O DEUS DE
CADA DIA
CANTO REGULAR OS LAÇOS
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aleatoriamente um número entre 1 e 55 inclusive.
Descubra o poema correspondente como uma mensagem
particular para o seu dia de hoje.
1 – O deus de cada dia
Canto regular os
laços
Do amor, devir e utopia,
Ao sabor do dia-a-dia
Germinam vida nos braços.
Ato irregular os traços
Do que deviria
Do quotidiano a magia,
Meu ser de desembaraços.
Em metro clássico o íntimo depuro,
Às raízes atento donde parto
Semeando vida além o meu futuro.
Emverso à medida acarto
O saber incerto
Até que a rir acabe enfim desperto.
2 – Canto regular os laços
Canto regular os laços
Em métrica comedida,
Feito meu povo na lida
Que de amor lhe aduba os traços.
Em cada palavra abraços
E nós darão a medida
Da merenda a que convida
O trilho dos comuns passos.
Do conjugal ao fraterno,
Do filial ao de amigo,
O amor é o cume superno
Onde quenquer busca abrigo.
Mesmo um ódio abrirá terno
Para um outro algum postigo.
3 – Papel |
|
Os pais têm um papel |
Como os guias da montanha: |
Não arraste, num tropel, |
O caminhante que ganha, |
|
Aos pontapés nem aos gritos. |
O trilho ajude a encontrar, |
Evite os gestos aflitos, |
Rume ao cume a conquistar. |
|
Pai não é dono, mas guia: |
Lanterna à frente postada, |
Na noite é luz que alumia |
A apontar a madrugada. |
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|
4 – Tacto |
|
O tacto é fundamental: |
Bem antes de alguém nascido |
Já do mundo era fanal, |
No ventre onde houver crescido. |
Que teu filho carecido |
Possa ficar de dinheiro. |
Não sejam, porém, escassos, |
De ti nem doutro parceiro, |
Antes fartos, os abraços. |
Formam o arco da aliança |
Que aqui se enterra no chão. |
Dele os voos saltarão, |
Quase o infinito se alcança. |
|
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5 – Titubeia |
|
Não sejas tão exigente |
Que já nem pises o chão |
Que titubeia tremente |
Pouco mais que sempre em vão. |
|
E não vás voar tão alto |
Que ninguém lá te acompanhe. |
De prato forte andas falto? |
Sê quem sobremesas ganhe. |
|
Doutro modo viras costas |
Ao que irá levar-te ao termo |
E vais perder as apostas |
Se dos mais tudo for ermo. |
|
|
6 – Avô |
|
Afinal, o que é um avô |
Senão apenas um pai |
Que vive, arredio ao dó, |
Na irresponsabilidade |
Orgulhosa em que descai |
Com toda a desfaçatez, |
Com saboroso à-vontade |
E a maior das alegrias? |
|
Anarquizante de vez, |
Como após educarias |
Para qualquer sensatez, |
Do avô depois da demão, |
Qualquer nova geração? |
|
É, porém, uma alegria |
De ternura e de magia. |
Vale a pena uma excepção |
A dar cor a cada dia. |
|
|
7 – Fios |
|
O que importa é bordar fios, |
Fios de continuidade |
Entre o caos e os desvios |
Do que a vida nos invade. |
|
Podem ser umas cortinas, |
Quando mudamos de lar, |
Que do velho lar destinas |
A vir o novo enfeitar. |
|
Pode ser um ritual |
De bons-dias, duma ceia… |
- O que importa é dar sinal |
Do que é igual na nova teia. |
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|
8 – Beijar |
|
De alegria de estar vivo |
Não te apetece beijar |
Desde o humilde ao mais altivo |
Que encontrarás ao calhar? |
|
"Cuidado, não vás morrer" |
- Dirás tu, ao tal saudar - |
"Mesmo antes de ti sequer, |
Antes que teu peito pare!" |
|
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9 – Sequela |
|
É mesmo amor e não é |
Tudo aquilo que ela quer: |
Não é que um homem qualquer |
