CANTO  CATORZE

 

 

E  ACABO  RINDO  ALEGRE  AO  QUE  ME  AMEIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1623 e 1756 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                    1623 – E acabo rindo alegre ao que me ameia

 

                                                    E acabo rindo alegre ao que me ameia,

                                                    Mesmo depois de cada lide

                                                    Que convide

                                                    A vida meia.

 

                                                    E de ironia teço coroas de vide

                                                    Sobre quanto coleia,

                                                    Viperino, de veneno a bolsa cheia,

                                                    A furtar-lhe o membro que ele agride.

 

                                                    E de sarcasmo enxoto

                                                    O mundo boto

                                                    Que me teima em afogar.

 

                                                    E, assim, rindo de alegria,

                                                    Fustigando com sarcasmo ou ironia,

                                                    À vida acabo por fim sempre a brindar.

 

 

1624 – Piza

 

A vida, ora aqui, ora acolá,

É a piza de qualquer pessoa:

Mesmo quando é má,

É boa!

 

 

1625 – Gatos

 

Os gatos olham a gente,

Por entre o mobiliário,

Como um ente legendário:

- Mobília de sangue quente.

 

 

1626 – Perdoar

 

Quando um filho tu tiveres

Tudo então perdoar vais

(Mais as razões que elegeres)

A teus pais.

 

 

1627 – Anúncios

 

É possível desvendar

Os ideais duma nação

Se os anúncios reparar

Como são.

  

 

1628 – Cortam

 

O costureiro, a fazenda,

Cabeleireiro, o cabelo,

Ambos cortam. Quem entenda

Para o corte qual é o elo

 

Que tais artes e oficinas

Encontram, indiferentes,

Quando rasgam viperinas

Na casaca dos ausentes!

 

Será por contiguidade

Que a tesoira tanto invade?

 

 

1629 – Cientistas

 

Os cientistas isolaram

O gene que aos cientistas

Faz que, mal se precataram,

Só isolam de genes listas!

 

 

1630 – Velho

 

Vejo que ando a ficar velho

Quando quem tem meia-idade

É o amigo em que me espelho,

Não de meus pais a amizade.

  

 

1631 – Agricultor

 

Um agricultor qualquer

Diz, pousando triste o sacho:

- Este ano, se não chover,

Vai tudo por água abaixo!

 

 

1632 – Sono

 

É o homem este animal

Que dormir vai sem ter sono

E que se ergue, por sinal,

Quando mais quer abandono.

 

 

1633 – Carrinho

 

É a política a ilusão

Que há num carrinho de choque:

Mesmo que me jogue ao chão

Acabo sofrendo um toque.

 

 

1634 – Conselho

 

Alguns há que dão conselho

Como se deram um murro:

Sangras um pouco e, ao espelho,

Decides que é voz de burro!

 

 

1635 – Evita

 

Evita a mulher casar,

Chamam-lhe de independência.

Se for homem, em lugar,

Teme o compromisso: que indecência!

 

 

1636 – Enervante

 

Mais enervante que aquele

Que julga que tudo sabe

É o que a pele

A arranhar-me acabe:

- É quem me torna um torresmo

Porque sabe mesmo!

  

 

1637 – Roupa

 

Nada faz a roupa tua

Passar tão veloz de moda

Como correr para a rua

Dum aumento para a boda.

 

 

1638 – Atraso

 

Nunca vi um atrasado

Que não diga

Que tal atraso danado

Não é ocorrência inimiga

Contra que ele também briga!

 

 

1639 – Bêbado

 

Bêbado não é só bêbado,

Sofrerá de alcoolismo

E este é que faz que ele beba do

Que mais fundo rasga o abismo.

 

Os criminosos não são

Meramente criminosos,

Da sociedade serão

Vítimas sem quaisquer gozos.

 

Os miúdos que se drogam,

Em problemas familiares

São carentes que se afogam,

Sem as culpas mais vulgares.

 

Falhados? Para falhar

Foram sempre programados:

Quem os pode incriminar?

Não passam duns desgraçados!

 

Mesmo em política a culpa

Mora sempre no outro lado:

Não cumprir tem a desculpa

De se ter sido enganado.

 

Resulta, pois, que hoje em dia

Ninguém tem culpa de nada,

Sempre é doutrem a avaria

Que a vida traz maltratada.

  

 

1640 – Neve

 

Tomba a neve invernal

Por todo o algar:

Alguém anda a exagerar

No pó de talco celestial…

 

 

1641 – Fama

 

Melhor fama é a de escritor:

Basta para arranjar mesa,

Mas não chega a ter calor

Para alguém, a chama acesa,

Ir à mesa interromper

Enquanto ele está a comer.

 

 

1642 – Sessenta

 

No carro a sessenta à hora,

Ao telemóvel falando,

Será que o final produto

É que andaremos agora

Conversando, conversando,

A um quilómetro o minuto?

