O  DEUS  DE  CADA  DIA

 

 

PRIMEIRO  ITINERÁRIO

 

CANTO  REGULAR  OS  LAÇOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 1 e 55 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 – O deus de cada dia

 

Canto regular os laços

Do amor, devir e utopia,

Ao sabor do dia-a-dia

Germinam vida nos braços.

 

Ato irregular os traços

Do que deviria

Do quotidiano a magia,

Meu ser de desembaraços.

 

Em metro clássico o íntimo depuro,

Às raízes atento donde parto

Semeando vida além o meu futuro.

 

Emverso à medida acarto

O saber incerto

Até que a rir acabe enfim desperto.

 

 

                                                                2 – Canto regular os laços

 

                                                                Canto regular os laços

                                                                Em métrica comedida,

                                                                Feito meu povo na lida

                                                                Que de amor lhe aduba os traços.

 

                                                                Em cada palavra abraços

                                                                E nós darão a medida

                                                                Da merenda a que convida

                                                                O trilho dos comuns passos.

 

                                                                Do conjugal ao fraterno,

                                                                Do filial ao de amigo,

                                                                O amor é o cume superno

 

                                                                Onde quenquer busca abrigo.

                                                                Mesmo um ódio abrirá terno

                                                                Para um outro algum postigo.

 

 

3 – Papel

 

Os pais têm um papel

Como os guias da montanha:

Não arraste, num tropel,

O caminhante que ganha,

 

Aos pontapés nem aos gritos.

O trilho ajude a encontrar,

Evite os gestos aflitos,

Rume ao cume a conquistar.

 

Pai não é dono, mas guia:

Lanterna à frente postada,

Na noite é luz que alumia

A apontar a madrugada.

 

 

4 – Tacto

 

O tacto é fundamental:

Bem antes de alguém nascido

Já do mundo era fanal,

No ventre onde houver crescido.

Que teu filho carecido

Possa ficar de dinheiro.

Não sejam, porém, escassos,

De ti nem doutro parceiro,

Antes fartos, os abraços.

Formam o arco da aliança

Que aqui se enterra no chão.

Dele os voos saltarão,

Quase o infinito se alcança.

 

 

5 – Titubeia

 

Não sejas tão exigente

Que já nem pises o chão

Que titubeia tremente

Pouco mais que sempre em vão.

 

E não vás voar tão alto

Que ninguém lá te acompanhe.

De prato forte andas falto?

Sê quem sobremesas ganhe.

 

Doutro modo viras costas

Ao que irá levar-te ao termo

E vais perder as apostas

Se dos mais tudo for ermo.

 

 

6 – Avô

 

Afinal, o que é um avô

Senão apenas um pai

Que vive, arredio ao dó,

Na irresponsabilidade

Orgulhosa em que descai

Com toda a desfaçatez,

Com saboroso à-vontade

E a maior das alegrias?

 

Anarquizante de vez,

Como após educarias

Para qualquer sensatez,

Do avô depois da demão,

Qualquer nova geração?

 

É, porém, uma alegria

De ternura e de magia.

Vale a pena uma excepção

A dar cor a cada dia.

 

 

7 – Fios

 

O que importa é bordar fios,

Fios de continuidade

Entre o caos e os desvios

Do que a vida nos invade.

 

Podem ser umas cortinas,

Quando mudamos de lar,

Que do velho lar destinas

A vir o novo enfeitar.

 

Pode ser um ritual

De bons-dias, duma ceia…

- O que importa é dar sinal

Do que é igual na nova teia.

 

 

8 – Beijar

 

De alegria de estar vivo

Não te apetece beijar

Desde o humilde ao mais altivo

Que encontrarás ao calhar?

 

"Cuidado, não vás morrer"

- Dirás tu, ao tal saudar - 

"Mesmo antes de ti sequer,

Antes que teu peito pare!"

 

 

9 – Sequela

 

É mesmo amor e não é

Tudo aquilo que ela quer:

Não é que um homem qualquer

Se encontre nela, de pé,

 

Mas é que se perca nela.

Contudo, tenta, constante

Encontrar-se, na sequela,

Ela por ele adiante.

 

Andarás todo à procura

De ti próprio pelos bares,

Na festa, na sinecura,

No canto onde trabalhares

 

E no amor e mais no amor:

Em busca daquela parte

Que algures, é de supor,

De ti noutrem se reparte.