Se encontre nela, de pé, |
|
Mas é que se perca nela. |
Contudo, tenta, constante |
Encontrar-se, na sequela, |
Ela por ele adiante. |
|
Andarás todo à procura |
De ti próprio pelos bares, |
Na festa, na sinecura, |
No canto onde trabalhares |
|
E no amor e mais no amor: |
Em busca daquela parte |
Que algures, é de supor, |
De ti noutrem se reparte. |
|
É que o amor não é dar-se, |
Pois que dar-se quando verse |
Busca no fim, sem disfarce, |
Encontrar-se e reaver-se, |
|
Já que de ti a parcela |
Que poderás alcançar |
É sempre apenas aquela |
Que em ti vês que tem lugar. |
|
Procurar-te-ás evadir |
Da célula do cortiço |
Para alcançar a seguir |
A que ao lado é o teu esquisso |
|
No mesmo favo de mel. |
Darás com portas fechadas: |
Serve o amor copos de fel |
Pelas frestas vislumbradas. |
|
Entretanto, os prisioneiros, |
Tu tal como o teu vizinho, |
Ireis crescendo em viveiros: |
Cada qual é do outro o ninho. |
|
10 – Direito |
|
Neste mundo ninguém tem |
De facto qualquer direito, |
Só o direito de que alguém |
Se apoderar a preceito, |
|
A que puder se agarrar. |
E a forma normal de o ter |
É doutrem arrebatar |
O direito que este houver. |
|
Quando este homem predador |
For o que o mundo domina, |
Não há amor que seja amor, |
É doutrina clandestina. |
|
|
11 – Destrói |
|
Quando alguém destrói quem ama |
É porque o ama demais. |
Se é o amado a quem inflama, |
Amado é que se quer mais. |
|
E é difícil alcançar |
Tanto mais o que se amou |
Quão mais fundo houve lugar |
Dum amor ao fundo voo. |
|
Assim é que no limite |
Se destrói o que se quer |
Porque se quer, sem que hesite, |
Sem limite quanto houver. |
|
|
12 – Dilema |
|
Para obter a liberdade |
Importa morrer por ela. |
Após morrer, é verdade, |
Nada ganhas da sequela. |
|
Deveras este é o problema |
E ninguém foge ao dilema. |
|
Apenas para os vindoiros |
Vai a coroa de loiros. |
|
Só o amor por nossos filhos |
Gratuito é que ata os atilhos. |
|
|
13 – Dominado |
|
Governa o mundo a mulher, |
Sabe-o todo o apaixonado: |
Sempre há uma intriga qualquer |
E ele ao fim é o dominado. |
|
Depois canta que o amor |
É mesmo libertador… |
|
Se com a lógica briga, |
A verdade é que ninguém |
Dos laços se desobriga |
Enquanto um amor o tem. |
|
|
14 – Talvez |
|
Talvez amemos apenas |
O que não podemos ter, |
Talvez o amor sejam penas… |
Talvez assim deva ser. |
|
Que porção de ódio no amor! |
E quanto ressentimento |
Para à liberdade impor |
Baias a cada momento! |
|
Talvez o fim da existência, |
De na Terra andar no bródio, |
Seja buscar a excelência: |
- Aprender a amar sem ódio! |
|
|
15 – Trata |
|
Homem que trata a mulher |
Como ser desamparado, |
De diversão tal qualquer |
Encantatório bocado, |
|
Merece mulher que o trate |
Como gorda e perdulária |
Conta perene a que se ate |
Alegremente bancária. |
|
|
16 – Sonho |
|
O sonho (mesmo o infantil), |
Mais que da vigília os quadros, |
Reflecte em vertentes mil |
Avoengos que andam nos adros. |
|
Do chegado aos mais remotos, |
São as lutas com as feras, |
Medo a répteis, terramotos, |
Brutas batalhas e esperas… |
|
Todos os baldões da horda, |
Quadros de fereza e força, |
Babujam, do sonho à corda, |
Náufragos que o olvido esforça. |
|
E os destroços ignorados |
Nos guardam dentro da raia |
De nossos antepassados |
Vindo aqui dar-nos à praia. |
|
|
17 – Irradiação |
|
A criança é o coração |
Da casa como do lar |
E até, por irradiação, |
Do Universo fica a par. |
|
