QUINTO  ITINERÁRIO

  

ATO  IRREGULAR  OS  TRAÇOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 264 e 331 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

264 – Ato irregular os traços

 

Ato irregular os traços

De união entre quenquer,

A Humanidade que houver

Ou do mundo os embaraços.

 

Quer

Os laços

Nos configurem os braços,

Quer a fronteira que o mundo impuser.

 

No verso quebrado

Dou-me conta do traslado

Da surpresa inatendida.

 

Desencontrado,

Encontro-me, afinal, configurado

Por quantos prós e contras são minha medida.

 

 

265 – Ruínas

 

A presença de ruínas

Faz mais por uma comunidade

Do que muita novidade.

Quando nelas te fascinas,

És a criança

Que adora por lá brincar

Mil sonhos, na magia do lugar,

És o turista

Que ali alcança

Lavar a vista,

Trocar de pista

De dança

Diante do mundo em que se alista,

Em que invista,

Mas que porventura o cansa.

 

As ruínas são o vazio

Da função e das gentes de antanho

Onde as águas que te curam o fastio

Se acumulam para teu ganho:

Preenche-lo de espanto e fantasia,

Evocando o passado

Que por ti revive neste dia

Magicamente acordado.

 

As ruínas são o encanto de que pasmas.

Quando as saboreias,

Acreditas, sem peias,

Nos fantasmas.

 

Desces às matrizes:

Em lugar de ter ideias,

Mergulhas nas raízes.

 

Mais do que nas que houver ali:

- Nas que tens dentro de ti.

 

 

266 – Ciúme

 

O indivíduo competente

E autoconfiante

Vive invariavelmente

Do ciúme distante.

 

Qualquer ciúme é sintoma,

Como a postura despótica,

Da insegurança neurótica

De quem mora na redoma.

 

Quem é competente

Primeiro confia nele

E, depois, de toda a gente

Acaba fiando a pele.

 

- Será quem, descontraído,

Finda ao mundo a dar sentido.

 

 

267 – Rápido

 

Há casamentos

A falhar a toda a hora

E todos lhes escapam aos tormentos

Sem demora.

 

Se tão rápido os não ignoraram,

Talvez

Os casamentos não murcharam

Tanta vez:

 

A dor,

Quando apunhala o coração,

Desafia a apurar o amor

Com engenho e criação.

 

Então,

Para que um amor reviva,

A falha maior

É a da imaginação

Criativa:

Ela é que tem de renovar a fogueira

Mal o frio se abeira.

 

 

268 – Chama

 

A chama

É despoletada pela faísca inicial

De quem ama.

 

Cuidado, para que vingue:

O principal

É reparar que a chama se extingue.

 

A todo o momento

O pacto

Terá de ir, para além do sentimento,

Ao acto de que, de facto,

O alimento.

 

Apenas deste modo,

Por fim,

Não perderei o denodo,

- Não me perderei de mim.

 

 

269 – Ritmo

 

Ignoras ainda o amor…

Pouco depois

Dele sofrerás a dor,

Pois

É o único modelo

De aprenderes a conhecê-lo.

 

Então,

A pouco e pouco

Encontrarás do coração

O ritmo louco.

 

E terás mão

Em ti

Ou não:

Desafiar-te-á doravante o frenesi.

 

Não escaparás:

Ou te constróis,

Ou te destróis,

- Perdeste definitivamente a paz!

 

 

270 – Libertino

 

Libertino

Que deseja uma virgindade

Nem repara, cretino,

Na eterna homenagem que assim há-de

Propor,

Implícita na indecência:

- O amor

À inocência.

 

 

271 – Hóspedes

 

Os hóspedes divinos

Que murmuram nas águas, nas folhas e no vento

Só visitam os corações ladinos

Que se foram purificando, elemento a elemento.

 

No íntimo solitários,

Por dentro deles mergulhados bem no fundo,

São quem vive consigo, afinal, solidários

Os mistérios do mundo.

 

 

272 – Namorada

 

É a vida uma namorada:

Imaginamo-la e, só de imaginá-la,

Amamo-la, fada

Vestida de gala

Pela fantasia.

 

Vivê-la? Nem é preciso tentar!

Como um garoto atraído pela magia,

Também

À vida te hás-de, impenitente,

Lançar.

 

Não, não é de repente

Que o sonho irás degradando aqui, além,

Paulatinamente…

 

Dez anos depois,

Nem o reconhecerás.