 

 

1643 – Segurança

 

De segurança o melhor

Sistema nunca inventado

É espelho retrovisor

Com um polícia espelhado.

 

 

1644 – Livre

 

Um homem livre deveras

É o que pode recusar

Convites para jantar

Sem desculpas nem esperas.

 

 

1645 – Partos

 

Da sala de partos, "força!"

- Gritam ali mesmo ao lado.

"Força!" – aqui é comandado,

Enquanto outra mãe se esforça.

 

E tal é a competição

Que em nossas vidas entrou

Que, mal um bebé gritou

Enchendo de ar o pulmão,

Logo a mãe, feliz, cansada,

Murmura, como é de lei,

Triunfalmente: "Ganhei!",

Tal se fora uma jogada!

 

 

1646 – Dois

 

Dois lados da discussão

Quem os ouve, incomodado,

Não é quem discute, não,

Mas o vizinho do lado.

 

 

1647 – Aumento

 

Para ter um bom aumento

Pede entrevista ao patrão,

De teu desempenho, lento

Realça a nobre função,

 

Fala-lha então do futuro

E como quer crescimento…

Ameia depois, seguro,

Despedir-te. Sem lamento,

 

Despede-te após de vez.

Sai para um lugar bem pago

Mal chegado o fim do mês.

- Falaste, que não és gago,

 

Porém já com outra oferta

De emprego na porta aberta!

 

 

1648 – Passar

 

"Eu qualquer coisa faria

Para passar esta prova!"

- Insinua a moça, um dia,

Como quem dá fruta nova.

 

"Qualquer coisa?" – o professor

Quer saber se ouvira certo.

"Qualquer coisa!" – com ardor

Roça-lhe a moça bem perto.

 

"Mas então," – murmurou ele

- "Se o que lhe importa é passar,

Se apenas for o que a impele,

- Era capaz de estudar?…"

 

 

1649 – Gerente

 

Gerente de hipermercado

Olha o novo vendedor:

"Clientes por atacado?"

"Um!" "Apenas um?! Que horror!

 

E de quanto foi a venda?"

"Onze mil contos." "O quê?!

Conte para que eu entenda!"

"Vendi-lhe este anzol, não vê?

 

Depois, cana e carretel.

Perguntei-lhe onde é que iria.

Costa fora – disse-me ele.

Logo um barco eu sugeria.

 

E, quando o carro que tinha

Viu que o barco não puxava,

Mostrei-lhe a zona vizinha

Onde um bólido brilhava.

 

Comprou-o, maravilhado."

"E a quem vem por um anzol

Vendeu tal amontoado?!"

"A verdade é que do rol

 

O anzol nem sequer constava.

Ele queria aspirinas,

Que a mulher se lamentava

De dores picando finas.

 

Disse-lhe eu: fica estragado

Todo o seu fim-de-semana,

É melhor ir ao pescado

Enquanto a dor se lhe aplana."

 

 

1650 – Guerra

 

Declararam guerra, com furor,

E se a guerra pesa!

- Sempre é, porém, melhor

Do que aparecer de surpresa…

 

 

1651 – Sol

 

Para todos ao sol há um lugar,

Particularmente

Quando todos se querem sentar

À sombra simplesmente.

  

 

1652 – Cara

 

- Que cara horrível, amigo!

- Em Março morreu-me a mãe,

Vinte mil contos comigo

De herança deixou também.

 

Em Abril morreu-me o pai,

Dele herdei trinta mil contos…

- A morte levando vai

E nós nunca estamos prontos!

 

- Ainda por cima uma tia

Morreu-me no mês transacto.

Deixou-me lá uma fatia

De cem mil contos, de facto.

 

- Triste coincidência rara,

Mas que vida desgraçada!

- A quem o dizes! Repara,

Por enquanto, este mês, nada…

 

 

1653 – Sopre

 

Deixa que sopre o vento

Através de teu cabelo

Enquanto ainda houver o alento

De algum pêlo…

 

 

1654 – Média

 

A quantidade de sono

Precisa, em média, jamais

Requer de alguém o abandono:

- É só uns dez minutos mais!

 

 

1655 – Telemóveis

 

Os telemóveis acabam

No mais estranhado aceno:

Os homens se gabam

De ter o mais pequeno…

 

 

1656 – Manso

 

Dantes ocorriam vidas

Com um manso desespero,

Hoje tudo são corridas

Frente à TV que nem quero…

 

 

1657 – Tapa

 

A minha fina cintura,

Os meus braços musculados…

- Como odeio esta gordura,

Tapa-me em todos os lados!

 

 

1658 – Estilista

 

Estilista é quem despreza

Do belo qualquer regalo:

"Nada estraga uma beleza,

Estou cá para prová-lo!"

