vias,
Quem nada tem senão danos
Para as partilhas se alista,
Devém logo socialista.
Quando, depois de casar,
Num carro o dinheiro empata,
Logo troca de lugar
E devirá democrata.
Bom emprego vem depois,
Casa, fato de bom pano,
Dos bens se aumentam os róis,
- Muda-se em republicano.
Mais velho, investe em poupanças
E faz de dinheiro um ror,
Não quer perder abastanças,
- Então é conservador.
Por fim, à família ajuda,
Dá dinheiro para a igreja,
A caridade o transmuda:
Nenhum partido, em verdade,
Existe em que se reveja…
- Que tal Vossa Majestade?
1665 – Brincar
No brincar vão coisas sérias,
Quem o não nota se abrasa.
- Há muito quem vá de férias
E deixe os miolos em casa.
1666 – Porca
Se alguém por difamação,
Por porca chamar à dama,
Fora condenado, então
Só tem de inverter a trama.
Ninguém o irá condenar
Quando a uma porca qualquer
Por dama a queira tratar,
Como mui bem lhe aprouver.
Quando público isto for,
Em público ele então chama
Àqueloutra, com humor:
"Muito boa tarde,
dama!"
1667 – Entrelinhas
Aprende a ler entrelinhas.
"Vem à empresa em
expansão!"
- Não temos tempo, adivinhas,
Para te dar formação.
"Por favor, não
telefone!"
- Já está o lugar preenchido,
A firma quer que se adone
Dum formalismo exigido.
"Procuram-se candidatos,
Mas com experiência grada."
- Valerão por três teus actos
Quando os mais vão de jornada?
"É capaz de liderança?"
- Tens responsabilidade
De director, sem fiança
Nem da paga a veleidade.
Assim é que as entrelinhas
Serão fio condutor
Do rumo em que te adivinhas
Sombra do que irão propor.
1668 – Golfe
O golfe é um desporto
Para um caminheiro
Com problemas, quando o exorto
Na escolha de rumo certeiro.
1669 – Cérebro
O cérebro é como um bom
Aparelho de TV:
Quando com chuva, então é
De se desligar o som!
1670 – Natureza
Como a natureza é descuidada
A esbanjar sementes,
A apagar a vida!
E nós, entrementes,
Somos a filharada
Desta natureza distraída…
Ela é quem terramotos desencadeia
E cria o Homem tão capaz
Que logo ele ameia
Com bombas e câmaras de gás!
1671 – Enfadonhas
Que enfadonhas tantas das
pessoas!
Se as privaram da vida à
metralhadora,
Ninguém lhes daria pela falta…
Balas boas, balas boas,
Mas como demora
Daquelas enfermidades a ter
alta!…
Contudo,
A lei da natureza quer
Que os enfadonhos sobrevivam a
tudo
E os talentosos andem a sofrer
De fome e de fracassos.
- E ninguém, ninguém lhe troca os
passos!
1672 – Lenda
Aí vem Dezembro frio
Com o calor do Natal.
O meu filho desconfio
Que tem idade, afinal,
Para saber da verdade
De lenda tão ancestral.
"Olha a grande novidade!
Há quanto tempo sei disso!"
- Comenta, rindo ao feitiço
Que tem sempre o Pai Natal.
Recordo os natais passados,
Cânticos do coração,
Presentes bem recheados
E de os abrir a emoção…
"Então por que não
disseste?"
"Porque sempre reparei
Que um conto lindo como este
É de arrrepiar a pele.
E, portanto, então cuidei
Que ainda acreditasse nele!"
1673 – Morto
Chega um morto ao paraíso
E S. Pedro o interrogou.
"Alguma mulher amou?"
"Não, que é de quem não tem
siso!"
"Tem amigos de quem
goste?"
"Nunca gostei de
ninguém!"
"E uma criança em que aposte
Toda a ternura que tem?"
"Nunca! Um miúdo é um
sarilho!"
"Gostava da natureza,
Dos montes do sol ao
brilho?"
"Nem pensar! Mas que
chateza!"
"De animais de
estimação…?"
"Nunca aportei em tal
porto!"
"Que é que o fez durar
então?!
- Há séculos que está
morto!"
1674 – Democracia
A democracia existe
Porque toda a gente quer,
Mais que erros em que se insiste,
Que alguém haja no lugar
Com quem as culpas que houver
Possa de vez partilhar.