Renega-lo, vives em paz,

Como os bois

Que as ervas pastam do presente

Donde todo o amanhã murchou ausente.

 

Quando te casares com a morte

Como é que a imortalidade

Há-de vir-te da bondade

Da consorte?

 

 

273 – Sozinha

 

Viverás sozinha, viverás.

A mulher vive sempre só,

Por mais capaz

Que seja o homem que ela erguer do pó.

 

Por mais que vivas com ele,

- É a tua dita e desdita –

Ficarás sozinha

Por dentro de tua pele.

E ninguém (acredita)

Fora de ti o adivinha.

 

 

274 – Demora

 

Se não entender agora

Vai compreender amanhã:

A criança demora

Mas não é nunca terra vã.

 

Quanto ouve ou vê

Será semente:

Logo cresce, cresce até

Que dá fruto mais à frente.

 

É da casta

De mais que tu aprender,

Mais que quenquer:

- Apreende tudo e basta!

 

 

275 – Adormece

 

Quando uma criança adormece

Em teus braços,

Logo o mundo te parece

Um recanto de paz

E de abraços.

 

O que um sono faz!

Dele nos rastros

Pendura de certeza os astros.

 

 

276 – Atarefado

 

Serás pai atarefado demais

À espera dum filho

Que aporte em teu cais,

A prender-te ao atilho

Que te salve, dia a dia,

Da sovinice

Da melancolia

E da velhice.

Um filho que te perca de vez

Da maldita grandeza em que crês.

Que te liberte para a infância

Da infinita distância!

 

 

277 – Torrente

 

O melhor da raça humana

É a criança,

Torrente inesgotável donde mana

Amor, alegria de viver,

Deslumbramento, confiança…

Contemplam o mundo no espanto de ser,

Cheias de frescura.

Do adulto experiente sem o preconceito,

A tacanhez, a usura,

A insensibilidade nem o despeito.

 

Já todos o fomos,

Todos gostaríamos de o voltar a ser…

- Que é que no meio entrepomos

Para a redenção da Humanidade se perder?

 

 

278 – Discípulos

 

Um mestre aos discípulos prejudica

Se permanente deles ao lado ficar.

Homens preparar implica

Que ele os há-de abandonar,

Ou, dele apenas as pegadas

Limitados a seguir,

Próprio não terão devir,

Doutrem sempre em caminhadas

Andarão a progredir.

E deles nunca mais terão estradas.

 

Um jardim não crescerá deveras

Duma grande árvore se debaixo o dispuseras.

 

 

279 – Incurável

 

O tempo cura e supera

O incurável que nos desespera.

 

Ou porque a vítima sobrevive

Ou porque pelo mundo fora

A aventura de novo cative

Quem por ele além ainda se demora.

 

Como estar, porém, presente

A quem precisar de nós?

Às vezes é sem palavras

Que atamos laços e nós:

Num abraço pertinente

A quem teu regaço abras,

Num toque gentil,

Naquele ombro onde chorar,

Num coração entre mil

Que se mantém solidário,

Fiel, a par,

Num ouvido atento…

 

- Embora solitário,

De algum destes nadas por fim vai soprar o vento.

 

 

280 – Trocando

 

Outrora podias buscar a solidão

Na selva, no mato, no bosque, na pradaria…

Perseguido, o senão

É que terias de mudar de fantasia,

Trocando teu chão.

Hoje, não.

Hoje tens de jogar com os mais.

Depois

Pode ser que de ti já nem haja sinais,

Dividido como estás sempre por dois.

 

 

281 – Duro

 

Em vez do trabalho duro

Para vencer, tens trabalho

Duro para te casares

Com a filha do patrão.

Teu apuro

Ata o negalho:

Vences para te vingares

Do custo da decisão.

 

O melhor ficou lá fora,

Coisa de menos valor

(Ai como a vida demora!):

- Que é que vós fazeis do amor?

 

 

282 – Represada

 

Sexo, amor…

Como água represada os sentirás,

A pressão cada vez maior,

A obrigar a lançar-te atrás

Dos pequenos canais que encontra,

Da ridícula abertura,

Duma refechada e bela montra,

Tudo arrastando contra

A tortura,

E apagarás terras, sóis, estrelas…

 

- Para no fim acabar

Num magro gotejar

Incapaz de quaisquer sequelas,

Nem um seixo há-de mover.

