OITAVO  ITINERÁRIO

  

MEU  SER  DE  DESEMBARAÇOS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 449 e 508 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

449 – Meu ser de desembaraços

 

Meu ser de desembaraços

Procuro e perco de vista

Mas a pista

Cobre-me os versos de traços

 

De conquista.

E dou-lhes braços,

Muito embora sejam escassos

Para o sonho que tenho em vista.

 

Caminho

E, enquanto vou,

Construo e adivinho

 

O que sou:

Na larga campina vago pé de linho

Que alguém por milagre cultivou.

 

 

450 – Pecado

 

Pecado é fazer mal

A alguém.

O mais não vale

Nem o desdém,

Mera superstição

De ingénuas fés

Em que todos, é verdade, cairão

Uma e outra vez.

 

Cúpido,

Quem a si se magoa

Não é um pecador à toa,

É um estúpido!

 

 

451 – Estupefacto

 

O espanto que te põe estupefacto

É o do enorme escândalo de existir:

O facto

É que tens de ir

Palmilhando as ruas

Uma atrás doutra, de seguida,

Caminhando para a morte às arrecuas,

De olhar fito na vida.

 

 

452 – Acredita

 

Acredita,

Não é para a terra mas para o céu

Que tens de olhar, antes de plantar

Qualquer rebento de teu.

Não para o húmus que te fita,

Acredita,

Mas para a luz solar

Que te alcançar.

Melhor cresce o arbusto preso

Na rocha, à luz morna do meio-dia,

Que ao de húmus adubado, ileso

A sombra o ergueria.

 

A luz é que te preza,

A pureza da luz.

Ela é que em beleza

Te traduz,

Da raiz à ramaria,

Da escuridão para o dia.

 

 

453 – Ideologias

 

As ideologias

Têm sempre um olhar tão lindo!

O corso findo,

Se as caudas lhes espias,

Apenas então repararias

Que todas têm um nó

Que ninguém desata.

 

Por isso todas, ao fim, te reduzem a pó

Sob a pata.

 

 

454 – Ocupado

 

Quando o consciente anda ocupado

De forma total

Noutro lado,

- Aí germina em regra a ideia original.

 

Donde vem,

Quem descortinará?

Nem consciência nem vontade a contêm,

Chega sempre do lado de lá,

Daquele onde ninguém

Nenhum domínio tem.

 

Chega, porém,

Diz-nos: “olá,

Aqui me têm!”

- Nunca vislumbramos quem

Nos cumprimentará

De Além.

 

 

455 – Virgem

 

Homem ou mulher,

A perene virgem serás

Em que uma decisão errada

É assaz

Para a vida inteira comprometer.

 

Carruagem

Uma vez descarrilada,

Jamais correrás a mesma viagem.

No apeadeiro em que te esperas

Jamais voltarás a ser o que eras.

 

Quando baralhas o baralho da vida

É o baralho da casa que baralhas,

Jamais o que, sem falhas,

Guardas na manga com a carta escondida.

 

 

456 – Dor

 

A dor não é fútil,

Não,

A dor é inútil.

Ou então

Podê-lo-á não ser

Se a transformares numa coisa qualquer.

 

Como numa música triste:

A dor existe

- Mas é uma beleza a doer!

 

 

457 – Corporação

 

Compreenderás que um homem

Que trabalhou a vida inteira numa corporação

Pode suicidar-se por não ter à mão

Outro meio de exprimir-se.

Quantos se somem

Testando a última fronteira que resiste!

Para o suicida, sumir-se,

Estupidamente,

É a prova de que existe

Simplesmente.

 

 

458 – Inviabilidade

 

Lerás a opressiva inviabilidade

De qualquer humano

Comunicar e compreender doutrem a mente:

Uma personalidade

É um engano

Permanente.

 

Nada na vida

Se te mostra jamais,

Tudo são meros sinais

Dum eterno outro que te convida.

 

Ora, tua prece

Não é nunca o que parece.

E o que é,

Por mais que te more ao pé,

Jamais te aparece,

Nem dele darás fé.

 

Verás que a porta fechada

É fatal na jornada.

O outro, porém, aí está.

- Quem será? Quem será?…

 

 

459 – Pirâmides

 

Amanuenses, reis e pensadores

Verás que falam

E que governam com a fala o mundo.

Pedreiros, carroceiros e construtores

De pirâmides abalam

E, mudos, no silêncio fecundo

Dos que se calam,

Com as mãos constroem o mundo.

 

Constroem-no de silêncios

Para os demais o falarem.

 

Vence-os

Tanto a palavra

Que quando as palavras o mundo afundarem,

Enquanto tudo se escalavra,

De novo eles tudo reconstroem

Só porque os silêncios os moem.

 

- Só porque, dirás, eles não

Têm outro modo de expressão.

 

Entre falar e ser

Qual a ponte que há-de haver?

 

 

460 – Escolha

 

Não, nunca terás tudo.