 

 

1659 – Copo

 

Um copo está meio cheio

Ou está meio vazio?

Qual o fio

De permeio?

 

- No copo que tens à mão,

Vai depender

A solução

De o estares a encher

Ou então

A beber…

 

 

1660 – Menino

 

O menino de seis anos

A foto do primo vê

Mais velho um pouco, mas crê

Que ela é de si, sem enganos.

 

É grande o que tem vestido?

- Sou eu quando era crescido!

 

 

1661 – Cliente

 

Na maioria dos casos

O cliente é satisfeito

Se eu entrego antes dos prazos

E a conta não levo a peito.

 

 

1662 – Importa

 

A maior parte de nós

Não se importa de ouvir críticas,

Sejam embora inverídicas.

Questão é darem-nos voz

Mas respeitando a qualquer

Outra pessoa que houver…

 

 

1663 – Despedido

 

Ser despedido é a maneira

De a natureza o recado

Mandar de que andava à beira

De eu ficar no emprego errado.

 

 

1664 – Políticas

 

Políticas simpatias

Mudam ao mudar dos anos.

Na Universidade se as vias,

Quem nada tem senão danos

Para as partilhas se alista,

Devém logo socialista.

 

Quando, depois de casar,

Num carro o dinheiro empata,

Logo troca de lugar

E devirá democrata.

 

Bom emprego vem depois,

Casa, fato de bom pano,

Dos bens se aumentam os róis,

- Muda-se em republicano.

 

Mais velho, investe em poupanças

E faz de dinheiro um ror,

Não quer perder abastanças,

- Então é conservador.

 

Por fim, à família ajuda,

Dá dinheiro para a igreja,

A caridade o transmuda:

Nenhum partido, em verdade,

Existe em que se reveja…

- Que tal Vossa Majestade?

 

 

1665 – Brincar

 

No brincar vão coisas sérias,

Quem o não nota se abrasa.

- Há muito quem vá de férias

E deixe os miolos em casa.

  

 

1666 – Porca

 

Se alguém por difamação,

Por porca chamar à dama,

Fora condenado, então

Só tem de inverter a trama.

 

Ninguém o irá condenar

Quando a uma porca qualquer

Por dama a queira tratar,

Como mui bem lhe aprouver.

 

Quando público isto for,

Em público ele então chama

Àqueloutra, com humor:

"Muito boa tarde, dama!"

 

 

1667 – Entrelinhas

 

Aprende a ler entrelinhas.

"Vem à empresa em expansão!"

- Não temos tempo, adivinhas,

Para te dar formação.

 

"Por favor, não telefone!"

- Já está o lugar preenchido,

A firma quer que se adone

Dum formalismo exigido.

 

"Procuram-se candidatos,

Mas com experiência grada."

- Valerão por três teus actos

Quando os mais vão de jornada?

 

"É capaz de liderança?"

- Tens responsabilidade

De director, sem fiança

Nem da paga a veleidade.

 

Assim é que as entrelinhas

Serão fio condutor

Do rumo em que te adivinhas

Sombra do que irão propor.

 

 

1668 – Golfe

 

O golfe é um desporto

Para um caminheiro

Com problemas, quando o exorto

Na escolha de rumo certeiro.

  

 

1669 – Cérebro

 

O cérebro é como um bom

Aparelho de TV:

Quando com chuva, então é

De se desligar o som!

 

 

1670 – Natureza

 

Como a natureza é descuidada

A esbanjar sementes,

A apagar a vida!

E nós, entrementes,

Somos a filharada

Desta natureza distraída…

 

Ela é quem terramotos desencadeia

E cria o Homem tão capaz

Que logo ele ameia

Com bombas e câmaras de gás!

 

 

1671 – Enfadonhas

 

Que enfadonhas tantas das pessoas!

Se as privaram da vida à metralhadora,

Ninguém lhes daria pela falta…

Balas boas, balas boas,

Mas como demora

Daquelas enfermidades a ter alta!…

 

Contudo,

A lei da natureza quer

Que os enfadonhos sobrevivam a tudo

E os talentosos andem a sofrer

De fome e de fracassos.

- E ninguém, ninguém lhe troca os passos!

 

 

1672 – Lenda

 

Aí vem Dezembro frio

Com o calor do Natal.

O meu filho desconfio

Que tem idade, afinal,

 

Para saber da verdade

De lenda tão ancestral.

 

"Olha a grande novidade!

Há quanto tempo sei disso!"

- Comenta, rindo ao feitiço

Que tem sempre o Pai Natal.

 

Recordo os natais passados,

Cânticos do coração,

Presentes bem recheados

E de os abrir a emoção…

 

"Então por que não disseste?"

"Porque sempre reparei

Que um conto lindo como este

É de arrrepiar a pele.