 

Dás contigo a matutar

Como é que um fio de gotas

Sem vigor, a esmorecer,

Pôde a força ter que anotas…

 

Princípio primeiro e eterno,

Em meio a teu tormento

Não aniquilas o firmamento,

- Sofreste-lhe o governo.

 

 

283 – Apreensão

 

A apreensão, eis a chave do domínio.

Avalias qual o grau dela num homem,

Predizes, infalível, incline-o

Ela mais ou menos, onde somem

As fronteiras de nele confiar.

 

Induze-la após artificialmente:

Ela existe a partir dum limiar,

Basta o estímulo, ei-la presente!

 

Depois é só dobar o rolo:

Maior a apreensão, maior o controlo.

 

Humana condição

De organizar,

Quão mais perfeita a organização,

Mais nos acaba a desumanizar.

 

Ligar de mão na mão

Não seria melhor alternativa

Para que no Homem o coração

Viva?

 

No percurso

Então aquela ficaria

Como a via

De recurso

Para quem, impenitente,

Teime em ficar do Homem ausente.

 

A questão

É se é regra ou excepção…

 

 

284 – Espacial

 

De fibra no teu fato espacial,

Com a mais avançada técnica industrial

De vácuo quase absoluto,

Tecnologia de ponta no produto

Que te envolve de raiz,

Tu, teu dia inteiro, tua vida,

Tudo imerso na magia envolvida,

- E tu nem sequer és feliz!

 

Porque não podes sair

Da espacial fibra do fato

Fabricado,

Esterilizado,

Para qualquer uso do porvir

Em acto,

Porque não és conhecido,

Porque não conheces

- Porque não podes tocar, como é devido,

Qualquer outro ser humano.

 

E arrefeces, cada vez mais arrefeces,

De desengano em desengano…

 

 

285 – Catre

 

É curioso como só descobres

Até que ponto estás apaixonado

Quando no catre da prisão

Te cobres

De solidão,

Após as grades se haverem fechado

Sobre ti!

 

Depois,

Não terás alibi

Para ignorar

Quando, à luz dos sóis,

A Primavera em ti cantar.

 

Terás de recordar, terás de recordar!

Ou arriscas-te a que outros arrebóis

Por tuas mãos se irão de vez apagar.

 

 

286 – Más

 

As coisas más

Nunca são tão más assim,

Verás,

Basta poderes convidar, ao fim,

Alguém que conheces, de quem gostes,

A partilhá-las contigo.

Em regra, por melhor que apostes,

Não lograrás colher abrigo,

Que ocupados os mais andarão demasiado

A sofrer por seu lado

E a tentar tocar-te às janelas

Para com eles ires sofrê-las,

Às dores que os consomem.

 

Quando viável, é consolador

Ver o mundo inteiro desfilar perante um homem

Escondido atrás da esquina,

Sem mesmo sequer supor

Aquela retirada clandestina.

 

Resta que é duro para um amigo qualquer,

Quando me embosco:

- É detestável vê-lo sofrer,

Mesmo connosco.

 

 

287 – Sociedade

 

A sociedade

Busca evitar românticos amores.

Quando o não pode, persuade

A destruí-los.

 

Nos maridos, tantos são os terrores

A persegui-los,

Não vá uma esposa traí-los,

Ainda mais por amor

Que não serve para comprar nada,

- Que o fervor

É de cruzada!

 

Nas mulheres

Financeiramente bem casadas,

Que por troca dos haveres

Foram elegantemente compradas,

Enganadas,

É o ódio supremo:

Deram a confiança

A sacrificá-lo,

Ao amor, para em troca terem segurança.

O seu demo

É o abalo

De tanto se detestarem

Que não suportam os que ao invés se amarem.

 

Se um amor pode ser feliz

Elas e os maridos viveram em vão.

Aventuras de adolescente cariz,

Nos anos da ilusão,

Talvez.

Após a idade da tolice

Mataram qualquer sonho que surdisse

De vez.

 

Então

Odeiam

Do fundo do coração

O fogo sagrado que os demais ateiam.

 

 

288 – Admitiste

 

Todo o mal principiou

Quando admitiste que a amavas.

Quando na trela pegou,

Segura do que lhe davas,

Pôde vir a forjar tudo

O que de ti pretender:

Serás sempre rei do entrudo

Que ela quiser.

 

Homem livre já não és

E toda a força bravia,

Poder e orgulho que havia,

Tombou de vez a teus pés.

 

Todo o mal principiou

Por apenas tu voares

E por nunca reparares

Se ela também soltava o voo.