 

É que o amor não é dar-se,

Pois que dar-se quando verse

Busca no fim, sem disfarce,

Encontrar-se e reaver-se,

 

Já que de ti a parcela

Que poderás alcançar

É sempre apenas aquela

Que em ti vês que tem lugar.

 

Procurar-te-ás evadir

Da célula do cortiço

Para alcançar a seguir

A que ao lado é o teu esquisso

 

No mesmo favo de mel.

Darás com portas fechadas:

Serve o amor copos de fel

Pelas frestas vislumbradas.

 

Entretanto, os prisioneiros,

Tu tal como o teu vizinho,

Ireis crescendo em viveiros:

Cada qual é do outro o ninho.

 

 

10 – Direito

 

Neste mundo ninguém tem

De facto qualquer direito,

Só o direito de que alguém

Se apoderar a preceito,

 

A que puder se agarrar.

E a forma normal de o ter

É doutrem arrebatar

O direito que este houver.

 

Quando este homem predador

For o que o mundo domina,

Não há amor que seja amor,

É doutrina clandestina.

 

 

11 – Destrói

 

Quando alguém destrói quem ama

É porque o ama demais.

Se é o amado a quem inflama,

Amado é que se quer mais.

 

E é difícil alcançar

Tanto mais o que se amou

Quão mais fundo houve lugar

Dum amor ao fundo voo.

 

Assim é que no limite

Se destrói o que se quer

Porque se quer, sem que hesite,

Sem limite quanto houver.

 

 

12 – Dilema

 

Para obter a liberdade

Importa morrer por ela.

Após morrer, é verdade,

Nada ganhas da sequela.

 

Deveras este é o problema

E ninguém foge ao dilema.

 

Apenas para os vindoiros

Vai a coroa de loiros.

 

Só o amor por nossos filhos

Gratuito é que ata os atilhos.

 

 

13 – Dominado

 

Governa o mundo a mulher,

Sabe-o todo o apaixonado:

Sempre há uma intriga qualquer

E ele ao fim é o dominado.

 

Depois canta que o amor

É mesmo libertador…

 

Se com a lógica briga,

A verdade é que ninguém

Dos laços se desobriga

Enquanto um amor o tem.

 

 

14 – Talvez

 

Talvez amemos apenas

O que não podemos ter,

Talvez o amor sejam penas…

Talvez assim deva ser.

 

Que porção de ódio no amor!

E quanto ressentimento

Para à liberdade impor

Baias a cada momento!

 

Talvez o fim da existência,

De na Terra andar no bródio,

Seja buscar a excelência:

- Aprender a amar sem ódio!

 

 

15 – Trata

 

Homem que trata a mulher

Como ser desamparado,

De diversão tal qualquer

Encantatório bocado,

 

Merece mulher que o trate

Como gorda e perdulária

Conta perene a que se ate

Alegremente bancária.

 

 

16 – Sonho

 

O sonho (mesmo o infantil),

Mais que da vigília os quadros,

Reflecte em vertentes mil

Avoengos que andam nos adros.

 

Do chegado aos mais remotos,

São as lutas com as feras,

Medo a répteis, terramotos,

Brutas batalhas e esperas…

 

Todos os baldões da horda,

Quadros de fereza e força,

Babujam, do sonho à corda,

Náufragos que o olvido esforça.

 

E os destroços ignorados

Nos guardam dentro da raia

De nossos antepassados

Vindo aqui dar-nos à praia.

 

 

17 – Irradiação

 

A criança é o coração

Da casa como do lar

E até, por irradiação,

Do Universo fica a par.

 

- A mais breve coisa viva

Todo o mundo em si cativa.

 

 

18 – Rouba

 

Rouba o tempo a juventude,

Os amigos, nossos dias…

Quando morrer, que virtude

Vive além das fantasias

Senão a do amor que demos

Aos demais com quem vivemos?

Tudo quanto recordamos

São os mágicos momentos

Em que o tempo se deteve.

Ali é que não findamos,

Do eterno nestes segmentos

Em que eterna é a vida breve.

 

 

19 – Severo

 

Por mais severo que um pai

Seja ao julgar dele o filho,

Tão duro jamais, olhai,

Como um filho julga um pai

Dele apertará o vencilho.

 

 

20 – Dança

 

A dança, na rapariga,

É aprendizagem de amor.

Ao homem a quem se liga

Se entrega e nunca periga

A ilusão de, com pudor,

Em tudo o que ali recolha,

Fazer dela livre escolha.