Alguns com mais sorte poderão escolher

(Não é uma escolha, contudo)

Mas ninguém há-de conseguir

Tudo o que de bom houver.

 

Terás de pagar o preço

Do que em vida te atingir,

O que é caro, de começo:

Irás ter de desistir

Do que sonhavas deveras.

 

Nunca, porém, saberás,

Entretido nas esperas,

Até ao momento dos maus tratos:

Não podes voltar atrás,

Cumpres de vez os contratos.

 

 

461 – Ignorar

 

Não foges ao mal da vida

Por te revoltares contra,

Como não, pela medida

De lhe ir ignorando a montra.

 

Não tens fuga, não,

Se te não convertes a uma acção.

 

E, mesmo aí,

Que dependerá de ti?

 

 

462 – Religiões

 

Todas as religiões

Principiam por baixo,

Com meretrizes, proxenetas e ladrões,

Como é lógico: os insatisfeitos são o facho.

Os felizes, nem a meias

Aceitam novas ideias.

 

Todas arrastam ao martírio

Os inovadores, os heróis,

Logo depois.

É a natural selecção:

Entre o delírio

E a razão.

A vitória

É de quem suplantar a perseguição:

Entra na glória

E na universal divulgação.

 

Então, os felizes,

Apenas então,

Em toda e qualquer religião,

Satisfeitos, ignoram os juízes

Com que por medo fizeram a perseguição,

Dão meia volta,

Aliam-se aos perseguidos,

Convencidos

Pela mesma razão

Que outrora pusera o diabo à solta

Para levar à tortura e à prisão.

 

Nesta altura

Toda a religião começa a perecer:

Quando um Constantino qualquer

Apura

Que a tem de oficialmente reconhecer,

Decreta

Que principia a tornar-se obsoleta.

 

Quão

Mais forte a religião,

Mais tempo leva a triunfar,

Mais tempo a morrer vai demorar

E mais bastardos gera

Pelo caminho.

E sobre cada qual impera

Igual pelourinho.

 

Anunciadas, brotam,

Triunfam, são aceites,

Degeneram e se derrotam,

Decaem, mal em repouso as deites.

Quando cumpriu, vencedora,

Ensinou a doutrina,

Uma religião não demora,

Declina.

Tem de se fragmentar

E decompor,

A dar lugar

Ao sucessor.

 

Judaísmo:

Deus da guerra, da justiça, dos tormentos.

Depois o cristianismo:

Deus do amor, do perdão, aplacada a sanha.

Primeiro os Dez Mandamentos,

Depois o Sermão da Montanha.

 

Que religião

Para um Universo em expansão,

Para um mundo em perene evolução,

De Deus para o devir

Em que tudo é mutação?

Que Deus irá surgir

Que não mude um pecador num torresmo,

Que em vez de imutável, eterno,

Resolva o desafio superno

De não ser duas vezes o mesmo?

 

 

463 – Alternativa

 

Não existe alternativa:

Por trás dum muro de pedra viva,

Outro muro mais subtil…

O mundo não tem outra maneira,

Por mais que à minha beira

Andem sempre mais de mil

A arrotear a sementeira.

São sempre muros e precipícios

Quando reparo por trás dos indícios.

 

 

464 – Podado

 

Um homem desligado

Do próprio país,

Perde a raiz,

De Deus podado.

 

Não devém cidadão do mundo.

Castrado,

É infecundo

Em qualquer traslado.

 

Só pelo particular

Atingimos o geral:

Um amor requer um lar

Com quanto lhe for leal.

 

Tudo o que for abstracto

Vive em ânsia

Pelo trato

Discreto

E concreto

Que lhe dará substância.

 

 

465 – Consciência

 

A má consciência

É uma consciência boa:

É da virtude a premência

Que dentro de nós reboa,

De nós se apodera, escusa,

- E nos acusa!

 

 

466 – Ponto

 

Solitário ponto

Na gigantesca escuridão

Do Cosmos envolvente,

Eis a Terra, o planeta onde me aponto

Com a mão

Tremente.

 

Tão obscuro

Dentro da imensa vastidão,

Nenhum indício apuro

De que Alguém

No fim

Virá de Além

Pegar-me na mão

Para me livrar de mim.

 

 

467 – Semente

 

A democracia contém

A semente da própria destruição,

Afinal:

O poder de escolha é também

A decisão

De poder escolher mal.

 

Tolerá-lo,

À democracia

Traz o abalo

De andar sob pontaria.

 

Eliminá-lo

Matá-la-ia.

 

 

468 – Emigrado

 

No mundo há brancos, pretos,

Amarelos e emigrados.

Divergem nos tectos,

Na fortuna, nos cuidados…

 

O emigrado é aquele

Que não pode mudar de condição

Como ninguém muda a cor da pele

Conforme a ocasião.

 

 

469 – Volubilidade

 

A graciosa volubilidade

Esconde do espírito a pobreza

Como mascara a natureza

Dum terreno a esterilidade

Com a facúndia de que te encantas

De efémeras plantas.

