SEXTO  ITINERÁRIO

 

 

 

DO  QUE  DEVIRIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 332 e 383 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

332 – Do que deviria

 

Do que deviria

Entalharei

No verso a nova grei

Que o pendão levantar duma utopia.

 

A magia

Do novo mundo que não sei

Na semente regarei

Que o prometa em qualquer via.

 

Suspeito que vou

Manquejando em verso a vida quanto a sou

Neste rumo a uma terra nunca havida.

 

Vivo enquanto

Nem imagino que descanto

A fortuna a jogar-me desmedida.

 

 

333 – Imprevisto

 

O imprevisto

Pode ser divertimento,

Porventura aduba o espanto.

Será um erro quando insisto,

Momento a momento,

Nos mesmos indivíduos, no mesmo recanto…

 

Caminhar todos os dias

Pelas mesmas frontarias

Acaba por esmorecer

Delas todo e qualquer

Encanto.

 

O pranto

Da vida

É exorcisado à medida

Da nova melodia que nela implanto

E canto.

- Aí vou encontrando saída.

 

 

334 – Feérico

 

Darás o espectáculo feérico e apaixonado

Duma vida

Talhada à medida

Do infinito

E, pouco a pouco, bocado a bocado,

Restringida

A quase nada.

 

Do nobre fito

Fica-te a noite assombrada,

Mais e mais desviada

Daquele esplêndido quesito

A que devera ser votada.

 

Fica teu grito

Na estrada.

Solitário. Finito.

 

 

335 – Tiroteios

 

Os dois campos inimigos

Um do outro os tiroteios

Não vêem dos abrigos.

Crê cada qual que apenas ele tem os meios,

Argumentos,

Direitos e armamentos

Para levar de vencida o rival.

 

Quando percebemos

Que é tudo igual,

Anulam-se os extremos:

Deixas de admirar o atirador,

De desprezar o alvejado,

Ambos são um e outro, conforme o lado

Que queiras expor.

 

Aqui principia

A sabedoria.

Se queres sábio vir a ser

Com uns e outros hás-de romper

Definitivamente:

- Outra será tua frente.

 

 

336 – Salto

 

Darás um salto,

Abraçarás e beijarás tua mãe,

Correrás feito cachorro por todo o planalto,

Pincharás as pedras de basalto,

Colherás a papoila e a cecém.

 

Gritarás de alegria,

Menos da alegria do passeio

Ou da colheita do dia,

Antes da felicidade que te expandia,

A jorrar-te do seio.

 

A vida a alastrar

Sem culpa nem delito,

Para além da floresta, do céu, do mar,

A abraçar o infinito.

 

Bem gostarias,

Nulo

Como te encontras em tuas vias,

Bem gostarias

De atingir o Além num pulo!

 

Eterna criança

Sempre em busca do que jamais alcança…

 

 

337 – Lodo

 

Se cai no lodo o que queres,

Seja embora abismo negro,

Vai salvá-lo, mal puderes.

Se te perderes,

Não serei eu que me alegro,

Serás tu, por o fazeres:

Crescerá nédio

E tanto vive

O sonho a que serves de remédio

Que a ti próprio sobrevive.

 

 

338 – Gólgota

 

Quem teria imaginado

Que o Gólgota deviria

Tão grande pelo mundo desdobrado?

Se do Amazonas a bacia

Soubera do fio de água da nascente

Decerto desistiria,

Da imensidão temente

Que atingir jamais creria.

 

De ser homem o segredo

É que a luz irradia,

O som se expande,

E tudo o que é grande,

A medo

No zero principia,

Como um grito

De quebrada em quebrada,

- E corre do nada

Ao infinito.

 

 

339 – Amarras

 

Quantas vezes na vida

Não temos coragem de cortar

Amarras que, de seguida,

Nos impedem de avançar,

Ir por diante!

Para cada despedida

Quanta noite hesitante!

 

E quantas vezes este corte

É o gesto que separa

A vida da morte!

 

Como a Vida é rara!

 

 

340 – Vã

 

Não te iludas, amanhã

Irás ter um dia a mais

E um a menos que viver.

É vã

A espera de alguns sinais

Que isto venham inverter.

 

Adiamentos

Serão sempre uma ilusão,

Não serão fim dos tormentos.

 

O tempo foge.