 

A dança, na rapariga,

É aprendizagem de amor,

Desobriga a quanto obriga,

Liberta o sonho maior.

Se ao acordar o desdiga,

Quem lhe liga, quem lhe liga

Do fogo durante o ardor?

 

 

21 – Tesoiros

 

Por que tem de haver tragédia

Para o devido valor

Dares, de tesoiros nédia,

À vida do lar, do amor?

 

Por mais votos de que não,

Às vezes terá de ser:

- Tão embotados te são

Teus sentidos para ver!

 

 

22 – Sucesso

 

Sucesso? Olha que o maior

É  de dar, de dar amor.

 

Não o Amor de letra grande,

Antes o do dia-a-dia,

Onde cada nada mande,

Que aí tudo principia.

 

Pouco a pouco, gesto a gesto,

Tarefa a tarefa, assim,

A cada palavra empresto

Soma de princípio e fim.

 

 

23 – Primeiro

 

Sonhos do primeiro amor,

Sempre um homem é criança:

Brinca ao eco do sol-pôr

Feliz de ouvir se lhe opor

Alguém que ele nunca alcança.

 

E a frase que pronuncia

Não vê nunca, extasiado,

Que a repita, dia a dia,

Quem ele bem gostaria

Que estivesse do outro lado.

 

Sempre um homem é a criança:

Busca-se e nunca se alcança.

 

 

24 – Ninharias

 

Um ódio como um amor

Nutrem-se de ninharias,

Tudo serve ao desvalor

E ao valor das fantasias.

 

Aquele que for amado

Nunca de mau nada faz,

Como o que for odiado

De bom nada satisfaz.

 

O pior é que a verdade

Tarde ou cedo contra-ataca

E ao murro da realidade

Nenhuma inocência aplaca.

 

 

25 – Saciado

 

Amor que vem do desejo

Vive apenas de esperança,

De saciado após o ensejo

É que a verdade o alcança.

 

De véspera ser amado

Quem o não é, não dirás?

Um dia após, se a teu lado,

Então é que amor terás.

 

 

26 – Apogeu

 

Ser mãe é descortinar,

Do mundo num apogeu,

Dois sentimentos a par

Que do inferno vão ao céu

Juntos num mesmo fervor:

São eles o amor e a dor.

 

Quem os queira separar

Ainda não percebeu

Que ser mãe sempre é juntar

Tudo o que o mais dividiu.

 

Até que o mundo completo

Nos sirva, um dia, de tecto.

 

 

27 – Jovens

 

Os jovens te compreendem,

Se os tratas com compreensão.

Aquilo que não entendem

É ser por ti humilhados.

Por não serem respeitados

Entram em rebelião.

 

Um lar como um mundo em paz

Vem de quem e como os faz.

 

 

28 – Vias

 

A dor e a dificuldade

Por vezes servem de vias

A um nível de mais verdade

Nas relações que terias.

 

A relação pode ser,

Perante a dificuldade,

A iniciação de quenquer

A maior intimidade.

 

Os fracassos, as rupturas

Dão-nos a oportunidade

De às ameaças escuras

Transmudar em claridade.

 

 

29 – Largar

 

Na vida posso largar

Um indivíduo, um lugar,

 

Mas na memória, no sonho,

Sou alma, de mim disponho,

 

Por aqui vivo agarrado

Às ligações do passado.

 

Quando para trás das costas

As tento jogar, impostas

 

Me são logo em devaneio

Por distracções de permeio.

 

São a ponte por onde ir

De meu passado ao porvir.

 

 

30 – Fuga

 

A fuga a um qualquer apego,

Anelo de solidão,

A procura do sossego,

É o íntimo a que me nego

Na partilha de meu pão.

 

Há um atractivo em fugir

Bem longe da intimidade:

Atrai quem o vai seguir

E o que foge, na verdade,

Gosta de fingir sumir.

 

São jogos de sedução

Mas por trás o que me espreita

É sempre a respiração

Dos contrários em tensão

A que qualquer alma é atreita.

 

Há um tempo para tender

E fermentar a fornada,

Tempo de as broas cozer

E apurar tudo o que houver

Na vida após partilhada.

 

 

31 – Médico

 

Ir ao médico não quero,

Que não quero ser curado

Nem compreendido, pondero,

Nem meu curso haver tirado.

Dum amigo ando cansado

Que teima em aconselhar-me,

Modificar-me num vero

E bem entendido carme.