- A mais breve coisa viva |
Todo o mundo em si cativa. |
|
|
18 – Rouba |
|
Rouba o tempo a juventude, |
Os amigos, nossos dias… |
Quando morrer, que virtude |
Vive além das fantasias |
Senão a do amor que demos |
Aos demais com quem vivemos? |
Tudo quanto recordamos |
São os mágicos momentos |
Em que o tempo se deteve. |
Ali é que não findamos, |
Do eterno nestes segmentos |
Em que eterna é a vida breve. |
|
|
19 – Severo |
|
Por mais severo que um pai |
Seja ao julgar dele o filho, |
Tão duro jamais, olhai, |
Como um filho julga um pai |
Dele apertará o vencilho. |
|
|
20 – Dança |
|
A dança, na rapariga, |
É aprendizagem de amor. |
Ao homem a quem se liga |
Se entrega e nunca periga |
A ilusão de, com pudor, |
Em tudo o que ali recolha, |
Fazer dela livre escolha. |
|
A dança, na rapariga, |
É aprendizagem de amor, |
Desobriga a quanto obriga, |
Liberta o sonho maior. |
Se ao acordar o desdiga, |
Quem lhe liga, quem lhe liga |
Do fogo durante o ardor? |
|
21 – Tesoiros |
|
Por que tem de haver tragédia |
Para o devido valor |
Dares, de tesoiros nédia, |
À vida do lar, do amor? |
|
Por mais votos de que não, |
Às vezes terá de ser: |
- Tão embotados te são |
Teus sentidos para ver! |
|
|
22 – Sucesso |
|
Sucesso? Olha que o maior |
É de dar, de dar amor. |
|
Não o Amor de letra grande, |
Antes o do dia-a-dia, |
Onde cada nada mande, |
Que aí tudo principia. |
|
Pouco a pouco, gesto a gesto, |
Tarefa a tarefa, assim, |
A cada palavra empresto |
Soma de princípio e fim. |
|
|
23 – Primeiro |
|
Sonhos do primeiro amor, |
Sempre um homem é criança: |
Brinca ao eco do sol-pôr |
Feliz de ouvir se lhe opor |
Alguém que ele nunca alcança. |
|
E a frase que pronuncia |
Não vê nunca, extasiado, |
Que a repita, dia a dia, |
Quem ele bem gostaria |
Que estivesse do outro lado. |
|
Sempre um homem é a criança: |
Busca-se e nunca se alcança. |
|
|
24 – Ninharias |
|
Um ódio como um amor |
Nutrem-se de ninharias, |
Tudo serve ao desvalor |
E ao valor das fantasias. |
|
Aquele que for amado |
Nunca de mau nada faz, |
Como o que for odiado |
De bom nada satisfaz. |
|
O pior é que a verdade |
Tarde ou cedo contra-ataca |
E ao murro da realidade |
Nenhuma inocência aplaca. |
|
|
25 – Saciado |
|
Amor que vem do desejo |
Vive apenas de esperança, |
De saciado após o ensejo |
É que a verdade o alcança. |
|
De véspera ser amado |
Quem o não é, não dirás? |
Um dia após, se a teu lado, |
Então é que amor terás. |
|
|
26 – Apogeu |
|
Ser mãe é descortinar, |
Do mundo num apogeu, |
Dois sentimentos a par |
Que do inferno vão ao céu |
Juntos num mesmo fervor: |
São eles o amor e a dor. |
|
Quem os queira separar |
Ainda não percebeu |
Que ser mãe sempre é juntar |
Tudo o que o mais dividiu. |
|
Até que o mundo completo |
Nos sirva, um dia, de tecto. |
|
|
27 – Jovens |
|
Os jovens te compreendem, |
Se os tratas com compreensão. |
Aquilo que não entendem |
É ser por ti humilhados. |
Por não serem respeitados |
Entram em rebelião. |
|
Um lar como um mundo em paz |
Vem de quem e como os faz. |
|
|
28 – Vias |
|
A dor e a dificuldade |
Por vezes servem de vias |
A um nível de mais verdade |
Nas relações que terias. |
|
A relação pode ser, |
Perante a dificuldade, |
A iniciação de quenquer |
A maior intimidade. |
|
Os fracassos, as rupturas |
Dão-nos a oportunidade |
De às ameaças escuras |
Transmudar em claridade. |
|
|
29 – Largar |
|
Na vida posso largar |
Um indivíduo, um lugar, |
|