1675 – Coisas
Quando pus em armazém
Minhas coisas, ao mudar-me,
Senti-me tal pedro-sem,
Desajeitado e sem charme.
Quando, oito meses mais tarde,
Retornei à própria casa…
Que é que faz com que eu enfarde
- Me pergunto – o que me atrasa?
Passei muito bem sem isto!
Nem consigo perceber
Como ligado a tal quisto
Tanto esqueci de viver!
1676 – Cão
Nunca nos apercebemos
Que o cão é o melhor amigo
Até quando comecemos
A apostar – mesmo se é ralo
Estoutro porto de abrigo –
A apostar mas num cavalo.
1677 – Cigarro
Se o cigarro apagar quer
Na chávena à sua frente,
Chame o empregado que houver
Feito o serviço presente
E ele, com todo o prazer,
Lhe servirá por inteiro
O seu café no cinzeiro!
1678 – Anos
- Setenta e cinco anos feitos,
A pílula de que serve?
- Durmo melhor, pelos jeitos,
Faz que a vida me conserve.
- A pílula não faz tal!
- Faz de forma bem concreta:
É no café matinal
Que a deito, da minha neta…
1679 – Sorte
Uma criança adoptada
Confirma dum lar os ganhos
Quando aos pais confidencia:
- Que sorte ser apanhada
Por vocês naquele dia,
Senão era por estranhos!
1680 – Rosa
De manhã, que linda rosa
Do lava-loiças ao lado
A ti te aguarda, amorosa,
Em romântico traslado!
Ficas toda derretida
Com o teu terno marido.
Corres a ler, de seguida,
O bilhete à flor prendido:
"Querida," –
confessa-te ele
- "Não mexas na rosa, não.
Tem pé tão duro que impele
Pelo ralo o lixo vão.
Eu ando a desentupi-lo
E assim ficarei tranquilo."
1681 – Carro
Fora do carro cuspido
Quando ele saiu da estrada,
Fiquei na vala entupido
Sem dar acordo de nada.
Mais tarde, umas horas idas,
Fui para ali encontrado
Por umas vacas perdidas,
Ainda desacordado.
De retorno a casa entrei
Com meu carro em casa errada
E em árvores me enfeixei
Que não são minhas nem nada.
Bati num carro parado
Que em sentido inverso vinha.
Não sei donde, de algum lado,
Invisível, se avizinha
Um outro, bate no meu
E sem mais desaparece.
Julguei que o vidro se abriu,
Descobri, ao que parece,
Que estava fechado quando
Pus a cabeça de fora.
Há mais de vinte anos ando
Conduzindo a toda a hora
Quando adormeci sem ver
E sofri este acidente…
Finalmente vou bater,
Parando correctamente,
De traseira noutro carro,
Só (o que é mais indecente)
Quando ao meu já mal me agarro!…
1682 – Televisão
Na televisão
Falando vão,
Falando,
Este, aquele, outro qualquer,
Até alguém ir encontrando
Alguma coisa para dizer.
Alguma coisa, se houver…
1683 – Arco-íris
Um arco-íris: a fita
Colorida que atravessa
A natureza e palpita
Após lavada a cabeça.
1684 – Diplomacia
Diplomacia é dizer
"Cãozinho bonito" até
Ter uma pedra qualquer
Que o afugente de ao pé.
1685 – Mulher
Uma mulher só precisa
De óleo e de fita-cola:
Se não se move o que visa
E o devia que nem mola,
Usa então óleo, concisa;
Se se move e não devia,
Usa então a fita-cola
E adeus ao que se movia.
- E a vida nisto ela arrola.
1686 – Comprar
Quando vais comprar um carro,
Põe de lado as mariquices.
O mais funcional que visses,
Prático a levar teu tarro,
Escolhe sem mais sandices.
- Então é que não te agarro.
1687 – Corpo
Se ao menos te houveram dito
Que o corpo odiado aos vinte
Era o teu sonho bendito
Aos trinta e mais no seguinte!
1688 – Fígado
"Maus fígados" mente o
tom
Mais comum de nossa voz,
Que o fígado é mesmo bom
Para nós.
1689 – Canta
Canta no carro em voz alta
Mesmo que (e principalmente
Se) isso teus filhos em falta
Envergonhar de repente.
