SÉTIMO  ITINERÁRIO 

 

          DO  QUOTIDIANO  A  MAGIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                        Escolha um número aleatório entre 384 e 448 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

384 – Do quotidiano a magia

 

Do quotidiano a magia

Procuro em qualquer sabor

Para o viver e o expor

No canto em que busco o dia.

 

Meu guia,

Da rotina sob o bolor,

É do tépido torpor

Saborear a modesta alegria.

 

Trocando o passo

No verso da vida

Me ultrapasso

 

Encantando humilde cada lida.

E do encantamento na insignificante verdade

Cultivo minha melhor identidade.

 

 

385 – Extensão

 

É a paz extensão da guerra

Por meios políticos:

A diplomacia também ferra

Com dentes graníticos.

 

Apenas as explosões

São de garrafas e copos,

Mas visam escopos

Que visaram os canhões.

 

A paz

É a guerra

- Ou então não é capaz

De semear a terra.

 

 

386 – Engenharia

 

A magia

Dum homem

Devém engenharia

Doutros que por fim a consomem,

Sem mais poesia

Nem a faísca que alumia

Os trilhos que se tomem.

 

Sobrenatural, palavra nula,

Hoje em dia

Nem ao caminho nos açula…

 

Aquilo que bula

E aqueles que bolem

Que lume os guia

Sem que nas curvas da via

Se enrolem?

 

 

387 – Demasia

 

Sendo céptico em demasia,

Podes errar tão facilmente

Como quem demais confia.

 

Entre extremos mora assente:

- Depois, então, sem medida

Entrega-te à corrida!

 

 

388 – Endoidecer

 

Podem os animais endoidecer

Se muitos deles arrebanharmos

Em recinto fechado.

O único animal a proceder

Voluntário e com agrado

Para em massa nos amalucarmos

É o Homem.

- Assim,

Por quem querem que nos tomem,

No fim?

 

A racionalidade,

Usada de tal jeito,

É uma faculdade

Ou é um defeito?

 

 

389 – Preconceito

 

Contemporânea, a mulher

De todo o preconceito

Libertar-se quer.

Acaba, porém, por entender

Por preconceito o que é princípio

E então vai varrendo ambos a eito.

 

Equipe-o

De ostentação embora,

O convencimento

De que é flor delicada o que elabora,

Mais não é que o documento

Da irremediável confusão

Em que decai, decai, decai

E se esvai

Sem defesa nem perdão.

 

Apenas porque lhe não ocorre

A fina distinção,

Morre.

 

- Dos preconceitos quem o coração

Te libertará,

Não dos princípios que houver lá?

 

 

390 – Agradece

 

Agradece a quem te dá felicidade,

Ao jardineiro que te faz florir.

E mais agradece à crueldade,

Que o cruel apenas te dará porvir

Ao podar-te os ramos mortos

Sementes espalhando nos teus hortos.

 

Pisar as migalhas de ventura

Que enganam a miséria

É o que teus olhos te apura

Para tua vera matéria.

 

O que é triste

Faz-te bem:

O alegre engana a fome que existe,

Jamais te sacia mais além.

 

De ser homem o cargo

Requer esta lesão:

Para te sustentar, o pão

Terá sabor perenemente amargo.

 

 

391 – Pecado

 

Ganhar dinheiro é pecado?!

Não sejas louco!

Deus nos dê muito e, por outro lado,

Nos contente com pouco.

 

A receita de ser feliz

É ter um pouco mais do que se quis

E um pouco menos querer

Que aquilo que se tiver.

 

 

392 – Consome

 

Grande mal, o do pobre com fome!

Pior mal, porém,

É o do rico que, depois de farto, se consome

Da fome que ainda tem.

 

Pior para ele que sofre

E para nós , que nos quer no cofre!

 

 

393 – Brinquedo

 

Quando eras criança, o brinquedo,

Por não ser sofisticado,

Tinha de ser completado

Com um segredo:

- A imaginação.

 

O facto não ilude:

Aqui a imperfeição

Era virtude.

 

 

394 – Perfeccionista

 

Quem gostar de operar tudo

Da melhor maneira

É um perfeccionista.

Nada errado, não fora que lhe acudo

Deste abismo à beira,

A miúdo:

- O medo terrível de falhar.

No limiar,

Com a perfeição em vista,

Devém o mais preguiçoso:

Tanto tempo se adia

Que finda, pressuroso,

A aldrabar tudo no derradeiro dia.