Mas na memória, no sonho, |
Sou alma, de mim disponho, |
|
Por aqui vivo agarrado |
Às ligações do passado. |
|
Quando para trás das costas |
As tento jogar, impostas |
|
Me são logo em devaneio |
Por distracções de permeio. |
|
São a ponte por onde ir |
De meu passado ao porvir. |
|
|
30 – Fuga |
|
A fuga a um qualquer apego, |
Anelo de solidão, |
A procura do sossego, |
É o íntimo a que me nego |
Na partilha de meu pão. |
|
Há um atractivo em fugir |
Bem longe da intimidade: |
Atrai quem o vai seguir |
E o que foge, na verdade, |
Gosta de fingir sumir. |
|
São jogos de sedução |
Mas por trás o que me espreita |
É sempre a respiração |
Dos contrários em tensão |
A que qualquer alma é atreita. |
|
Há um tempo para tender |
E fermentar a fornada, |
Tempo de as broas cozer |
E apurar tudo o que houver |
Na vida após partilhada. |
|
|
31 – Médico |
|
Ir ao médico não quero, |
Que não quero ser curado |
Nem compreendido, pondero, |
Nem meu curso haver tirado. |
Dum amigo ando cansado |
Que teima em aconselhar-me, |
Modificar-me num vero |
E bem entendido carme. |
|
Digo-me que é uma defesa, |
Um direito a resistir… |
- Se calhar o que se preza |
É, no fundo, nem bulir. |
E onde me encontro com alma |
É afinal neste repouso |
Onde reencontro a calma |
Que afirmar nem sequer ouso. |
|
|
32 – Retrato |
|
Vaga luz numa penumbra |
Que o quotidiano embaça, |
O retrato que deslumbra |
É de realidade escassa. |
|
Por dentro ninguém capaz |
Fielmente se retrata, |
Dia a dia é que se faz |
No gesto que se desata. |
|
Uma palavra, um abraço, |
Um jeito de olhar o sol, |
E a pegada no que passo |
De repente é um arrebol. |
|
Vale um homem o que cria, |
Quão útil é para os mais, |
O que deixa em cada dia, |
Um livro, um quadro, sinais… |
|
A mais densa realidade |
É o valor de tais arquivos |
E o que pesa de saudade |
No amor dos que restam vivos. |
|
|
33 – Regressar |
|
Para o amor regressar |
O casal tem de assumir |
Antes e sem hesitar |
Um com o outro o compromisso |
De fiéis em comum ir. |
Depois, não arde o chamisso. |
Se for antes, vai luzir |
De novo a chama do lar. |
|
Muito embora me palpite |
Que ninguém nisto acredite… |
|
|
34 – Casas |
|
As casas, como as pessoas, |
Apresentam a fachada |
E escondem sempre as traseiras |
Onde muitas coisas boas |
Se albergam cada jornada, |
Do carácter empreiteiras. |
|
São os pequenos quintais |
De nespereiras e gatos, |
O estendal de roupas brancas, |
De toalhas arsenais, |
São miúdos, desacatos, |
Bolas e paus, velhas trancas… |
|
As traseiras, mundo estranho, |
Cada qual mais diferente… |
Da frontaria, lá fora, |
As reixas baixas apanho, |
Pudor de ostensivamente |
Mostrar-se e mandar-me embora. |
|
É que nem a cor das tintas, |
Metalizados caixilhos |
Ou azulejos lavados |
São roupagens que, distintas, |
Personalizem nos brilhos |
Os indivíduos tratados. |
|
Falta-lhes aquela vida, |
A candura da pureza, |
As linhas mais verdadeiras |
Que qualquer pessoa olvida |
Mas que são o que mais preza, |
- A verdade das traseiras! |
|
|
35 – Jardins |
|
Os jardins são como os filhos, |
Os filhos, como os jardins. |
Aos dos demais vejo os brilhos, |
Demarco-lhes os confins, |
|
Nada, porém, se equipara |
À alegria e ao prazer |
Que nos nossos se depara |
De em frente vê-los viver. |
|
Só neles mora, em verdade, |
Deveras felicidade. |
|
|
36 – Aprendemos |
|
Aprendemos com a idade |
Toda a gente a compreender. |
Embora nos não agrade |