1690 – Político
Um político aguardar
Que abandone rendimentos
A Drácula é retirar
Sangue à lista de alimentos.
1691 – Infelicidade
Da infelicidade a causa
Maior é sobrestimar
Dos outros, tal se sem pausa,
A felicidade a par.
1692 – Jornalismo
O jornalismo deveio
Um tipo de gritaria
Competitiva e banal:
Aquilo que é trivial,
Do espalhafato no meio,
Terá logo primazia
Ante o que for importante
Que amadura tempo adiante.
É por um lucro imediato
Que sofro tal desacato.
1693 – Corar
Era costume corar
Ao sentir-se embaraçado,
Hoje vai-se embaraçar
Quando se sentir corado.
1694 – Conduz
Duas senhoras de idade
Conversam de mil andanças.
- Você conduz de verdade?!
- Só não sei é pôr mudanças…
1695 – Nome
"Que nome damos à planta
Que se reproduz sem sexo?"
O aluno fica perplexo
Num jeito que desencanta,
Murcho como nunca o viste
E responde: "Nome?
Triste!"
1696 – Altura
É altura de perder peso
Quando a uma praia vou dar
E o banheiro vem, por vezo,
Tentar devolver-me ao mar.
1697 – Montanha
A montanha de pecados
E vícios que bate à porta
Da virtude é o que me exorta
Desta a ver os justiçados.
Viverão mais do que nós,
Livres de colesterol,
Com pulmões limpos dos pós
Que constam de nosso rol,
Não morrerão de ansiedade
Nem de desgostos de amor,
Da dor da paternidade,
De seja lá do que for…
Vivem de imortalidade.
Livrai-os, Senhor, do mal,
Do aguilhão da humanidade,
Do churrasco ocasional,
Do cheiro a sardinha assada…
A consumar o que alcanço
Na depurada jornada,
Dai-lhes o eterno descanso,
- Não vão vir-me na peugada!
1698 – Série
Em série televisiva,
Juiz ganha cem milhões.
Se é do Supremo que viva,
Somando os magros tostões,
Junta uma quantia esquiva
De dez mil desilusões.
1699 – Une
Une todo o ser humano
Para além de sexo, idade,
Religião, raça ou engano:
- Todo o mundo ele persuade
(E não é fazer comédia)
De que é, com propriedade,
Volante acima da média!
1700 – Gastamos
Como o ser humano é estranho!
Gastamos contos de reis
Para obtermos maior ganho
A trabalhar menos e eis
Que depois pagamos mais
Para fazer exercício,
Compensando as bacanais,
Num ginásio, como um vício.
1701 – Jovem
Caminhava pela rua
O jovem que um dia foste.
Cruza contigo a bela.
Olhando a beleza dela
E vendo nela a Lua,
Vais de encontro a um poste!
No restaurante, a mulher
Não logra tirar os olhos
Do criado que lhe põe o talher
E no vestido,
Com um gesto distraído,
Acaba despejando os molhos!
Se algum dia perdermos
Na fantasia sexual
Este poder de nos absorvermos,
Mais longe da alma, afinal,
Que nos define como humanos
Ficaremos e com piores danos.
1702 – Talho
Tire no talho a gordura:
É mais fácil de a perder
Se à carne ali a depura
Do que depois de a cozer.
1703 – Três
Três são os grupos que gastam
Dinheiros doutrem: crianças,
Políticos e ladrões…
Todos três consigo arrastam,
Que senão jamais descansas,
Cuidado e supervisões.
E nunca os largues de mão,
Que senão tudo é senão!
1704 – Cem
- Cem anos conto e não tenho
Um inimigo no mundo.
- Que maravilha! Que ganho! –
Exclama o padre, jucundo.
- É verdade, de mil modos
Eu sobrevivi a todos…
1705 – Único
Nem sequer o degredo
Vislumbra que o aniquile.
Único, nunca sente medo:
- É o imbecil!
1706 – Ricos
Os ricos ignorarão
Um grande prazer da vida:
A última prestação
Paga, enfim, quando vencida.
1707 – Lei
É uma lei da natureza:
Tirar um dia de folga
Numa quinta nos represa
Nossa vida e no-la amolga,
Se a memória não me engana,
Ao menos uma semana.
1708 – Nada
Se íntegro for,
Nada mais importa,
Evidentemente.