 

Ante um final meramente sofrível

Acaba a consolar-se:

“Que mais era exigível

Em tão pouco tempo disponível?”

- E nem repara no disfarce!

 

 

395 – Decidirás

 

Decidirás como deve ser,

Com grande esforço.

Cuidarás que te poderás deter

Um pouco, sem remorso.

Porém, nova decisão

Se te imporá sem remissão.

 

E, enquanto continuares a decidir

Da forma que se antolhe justa,

Eterno continuarás a reincidir,

Um milénio cada dia,

À tua própria custa.

 

Os outros, todavia,

Decidindo uma só vez e mal,

Porque mal optaram como milhões e milhões,

Livraram-se de vez todos e cada qual

De tomar decisões.

 

Distintivo primeiro

De teu ganho,

Demarcarás o Homem do carneiro

Do rebanho.

 

 

396 – Cargo

 

Não é teu,

É do cargo que desempenhas?

- Um cargo nunca tem nada de seu,

É o que dele quiseres,

É o que, com tuas manhas,

Teceres.

 

É o lago que espelha o céu

Do ser de teus seres,

Teus teres e haveres

Postos ao léu.

 

Que um cargo nunca tem nada de seu.

 

 

397 – Acidente

 

Poderá um homem qualquer

Um qualquer carro guiar.

O que, porém, nunca há-de ter

Um acidente ao calhar,

É aquele

Que atender a um pormenor:

- Guia por ele

E pelo outro condutor.

 

 

398 – Segredos

 

Após tempo bastante num mister

Acabarás por lhe saber

Os segredos

Que nenhum profissional de lá

Publicamente discutirá.

Descobrir os credos,

Porém,

É como os desastres que os outros têm:

Não és tu este homem sem braços.

Recolhes-te ao abrigo

De não ser nada contigo.

 

Doutrem com os pedaços

Quando a estrada se junca,

Sempre lês nisto os sinais

De que ocorre com os mais,

Contigo, nunca!

 

 

399 – Arsenal

 

Verás que o bom general

É o que tiver a mentalidade

De ver homens como massas:

Arrumados no arsenal,

Numérica totalidade

De oficiais, sargentos e praças.

 

A granel

Somados, diminuídos

E, como tal,

Compreendidos

No papel.

 

Homens tão abstractos

Como os algarismos

Lançados aos maus tratos

Da estatística e dos catecismos.

Verás que para consolar as mães

Fora da lei porá o bordel

Mas, quando forem mortos como cães

Os soldados do papel,

O general, de tão orgulhoso,

Babar-se-á de gozo!

 

 

400 – Ferida

 

De algo quando gosta alguém

É impossível proteger-se:

É a ferida que ele tem

A que o inimigo há-de ater-se.

 

Se um olho tens magoado,

Quenquer

Que te queira bater

Vai-te bater desse lado.

 

Então, se gostas de cozinhar,

Tens de fugir da cozinha,

Vais para o campo mondar.

Se a monda é o que te convinha,

Terás de fugir de lá:

Refugiar-te a um balcão

É a defesa que haverá…

- Para tua salvação terás de fugir de ti:

Escolhes a perdição!

 

Ficarás, porém, a salvo

Enquanto escondido ali,

Tens vitórias, promoções,

Que nunca podes ser alvo:

Não há um fraco ou aleijões

Onde te possam ferir.

 

- Esperteza de papalvo:

Andas tu de ti a rir!

 

 

401 – Coices

 

Não poderás rejeitar

Valores da multidão

Sem sofrer, a par,

De mil coices a lesão.

 

Quando a multidão ligar

A vida a uma ideia idiota,

Se pretendes proclamar

Que para ti não tem cota,

 

Inevitáveis então

Vêm efeitos decorrentes.

Revelar-lhes o aleijão

Leva-os a quebrar-te os dentes.

 

Um ideal colectivo

Que afinal é inanidade

É no arquivo

Anular-lhe a identidade:

 

Tais vidas não valem nada,

O que sempre irrita as gentes.

É que, de entrada,

Entrementes,

Há-de preferir quenquer

Ser uma coisa de nada

Que nada ser.

 

 

402 – Medo

 

Medo social, eis a mais potente

Fonte isolada de poder

Existente.

A única a permanecer

Quando a máquina do sistema

Destruiu

O código dos valores positivos.