 

Digo-me que é uma defesa,

Um direito a resistir…

- Se calhar o que se preza

É, no fundo, nem bulir.

E onde me encontro com alma

É afinal neste repouso

Onde reencontro a calma

Que afirmar nem sequer ouso.

 

 

32 – Retrato

 

Vaga luz numa penumbra

Que o quotidiano embaça,

O retrato que deslumbra

É de realidade escassa.

 

Por dentro ninguém capaz

Fielmente se retrata,

Dia a dia é que se faz

No gesto que se desata.

 

Uma palavra, um abraço,

Um jeito de olhar o sol,

E a pegada no que passo

De repente é um arrebol.

 

Vale um homem o que cria,

Quão útil é para os mais,

O que deixa em cada dia,

Um livro, um quadro, sinais…

 

A mais densa realidade

É o valor de tais arquivos

E o que pesa de saudade

No amor dos que restam vivos.

 

 

33 – Regressar

 

Para o amor regressar

O casal tem de assumir

Antes e sem hesitar

Um com o outro o compromisso

De fiéis em comum ir.

Depois, não arde o chamisso.

Se for antes, vai luzir

De novo a chama do lar.

 

Muito embora me palpite

Que ninguém nisto acredite…

 

 

34 – Casas

 

As casas, como as pessoas,

Apresentam a fachada

E escondem sempre as traseiras

Onde muitas coisas boas

Se albergam cada jornada,

Do carácter empreiteiras.

 

São os pequenos quintais

De nespereiras e gatos,

O estendal de roupas brancas,

De toalhas arsenais,

São miúdos, desacatos,

Bolas e paus, velhas trancas…

 

As traseiras, mundo estranho,

Cada qual mais diferente…

Da frontaria, lá fora,

As reixas baixas apanho,

Pudor de ostensivamente

Mostrar-se e mandar-me embora.

 

É que nem a cor das tintas,

Metalizados caixilhos

Ou azulejos lavados

São roupagens que, distintas,

Personalizem nos brilhos

Os indivíduos tratados.

 

Falta-lhes aquela vida,

A candura da pureza,

As linhas mais verdadeiras

Que qualquer pessoa olvida

Mas que são o que mais preza,

- A verdade das traseiras!

 

 

35 – Jardins

 

Os jardins são como os filhos,

Os filhos, como os jardins.

Aos dos demais vejo os brilhos,

Demarco-lhes os confins,

 

Nada, porém, se equipara

À alegria e ao prazer

Que nos nossos se depara

De em frente vê-los viver.

 

Só neles mora, em verdade,

Deveras felicidade.

 

 

36 – Aprendemos

 

Aprendemos com a idade

Toda a gente a compreender.

Embora nos não agrade

Tolerar nem suportar,

Findamos a adivinhar

Defeitos quantos houver,

Fraqueza, a mais singular…

 

Uma lágrima, um sorriso,

Eis-nos logo a partilhar.

 

A escutar com mais juízo

Devíamos aprender,

Como se um búzio colado

Aos ouvidos nós tivéramos,

O mar distante e assombrado

Da dor doutrem marulhando

A ouvir, como se houvéramos

Das gaivotas dentro o bando

Com toda a branca magia

Que outros mundos anuncia.

 

 

37 – Abelhinha

 

Quem dera ser a abelhinha,

Flor a flor provar o amor,

Ora numa, se adivinha,

Ora nas mais a me pôr!

 

Pau de pólen, quem me dera

Ser das abelhas querido:

Quando uma o chupar quisera

Logo as mais se lhe hão seguido!

 

Que sorte a da borboleta

Do jardim por entre as flores:

Sem compromisso nem meta,

A todas prova os amores!

 

 

38 – Gratuitidade

 

O valor da vida velha

Vale da gratuitidade,

Um olhar outro aconselha

Que não é venalidade.

 

Não é só de actividade

Que a vida é feita ou trabalho,

Tem maior complexidade,

Vale o sabor do que valho.

 

Velhice é sabedoria,

De conviver o prazer,

A raiz que evocaria

De antanho quem é quenquer.

Não dá lucro nem tem preço,

Como o amor, como a amizade,

Mas é o metro em que me meço

E me traço a identidade.

 

 

39 – Oportunidade

 

Temos a oportunidade

De hoje mudar de cultura.

A cultura do inimigo

Bloqueou a Humanidade

Dos ódios na sepultura.

A da aliança de amigo

Promete outra conjuntura,

Traz vislumbres dum abrigo,

É desafio, aventura.