Tolerar nem suportar, |
Findamos a adivinhar |
Defeitos quantos houver, |
Fraqueza, a mais singular… |
|
Uma lágrima, um sorriso, |
Eis-nos logo a partilhar. |
|
A escutar com mais juízo |
Devíamos aprender, |
Como se um búzio colado |
Aos ouvidos nós tivéramos, |
O mar distante e assombrado |
Da dor doutrem marulhando |
A ouvir, como se houvéramos |
Das gaivotas dentro o bando |
Com toda a branca magia |
Que outros mundos anuncia. |
|
|
37 – Abelhinha |
|
Quem dera ser a abelhinha, |
Flor a flor provar o amor, |
Ora numa, se adivinha, |
Ora nas mais a me pôr! |
|
Pau de pólen, quem me dera |
Ser das abelhas querido: |
Quando uma o chupar quisera |
Logo as mais se lhe hão seguido! |
|
Que sorte a da
borboleta |
Do jardim por
entre as flores: |
Sem compromisso nem meta, |
A todas prova
os amores! |
|
|
38 – Gratuitidade |
|
O valor da vida
velha |
Vale da gratuitidade, |
Um olhar outro aconselha |
Que não é venalidade. |
|
Não é só de
actividade |
Que a vida é
feita ou trabalho, |
Tem maior complexidade, |
Vale o sabor do
que valho. |
|
Velhice é sabedoria, |
De conviver o prazer, |
A raiz que evocaria |
De antanho quem é quenquer. |
Não dá lucro
nem tem preço, |
Como o amor,
como a amizade, |
Mas é o metro
em que me meço |
E me traço a
identidade. |
|
|
39 – Oportunidade |
|
Temos a oportunidade |
De hoje mudar
de cultura. |
A cultura do inimigo |
Bloqueou a Humanidade |
Dos ódios na sepultura. |
A da aliança de
amigo |
Promete outra conjuntura, |
Traz vislumbres dum abrigo, |
É desafio, aventura. |
|
Mais difícil a amizade |
É, porém, de
alguém viver |
Do que o ódio
que o invade |
Do inimigo que eleger. |
|
|
40 – Formosa |
|
Formosa, por mais formosa, |
Alimenta só a vaidade |
De algum marido
que a goza |
Se ele vir-lhe
a identidade. |
|
Que o tempo
respeita às vezes |
As belas
feições da esposa |
Mas os olhos
vão, soezes, |
Na poesia ler prosa. |
|
Ficam dos tempos primeiros, |
Não a luz que
incendiou, |
Iluminou mil sendeiros, |
- Ficam as
sombras do voo. |
|
|
41 – Marcas |
|
Põe lá marcas conhecidas |
Que o leve a
sentir-se em casa: |
O turista quer guaridas |
E a lareira com
a brasa. |
|
Viajará para sentir |
Que, após tudo viajar, |
Enfim tem de concluir: |
Não saiu nunca
do lar. |
|
E tu farás,
pelo inverso, |
Concluir a quem
lhe apraza |
Que o mundo, à
frente e no verso, |
É deveras nossa casa. |
|
|
42 – Regras |
|
Estabelecer as regras |
Como aplicar os castigos |
Se, infringidas, as reintegras, |
A todos nos
ergue abrigos. |
|
E é meio
caminho andado |
Para teu filho escapar |
Ao anzol que
lhe anda iscado |
Para, ao
desvio, o caçar. |
|
|
43 – Ouçam |
|
Que os pais não
falem sozinhos! |
Que os filhos atentamente, |
Entre penas e carinhos, |
Ouçam, que será
um presente! |
|
Poderão muito aprender |
Sobre o que
cuidam das drogas, |
E ajudam a atar
as sogas |
Que os bois
prendem de quenquer. |
|
A falar sós
como loucos |
Como ajudam a
evitá-las, |
Às drogas, por
mais que poucos |
Haja modos de
arranjá-las? |
|
|
44 – Converse |
|
Converse com os
seus filhos |
Do que têm a
dizer, |
Dos sonhos e
dos sarilhos, |
Dos medos que
atam quenquer. |
|
Estabeleça padrões |
De comportamentos certos |
E de inçados de
senões, |
Sempre os tenha
a tal despertos. |
|
E leve em conta
que aprendem |
Eles pelo exemplo mais |
Que pelos
gritos que acendem |
Fogos fátuos canibais. |
|
Ame, apoie ou elogie, |
A criar-lhes
auto-estima. |
Dê-lhes algo
que se avie |
Do labor que o
dia encima. |