Como é que o lema

Se te sumiu

Em registos tão esquivos?

 

Desperdiças a força

Em trivialidades,

Como quando requeres virgindades

Em casamentos de comborça.

 

Futilidade idiota…

Que asneira

Andares a apontar tua mangueira

Rota

(Tendo à volta o mundo inteiro a perecer)

Contra uma folha de papel a arder!

 

 

403 – Podre

 

Num mundo podre

Para te destacares,

Apenas sobressaltando os demais:

Dos venenos abres teu odre

E, enquanto o envenenares,

O mundo divulgará teus sinais.

 

Terás má publicidade,

Preferível a não ter nenhuma.

A boa, porém, qualquer idiota que agrade

A logra ter, mal a presuma.

 

Má publicidade, aliás,

É melhor que boa:

Choca as pessoas e ficarás

Na memória que pelos tempos reboa.

 

Num mundo podre, no mundo,

Vences mais quão mais imundo.

 

 

404 – Esforçar

 

Terás de te esforçar tanto

Para conseguir uma coisa qualquer

Que ao fim, quando a logras, todo o encanto

Acabou já por morrer.

Não é porque te esquece:

- Perdeu antes todo o interesse.

 

 

405 – Direito

 

Perguntar-lhe-ás se tinha

Direito a fazer o que fez.

Espantado se adivinha

Que, olhando-te da cabeça aos pés,

 

Dirá que sim,

Que sempre lhe ensinaram

Que devia fazer o que é direito!

Assim,

Nos juízos que se lhe deparam

Ao que fizer presta preito:

De cada vez

Que agir

Tudo o que fizer será bem feito

Simplesmente porque o fez!

 

E a seguir

Recordará que lhe ensinaram que é um defeito

Fazer o que não é direito…

 

Na vida distinguir

O efeito

De tal feito

Não faz parte do entremez.

 

Deste jaez

Verás que com toda a justiça

A injustiça tudo enguiça.

 

 

406 – Pequenas

 

Quando ficas em apuros,

As coisas pequenas,

Um cigarro, uns figos maduros,

Ficam tão maravilhosas, tão plenas

Que meditas:

Se escapares,

Juras que a importância

Lhes repitas

Para além das singulares

Dificuldades de circunstância

Em que te vês envolvido.

 

Uma vez o aperto transcorrido,

As pequenas estrelas,

De quando te amanhecia

O dia,

Já nem darás mais por elas.

 

É o que te perde e te salva

A luz de alva.

 

 

407 – Raridades

 

Ajoujas a casa de raridades,

Depois torces a espinha

Entre cristais, porcelanas e jades,

Labiríntico, e não te persuades

A mudar de linha.

 

Vestes a festa de tecidos caros

E sofres o dia, receoso

De lhes entornar em cima os vinhos raros

De teu gozo.

 

Mandas pintar o carro por ter um risco,

Depois irás a pé,

Não vá, por acaso, qualquer cisco

Riscar a obra que puseste em pé.

 

Teu sobretudo mais caro

Fica-te após no roupeiro,

Não vás ouvir o reparo:

- Trocaram-no no bengaleiro!

 

Teus tapetes

De plástico os tens cobertos,

Que as nódoas caem, repetes,

Nos cantos mais incertos.

 

Serviços de copos e loiça,

Comprados com sacrifício,

São, afinal, desperdício

Onde a fome não retoiça,

Reduzidos a um resquício

A espreitar, na cristaleira,

Como ao que é bom lhe convém,

A ver se vislumbra a visita de primeira

Que afinal nunca te vem…

 

- Coração velho e caduco,

Um estômago ulcerado,

De nervos esfrangalhado,

E tu, eunuco,

Mas de casa limpa e fresca,

Peças intactas, religiosamente

Fora de alcance de quem as repesca

No museu de teu lar…

 

Quem te mente,

Quem te mente sem parar?

 

 

408 – Aspiro

 

Quando aspiro a que a justiça

Na terra impere

Eu faço parte da liça

Que a gere.

 

A justiça que existir

Vem tanto de nosso esforço

Que, se a não vir,

Terei remorso.

 

A justiça que há na terra

É a que em nossos corações

Como a semente nos talhões

Se aferra.