E, portanto, então cuidei

Que ainda acreditasse nele!"

 

 

1673 – Morto

 

Chega um morto ao paraíso

E S. Pedro o interrogou.

"Alguma mulher amou?"

"Não, que é de quem não tem siso!"

 

"Tem amigos de quem goste?"

"Nunca gostei de ninguém!"

"E uma criança em que aposte

Toda a ternura que tem?"

 

"Nunca! Um miúdo é um sarilho!"

"Gostava da natureza,

Dos montes do sol ao brilho?"

"Nem pensar! Mas que chateza!"

 

"De animais de estimação…?"

"Nunca aportei em tal porto!"

"Que é que o fez durar então?!

- Há séculos que está morto!"

 

 

1674 – Democracia

 

A democracia existe

Porque toda a gente quer,

Mais que erros em que se insiste,

Que alguém haja no lugar

Com quem as culpas que houver

Possa de vez partilhar.

 

 

1675 – Coisas

 

Quando pus em armazém

Minhas coisas, ao mudar-me,

Senti-me tal pedro-sem,

Desajeitado e sem charme.

  

Quando, oito meses mais tarde,

Retornei à própria casa…

Que é que faz com que eu enfarde

- Me pergunto – o que me atrasa?

 

Passei muito bem sem isto!

Nem consigo perceber

Como ligado a tal quisto

Tanto esqueci de viver!

 

 

1676 – Cão

 

Nunca nos apercebemos

Que o cão é o melhor amigo

Até quando comecemos

A apostar – mesmo se é ralo

Estoutro porto de abrigo –

A apostar mas num cavalo.

 

 

1677 – Cigarro

 

Se o cigarro apagar quer

Na chávena à sua frente,

Chame o empregado que houver

Feito o serviço presente

E ele, com todo o prazer,

Lhe servirá por inteiro

O seu café no cinzeiro!

 

 

1678 – Anos

 

- Setenta e cinco anos feitos,

A pílula de que serve?

- Durmo melhor, pelos jeitos,

Faz que a vida me conserve.

 

- A pílula não faz tal!

- Faz de forma bem concreta:

É no café matinal

Que a deito, da minha neta…

 

 

1679 – Sorte

 

Uma criança adoptada

Confirma dum lar os ganhos

Quando aos pais confidencia:

- Que sorte ser apanhada

Por vocês naquele dia,

Senão era por estranhos!

 

 

1680 – Rosa

 

De manhã, que linda rosa

Do lava-loiças ao lado

A ti te aguarda, amorosa,

Em romântico traslado!

 

Ficas toda derretida

Com o teu terno marido.

Corres a ler, de seguida,

O bilhete à flor prendido:

 

"Querida," – confessa-te ele

- "Não mexas na rosa, não.

Tem pé tão duro que impele

Pelo ralo o lixo vão.

 

Eu ando a desentupi-lo

E assim ficarei tranquilo."

 

 

1681 – Carro

 

Fora do carro cuspido

Quando ele saiu da estrada,

Fiquei na vala entupido

Sem dar acordo de nada.

 

Mais tarde, umas horas idas,

Fui para ali encontrado

Por umas vacas perdidas,

Ainda desacordado.

 

De retorno a casa entrei

Com meu carro em casa errada

E em árvores me enfeixei

Que não são minhas nem nada.

 

Bati num carro parado

Que em sentido inverso vinha.

Não sei donde, de algum lado,

Invisível, se avizinha

 

Um outro, bate no meu

E sem mais desaparece.

Julguei que o vidro se abriu,

Descobri, ao que parece,

 

Que estava fechado quando

Pus a cabeça de fora.

Há mais de vinte anos ando

Conduzindo a toda a hora

 

Quando adormeci sem ver

E sofri este acidente…

Finalmente vou bater,

Parando correctamente,

 

De traseira noutro carro,

Só (o que é mais indecente)

Quando ao meu já mal me agarro!…

 

 

1682 – Televisão

 

Na televisão

Falando vão,

Falando,

Este, aquele, outro qualquer,

Até alguém ir encontrando

Alguma coisa para dizer.

Alguma coisa, se houver…

 

 

1683 – Arco-íris

 

Um arco-íris: a fita

Colorida que atravessa

A natureza e palpita

Após lavada a cabeça.

 

 

1684 – Diplomacia

 

Diplomacia é dizer

"Cãozinho bonito" até

Ter uma pedra qualquer

Que o afugente de ao pé.

 

 

1685 – Mulher

 

Uma mulher só precisa

De óleo e de fita-cola:

Se não se move o que visa

E o devia que nem mola,

Usa então óleo, concisa;

Se se move e não devia,

Usa então a fita-cola

E adeus ao que se movia.

- E a vida nisto ela arrola.