Se não for,
Nada mais importa
Igualmente…
1709 – Tente
Tente se zangar (a ver
Como se verá culposo)
Com quem lhe der a comer
Algo de delicioso…
1710 – Canas
Se a gente se concentrar
No deveras importante
Da vida, vão-se esgotar
As canas de pesca adiante.
1711 – Médico
Médico que me receita
Um repouso prolongado,
Tal mezinha não vê feita
Na sala de espera ao lado?
1712 – Capelas
As capelas imperfeitas,
Imitação da ruína,
Relembram ao construtor
Que não escapa da sina:
Edifica, as contas feitas
Após o fugaz fulgor,
Já não tanto um monumento
Mas um desmoronamento.
1713 – Insegurança
A insegurança mudou de forma.
Em troca de abertamente
Do raio andar dependente,
Da seca, da tempestade,
Do gelo fora de norma,
Da inundação que me invade
- Todos cada vez mais servidões
De interpostos agentes e funções,
Hoje em dia dependemos
Da repartição de finanças,
De igrejas, instituições,
Doutros inefáveis demos
Sem cornos, porém com tranças
Onde todos nos prendemos,
Usurários e patrões,
Proprietários, ganhões,
Companhias de seguros…
- Por mais que as voltas
troquemos
Não nos livramos de apuros.
1714 – Medida
A medida da morte proclama,
Humorística:
A morte dum homem é um drama,
Um milhão de mortos é uma
estatística.
1715 – Facto
O que é um facto jornalístico?
Mera notícia de agência.
Para o conteúdo, um dístico:
A completa displicência
Ante o que for bem ou mal,
Que encher importa é o bornal.
Um homem ama a mulher?
Não é, não, de se escrever.
Contudo, se ele a estrangula,
Aí principia a gula.
E se ele a corta em pedaços?
Três colunas, dois espaços.
E se a comer? Eis a glória,
O monstro canta vitória:
Fotografia em relevo
Para que todo o coevo,
Se do caso ainda duvida,
Lhe dedique o tempo e a vida!
1716 – Segunda-feira
A segunda-feira é o dia
Em que saltam a janela
Os preguiçosos que havia
Na empresa por detrás dela.
Saltam janelas com gana
(E a maneira pouco importa)
- Porque têm uma semana
De sério trabalho à porta.
1717 – Vida
"Há vida noutros
planetas?"
- Perguntam mil e um ninguéns.
Como acaso as pulgas pretas:
"Há vida nos outros
cães?"
1718 – Nunca
Nunca as pessoas respondem
Àquilo que nós dizemos,
Mas ao que dizer queremos.
E os termos por trás escondem,
Quando a resposta condensam,
Não a questão que eu puser,
Mas aquilo que eles pensam
Que afinal quero dizer.
Quando pergunto a um vizinho:
"Tens em casa alguém
contigo?",
Não responde, comezinho:
"Mulher e filhos
abrigo",
Antes me confirma, amável:
"Não está ninguém connosco."
Se eu for médico, a incurável
Epidemia lhe enrosco
Na pergunta e logo então
Ele evoca todos quantos
Com ele partilharão
Da casa dele os recantos.
A questão, por mor do risco,
Fá-lo olhar dentro do aprisco.
Ninguém responde à pergunta
Mas ao que ele nela ajunta.
1719 – Mil
"Eu não sou vossa criada!"
- Diz mil vezes cada mãe,
Na casa desarrumada
Por mão dos filhos que tem.
"Eu não sou a vossa
mãe!"
- Protesta em troca a empregada
No dormitório onde vêm
Tentar num curso uma entrada.
De roupas o chão coberto
Demonstra quanto, afinal,
Uma doutra andam bem perto
E uma é da outra o fanal.
1720 – Cure
Médico oftalmologista,
Cure embora os seus clientes,
Nunca é pessoa bem vista
Pelos doentes.
1721 – Frigorífico
Frigorífico é o lugar
Onde deixamos comida
Com tempo a deteriorar,
Para fora a não deitar
Pela razão bem medida
Que a ninguém se antolha
incrível:
- É que ainda é comestível
Até de vez se estragar!
1722 – Sogra
Uma sogra é quem às vezes
Vai mesmo longe demais
Se perto demais, corteses,
Junto dela vos ficais.