 

 

409 – Aprender

 

Aprender

Não é apenas descodificar palavras,

É compreender

Como opera a ciência

Quando o chão com ela lavras,

Entender

As esperanças por trás da evidência,

E os perigos, os perigos

Que a tecnologia,

Sob a capa de abrigos,

Espalha pelo mundo cada dia.

 

 

410 – Incerteza

 

A incerteza

É da condição humana.

O cuidado, porém, se demais pesa

Pode ser descuido:

Quando sob nós abana

A escada,

O que cuido

É de contabilizar o custo

Justo

De não fazer nada.

De que serve o cuidado em demasia?

Nem a queda nos evitaria!

 

 

411 – Férias

 

Desligas a consciência

Quando para férias partes.

Louvo-te a ciência

Com que de preocupações te apartes.

 

O que abala

É quão depressa

Esquece cada qual de ligá-la

Quando regressa.

 

 

412 – Arrancar

 

Arrancar a quenquer

A qualidade

Que tiver,

A marca da genialidade,

- Pode-o fazer

A moca, o cassetete,

A educação pervertida,

A mentira recitada na cassete,

A indiferença que nunca te convida…

 

Então alguém

Esquece até

Como pensara vida além,

Ignora o que é

Como o que tem.

 

Expulso da música e da poesia,

Das grandes descobertas que faria

Que é

Que se mantém de pé?…

 

- Quem o consente

Não, já não é gente!

 

 

413 – Peca

 

Tua família: fruta peca.

Teu trabalho: fonte seca.

Tua mulher, teu marido…

- Nada, nada já tem sentido!

Mesmo clandestina namorada

Ou namorado secreto

Debaixo do mesmo tecto

Serão vida armadilhada.

 

Quem te dera uma escapada!

 

Depois de tudo perdido,

Porém,

Quando o silêncio te grita ao ouvido,

Que riqueza,

Que grandeza

A que tudo aquilo tem!

 

Que valor

O do dia!

E ninguém,

Ninguém o veria

Senão depois do sol-pôr!

 

E, mesmo quando amanhece,

Quem é que o sol ao fim te aquece

Se tudo em ti traía

A memória que esquece

Quanto valia

O momento que acontece?

 

 

414 – Sorri

 

Sorri!

Tuas rugas, vais ver,

Mal dás por ti,

Transparecem prazer

 

E o mundo inteiro (quem diria!)

É uma alegria!

 

 

415 – Paga

 

Quem paga será quem pode escolher.

Até certo ponto, porém:

De respeitar o público o dever

É não considerá-lo também

Como criança a quem apanho

Os dinheiros que lhe ganho.

 

Entre dar-lhe prendas belas

Ou imitações feias

Vai a lonjura de abrir-lhe janelas

A enredá-lo em teias.

 

 

416 - ~Tolices

 

Com mil tolices e mil preconceitos

Um monte de imbecis

Governa o mundo e cada qual de nós.

Desta vida os leitos

Em que rolamos, dolentes e servis,

Pesados os contras e os prós,

São prémio refece,

Já que em lugar

De nos pôr a caminhar,

Tudo nos gasta e envelhece.

 

 

417 – Vício

 

Há uma idade

Que perdoa o vício a quem deslaça

A contrariedade

E que toma a contrariedade por desgraça.

 

Na confusão,

Iludida,

Perde o peso e a dimensão

Da vida.

 

Pior é que os desta idade

Nunca estão sós:

Arrastam-nos, mesmo contra vontade,

A todos nós…

 

 

418 – Dissimulação

 

A dissimulação

É para a vingança

A primeira condição,

Que é impotência

Um ódio confessado:

Não alcança

Eficiência.

 

Cuidado!

Não raro,

Uma estúpida inocência

Paga-la caro.

 

 

419 – Responsabiliza

 

Depois de informar o jovem

Do efeito pernicioso

Dos actos que o movem,

Se o não demovem

Nem teu gesto generoso

Nem o argumento veraz,

Aponta-lhe nítido o que faz

E, se no declive desliza,

Ao jovem, sem mais demora,

Responsabiliza

Na hora!

 

Se tiver de responder

Por qualquer destruição

Mais confiança há-de ter

Para dizer não!

 

 

420 – Segunda-feira

 

Segunda-feira, prancha de mergulho

Para o resto da semana.

Trepo até lá, revejo, vasculho,

Planeio a táctica que não me engana,

Balanço um pouco para a sentir

E mergulho: estou a ir!