 

 

1686 – Comprar

 

Quando vais comprar um carro,

Põe de lado as mariquices.

O mais funcional que visses,

Prático a levar teu tarro,

Escolhe sem mais sandices.

- Então é que não te agarro.

 

 

1687 – Corpo

 

Se ao menos te houveram dito

Que o corpo odiado aos vinte

Era o teu sonho bendito

Aos trinta e mais no seguinte!

 

 

1688 – Fígado

 

"Maus fígados" mente o tom

Mais comum de nossa voz,

Que o fígado é mesmo bom

Para nós.

 

 

1689 – Canta

 

Canta no carro em voz alta

Mesmo que (e principalmente

Se) isso teus filhos em falta

Envergonhar de repente.

 

 

1690 – Político

 

Um político aguardar

Que abandone rendimentos

A Drácula é retirar

Sangue à lista de alimentos.

 

 

1691 – Infelicidade

 

Da infelicidade a causa

Maior é sobrestimar

Dos outros, tal se sem pausa,

A felicidade a par.

 

 

1692 – Jornalismo

 

O jornalismo deveio

Um tipo de gritaria

Competitiva e banal:

Aquilo que é trivial,

Do espalhafato no meio,

Terá logo primazia

Ante o que for importante

Que amadura tempo adiante.

É por um lucro imediato

Que sofro tal desacato.

 

 

1693 – Corar

 

Era costume corar

Ao sentir-se embaraçado,

Hoje vai-se embaraçar

Quando se sentir corado.

 

 

1694 – Conduz

 

Duas senhoras de idade

Conversam de mil andanças.

- Você conduz de verdade?!

- Só não sei é pôr mudanças…

 

 

1695 – Nome

 

"Que nome damos à planta

Que se reproduz sem sexo?"

O aluno fica perplexo

Num jeito que desencanta,

Murcho como nunca o viste

E responde: "Nome? Triste!"

 

 

1696 – Altura

 

É altura de perder peso

Quando a uma praia vou dar

E o banheiro vem, por vezo,

Tentar devolver-me ao mar.

 

 

1697 – Montanha

 

A montanha de pecados

E vícios que bate à porta

Da virtude é o que me exorta

Desta a ver os justiçados.

 

Viverão mais do que nós,

Livres de colesterol,

Com pulmões limpos dos pós

Que constam de nosso rol,

 

Não morrerão de ansiedade

Nem de desgostos de amor,

Da dor da paternidade,

De seja lá do que for…

 

Vivem de imortalidade.

Livrai-os, Senhor, do mal,

Do aguilhão da humanidade,

Do churrasco ocasional,

 

Do cheiro a sardinha assada…

A consumar o que alcanço

Na depurada jornada,

Dai-lhes o eterno descanso,

 

- Não vão vir-me na peugada!

 

 

1698 – Série

 

Em série televisiva,

Juiz ganha cem milhões.

Se é do Supremo que viva,

Somando os magros tostões,

Junta uma quantia esquiva

De dez mil desilusões.

 

 

1699 – Une

 

Une todo o ser humano

Para além de sexo, idade,

Religião, raça ou engano:

- Todo o mundo ele persuade

(E não é fazer comédia)

De que é, com propriedade,

Volante acima da média!

 

 

1700 – Gastamos

 

Como o ser humano é estranho!

Gastamos contos de reis

Para obtermos maior ganho

A trabalhar menos e eis

Que depois pagamos mais

Para fazer exercício,

Compensando as bacanais,

Num ginásio, como um vício.

 

 

1701 – Jovem

 

Caminhava pela rua

O jovem que um dia foste.

Cruza contigo a bela.

Olhando a beleza dela

E vendo nela a Lua,

Vais de encontro a um poste!

 

No restaurante, a mulher

Não logra tirar os olhos

Do criado que lhe põe o talher

E no vestido,

Com um gesto distraído,

Acaba despejando os molhos!

 

Se algum dia perdermos

Na fantasia sexual

Este poder de nos absorvermos,

Mais longe da alma, afinal,

Que nos define como humanos

Ficaremos e com piores danos.

 

 

1702 – Talho

 

Tire no talho a gordura:

É mais fácil de a perder

Se à carne ali a depura

Do que depois de a cozer.

 

 

1703 – Três

 

Três são os grupos que gastam

Dinheiros doutrem: crianças,

Políticos e ladrões…

Todos três consigo arrastam,

Que senão jamais descansas,

Cuidado e supervisões.

E nunca os largues de mão,

Que senão tudo é senão!

 

 

1704 – Cem

 

- Cem anos conto e não tenho

Um inimigo no mundo.

- Que maravilha! Que ganho! –

Exclama o padre, jucundo.

- É verdade, de mil modos

Eu sobrevivi a todos…

 

 

1705 – Único

 

Nem sequer o degredo

Vislumbra que o aniquile.