Não,

Não percas o dia de hoje!

 

 

341 – Neura

 

Ao pensar no futuro

Ficas neura, ficas?

Deixa-te disso, faz um furo

Na lata de sumo e vê se te aplicas

A descascar laranjas,

A esfregar o chão…

 

- Verás como arranjas

Outro coração!   

 

 

342 – Aguilhões

 

Sofrimento e morte

São aguilhões do futuro,

Minha sorte

E meu seguro.

 

Quantos sofrem, quantos?

Pouco importa isto sequer,

Mas apenas ver que tantos

Não sabem como sofrer..

 

É que a dor

É mera carta patente

Para, queira ou não queira, se propor

Cada qual fugir em frente,

 

Ao tentar ultrapassá-la.

É minha lei

Que mais alguns degraus treparei

Na escala

Cujo termo nunca alcançarei.

 

Minha mala,

Porém, já aviei.

Para onde,

De tanto que o porvir se esconde,

Nnca saberei.

 

Nenhum roteiro se aluga,

Nenhum guia traz a cura

Nos trilhos de fuga

Desta aventura.

 

 

343 – Lembrados

 

Somos todos diferentes,

Sempre embora semelhantes

E o que sentes

Cruza os homens e os instantes.

 

Morrem por ser sempre iguais

Muitos por todos os lados:

O que ao fim os mata mais

É jamais serem lembrados.

 

Por dentro ali morrerás…

Um amor de imitação,

De desejos incapaz,

Não te traz recordação.

 

Não pedes que te deseje,

Tudo o que lhe vais pedir

Nem sequer é que te beije,

É que te lembre a seguir…

 

Ser lembrado, na verdade,

Inaugura a eternidade

Tal qual, à tua medida,

Pode aqui ser perseguida.

 

 

344 – Acima

 

Acima do velho Deus da vingança,

Do novo Deus do perdão,

Vem o Deus da aceitação,

O Deus do amor que alcança

O perdão suplantar,

O Deus que nunca ouviu,

Nem falou, nem viu

Do Mal a figura singular

- Porque o mal nunca existiu!

 

Como é que ainda ninguém conseguiu

Disto falar?

- Que vazio

Nesta falta de lugar!

 

 

345 – Pai

 

Um pai é sempre aquele

Que espera dos filhos, cada dia,

Que tão bons sejam, dentro e fora da pele,

Como ele ser pretenderia.

 

Como o tempo lhe devém escasso

Neles cultiva a glória

Da vitória

Contra o próprio fracasso.

 

Mais que pai

Ele é também,

Para o filho que pelo mundo vai,

- Um sonho de além.

 

 

346 – Estilhaçar

 

Que fácil estilhaçar a história,

Quebrar da memória

A cadeia,

Destruir o fragmento de sonho

Transportado

Com cuidado

Pela ameia

Da vida, a qual, mal a transponho,

Logo na aresta o quebra e aplana

Como um vaso de porcelana!

 

Deixar existir o sonho,

Partir com ele à aventura

É o mais difícil, suponho,

De quanto em nós se depura

Para, ao fim, tomar figura

O pouco de céu de que disponho.

 

 

347 – Exploram

 

Os homens exploram

Para descobrir.

Descobrem que ignoram

Só para adquirir

Mais conhecimentos.

Um outro saber ganha

Melhoramentos

Ao que dia a dia se apanha.

 

Para além dos horizontes

Que a vista corrente alcança

Cria a humanidade as pontes

Por onde a História lhe avança.

 

Culturas que se fecharam

Sobre seu próprio horizonte

Não avançam, já secaram

De qualquer porvir a fonte.

 

Se hoje olhamos para o espaço

É que nele, ao infinito,

Prolongamos nosso traço

Da libertação no fito.

 

 

348 – Árvore

 

Religiões, artes, ciências

Todas são diversos galhos, diversos ramos

Da mesma imensurável árvore da floresta

Das paciências

Da vida. Árvore de escapar aos amos,

Rumo à liberdade, à festa

Que algures por nós espera…

…Só não sabemos em que era!

 

- Mas cá vamos, adiados,

Sempre a juntar os bocados.

 

 

349 – Ardes

 

Queres não sabes o quê

E ardes por te dedicar

Não descortinas a quem…

O eterno adolescente ao luar

Que te convém!