1723 – Pessimista
Pessimista, por engulho,
É quem com tudo se importa
E se queixa do barulho
Quando a sorte bate à porta.
1724 – Velho
O velho padre, ao morrer,
Põe dum lado um advogado
E um técnico, do outro lado,
Das Finanças lá requer.
- Mas por que é que nos pediu,
Logo aos dois, para aqui vir?
- Ah! Jesus também morreu
Entre ladrões: devo-o seguir!
1725 – Lobo
Levando o lobo algemado
Para o carro da polícia,
Diz o agente aos três porquinhos:
"É grande e é lobo, cuidado!
Mas que um júri, sem malícia,
Veja se é mau aos vizinhos.
Antes disto, podem crer,
Nada podemos fazer."
1726 – Antes
Antes de deixar a mesa
Verifique, por favor,
Na mala o que lhe pertence.
Se descobrir, com surpresa,
Algo que de si não for,
Antes que algum mal se adense,
Volte a pô-lo no lugar
Onde ele deve ficar.
Senão é dum traste a veste
Aquilo de que se veste.
1727 – Remédio
Sem remédio um mal
Demora no arquivo:
É que, por sinal,
O tempo é digestivo.
1728 – Angustia
Com o tempo, a humanidade
Não se angustia, insensível.
Faz sempre tempo, é verdade…
Sente a chuva imprevisível
Quando o acidente do clima
Afinal lhe cai em cima.
1729 – Biblioteca
Na biblioteca da muita gente com
ar moderno
Poderia escrever-se a tinta
violácea,
"Para uso externo",
Como nos frascos da farmácia.
1730 – Chefiar
Chefiar uma campanha eleitoral
É dum comboio tentar a condução
Quando as linhas, em geral,
Andam ainda em construção.
1731 – Reforma
A reforma são férias prolongadas
A bater da vida o casino inteiro:
É de gozá-las bem gozadas,
Mas não a ponto de a pele nos ir
com o dinheiro.
1732 – Peixes
Os dois peixes, num aquário,
Discutem cada vez mais
Até que de tal fadário
Um amua, com sinais
De retirar para o canto.
Depois de fundo pensar,
Sorri num jeito de encanto,
Volta, então, a argumentar.
- Se dizes que não há Deus,
Que a questão ninguém iluda:
Então no aquário de ateus
Quem sempre as águas nos muda?
1733 – Claro
- Mãe, é Deus que nos dá o pão?
- Claro, filho, pois então!
- E o Pai Natal deu as prendas?
- Sim, tal qual como nas lendas.
- E quem me trouxe, a cegonha?
- Para que a vida disponha…
- Se assim é que tudo vai,
Para que é que serve o pai?
1734 – Espelho
Um espelho forrado a pele
Bonito é tão fortuito!
- Depende muito
De quem estiver a olhar para ele…
1735 – Esperto
Por esperto alguém passar
Não custa nada, acredito:
Não se deixar apanhar
Basta em flagrante delito
Duma ignorância qualquer.
Manobramos, esquivamos
Uma pergunta que houver,
O penhasco contornamos
E os outros vamos bater
Por meio dum dicionário…
- Tão estúpido é quenquer
Que nem mesmo um dromedário!
1736 – Abandonada
A mulher abandonada na ilha
deserta,
Sem água, comida, tecto nem chão,
Não, não morre disto, pela certa,
- Morre de falta de atenção.
1737 – Cair
Que bom há-de ser,
Por entre tantos sonhos vãos,
Cair nos braços duma mulher
Sem lhe cair nas mãos!
1738 – Lar
Ter um lar acolhedor
É caso bem sucedido
Ao qualquer filho menor
Me perguntar, comedido:
- Quando crescermos, após,
Mudas tu ou somos nós?
1739 – Igual
Num casal ambos nasceram
Em igual mês, dia e ano.
A certidão requereram
E alguém creu que era um engano.
- Encham outro formulário,
Que se enganaram nas datas.
- Não, não é. Nosso fadário
É que somos uns empatas:
Nascemos em simultâneo
No mesmo ano, mês e dia.
E repare, há um sucedâneo
(Quem é que imaginaria?)
Ambos até nos casámos
Na mesma manhã de sol…
- Ai sim?! Nunca imaginámos
De coincidências tal rol!