Único, nunca sente medo:

- É o imbecil!

  

 

1706 – Ricos

 

Os ricos ignorarão

Um grande prazer da vida:

A última prestação

Paga, enfim, quando vencida.

 

 

1707 – Lei

 

É uma lei da natureza:

Tirar um dia de folga

Numa quinta nos represa

Nossa vida e no-la amolga,

Se a memória não me engana,

Ao menos uma semana.

 

 

1708 – Nada

 

Se íntegro for,

Nada mais importa,

Evidentemente.

Se não for,

Nada mais importa

Igualmente…

 

 

1709 – Tente

 

Tente se zangar (a ver

Como se verá culposo)

Com quem lhe der a comer

Algo de delicioso…

 

 

1710 – Canas

 

Se a gente se concentrar

No deveras importante

Da vida, vão-se esgotar

As canas de pesca adiante.

 

 

1711 – Médico

 

Médico que me receita

Um repouso prolongado,

Tal mezinha não vê feita

Na sala de espera ao lado?

  

 

1712 – Capelas

 

As capelas imperfeitas,

Imitação da ruína,

Relembram ao construtor

Que não escapa da sina:

Edifica, as contas feitas

Após o fugaz fulgor,

Já não tanto um monumento

Mas um desmoronamento.

 

 

1713 – Insegurança

 

A insegurança mudou de forma.

Em troca de abertamente

Do raio andar dependente,

Da seca, da tempestade,

Do gelo fora de norma,

Da inundação que me invade

- Todos cada vez mais servidões

De interpostos agentes e funções,

Hoje em dia dependemos

Da repartição de finanças,

De igrejas, instituições,

Doutros inefáveis demos

Sem cornos, porém com tranças

Onde todos nos prendemos,

Usurários e patrões,

Proprietários, ganhões,

Companhias de seguros…

- Por mais que as voltas troquemos

Não nos livramos de apuros.

 

 

1714 – Medida

 

A medida da morte proclama,

Humorística:

A morte dum homem é um drama,

Um milhão de mortos é uma estatística.

 

 

1715 – Facto

 

O que é um facto jornalístico?

Mera notícia de agência.

Para o conteúdo, um dístico:

A completa displicência

Ante o que for bem ou mal,

Que encher importa é o bornal.

 

Um homem ama a mulher?

Não é, não, de se escrever.

 

Contudo, se ele a estrangula,

Aí principia a gula.

 

E se ele a corta em pedaços?

Três colunas, dois espaços.

 

E se a comer? Eis a glória,

O monstro canta vitória:

 

Fotografia em relevo

Para que todo o coevo,

 

Se do caso ainda duvida,

Lhe dedique o tempo e a vida!

 

 

1716 – Segunda-feira

 

A segunda-feira é o dia

Em que saltam a janela

Os preguiçosos que havia

Na empresa por detrás dela.

 

Saltam janelas com gana

(E a maneira pouco importa)

- Porque têm uma semana

De sério trabalho à porta.

 

 

1717 – Vida

 

"Há vida noutros planetas?"

- Perguntam mil e um ninguéns.

Como acaso as pulgas pretas:

"Há vida nos outros cães?"

 

 

1718 – Nunca

 

Nunca as pessoas respondem

Àquilo que nós dizemos,

Mas ao que dizer queremos.

E os termos por trás escondem,

 

Quando a resposta condensam,

Não a questão que eu puser,

Mas aquilo que eles pensam

Que afinal quero dizer.

 

Quando pergunto a um vizinho:

"Tens em casa alguém contigo?",

Não responde, comezinho:

"Mulher e filhos abrigo",

 

Antes me confirma, amável:

"Não está ninguém connosco."

Se eu for médico, a incurável

Epidemia lhe enrosco

 

Na pergunta e logo então

Ele evoca todos quantos

Com ele partilharão

Da casa dele os recantos.

 

A questão, por mor do risco,

Fá-lo olhar dentro do aprisco.

 

Ninguém responde à pergunta

Mas ao que ele nela ajunta.

 

 

1719 – Mil

 

"Eu não sou vossa criada!"

- Diz mil vezes cada mãe,

Na casa desarrumada

Por mão dos filhos que tem.

 

"Eu não sou a vossa mãe!"

- Protesta em troca a empregada

No dormitório onde vêm

Tentar num curso uma entrada.

 

De roupas o chão coberto

Demonstra quanto, afinal,

Uma doutra andam bem perto

E uma é da outra o fanal.

 

 

1720 – Cure

 

Médico oftalmologista,

Cure embora os seus clientes,

Nunca é pessoa bem vista

Pelos doentes.