 

Assim

Te irás descobrindo

Neste ir indo, neste ir indo

Até ao fim…

 

Assaz

Te descobrirás

Na leveza de tal desporto,

Ao ires, ires, ires,

- Para te não descobrires

Antecipadamente morto.

 

 

350 – Excitar

 

Excitar

Ao que quer sentir a multidão

Em lugar

De a conduzir pela mão

Ao que deve sentir,

É condescender

Em liquidar o porvir

Em quenquer.

- E eis como perdemos pé no chão.

 

 

351 – Estético

 

Nenhum prazer estético é transitório,

Que a marca imprime eterna

De energias ocultas num envoltório

Cujo raio fende a caverna

Que me estreita.

E ninguém pode calcular

O horizonte onde vai dar

A brecha que desde então dali me espreita.

 

É um estranho grito

A chamar-me do infinito.

 

 

352 – Lábil

 

Em mãos de escultor hábil

Não há qualidade

Que, bem desenvolvida,

Não sufoque, lábil,

Os defeitos duma mocidade

Quando ama, decidida.

 

O problema

É quando o mestre não atrema

 

Ou quando o sentimento

É um viravento

 

Ou quando ambos, por junto,

Nem chegam a ser tema de assunto.

 

Então é a queixa

De que para o porvir já não resta qualquer deixa.

 

 

353 – Finalidade

 

Do mundo a finalidade

É morrer:

A vida é uma condenação

À morte.

Por que se há-de

Viver

Então?

É uma sorte

Sair do nada para entrar no nada,

Como quem perde uma estrada

Por falta de transporte

Mal ela foi encontrada?!

 

E, contudo,

Gostamos da caminhada!

É um entrudo?

- Ou uma largada

Para tudo?

 

 

354 – Fotografia

 

Fotografia

É na linha do horizonte

Pôr cabeça e coração

E os olhos na fantasia

De criar ali a ponte

Que os tempos todos à mão

Nos venha a pôr qualquer dia.

 

É fantasia, senão

Aquilo que o dedo aponte

Tanto o estica de verdade

Que um dia perfura a fonte

E é no tempo a eternidade.

 

 

355 – Derramado

 

Quanto sangue derramado

Esterilmente,

Quantos séculos de contado

E a miséria sempre à frente!

 

Milénio a milénio, a mesma escolha

Para o mesmo resultado:

Guerra ao rico do pobre para recolha…

E o fim sempre gorado!

Quando o marulho da utopia

Apenas o conciliaria

A mútua entreajuda,

Único cimento que, de verdade,

Gruda

Pobreza e felicidade.

 

Traduz a fraternidade

Para o homem do trabalho

A felicidade.

 

De material o que valho,

O labor o cria.

Sem ao rico surripiar,

Que ser invejoso e avaro

A ninguém serve de amparo.

A mais-valia

Vem de quanto partilhar.

 

A maior sabedoria

É a de amar.

 

 

356 – Bomba

 

A educação

É uma bomba retardada,

Em sala de aula montada,

A fim de explodir mais tarde,

Em adequada e propícia ocasião.

 

Não é raro, sem alarde,

Darmos com uma espoleta

Educacional

Dezenas de anos à espreita

Do momento ideal.

 

E a acção retardada

Inaugura então nova madrugada.

 

 

357 – Palavra

 

A palavra é o poder gémeo

Que o Deus e o Homem partilha:

Venera-o, teme-o,

Que és barco de que ele é quilha.

 

 

A queda dos impérios a palavra liberta

E os homens duma errada servidão.

Desperta,

Ergue o termo no punhal da tua mão!

 

Poderás renovar o mundo e a vida,

Feito lava dum vulcão,

Com uma palavra espargida,

Semente atirada ao chão.

 

 

358 – Vozes

 

Fundem-se as vozes para cantar juntas

Todo este fugaz escoar da vida.

Se em vão viemos é quanto perguntas,

Cruzando terra em vaga despedida.

 

Tocamos flores e tocamos frutos

Mas um grito alto e desgarrado acorda,

Uma voz juntando ao vozeirão dos lutos:

Dentro do vergel quem me faz que o chão morda

E no roseiral quem nos mata enxutos?

 

Ninguém deveras viverá na terra,

Aqui chegámos só para sonhar,

Fluem palavras longe, ao vale e à serra,

Mudas findando no distante mar

 

Onde vão ter os rios

Silentes da vida.