 

Se apenas tu pela altura

Planas,

Ufano,

E ela no chão pela espia te segura,

É fatal que um dia te danas

E caro pagarás por teu engano.

 

 

289 – Pomo

 

Perdoar a quem amamos,

Como,

Se, por mais que sejamos servos destes amos,

Adoramos

O veneno do pomo

Com que nos vitima?

E tem sempre razão,

Ainda por cima!

 

Não,

Não temos de perdoar

A quem amamos.

Perdoamos

A quem se não amar.

 

Se a própria ferida

Com que o amor nos visita

É bendita,

Como é que a absolvição é requerida?

 

 

290 – Fim

 

Dizes que o amor é o fim.

Mas o amor não é o fim.

 

Ninguém diz para onde ir depois.

Ainda se pudesses parar,

Pararem os dois,

Se pudessem deixar de criar

Depois…

 

Uma criatura humana, porém,

Onde há capaz de parar?

De deixar de criar

Também?…

Onde, sem deixar de ser alguém?

 

O amor não é o fim,

É bom que te avises!

Contigo condizes

Assim.

 

 

291 – Ilusão

 

Se fores capaz de conservar uma ilusão

Ainda serás capaz de amar.

De seres honesto o senão

É que toda a ilusão te irá matar.

 

Pelo seguro,

Repara além do muro

Com o olhar do coração.

 

- E solta as asas para voar!

 

 

292 – Realidade

 

Com realidade ou sem realidade,

Se podes manter uma ilusão,

Podes amar.

Se manténs uma verdade,

Então

Amas, amas com o coração

A pesquisar…

 

Do vento

As vozes

Afirmam que o casamento

É o quebra-nozes

Da ilusão.

 

Será ou não, será ou não…

 

A magia

Que entrevi

É que o real por trás da fantasia

É o amor de si:

Tão estranho que, para ser fecundo,

Dá a volta ao outro, dá a volta ao Mundo

Até chegar a ti!

 

O amor é um sideral abraço

Do tamanho do cósmico espaço

E sois isto, depois,

Apenas vós os dois!

 

 

293 – Ou

 

O amor ou morre de fome

E numa sombra devém

Que lenta se consome

Pelo tempo além

 

Ou jovem morre e permanece

Como um sonho

Onde no jardim nunca esquece

A semente que disponho.

 

Amor que se não consuma

Fica para a eternidade,

Intacta pluma

Feita de imponderabilidade.

 

No imaginário

É que atino

Com o Santo Sudário

Divino.

 

 

294 – Trivial

 

Tristeza fundamental

Da vida

É a de ser tão trivial

Que inteira leva a mudar

A exacta medida

De às coisas me afeiçoar:

Dá o tempo apenas bastante

De se apaixonar quenquer

Pelo que logo adiante

Tem de perder.

 

 

295 – Condição

 

A felicidade

Do espírito é uma condição

E não

Das circunstâncias produto:

- É da intimidade

Um fruto.

 

 

296 – Lar

 

Um lar,

Árvore que somos nós

De raízes na pátria a mergulhar,

Com o tronco emalhado de cipós

A crescerem o mais que formos capazes,

Um lar,

No que faço, no que fazes,

Serão vergônteas de afazeres e alegrias

Nas copas onde chilreiam os dias.

 

As frutas são as contas que prestamos

De benesses ou castigos

Após quanto cultivamos

Pelos ramos

Onde penduramos os abrigos.

 

 

297 – Descuida

 

Como o homem descuida os amigos

Enquanto vivem na terra!

Como a consciência o aguilhoa nos abrigos

Entre os perigos

De quanto o aterra!

 

Os amigos apenas não lhe esquecem

Quando desaparecem..

 

Então,

No vazio,

É tarde demais

Para partilhar ao serão

O desafio

Dos sinais

E a solidariedade,

Timbre distintivo da amizade.

 

Dos amigos a ausência

Marca a fronteira final entre a razão

E a frígida imensidão

Da demência

Que nos acua,

Fingida,

À esquina de cada rua

Da vida.

 

 

298 – Atilhos

 

Os sinais

Por onde vais

Ora são

Continuidade

Ora são contradição

Dos atilhos:

A avareza dos pais

Prepara a prodigalidade

Dos filhos.

Vão-se manter

Avaros

Apenas os que não terão reparos

A fazer.

 

 

299 – Mãe

 

Há quem diga que uma mãe

É apenas uma operária

Não especializada…

- Há quem

Na lida diária,

Não veja como não custa nada

Dar banho a uma criança

Contorcionista que dança!