 

 

1721 – Frigorífico

 

Frigorífico é o lugar

Onde deixamos comida

Com tempo a deteriorar,

Para fora a não deitar

Pela razão bem medida

Que a ninguém se antolha incrível:

- É que ainda é comestível

Até de vez se estragar!

 

 

1722 – Sogra

 

Uma sogra é quem às vezes

Vai mesmo longe demais

Se perto demais, corteses,

Junto dela vos ficais.

 

 

1723 – Pessimista

 

Pessimista, por engulho,

É quem com tudo se importa

E se queixa do barulho

Quando a sorte bate à porta.

 

 

1724 – Velho

 

O velho padre, ao morrer,

Põe dum lado um advogado

E um técnico, do outro lado,

Das Finanças lá requer.

 

- Mas por que é que nos pediu,

Logo aos dois, para aqui vir?

- Ah! Jesus também morreu

Entre ladrões: devo-o seguir!

 

 

1725 – Lobo

 

Levando o lobo algemado

Para o carro da polícia,

Diz o agente aos três porquinhos:

"É grande e é lobo, cuidado!

Mas que um júri, sem malícia,

Veja se é mau aos vizinhos.

Antes disto, podem crer,

Nada podemos fazer."

 

 

1726 – Antes

 

Antes de deixar a mesa

Verifique, por favor,

Na mala o que lhe pertence.

Se descobrir, com surpresa,

Algo que de si não for,

Antes que algum mal se adense,

Volte a pô-lo no lugar

Onde ele deve ficar.

Senão é dum traste a veste

Aquilo de que se veste.

 

 

1727 – Remédio

 

Sem remédio um mal

Demora no arquivo:

É que, por sinal,

O tempo é digestivo.

 

 

1728 – Angustia

 

Com o tempo, a humanidade

Não se angustia, insensível.

Faz sempre tempo, é verdade…

Sente a chuva imprevisível

Quando o acidente do clima

Afinal lhe cai em cima.

 

 

1729 – Biblioteca

 

Na biblioteca da muita gente com ar moderno

Poderia escrever-se a tinta violácea,

"Para uso externo",

Como nos frascos da farmácia.

 

 

1730 – Chefiar

 

Chefiar uma campanha eleitoral

É dum comboio tentar a condução

Quando as linhas, em geral,

Andam ainda em construção.

 

 

1731 – Reforma

 

A reforma são férias prolongadas

A bater da vida o casino inteiro:

É de gozá-las bem gozadas,

Mas não a ponto de a pele nos ir com o dinheiro.

 

 

1732 – Peixes

 

Os dois peixes, num aquário,

Discutem cada vez mais

Até que de tal fadário

Um amua, com sinais

 

De retirar para o canto.

Depois de fundo pensar,

Sorri num jeito de encanto,

Volta, então, a argumentar.

 

 

- Se dizes que não há Deus,

Que a questão ninguém iluda:

Então no aquário de ateus

Quem sempre as águas nos muda?

 

 

1733 – Claro

 

- Mãe, é Deus que nos dá o pão?

- Claro, filho, pois então!

 

- E o Pai Natal deu as prendas?

- Sim, tal qual como nas lendas.

 

- E quem me trouxe, a cegonha?

- Para que a vida disponha…

 

- Se assim é que tudo vai,

Para que é que serve o pai?

 

 

1734 – Espelho

 

Um espelho forrado a pele

Bonito é tão fortuito!

- Depende muito

De quem estiver a olhar para ele…

 

 

1735 – Esperto

 

Por esperto alguém passar

Não custa nada, acredito:

Não se deixar apanhar

Basta em flagrante delito

 

Duma ignorância qualquer.

Manobramos, esquivamos

Uma pergunta que houver,

O penhasco contornamos

 

E os outros vamos bater

Por meio dum dicionário…

- Tão estúpido é quenquer

Que nem mesmo um dromedário!

 

 

1736 – Abandonada

 

A  mulher abandonada na ilha deserta,

Sem água, comida, tecto nem chão,

Não, não morre disto, pela certa,

- Morre de falta de atenção.

 

 

1737 – Cair

 

Que bom há-de ser,

Por entre tantos sonhos vãos,

Cair nos braços duma mulher

Sem lhe cair nas mãos!

 

 

1738 – Lar

 

Ter um lar acolhedor

É caso bem sucedido

Ao qualquer filho menor

Me perguntar, comedido:

- Quando crescermos, após,

Mudas tu ou somos nós?

 

 

1739 – Igual

 

Num casal ambos nasceram

Em igual mês, dia e ano.

A certidão requereram

E alguém creu que era um engano.

 

- Encham outro formulário,

Que se enganaram nas datas.

- Não, não é. Nosso fadário

É que somos uns empatas:

 

Nascemos em simultâneo

No mesmo ano, mês e dia.

E repare, há um sucedâneo

(Quem é que imaginaria?)