 

Teremos de ir até ao fim dos desafios,

Até onde o mistério nos convida,

 

Eternos a perguntar,

Vagos,

Pelos lagos

Onde enfim repousar,

- Onde não seja o nada

O fito definitivo da estrada.

 

 

359 – Garante

 

A ninguém nada garante

Um êxito constante,

Não poderei nunca agir

Fora do horizonte do fracasso provável.

É a regra do porvir:

Falhar é a norma do que é viável,

O êxito, excepção

Que a confirma em contramão.

 

Triste do país

Que acredita merecer,

Sem alibis,

O êxito que vier!

 

Estará por um triz…

 

 

360 – Desfilada

 

Um objectivo na vida

É a alavanca

Para operar à medida

Contra o que a vida nos empanca.

 

Então, à desfilada,

Qualquer pedra é varrida

Da estrada.

 

 

361 – Gera

 

Confiança

Gera autonomia e motivação,

Alcança

Um rosto de vida saudável,

Do dia-a-dia construção,

Na permuta de afectos

Pelo caminho que se revelar viável,

Na compreensão

Dos projectos

De cada qual.

 

Concito,

De sinal em sinal,

O meu e o teu infinito

Por igual.

 

 

362 – Causa

 

Uma só causa comum

É a razão

Duma gama interminável de efeitos.

Não

É milagre nenhum

A que vivamos afeitos:

Os apelos que nos mordem

São os de criar do caos ordem.

 

- Há lá coisa mais bonita

No meio de quanto nos habita!

 

 

363 – Problema

 

Que problema resolve a informação?

- Como gerar, armazenar, fluir

Mais e mais dela o cachão,

Mais convenientemente,

Mais veloz a escapulir

Sempre em frente, sempre em frente,

Sem de meta pôr questão…

 

De metafísica tem o estatuto:

É meio e fim da criatividade

De todo e qualquer humanal produto.

A vida preenchemos, na verdade,

Em busca de aceder à informação.

Para que fim, com que limitação,

São perguntas proibidas

De tão inabituais.

 

E assim rebolam as vidas

Sem quasiquer rumos reais.

 

 

364 – História

 

A história dos temas nos ensina

Que o mundo não é criado

De novo em cada dia:

Cada qual se empina

Nos ombros do antepassado

Que antes de nós existia.

 

Esta cadeia em corrente

É que nos joga para a frente.

 

 

365 – Aberta

 

Cultura que for aberta

Vem do reconhecimento

De que a compreensão mais desperta,

Se jamais deserta,

Fica sempre, a todo o momento,

Incompleta,

Longe da meta.

E nossos actos,

Traduzam embora conquistas,

Terão impactos

De sequelas imprevistas.

E os organismos institucionais

Colherão fracassos,

Mas não os abandonamos jamais

Só por nos serem tão escassos:

Antes, ao invés,

Mecanismos autocorrectores

Lhes ataremos aos pés

Com fiáveis sensores.

 

É assim no mercado, na democracia,

Nas crenças, nos valores do dia-a-dia…

 

Nada, porém, operará

A não ser que bem cientes

Da fiabilidade, desde já

Estejamos, prudentes,

Prontos a reconhecer

Qualquer erro que vier.

 

E que sejamos lestos a corrigir:

- A abrir portas ao porvir!

 

 

366 – Colectiva

 

Renunciar à tomada

Colectiva de decisões

Por ineficaz e corrupta esta jogada

É o mesmo que abandonar os turbilhões

Do mercado

Por ser instável e injusto.

 

Em cada lado,

O mesmo custo:

A incapacidade de aceitar o preceito

De que tudo o que é imaginado

Pelo homem é imperfeito

E tem de ser melhorado.

 

É preciso lavrar o prado

Sempre a eito

E tomá-lo a peito

Num esforço bem suado.

 

Doutro modo não toma jeito

Quanto do homem for gerado.

 

 

367 – Condicionado

 

O que um aluno precisa de saber

É condicionado

Pelo que irá fazer

Depois de formado

E pelo que precisa de tomar a peito

Para cumpri-lo a preceito.

 

Ora, nem uma nem outra condição

Os educadores algum dia saberão…

 

- Como é que pode ser sagrado

Um currículo dado?