 

Há quem diga que se sabe

Como ser mãe por instinto…

- Não lhe cabe

Aguentar o cinto

Duma criança de três anos

Levada às compras: aos enganos!

 

Há quem diga que mãe boa

Jamais grita com os filhos…

- Nunca viu um filho, à toa,

Atirar a bola dos sarilhos

À janela de adivinho

Dum vizinho.

 

Há quem diga que a mãe pode

Nos livros sempre encontrar

Resposta que não lhe acode,

Qualquer filho ao educar…

- Nunca viu um filho, por um triz,

Enfiar feijões no nariz.

 

Há quem diga que uma mãe

Dela sempre adora os filhos…

- É de quem

Uma cólica nunca teve de acalmar

Do alvor antes dos brilhos,

O bebé pondo a mamar.

 

Há quem diga que uma mãe

Logra fazer o trabalho

De olhos fechados tão bem

Como escondendo o baralho…

- Há muito quem não tentou

Bolinhos de chocolate

Distribuir, de fada em voo,

À brigada que se abate

De monstros vociferantes

A arrasar tudo em instantes.

O difícil há quem liga

De ser mãe à dor de parto…

- Não se obriga

Ao dia tenso, farto

De ânsia:

O primeiro do jardim de infância.

 

Há quem diga: tua mãe

Vê só que a adoras, não convém

Aborrecê-la afirmando-o…

- Desde quando?!

Há tanto quem

Não seja mãe!

 

 

300 – Adolescente

 

Adolescente

É querer-se independente,

A gerir a vida dele

Por dentro da própria pele.

 

Porém, requer

Alguém de quem dependa afectivamente

E que o oriente.

E uma autoridade qualquer

Que sobre ele impenda,

Para que o liberte

E o defenda.

 

Uma autoridade assim,

Tal que o assegure e o desperte

Até ao fim.

 

Adolescente é a ilusão

De viver no meio termo

Entre a multidão

E o ermo.

 

 

301 – Calcanhar

 

O amigo que te levar

Ao que é prejudicial

Não é amigo, é um calcanhar

A pisar, a pisar

O que em ti é inicial.

 

Nem te demonstra amizade

O amigo quando ele for

Cúmplice daquilo que há-de

Em ti se te contrapor

Ao que é tua identidade.

 

Não abras a tua porta

Ao amigo disfarçado

Quando somente lhe importa

Pôr seu pé na tua horta,

Que apenas é um mascarado.

 

Põe-te ao abrigo

Deste que então mais não é,

Ao explorar-te a boa-fé,

Que, afinal, teu inimigo.

 

 

302 – Demais

 

Proteger demais os filhos

É seguir por maus caminhos.

Há que ir soltando os cadilhos

Da liberdade adivinhos

Vigiada

Cada vez mais à distância..

Ou nunca mais há largada

Do cais seguro da infância.

 

Os jovens hão-de aprender

À própria custa se os riscos

Forem sendo controlados.

Breve se irão defender

Dos viscos

Que à pele teimam colados.

 

É, porém, tão negativo

O pai superprotector

Como quem é recidivo

Em demitir-se do amor

Jogando, por veleidades,

As responsabilidades.

 

Este quer jogar à sorte

O que outro quer ter à mão.

Aos dois os aguarda a morte

No desvão.

 

 

303 – Controlar

 

Descobrimos uma e outra solução

Para compreender e controlar

O coração.

 

No fim nada presta.

E, dele perante o império,

Só nos resta

Honrar-

-Lhe o mistério.

 

 

304 – Coração

 

O coração

É a via:

Relação,

Emoção,

Paixão

Nos húmus da fantasia.

 

E um grito.

E um delito

Bendito.

 

E tudo é religião

A arrotear infinito

No chão

Da alegria.

 

E tudo é poesia,

Do cantochão à magia

Da incarnação:

Deus se plantaria

Torrão a torrão,

Dia a dia…

 

- O coração

É a via!

 

 

305 – Arena

 

A educação é uma arena

Em que diariamente

Se encena

Fuga de preservação,

Recusa por honestidade,

Enquanto a mente

Pressente

Da virtual lição

A luminosidade.

 

Jogo do gato e do rato,

Cada dia mais me enredo

No medo

Quanto mais o meu dia desempato.

 

Aluno, Professor,

Qual é o gatuno,

Quem mais morre de temor?