 

Mais difícil a amizade

É, porém, de alguém viver

Do que o ódio que o invade

Do inimigo que eleger.

 

 

40 – Formosa

 

Formosa, por mais formosa,

Alimenta só a vaidade

De algum marido que a goza

Se ele vir-lhe a identidade.

 

Que o tempo respeita às vezes

As belas feições da esposa

Mas os olhos vão, soezes,

Na poesia ler prosa.

 

Ficam dos tempos primeiros,

Não a luz que incendiou,

Iluminou mil sendeiros,

- Ficam as sombras do voo.

 

 

41 – Marcas

 

Põe lá marcas conhecidas

Que o leve a sentir-se em casa:

O turista quer guaridas

E a lareira com a brasa.

 

Viajará para sentir

Que, após tudo viajar,

Enfim tem de concluir:

Não saiu nunca do lar.

 

E tu farás, pelo inverso,

Concluir a quem lhe apraza

Que o mundo, à frente e no verso,

É deveras nossa casa.

 

 

42 – Regras

 

Estabelecer as regras

Como aplicar os castigos

Se, infringidas, as reintegras,

A todos nos ergue abrigos.

 

E é meio caminho andado

Para teu filho escapar

Ao anzol que lhe anda iscado

Para, ao desvio, o caçar.

 

 

43 – Ouçam

 

Que os pais não falem sozinhos!

Que os filhos atentamente,

Entre penas e carinhos,

Ouçam, que será um presente!

 

Poderão muito aprender

Sobre o que cuidam das drogas,

E ajudam a atar as sogas

Que os bois prendem de quenquer.

 

A falar sós como loucos

Como ajudam a evitá-las,

Às drogas, por mais que poucos

Haja modos de arranjá-las?

 

 

44 – Converse

 

Converse com os seus filhos

Do que têm a dizer,

Dos sonhos e dos sarilhos,

Dos medos que atam quenquer.

 

Estabeleça padrões

De comportamentos certos

E de inçados de senões,

Sempre os tenha a tal despertos.

 

E leve em conta que aprendem

Eles pelo exemplo mais

Que pelos gritos que acendem

Fogos fátuos canibais.

 

Ame, apoie ou elogie,

A criar-lhes auto-estima.

Dê-lhes algo que se avie

Do labor que o dia encima.

 

Participe-lhes na vida,

Informe-os da perda e risco,

Que o silêncio não colida,

Quando os protege no aprisco,

 

Contra a funda pretensão,

Que lhe não inverta o intento:

Nunca o calar seja, não,

Forma de consentimento!

 

 

45 – Meio

 

Chegar ao meio da vida

Eterno é ter um Verão

Com a praia merecida

Do amor a aloirar no chão.

 

Quem me dera ser teu sol,

A bronzear em beijos ternos

Tua pele onde o arrebol

Me dás dos dias fraternos!

 

Quem me dera ser teu rio

Onde a nadar refrigério

Para o calor e o fastio

Encontres no meu mistério!

 

 

46 – Trepar

 

Nenhum casamento vem

Com todas as garantias,

É de entrar e crer que tem

Pernas de trepar os dias.

 

Saber que é tal que se quer

Na riqueza e na pobreza,

Para o que der e vier,

Seja em feiura ou beleza,

 

Do divórcio fecha a porta.

De vez fica a vida mouca

Ao que ela tiver de morta,

Que sempre nos sabe a pouca.

 

 

47 – Brinquedo

 

Não posso brincar contigo.

Entrego-te este brinquedo

Que diz que sou teu amigo.

Anda lá, não fiques quedo,

Desata a brincar e a rir,

Senão eu morro de medo

De isto não me substituir.

 

Que é que importa a quantidade

Dos brinquedos que se dão

Quando é o afecto e a atenção

Que dão singularidade,

Marca duma relação?

 

Não substitui um brinquedo

Aquela mão que emparceira

Pais e filhos no segredo

Duma alegre brincadeira.

 

 

48 – Mercantil

 

A estrutura mercantil

Valores comunitários

Mina, expulsa do redil,

Laços não quer solidários.

 

Os limites da moral

Afrouxa, que é uma rival.

 

Os valores sociais

São a preocupação

Com outrem, com os demais,

Comigo numa união.

 

Pertenço à comunidade,

Sou membro da humanidade.

 

Seja família ou nação,

Uma tribo ou um país,

Sempre prevalecerão

Seus direitos de raiz

 

Sobre o interesse egoísta

Que em cada qual ainda exista.