1740 – Milhar
Na mesa, o quebra-cabeças
Toda a família em redor
Tenta do milhar de peças
Inteiro ali justapor.
Então alguém declarou
Que dele era o derradeiro
Encaixe. E se confirmou,
Que a peça escondeu lampeiro.
Ao contá-lo alguém se intriga:
- Mas como é que ele sabia,
No meio de tantas, diga,
Que ela a última seria?
1741 – Livros
Há livros para tê-lo adormecido,
Outros para acordado e alerta o
ter.
- Tal qual como um comprimido,
Quais deles quer escolher?
1742 – Português
O português muito gosta
De quanto for estrangeiro!
Couve-de-bruxelas posta,
Couve-galega é o parceiro
Ou então couve-lombarda,
Sem falar no alho-francês…
Carne de peru aguarda
De cravo-da-índia uns pés
Junto da salada russa.
Depois, bolas-de-berlim…
Suíças na cara aguça.
Pastor alemão, por fim,
Guarda a casa e , no jardim,
O castanheiro-da-índia.
Faz trabalho em marroquim.
E fruta boa? Ei-la, guinde-a,
Nespereira-do-japão!
Fará negócios da China,
Joga à sueca com o irmão…
Se a brincar muito se inclina,
Então, entre o que esmiuça,
Finda na montanha-russa…
- Como amar, em tal jaez,
Isto de ser português?…
1743 – Mente
Creio numa mente aberta,
Não tão aberta, porém,
Que o cérebro que acoberta
Ao chão nos caia também.
1744 – Escave
Escave onde encontrar oiro,
Se o que busca é benefício,
A menos que, sem desdoiro,
Só precise de exercício.
1745 – Trabalho
O trabalho é uma fatia
Apenas de sua vida,
Não é inteira a pizaria
Onde comprou a comida.
1746 – Autêntica
"De Fátima esta Senhora
É autêntica" – promete
O antiquário aos de fora –
"É século dezassete!"
1747 – Fala
Se um homem fala na floresta
E não há mulher à mão,
Continua a ser ele que não presta
E a não ter razão?
1748 – Picada
Dos homens o mais possante
Pode abatê-lo o conflito
Com a flecha irrelevante
Da picada dum mosquito.
1749 – Antigamente
Antigamente os pais tinham
De filhos a rebanhada,
Hoje os filhos amarinham
Dum ror de pais na charada.
1750 – Avarentos
Os avarentos não são
A convívio fácil dados,
Mas dão
Óptimos antepassados.
1751 – Sintoma
A sorte do mandrião
É que o sintoma que emana
Preguiça e fadiga irmana
E lhes confunde a caução.
1752 – Samaritano
Do bom samaritano em vão
Me inteiro,
Se apenas tivera boa intenção:
- Tinha também dinheiro.
1753 – Defende
Defende uma teoria
Que se alguém descobre um dia
Para que serve o Universo
Logo ele, instantaneamente,
Desaparece, disperso,
Trocado num novo céu,
Mais estranho, finalmente
De inexplicável cariz.
- Outra teoria diz
Que tal já lhe aconteceu…
1754 – Voo
Leves e frágeis como uma pena,
Pode-nos o voo alterar a brisa
mais branda.
Com os próprios pés trilhar a
cena,
Construir a vida como o desejo
manda?…
Vivemos à mercê do vento
Cuja força é revelada
Quando resistir-lhe tento
Em qualquer encumeada.
Mesmo com meus desejos claros,
Com a vontade bem definida
E um empenho dos mais raros
Em realizá-los de seguida,
Apenas o vento pode saber
Aonde a pena acaba por ir ter.
1755 – Longe
Quão mais longe vão nações,
No acordo internacional,
Rumo às eliminações
Do nuclear arsenal
Tão mais forte a tentação
De escapar a tal acordo.
Da segurança a intenção
Por esta via remordo:
Demasiado passageira,
Se não tomar precauções,
Finda, ao lhe chegar à beira,
À mão de esconsas traições.
1756 – Papel
Conforto e felicidade
Têm papel importante
No labor de alma que invade
O casal vida adiante.
Qual, pois, a surpresa então
Se de ambos uma parcela
Se encontra na comunhão
Do sexo que no lar vela?
Nem luta nem festa apenas,
Mas do mar sempre inconstante
Faustas como infaustas cenas
Que enrijam o navegante.