 

- Entre a entrega e a fuga

É o Homem que lento madruga,

Enquanto, por entre as malhas da contradição,

Hesitantes vamos dando a mão.

 

 

306 – Atar-lhes

 

O prazer da intimidade,

O prazer da solidão…

- A felicidade

Vem de atar-lhes a união.

 

Um mais que outro pese embora,

É questão de ponderar

Que espessura em cada hora

Cada guita deve atar

No nó com que entrelaçar

O equilíbrio que elabora.

 

Da tensão brota em geral

A resposta original:

Fico unido e separado

Em instável equilíbrio,

Em tudo e por todo o lado.

- E nisto não há ludíbrio.

 

A melhor ponderação

É cada qual proteger

Dentro do outro a solidão

Quão mais íntimo viver.

 

 

307 – Conflitos

 

Em questões do coração

Resta apenas permitir,

Para além duma intenção,

Que venham a surgir

Mágicas energias e factores

Que resolvam os conflitos,

A incongruência, a contradição,

Enquanto aos renovados amores

Traremos, aflitos,

A esperança e o desejo,

Porventura dos limites já contritos

Do que nunca vês nem nunca vejo.

 

Em questões do coração

É sempre doutro mundo a lição.

 

A razão, envergonhada,

Fica humilde na berma da estrada.

 

 

308 – Discute

 

Um casal feliz

Discute hora a hora,

Por um triz

Não se devora!

 

Casal que não discuta, aflito,

É um mito.

 

As divergências não são problema:

O casal aguenta ou não aguenta

Conforme o modo como as enfrenta

Por sistema.

 

Se for para magoar,

Adeus então, lar!

 

Se for para encontrar o trilho

Comum,

Cada vez mais a broa de milho

Serão dois somados num.

 

 

309 – Conflito

 

Qualquer conflito

Matrimonial

Requer este quesito

Fundamental:

- Cada qual

Reconhecer a própria responsabilidade

No problema.

 

Ninguém progredir há-de

Sem esta porta da verdade

Tomar por lema.

 

 

310 – Primeiro

 

Primeiro cultivavam

E comiam,

Cosiam

O que envergavam,

Partilhavam

Aquilo de que em comum viviam…

 

Ainda não viera o privilégio

E a classe,

A santificar o tédio régio,

A inércia, face

À  cor do sangue, ao laço de família.

 

Que pasmoso capricho

Rebaixa do trabalhador a vigília

Alteando os ociosos do altar ao nicho,

Mercê que lhes alcança

Meramente uma herança!

 

 

311 – Dias

 

Não me faltam dias lentos e compridos.

Saudades

Tenho é do tempo de Verão,

Da ilusão

De que o Sol parou em tempos idos

E o futuro, no Hades.

 

Nas tardes de Verão,

Por magia,

Então

Ninguém envelhecia.

 

Nem as crianças cuidavam em ser

Adultas,

Nem os adultos se perdiam em estultas

Preocupações de envelhecer.

 

Precisas de longas férias escolares

Para à terra os filhos atares,

A evitar que escapem com ânsia

Depressa demais da infância.

Com tempo bastante,

Pode ser que talvez

Perdurem entre os felizes que por diante

Transportam Verão até à adultez.

 

 

312 – Solidão

 

Que será uma solidão?

Ausência de companhia,

Abandono partilhado?

Negar a mão

Que se erguia

Ao lado?

Ver o chão

Negado

Onde, dia a dia,

Cada sonho, após murchado,

Renascia?

 

- Chaga do flanco

Donde a semente

Arranco

De ir em frente,

Sentado neste meu banco

Nem sequer serei mais gente!

 

 

313 – Grangeia

 

Ensina-os a evitar sarilhos,

Sobretudo,

A atar solidários cadilhos

Quando embora fiques mudo,

Grangeia teus milhos

Do miúdo ao mais graúdo:

 

- Educar os filhos

Não é nunca dar-lhes tudo.

 

 

314 – Má

 

Quando a criança fizer

Uma coisa má,

Jamais que ela é má lhe vá dizer,

Distinga desde já

Entre ela e o que faz:

Diga-lhe que mau é um acto qualquer.

A ela deixe-a em paz

Com a certeza de ser amada

Seja lá qual for o desvio da estrada.