|
Participe-lhes na vida, |
Informe-os da
perda e risco, |
Que o silêncio
não colida, |
Quando os
protege no aprisco, |
|
Contra a funda pretensão, |
Que lhe não
inverta o intento: |
Nunca o calar
seja, não, |
Forma de consentimento! |
|
|
45 – Meio |
|
Chegar ao meio
da vida |
Eterno é ter um
Verão |
Com a praia merecida |
Do amor a
aloirar no chão. |
|
Quem me dera
ser teu sol, |
A bronzear em
beijos ternos |
Tua pele onde o
arrebol |
Me dás dos dias
fraternos! |
|
Quem me dera
ser teu rio |
Onde a nadar refrigério |
Para o calor e
o fastio |
Encontres no meu mistério! |
|
|
46 – Trepar |
|
Nenhum casamento vem |
Com todas as garantias, |
É de entrar e
crer que tem |
Pernas de
trepar os dias. |
|
Saber que é tal
que se quer |
Na riqueza e na
pobreza, |
Para o que der
e vier, |
Seja em feiura
ou beleza, |
|
Do divórcio
fecha a porta. |
De vez fica a
vida mouca |
Ao que ela
tiver de morta, |
Que sempre nos
sabe a pouca. |
|
|
47 – Brinquedo |
|
Não posso brincar contigo. |
Entrego-te este brinquedo |
Que diz que sou
teu amigo. |
Anda lá, não
fiques quedo, |
Desata a
brincar e a rir, |
Senão eu morro
de medo |
De isto não me
substituir. |
|
Que é que
importa a quantidade |
Dos brinquedos
que se dão |
Quando é o
afecto e a atenção |
Que dão singularidade, |
Marca duma relação? |
|
Não substitui um brinquedo |
Aquela mão que emparceira |
Pais e filhos
no segredo |
Duma alegre brincadeira. |
|
|
48 – Mercantil |
|
A estrutura mercantil |
Valores comunitários |
Mina, expulsa do redil, |
Laços não quer solidários. |
|
Os limites da moral |
Afrouxa, que é
uma rival. |
|
Os valores sociais |
São a preocupação |
Com outrem, com
os demais, |
Comigo numa união. |
|
Pertenço à comunidade, |
Sou membro da humanidade. |
|
Seja família ou nação, |
Uma tribo ou um
país, |
Sempre prevalecerão |
Seus direitos de raiz |
|
Sobre o interesse egoísta |
Que em cada
qual ainda exista. |
|
Só que o reino
do mercado |
Jamais é comunidade: |
Todos defendem seu gado |
Do vizinho que
o invade. |
|
Os escrúpulos morais |
São estorvos cruciais |
|
Num mundo-cão
onde todos |
Se entredevoram famintos. |
Assim, não há
mais engodos |
À moral nestes recintos. |
|
|
49 – Arbítrios |
|
Princípios fundamentais, |
Quando em geral ignorados |
Por conveniências fatais, |
Arbítrios acrisolados, |
|
Trazem desorientação, |
Desejo de disciplina, |
Tirana governação: |
Cada qual a tal
se inclina. |
|
Jamais a estabilidade |
Pode manter-se
a não ser |
Que adiramos de verdade |
Às normas-base
que houver, |
|
Que sirvam de fundamento |
À comunal convivência, |
Qualquer que
seja do evento |
A dorida consequência. |
|
|
50 – Gesto |
|
No meio competitivo |
Do mercado,
quem dos mais |
Sentir o gesto aflitivo |
Tem desvantagens reais. |
|
Vergados pela amargura |
Ficam logo condenados, |
Menos êxito se augura |
Que aos sem
moral empenhados. |
|
Sendo assim, é
que os valores, |
Por selecção natural |
Adversa nestes pendores, |
Vão extinguir-se, afinal. |
|
Quem escrúpulos não tem |
É quem vai
correr à frente… |
- É o aspecto
que refém |
Tem o mundo à
mão e tente. |
|
É o que é mais
preocupante |
Num mercado que
no mais |
Nos puxa para diante: |
- Nisto anula
os bons sinais. |
|
|
51 – Voz |
|
Os interesses comuns |
Não têm voz no
mercado. |
Das empresas é visado |
Não ter empregos nenhuns: |
Quando
empregam, o que visam |
São lucros de
que precisam. |
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Mesmo em ramo