 

Como não ver capacidade e competência,

Qualquer que seja a matéria abordada,

Como o critério da excelência

Visada?

 

 

368 – Solução

 

Solução errada do problema certo

É melhor que a certa do problema errado:

Esta eterniza o problema, como um fado,

Aquela, mais longe ou mais perto,

Obriga a corrigir o trilho andado.

Por aqui o deserto

É fecundado.

 

 

369 – Diferença

 

Distinção que faz diferença,

Por difícil ou fácil que seja,

Quando rápida se almeja,

Rápido leva a que a vença

O duro efeito

De a não tomar deveras a peito.

 

Atacando ou dando abrigo,

Com o prémio ou o castigo

Se apuram os sentidos

Dos mundos desconhecidos.

 

 

370 – Muro

 

O muro principal

Entre o Homem e o que deseja

Não é muro que se veja.

 

Os obstáculos que o consomem

São, afinal,

O próprio Homem.

 

 

371 – Permanece

 

Pese embora intérmina a investigação,

A nomenclatura bem equipada,

A natureza é prenhe de mistério.

Quão mais subatómica peregrinação,

Mais misteriosa a natureza revelada.

Quão mais fotografias do abismo sidéreo,

Maior a admiração

E o espanto.

Ao alargar a quotidiana visão

A cada novo recanto

Aberto ao infinito,

A natureza é o trilho atraente

Dum fito

Espiritual:

- Cada qual

Deveras se pressente

Como se fora imortal.

 

 

372 – Difícil

 

Difícil é imaginar

Alguém ocupado

Concomitantemente a lograr

Viver encantado.

 

O encantamento

Convida a parar,

A deixar-se levar

Para qualquer tempo, para qualquer lugar,

Pelo que ao sabor do vento

A todo o momento

Fluir, lento e lento,

Diante de nós.

 

E segui-lo após,

Sem qualquer pensamento

Nem refinamento,

Dum raio de sol aos finos pós

A espraiar firmamento.

 

Em lugar de fazer algo,

Algo me é feito…

- E a infinidade galgo

Por dentro do meu peito.

 

 

373 – Rota

 

Tomei na vida rota sem ter leme,

Dum recanto indo que mal era familiar

Ao seguinte, rumo ao promontório estreme,

Confiado ao destino tutelar,

Comigo levando as âncoras da estabilidade,

Meus livros, música, meus hábitos rituais…

Primeiro me toca o estilo que os sinais,

A beleza que a factualidade.

 

Facilmente

Sou arrastado a novas aventuras

Que, puras,

O porvir me promete lá da frente.

 

Aqui vou comprometido,

Levado

A entrançar malhas de sentido

A partir do que me for lançando o fado.

 

 

374 – Leme

 

Queres que te ajude a segurar o leme

Com mais firmeza,

A procurar o mapa que reme

Nas vindoiras viragens que a vida preza.

 

Eu, porém, confio na mudança dos ventos,

Canto ao ritmo da música das esferas,

Sou marinheiro entregue aos elementos,

Na surpresa

Das esperas.

 

Sou a presa,

Primeiro,

E é deste lugar cimeiro

Da incerteza

Que traço o rumo das eras.

 

…No derradeiro fim,

Ele é que mo traça a mim,

Abscôndito e brejeiro,

Lá da raiz primeva, ignorada,

Da estrada.

- Como queres que te ajude e guie

Se em mim nem eu creio que me fie?

 

 

375 – Caminho

 

Caminho não é modo de vida,

Terrestre, seco, pedregoso,

Não dá dos movimentos a medida

Flébil e diluída

De quem se abandona dengoso

Ao rumorejar da corrente.

 

Velejando irei sem buscar para onde,

Na aventura de quem sente

Que tudo nos responde

E corresponde,

Qualquer que seja a cultura que acrescente

À que me invente.

 

E tão absorvido pelo sabor do momento

Navego

Que me nem dou conta, cego,

De quando a corda que me prende ao cais

Me solta ao vento

Sem mapa algum nem arrais.

 

 

376 – Murmura

 

Murmura o rio cânticos sagrados

Segredando-nos que rios somos,

Entre penedias pelos vales despencados,

Entre margens conduzidos apertados,

Até que serenos como o Sol nos pomos

No Oceano do Infinito

Descansando por fim do tempo aflito.