 

 

315 – Críticas

 

As críticas de hoje à cultura:

A família a desmoronar-se,

O casamento que não apura

Nem dura,

A amizade entre vizinhos que é um disfarce

E vem sendo postergada,

A natureza que vem sendo devastada…

 

Não logramos manter-nos unidos:

Problema de amor,

De vínculos perdidos…

Se deliberáramos propor

Um mundo encantado,

Para a intimidade em união

Andaria cada qual mais motivado.

 

Recuperaríamos da criança

A ilusão

Que neste frio descampado

Nunca mais ninguém alcança.

 

 

316 – Trocámos

 

Trocámos de corpos, de vida,

De cabeça e de alma:

Tornámo-nos um só e sem medida.

Se, porém, tudo isto nos acalma,

É o delito

Que mais tarde ou mais cedo nos separa:

Ninguém repara

Que para além há o infinito.

 

Cada qual dele era a janela aberta

Para o outro: e afinal ficou deserta!

 

 

317 – Bengala

 

A bengala dá um apoio

E a melhor que sempre temos

Foi aquela que elegemos,

Separando trigo e joio,

Exclusiva de tal fim.

 

Não assim

Com as pessoas que amámos,

Com quem nos relacionámos,

E um dia atingiram o confim

Em que as linhas cortámos.

 

Como é que não gela de fria

A casa vazia

Onde, na relação

Que perdeu a fantasia,

O coração

Esfria?

 

E, quando a bengala se dispensou,

Como encher o vazio

Que ficou

De quem definitivamente partiu?

 

Como é que a solidão

Se enche de pão?

 

 

318 – Casal

 

O casal humano

Eram duas árvores, primeiro.

Veio a cobra e, por engano,

Roeu-lhes as raízes.

 

Então, pioneiro,

O par

Adquiriu novos matizes:

- Desatou a andar!

 

 

319 – Muro

 

Quando é que uma comunidade se avalia

Pela felicidade das crianças

E não pelo muro que não contraporia

Ao fluir de mecânicos inventos

Aos centos

Com que a alegria nunca entranças?

 

 

320 – Brota

 

O encantamento brota de penetrar

Tão fundo no que estamos a operar

 

Que a interioridade abismal nos comove o coração

E, fecunda, desperta a imaginação.

 

Nos abrigos da vida, o afecto

Constrói-nos então o tecto.

 

 

321 – Ecológica

 

Vida ecológica é tratar

Casa, comunidade e natureza como lar.

 

É a intimidaded e cada relacionamento

Que gera o bem-estar dum evento.

 

Ecologia é uma atitude erótica:

Dá proximidade,

União e cuidado na realidade

Caótica.

 

Transformando-a em projecto racional-activista

O cerne dela perdemo-lo de vista.

 

Ecologia

É comungar com fantasia:

Sem comunhão

Perde a razão,

Sem fantasia

Perde qualquer alma no que a animaria.

 

 

322 – Fomenta

 

Conhecer fomenta o amor,

O amor, o desejo de saber.

Um bom cientista,

O amor da natireza há-de conhecer

Como cimeiro valor.

Um bom ambientalista

Tem fome de aprender,

Como refinamento

Do calor

Da união dele à natureza.

No estreito inter-relacionamento,

Não há lugar para a frieza

Da análise distante e da exploração.

 

No fundo desta intimidade

Mora a noção

De que não há ser nem lugar

Na criação

Que não seja parte do cósmico lar

Onde nos bate o coração

E a criatividade.

 

O chão

Donde brota a liberdade,

Matriz primeva de nossa identidade.

 

 

323 – Válido

 

Por que não ver o mundo da criança

Como válido e completo?

Como o que o adulto já não alcança,

Do lar abandonado o tecto,

Esquecida a festa, a magia, a dança?

 

Ele não é o que deixámos para trás

Rumo ao crescimento,

Já que o desenvolvimento

Aquela ingénua, primitiva paz

Não no-la preservou

Nem jamais depois recuperou.

 

- Deveras quem alcança

Devir eternamente criança?

 

 

324 – Apenas

 

A criança vê magia

Sem dificuldade

Onde o adulto encontra apenas funcionalidade,

Sentido prático no dia-a-dia.

 

Faz sentido,

Para devolver o encantamento à vida,

Reavaliar a atitude de olvido

Mantida

Relativamente à infância,

À criança em geral,

Aos meninos do mundo inteiro.

 

Talvez murche a ganância

Perante o principal:

Nosso coração tornar leveiro.