 

 

421 – Protecção

 

O Sol brilha, a Lua inspira.

Se aquele olhas sem teus olhos proteger,

Cegarás, queimada a lira.

Se olhas a Lua o tempo que aprouver

Sem protecção capaz,

Um poeta devirás.

 

 

422 – Paradoxo

 

O grande paradoxo contemporâneo

É que a vida é doada e prolongada,

Mas o velho é cada vez mais um sucedâneo:

É inútil, embaraçante,

Melhor fora afastar-se da jornada,

Não ir por diante.

 

Que importa que tanto se conserve?

- Velho não serve!…

 

 

423 – Aponta

 

No fim de Outubro

Tudo na Terra aponta para o lar:

O marinheiro, para o mar;

O viajante, do poente ao rubro,

Para o muro duma vedação;

O caçador, para o campo e a toca,

Não vá faltar-lhe, no Inverno, a criação;
O apaixonado, para o amor que deixou…

 

- Água na boca

Para todo o que dele próprio emigrou.

 

 

424 – Decisões

 

Decisões colectivas, decisões individuais,

Em ambos os casos

Por interesse próprio vais,

Controlando os acasos.

 

No colectivo, então,

Porás à frente o interesse comum

Contra o individual,

Mesmo quando outros não porão.

 

É a única forma de manter algum

Laço que nos una, comunal.

 

Quando tal

Deixar de prevalecer,

Deixará o homem de ser:

Será uma fria imagem

De animal

Selvagem.

 

 

425 – Requer

 

Para quê nos acenar

Da afirmação com o veraz

Se ela o não requer para lograr

Ser eficaz?

 

Para quê ser honesto

Se o sucesso, não da virtude o preceito,

É que atrai o gesto

De respeito?

 

Valores e regras morais

São postos em causa o dia inteiro.

Dúvidas, porém, não há que tais

Sobre o dinheiro.

 

Assim é que ele tem tomado,

Do mundo a mando dos senhores,

Paulatino, o primado

Dos valores.

 

 

426 – Burocracias

 

As burocracias

Sempre andam mais empenhadas

Em autopreservação

Do que em cumprir a missão

Pelas vias

A que foram destinadas.

- Sem excepção

Nem dias!

 

 

427 – Problema

 

O problema de quem

Se ocupa em nada fazer

É o de empatar os que têm

Toda a freima de empreender.

 

A luta contra o sistema

Ataca a burocracia,

Seguindo o lema:

Abaixo o fútil que exigia,

Vamos à obra a ser feita

- Enquanto o burocrata nem suspeita!

 

 

428 – Mal

 

O pior que dum serviço alguém diria

É que é um mal necessário.

Não vejo que dizer da burocracia,

O mal desnecessário…

 

Hostilidade do servidor para com o servido

Gera a do servido para com o servidor:

O círculo não muda de sentido

Nem de humor.

 

Até ao dia

Em que a má disposição dê desemprego

Na burocracia…

- Que sossego!

 

 

429 – Linha

 

A linha mais curta entre dois pontos

Da burocracia

Suborna tudo e todos, sem descontos,

E assim desmente a geometria.

Não é recta, é tortuosa,

Porém de eficácia goza.

 

 

430 – Separa

 

Segregar separa fisicamente;

Discriminar, mentalmente.

 

Embora a mente

Bem mais que o corpo seja difícil de mudar,

Quando a segregação é abolida

A discriminação, a par,

Raramente é capaz,

Em seguida,

De ficar atrás.

 

 

431 – Discriminar

 

Discriminar

É levar a distinção

A fazer a diferença

E aproveitar

A ocasião

Para tirar vantagem da sentença.

 

A base é uma individual propriedade

Sobre que não há controlo

Mas que não lesa a capacidade

De o detentor dela contribuir sem dolo

Para o bem da comunidade.

 

A vantagem

É meramente aparente:
O custo, na triagem,

Pesa bem mais, afinal,

Por mor do corte da humanal corrente.

 

Discriminar é irracional,

Consequentemente.

 

- Quem afirma que a razão

É humana distinção?

 

 

432 – Conflitos

 

Conflitos irredutíveis

Devieram insolúveis

Apenas porque os presumíveis

Envolvidos

Os não querem resolver.

 

Crêem que por volúveis

Serem tidos

É o pior que lhes pode acontecer.