 

 

377 – Emancipação

 

Se crês que emancipação

É fazer tudo o que te vai pela cabeça,

Acabas por não

Construir nada.

A vida inteira tropeça

No vazio da estrada

Que começa

E acaba a cada curva da jornada,

Sem um palmo que te meça

A falta dum fio de meada.

 

 

378 – Busca

 

A busca duma natureza visceral,

Frutificante e animadora

Quer uma reviravolta mental,

Reorientar a visão

Do interesse que em nós mora.

Deixar de reduzir o chão

A interpretações, teorias,

Aplicações onde vagueia nosso gemido,

Para achar as melodias

Do encantamento,

Redescobrir o relacionamento

Sentido,

Com toda a crença e emoção

Duma natural religião

Onde suspeito,

Contrito,

Um jeito

De infinito.

 

 

379 – Precises

 

Talvez precises de entender

Que a terra é tua mestra.

Dar-te-á o saber,

A vida te amestra,

Tornando-a mágica e eficaz.

 

Usas a terra, as matérias-primas,

Tudo de que és capaz,

Para pejar a vida de maravilhas

Tecnológicas a que te arrimas.

Mas deixas de apreciá-la como cheia de ilhas

De paz,

Fonte estética de espírito, de vida de alma.

 

Ora, o que te perfaz

A calma,

Embebido de espiritualidade,

É mais com a terra se a intimidade

Te cresceu

Do que construíres um eu que invade

O céu.

 

 

380 – Insensíveis

 

Da religião

Insensíveis ao mistério,

O poder cativante da imaginação

Diluído e sem império,

Morreram as fontes do encantamento.

 

Não, não é um tormento:

Resta-nos uma cultura enfadonha,

A vida insípida, pragmática,

Cada sentido à letra interpretado.

Morto o encantamento, cada hora é medonha,

A obra-prima mais ática

Perde a gramática,

Arrastamos pelos cantos a vida sem significado.

 

Que desenvolvimento,

Criatividade,

Meio ambiente

Invento

Na cidade

Onde apenas há o presente,

Sem qualquer porvir

Onde sonhe poder ir,

Sem qualquer alusão

Do já rumando ao ainda-não?

 

 

381 – Alimentos

 

Os alimentos não são

Amálgama de químicos componentes

Para um organismo vivo e são,

Senão

Bastaria um comprimido rilhar entre os dentes.

 

Não é apenas para o corpo a comida,

As almas também alimenta.

Senão, para que saborear uma bebida,

Triar uma ementa?

Por que iríamos a restaurantes

Italianos, indianos, tailandeses,

Chineses, etíopes ou franceses,

Senão porque a alma anseia

Por culturas distantes,

Servidas

Nas comidas

Por quanto nelas se enleia?

 

A dádiva do alimento

É o sabor da vida:

Degustamos uma comida

E o imaginário ganha alento.

Com o sonho então caminho,

Primaveril e lento,

Ao erguer meu copo de vinho.

 

 

382 – Pão

 

O pão de cada dia nos dai hoje,

O gelado, a torta de morango,

O recanto onde cada qual se aloje

A esfarripar sereno uma perna de frango…

 

Os mais simples actos,

Uma caminhada, uma palavra, uma brisa,

Uma paisagem onde perpassam cactos,

Qualquer alma saciam que por eles desliza.

 

Jantar um toque de imaginário e vontade,

Uma árvore de frutos pendurada às janelas,

Um mercado favorito, a velha receita que agrade,

Nutrem o corpo deserto

E ainda mais, decerto,

As almas: soltam-lhes as velas

Rumando às estrelas!

 

 

383 – Presença

 

Nos objectos a presença da mão

Anima, inspira o mundo

Em que bate o coração

E por ali o fecundo.

 

Comparar da máquina a eficiência

E o limite do trabalho manual

É irrelevante inconsciência,

Dado o fito de cada qual.

 

Um leva o mundo a funcionar

Uniformemente,

Vivo o outro o quer tornar,

Misterioso e fremente.

 

Ambos requeremos, famintos.

 

A Humanidade, porém,

Não pode sobreviver sem

As impressões

Espalhadas nos objectos por mãos aos milhões:

São os plintos

De saltar

Para além do patamar

Onde se acotovelam anónimas as multidões.