 

 

325 – Evitar

 

Para evitar ir contra a magia

Em nome da aprendizagem,

Dever-se-ia,

Numa primeira abordagem,

 

Confrontar o preconceito

Contra uma vida encantada:

Seriedade exagerada,

Pragmatismo, literalismo sem jeito,

Quem sabe lá se despeito

Da varinha de condão da fada

A que toda a criança anda grudada.

 

Qualquer alma é epicurista,

Busca primeiro o prazer.

 

Não perguntes, o dia em revista:

“Hoje que andaste a aprender?”

Quem do encantamento não desiste

Ao preconceito o não imola,

Insiste:

“Hoje, na escola,

A sério que te divertiste?”

 

 

326 – Redescobre

 

Levar a criança em consideração

Redescobre a vida encantada,

Não a funcional, ordenada,

Tranquila e com legislação,

Mas a prenhe de magia

De que um adulto já nem suspeitaria.

 

Se pudéramos imaginar o conflito

Entre a ordem adulta e o caos infantil

Do bem contra o mal não com o perfil,

Nem do certo contra o errado como um quesito,

Antes como dois estilos diferentes

De viver complementares vertentes,

 

Talvez capazes fôramos de encontrar formas

De incluir crianças em todos os recantos,

Sem sacrificar do adulto os véus e os mantos.

Com crianças a cada esquina da vida, as normas

Inúteis devêm para o encantamento:

É só vê-lo fluir momento a momento.

 

 

327 – Serve

 

Serve as almas de múltiplas maneiras

O preparo da comida:

Ocasião de meditar calmo nas canseiras,

Enquanto descasco e corto legumes,

Mexo panelas, a quantidade certa é medida,

Vigio a fervura e o assado,

Controlo os lumes…

Contemplo cores, texturas e sabores

Enquanto, alquimista, por mim tudo é misturado

E mexido nos exactos teores.

 

Os aromas

Arrancam-nos ao tempo real insensibilizante,

Levam-nos ao lugar doutras eras,

Das árvores do mito são as comas.

A cozinha, a divisão mais vibrante

Dum lar

Em afectos e em esperas,

É um coração a palpitar

De quimeras

Na vida familiar.

 

 

328 – Apelo

 

O lar

É um estado emotivo,

Um lugar

No imaginário onde mora vivo

O apelo da segurança, família,

Protecção, história,

Memória

E a brincalhona quezília

Que por entre os laços reparte

Quem do grupo fizer parte.

 

O sonho e a fantasia

Do lar

Podem indicar caminhos

E acalmar

A ansiedade e a alegria

Enquanto continuamos, adivinhos,

A procurar maneiras

De satisfazer o anseio

E as canseiras

Dum lar

Que jamais do céu nos veio

- Mas que eterno por ali anda a aflorar.

 

 

329 – Maioria

 

De nós a maioria

Constrói a casa de sonho

Dia a dia

Num imaginário risonho,

 

Enquanto dum lado para o outro corremos,

Cuidando do lar onde moramos

Ou enquanto nos encantamos

Com o doutrem que visitemos.

 

Escolher uma tinta,

Reparar uma porta,

A relva aparar,

Adquirir uma mobília distinta,

Limpar o trilho da horta,

Uma lâmpada trocar,

Tudo tem dois níveis de significado:

A necessidade literal daquele cuidado,

E a mais profunda incursão

No mistério de fabricar,

Demão a demão,

A ideia mágica dum lar.

 

 

330 – Tranquilidade

 

A tranquilidade vivida quando

Encontramos o lar

Com o anseio da morte, estranho e brando,

Convive sem se apartar.

 

Raramente

Da maioria de nós

Fica explícito na mente

E recusamos-lhe voz.

 

Mas há um vago tom de saudade

Quando o descanso final

É o voto que nos invade

Principal.

 

Ninguém repara, desta sorte,

Que o lar donde quer repouso

É, pacífico, o da morte

Que, em tal contexto, é de gozo!

 

 

331 – Íntimo

 

Mais íntimo do que o lar

Nada existe

E as almas vão devagar

Germinar dentro o que assiste

Ao coração a pulsar.

 

Sempre é tempo de podar,

Envernizar a janela,

Limpar um tapete ao ar,

Um poema burilar,

Falar com a parentela

Dos tempos de antigamente,

Lembrar alegria e dor

Que o peso têm de gente,

Que os laços prendem do amor…

 

Às almas criamos lar,

Trabalho diário

Que tece lento o calendário

Pronto a nos agasalhar.

O enfoque íntimo cimeiro

É do lar o dom primeiro.