 

Só que o reino do mercado

Jamais é comunidade:

Todos defendem seu gado

Do vizinho que o invade.

 

Os escrúpulos morais

São estorvos cruciais

 

Num mundo-cão onde todos

Se entredevoram famintos.

Assim, não há mais engodos

À moral nestes recintos.

 

 

49 – Arbítrios

 

Princípios fundamentais,

Quando em geral ignorados

Por conveniências fatais,

Arbítrios acrisolados,

 

Trazem desorientação,

Desejo de disciplina,

Tirana governação:

Cada qual a tal se inclina.

 

Jamais a estabilidade

Pode manter-se a não ser

Que adiramos de verdade

Às normas-base que houver,

 

Que sirvam de fundamento

À comunal convivência,

Qualquer que seja do evento

A dorida consequência.

 

 

50 – Gesto

 

No meio competitivo

Do mercado, quem dos mais

Sentir o gesto aflitivo

Tem desvantagens reais.

 

Vergados pela amargura

Ficam logo condenados,

Menos êxito se augura

Que aos sem moral empenhados.

 

Sendo assim, é que os valores,

Por selecção natural

Adversa nestes pendores,

Vão extinguir-se, afinal.

 

Quem escrúpulos não tem

É quem vai correr à frente…

- É o aspecto que refém

Tem o mundo à mão e tente.

 

É o que é mais preocupante

Num mercado que no mais

Nos puxa para diante:

- Nisto anula os bons sinais.

 

 

51 – Voz

 

Os interesses comuns

Não têm voz no mercado.

Das empresas é visado

Não ter empregos nenhuns:

Quando empregam, o que visam

São lucros de que precisam.

 

Mesmo em ramo de saúde

Empresas não salvam vidas,

Tratam, mas não por virtude,

Para lucrar nas medidas.

 

O valor comunitário

Nada vale em numerário.

 

Se então é mercado livre,

Deus nos livre, Deus nos livre!

 

 

52 – Canto

 

O canto do encantamento

Atrai para o devaneio,

A terra do sonho cheio

Dos fados do chamamento.

 

E cantiga de embalar

Devém breve o mundo inteiro,

Alma no dia leveiro

Frenesins a moderar.

 

E as almas então desatam

Do chão a desabrochar,

Tanto a se revigorar

Que em meu peito o cosmo acatam.

 

 

53 – Implica

 

Nada implica nem requer

Que o mundo de encantamento

Que uma criança prefere

Seja fútil sopro ao vento

Em que não reste elemento

A que se agarre quenquer.

 

O saber duma criança

Sabedoria genuína

Será mais do que se alcança

E a brincadeira em que atina

É de arte obra bem mais fina

Que a do labor que nos cansa.

 

Mundo animado em que habita

Afinal tão verdadeiro

É como aquele em que hesita

O astrónomo o tempo inteiro.

Mas cremos só que é certeiro

Educar no que este cita,

 

Nada temos que aprender

Com as crianças ignaras.

Se encantado um mundo houver,

Não são em tal caso raras

As lições então mais caras,

Que são as que a infância der.

 

Aulas sobre o que mais sabem:

Brincadeiras e magia,

Animismo… Nelas cabem

Sonhos que não haveria

Nesta cultura vazia.

- E oxalá não mais acabem!

 

 

54 – Quadro

 

Olhando um quadro à distância

Vejo o todo constituinte,

A cor é vida, elegância,

Translucidez do requinte.

 

Enquanto de perto o vejo,

Outro é o tipo de magia,

As marcas claras, o arquejo

Das mãos lendo a fantasia.

 

Obra de arte a revelar

No trabalho feito à mão

O que presente há-de estar:

O fantasma do artesão.

 

Evocado este fantasma,

Quando o tornamos presente,

O trabalho então nos pasma

E encanta, luminescente.

 

 

55 – Única

 

Das almas necessidade

O lar única não é,

De casa sair a pé

Lhe equivale em prioridade.

 

Do lar encontrar fragmentos

No acaso de hotéis, barracas,

Ocorre em nossos intentos,

Que o lar buscas onde atracas.

 

Pois, tal como as tartarugas,

Carregamos casa às costas,

A um lar móvel passo estugas

Que a teu imo fundo encostas.

 

Localizado em recesso

Das almas na profundeza,

De dons infindos, de excesso,

Deste lar jorra beleza.