 

Ambos até nos casámos

Na mesma manhã de sol…

- Ai sim?! Nunca imaginámos

De coincidências tal rol!

 

 

1740 – Milhar

 

Na mesa, o quebra-cabeças

Toda a família em redor

Tenta do milhar de peças

Inteiro ali justapor.

 

Então alguém declarou

Que dele era o derradeiro

Encaixe. E se confirmou,

Que a peça escondeu lampeiro.

 

Ao contá-lo alguém se intriga:

- Mas como é que ele sabia,

No meio de tantas, diga,

Que ela a última seria?

 

 

1741 – Livros

 

Há livros para tê-lo adormecido,

Outros para acordado e alerta o ter.

- Tal qual como um comprimido,

Quais deles quer escolher?

 

 

1742 – Português

 

O português muito gosta

De quanto for estrangeiro!

Couve-de-bruxelas posta,

Couve-galega é o parceiro

 

Ou então couve-lombarda,

Sem falar no alho-francês…

Carne de peru aguarda

De cravo-da-índia uns pés

 

Junto da salada russa.

Depois, bolas-de-berlim…

Suíças na cara aguça.

Pastor alemão, por fim,

 

Guarda a casa e , no jardim,

O castanheiro-da-índia.

Faz trabalho em marroquim.

E fruta boa? Ei-la, guinde-a,

 

Nespereira-do-japão!

Fará negócios da China,

Joga à sueca com o irmão…

Se a brincar muito se inclina,

 

Então, entre o que esmiuça,

Finda na montanha-russa…

 

- Como amar, em tal jaez,

Isto de ser português?…

 

 

1743 – Mente

 

Creio numa mente aberta,

Não tão aberta, porém,

Que o cérebro que acoberta

Ao chão nos caia também.

 

 

 

1744 – Escave

 

Escave onde encontrar oiro,

Se o que busca é benefício,

A menos que, sem desdoiro,

Só precise de exercício.

 

 

1745 – Trabalho

 

O trabalho é uma fatia

Apenas de sua vida,

Não é inteira a pizaria

Onde comprou a comida.

 

 

1746 – Autêntica

 

"De Fátima esta Senhora

É autêntica" – promete

O antiquário aos de fora –

"É século dezassete!"

 

 

1747 – Fala

 

Se um homem fala na floresta

E não há mulher à mão,

Continua a ser ele que não presta

E a não ter razão?

 

 

1748 – Picada

 

Dos homens o mais possante

Pode abatê-lo o conflito

Com a flecha irrelevante

Da picada dum mosquito.

 

 

1749 – Antigamente

 

Antigamente os pais tinham

De filhos a rebanhada,

Hoje os filhos amarinham

Dum ror de pais na charada.

 

 

1750 – Avarentos

 

Os avarentos não são

A convívio fácil dados,

Mas dão

Óptimos antepassados.

 

1751 – Sintoma

 

A sorte do mandrião

É que o sintoma que emana

Preguiça e fadiga irmana

E lhes confunde a caução.

 

 

1752 – Samaritano

 

Do bom samaritano em vão

Me inteiro,

Se apenas tivera boa intenção:

- Tinha também dinheiro.

 

 

1753 – Defende

 

Defende uma teoria

Que se alguém descobre um dia

 

Para que serve o Universo

Logo ele, instantaneamente,

Desaparece, disperso,

Trocado num novo céu,

Mais estranho, finalmente

De inexplicável cariz.

 

- Outra teoria diz

Que tal já lhe aconteceu…

 

 

1754 – Voo

 

Leves e frágeis como uma pena,

Pode-nos o voo alterar a brisa mais branda.

Com os próprios pés trilhar a cena,

Construir a vida como o desejo manda?…

 

Vivemos à mercê do vento

Cuja força é revelada

Quando resistir-lhe tento

Em qualquer encumeada.

 

Mesmo com meus desejos claros,

Com a vontade bem definida

E um empenho dos mais raros

 

Em realizá-los de seguida,

Apenas o vento pode saber

Aonde a pena acaba por ir ter.

 

 

1755 – Longe

 

Quão mais longe vão nações,

No acordo internacional,

Rumo às eliminações

Do nuclear arsenal

 

Tão mais forte a tentação

De escapar a tal acordo.

Da segurança a intenção

Por esta via remordo:

 

Demasiado passageira,

Se não tomar precauções,

Finda, ao lhe chegar à beira,

À mão de esconsas traições.

 

 

1756 – Papel

 

Conforto e felicidade

Têm papel importante

No labor de alma que invade

O casal vida adiante.

 

Qual, pois, a surpresa então

Se de ambos uma parcela

Se encontra na comunhão

Do sexo que no lar vela?

 

Nem luta nem festa apenas,

Mas do mar sempre inconstante

Faustas como infaustas cenas

Que enrijam o navegante.