de saúde |
Empresas não salvam vidas, |
Tratam, mas não
por virtude, |
Para lucrar nas medidas. |
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O valor comunitário |
Nada vale em numerário. |
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Se então é
mercado livre, |
Deus nos livre,
Deus nos livre! |
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52 – Canto |
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O canto do encantamento |
Atrai para o devaneio, |
A terra do
sonho cheio |
Dos fados do chamamento. |
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E cantiga de embalar |
Devém breve o
mundo inteiro, |
Alma no dia leveiro |
Frenesins a moderar. |
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E as almas
então desatam |
Do chão a desabrochar, |
Tanto a se revigorar |
Que em meu
peito o cosmo acatam. |
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53 – Implica |
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Nada implica nem requer |
Que o mundo de
encantamento |
Que uma criança prefere |
Seja fútil
sopro ao vento |
Em que não
reste elemento |
A que se agarre
quenquer. |
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O saber duma criança |
Sabedoria genuína |
Será mais do
que se alcança |
E a brincadeira
em que atina |
É de arte obra
bem mais fina |
Que a do labor
que nos cansa. |
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Mundo animado
em que habita |
Afinal tão verdadeiro |
É como aquele
em que hesita |
O astrónomo o
tempo inteiro. |
Mas cremos só
que é certeiro |
Educar no que
este cita, |
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Nada temos que aprender |
Com as crianças ignaras. |
Se encantado um
mundo houver, |
Não são em tal
caso raras |
As lições então
mais caras, |
Que são as que
a infância der. |
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Aulas sobre o
que mais sabem: |
Brincadeiras e magia, |
Animismo… Nelas cabem |
Sonhos que não haveria |
Nesta cultura vazia. |
- E oxalá não
mais acabem! |
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54 – Quadro |
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Olhando um
quadro à distância |
Vejo o todo constituinte, |
A cor é vida,
elegância, |
Translucidez do requinte. |
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Enquanto de
perto o vejo, |
Outro é o tipo
de magia, |
As marcas
claras, o arquejo |
Das mãos lendo
a fantasia. |
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Obra de arte a
revelar |
No trabalho
feito à mão |
O que presente
há-de estar: |
O fantasma do artesão. |
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Evocado este fantasma, |
Quando o tornamos presente, |
O trabalho
então nos pasma |
E encanta, luminescente. |
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55 – Única |
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Das almas necessidade |
O lar única não
é, |
De casa sair a
pé |
Lhe equivale em prioridade. |
|
Do lar encontrar fragmentos |
No acaso de
hotéis, barracas, |
Ocorre em nossos intentos, |
Que o lar
buscas onde atracas. |
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Pois, tal como
as tartarugas, |
Carregamos casa às costas, |
A um lar móvel
passo estugas |
Que a teu imo
fundo encostas. |
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Localizado em recesso |
Das almas na profundeza, |
De dons
infindos, de excesso, |
Deste lar jorra beleza. |