 

E quem por inultrapassáveis

Classifica tais atritos

Apoia, inconsciente, os entes inestimáveis

Que não desejam resolver os conflitos.

 

 

433 – Tinteiros

 

No mundo dos dinheiros,

Dos industriais e dos comerciantes,

As pessoas são os tinteiros

Mais importantes.

 

Só que, pela vida adiante

De quenquer,

A pessoa que acontecer

É que é importante.

 

O mais, prolixo e vário,

Por mais que a função

Dê numerário,

Como sombra no chão,

É definitivamente secundário.

 

 

434 – Tempo

 

Ser livre é também meu tempo controlar.

Poderei dá-lo,

Mas deixá-lo

Tomar

Por quenquer?

Nunca,

Que o tempo se junca

De meu ser!

 

 

435 – Deixo

 

Se me deixo maravilhar pela beleza,

Complexidade,

Força devastadora, simplicidade,

Inesperada subtileza,

Vastas dimensões

Da natureza,

Então

As lições

De espiritualidade fluirão

Sem esforço requerer nem arte

De minha parte.

 

Não é fácil, porém,

Em era de técnica sofisticação,

Alguém

Ser tão ingénuo e aberto

Que da natureza permaneça perto.

 

Queremos aproveitar-nos dela,

Não, ser dirigidos por qualquer estrela.

 

Queremos estudá-la,

Não, aprender com ela a fala.

 

Queremos mantê-la sob controlo firme,

Não, que influir em nós afirme.

 

- Verás, quando em balanço te dobres,

Crítico, agora,

Que, quanto mais ricos por fora,

Mais por dentro pobres.

 

 

436 – Industrial

 

Poderia aprender o industrial

Que, num mundo encantado,

O bom funcionamento

Nem sequer é a principal

Das muitas qualidades a que é destinado

O produto que ele tem por fundamento.

 

Todo o bem,

Desde o aparelho à ferramenta,

Deve ter um desenho animado:
Com ele inventa

O sonho que nos convém.

 

Um berço

Com cabeças de cisne e pés de leão

É um verso

De embalar a imaginação.

 

O dia-a-dia

Espreita ali outra cidade:

A funcionalidade

Transmuda-se em fantasia.

 

E sempre há-de ser a alegria

Que dali discreta nos invade.

 

 

437 – Oceanos

 

Os oceanos, generosidade

Em peixe, transporte e recreio,

São também a fonte suprema da Humanidade

Para a contemplação,

O meio

Espiritual de o coração

Tocar a razão

Doutra verdade.

 

Oceanos: a imensidade

Lá fora

Que afinal por mim dentro mora.

 

- E, num toque de eternidade,

Demora, demora, demora…

 

 

438 – Dois

 

Se me encontro do mar à beira,

Na praia que separa um de outro mundo,

O das águas que emparceira

Com o da terra onde me fundo,

 

Atraem-me melancolias do passado e do porvir.

Anseio desvendar este oceano,

Um lar juntinho dele me erigir,

Viajar por ele além a todo o pano,

Nadar naquelas águas, deixar-me ir…

 

E o pensamento vai sempre mais além

Com tal profundidade

Que nunca sei que me retém

Nem o que busco e me agrade,

Enquanto ouço as ondas

E me sabe a maresia…

 

Minhas sondas

De energia

Alimentam-me dali cambiantes traços,

Alinham-me discretos os passos

Hesitantes de cada dia.

 

O mar tem braços

Que ninguém diria!

 

 

439 – Jornalista

 

Qualquer jornalista é pago

Para escrever,

Não da vida o rio, o lago,

Mas o que o leitor quiser.

 

Isto, na alternativa melhor.

Na maior parte dos casos,

Pagam-no para se pôr

De lado,

Calado,

A juntar prazos e acasos…

E nada de indispor

A fantasia

Com verdades que saberia!

 

O jornalista

Lava a reputação

E emboneca criaturas,

Como um esteticista

De públicas figuras

Cuja verdade é que são

Feias,

Sem coração nem perdão,

Menos que gente a meias.

 

Se a verdade fora revelada a cru,

Quanto rei corria nu!

 

No quarto poder

A corrupção

É bem pior que noutro qualquer,

Até por não haver controle

Do pântano onde se atole.

 

Nem opera o do mercado,

Que comprado e vendido

É sempre um proletariado

Desprezado e excluído

A quem se afagou o ouvido,

Para não dar brado

Nem poder ser medido

Do lucro o traslado

Que ao fim há-de ter rendido.

 

 

440 – Modo

 

Aos materiais da terra os usos que dermos

Hão-de sê-lo de modo sagrado.

Só se não quisermos

Uma orientação profunda no fado

De aprender como construir,

Preservar, fruir…

 

O problema é que de mim saio à porta

Apenas com quanto em mim entro

E, quando qualquer árvore sagrada está morta,

Já não tenho centro.

 

 

441 – Natureza

 

Enquanto a natureza for

Vista como a nós exterior,

 

Algo alheio e limitado,

Separado, segregado,

 

Tanto para nós estará perdida

Quanto dentro em nós diluída.

 

Interiorizada demais

Esta experiência

Dentro de nós, dilui os canais

Da eficiência.

 

E também nós nos perdemos,

Rarefeitos vida fora.

 

Reencontrar-nos poderemos

Redescobrindo o fraterno

Laço que em nós mora

Das árvores com o fulgor eterno.

Sentir-me plante enraizada

Aduba de húmus, afinal, minha jornada.

 

 

442 – Árvores

 

Somos árvores de facto.

Por isso gostamos de conviver com elas,

Sejam novas ou gigantes da floresta.

 

Temos um secreto pacto:

Nos contos de fadas abrimos janelas

Em cada tronco que se apresta

E o enigma da vida

Enfeitiça-nos de seguida.

 

Ali, onde árvores se juntam e lançam o feitiço,

Quebro o enguiço

E relanço-me em corrida,

Pleno de viço.

 

As árvores mantêm-me sob o império

Do mistério.

 

 

443 – Pedras

 

Quero pedras em meu redor

A repercutir-me o cerne da vida:

Duro, sólido, pesado, eterno,

Matizado subtilmente de cor.

Há quem busque remédio ao inverno

Com que lida,

Estratégias de o acalentar,

Quando ao invés se devera empenhar

Em descobrir

A natureza sólida e pesada

Que, pétrea, ao fundo o coração lhe há-de cobrir.

 

Desvendar a pedra cinzelada

Que o chão me reveste

Do eu mais profundo

É que me investe

De mundo.

 

 

444 – Depressão

 

A depressão, entendida

Como emocional perturbação geral,

É devida

Ao tratamento duro, á negligência fatal

A que é votada

A eterna infância da alma abandonada.

 

Abandonado o próprio coração,

Onde encontrar firme alternativo chão?

 

 

445 – Engordada

 

Qualquer alma quer ser engordada,

Não explicada.

Há dietas nutritivas,

Outras sem sabor,

Outras nocivas.

 

A boa comida de alma tem

Da intimidade o calor:

Um passeio pela natureza lhe convém,

A conversa com um amigo noite fora,

Um jantar

Familiar,

Um produto dum sonho que alguém elabora,

Uma visita ao cemitério…

 

A beleza, a solidão,

Dum prazer intenso o império,

São fios de mistério

Que almas bem alimentadas nos darão.

 

 

446 – Elo

 

Corre do parapeito

Do encantamento

Um elo estreito

Até o assombramento.

 

Um mundo encantado

Preserva

Os espíritos do passado

De reserva,

 

A manter as paredes e cada recanto

Com personalidade,

A fim de nos entregarmos da sereia ao canto

Que, após, de cada canto nos invade.

 

 

447 – Vez

 

Deus fez o mundo, não

Por decreto,

Fê-lo à mão,

Inteiro e correcto.

 

Nós, também.

Hoje, manufacturar,

Porém,

Passou a significar,

 

Em vez da mão, usar outros meios.

A perda do encantamento

É do desaparecimento

Da mão que marcava os veios

Da mobília de cada dia.

 

O jeito da mão indicia

Uma personalidade.

A máquina jamais animaria

Um objecto modelado

Com a verdade

Que de alguém nos fala, dia a dia,

Em cada bocado.

 

 

448 – Deveio

 

Deveio a produtividade,

Não um valor, uma obsessão.

Produzir mais e mais cópias, persuade,

Torná-las mais belas, não.

 

Individualizá-las,

Dar-lhes presença,

De personalidade dotá-las,

Não é virtude, é uma ofensa.

 

Um livro pode ser belo.

Mas um palimpsesto medieval,

De escrita cuidada, à mão, como vê-lo,

Com desprezo, como um mal?