 

E de igual modo te seduz

Aquela máscara de luz.

 

No fim pagarás caro

O ouropel como um bem raro.

 

 

470 – Uma

 

Esta coisa que anda, bebe e come,

Que pode ter filhos, matar-lhes a fome,

Educá-los admiravelmente,

Faz de mulher tão bem, em suma,

Que pode realmente

Ser uma!

 

 

471 – Imaginário

 

Uma pequena alteração

No imaginário

Tem um bem maior condão

Para transmudar o vário

Transcorrer da vida

Do que alcança

Uma força desmedida

De mudança.

 

O invisível e pequeno,

Aqui como na terra,

É que aduba o terreno

Para os mistérios que encerra.

 

 

472 – Irrepetidos

 

Fugir e perseguir,

Desejar e ser casto.

De todo o coração

A alguém se unir

E, antes de gasto,

Com igual paixão

Um rumo próprio descobrir.

 

Separar para unificar,

Unir para autonomizar:

Na eterna equilibração,

A rota da união

Dos contrários,

Nos caminhos irrepetidos

E vários

De que somos entretecidos.

 

 

473 – Muda

 

A língua muda

Se me trava,

A verdade se me gruda

E crava,

Desnuda:

- O mundo muda

E fica tal como estava!

 

Mas, por trás da máscara ruda,

Que é que esquivo espreitava,

Que fogo, que lava?…

 

- Estar ombro a ombro com alguém

Ajuda,

Mas quem? Mas quem?

 

 

474 – Quelhos

 

São máquinas, aparelhos,

Móveis, modelos, sistemas…

- E tudo são quelhos

Em redor dos problemas.

 

Via certeira

É apenas pensar.

Máquina inteira:

- Raciocinar!

 

 

475 – Arriscando

 

Só arriscando admitir a humanidade

Que nos une como iguais

Lograrás romper um trilho à identidade

De autonomias reais.

 

Negar mundo aos sentimentos

Impede-te de usar a inteligência,

Entre os instrumentos

O mais fecundo,

A desvelar a experiência

Emocional até ao fundo.

 

A vivência humana,

Quando a reduzes ao fazer,

São dados que entram e saem do computador,

Onde se te aplana

Tua liberdade e dignidade,

Sem lugar, sequer,

Para o amor.

Que é feito de tua verdade?

 

Então, definido

O que é relevante,

Já nada mais tem sentido:

Doravante,

A realidade,

Redu-la a desconexas atitudes,

Prognosticas científico o que há-de

Daquilo provir com que te iludes.

 

Discrepante a vivência

Oficial

E a experiência

Real,

Bloqueada qualquer entrada

Dos sentimentos à rede entremeada,

 

- Eis como a cisão

Entre a inteligência e o sentimento

Obtém integral consagração,

Momento a momento,

Por toda a civilização.

 

Até quando

Te irás, de lés a lés, por tua mão

Castrando?

 

 

476 – Famoso

 

Em regra, quem é famoso

Por aquilo que ele diz

É que desde há muito atrás

Condiz, contrafaz, rediz,

Laborioso,

Tudo aquilo que ele faz.

 

 

477 – Agimos

 

Quando agimos,

É que reflectimos antes.

Agir é uma planta dos cimos

Mal brotando da terra por instantes.

 

Ao arrancá-la, verás

Que funda raiz nos traz!

 

 

478 – Morte

 

A morte é origem da vida,

O primeiro nascimento:

Vimos da morte sofrida

Momento a momento.

Não nasceremos sequer

Se antes não morrer alguém

Para nos dar que viver.

Se por nós e para nós

Não morrer nunca ninguém,

No mundo seremos pós

Que os ventos sopram além,

Nada atrás nem adiante,

O zero distante.

 

Um buraco no vazio

Do infinito,

Gelado, mudo frio

Dum grito.

 

 

479 – Povo

 

Pobre povo onde mantive

Meus gozos,

Mais forte que os poderosos,

Sobrevive.

 

Do poder a grandeza

Inelutável morreu;

Das gentes a fraqueza,

Porém, se robusteceu:

Os alcatruzes da nora

Nunca esperam a demora.

 

Sempre o fado

Tarde ou cedo alcança

O prato equilibrado

Da balança.

 

 

480 – Poesia

 

A poesia descobre a relação

Entre todas as coisas, consistente,

E a todas liga em união,

Como um único ente

Infinitamente

Existente.

 

A poesia é o chão

Virente

Onde Deus faz questão

De andar presente.

 

 

481 – Aleijões

 

Do povo os devoradores,

Ei-los no alto.

Em baixo, as vítimas dos senhores,

No catafalco.

 

No alto, os zângãos ladrões,

Em baixo, as obreiras laboriosas…

- Quantos aleijões

Sangram das feridas vergonhosas

No paraíso das religiões!

 

E o céu eternamente

Indiferente…

 

Porém, a nós

Quem nos tolhe a voz?

 

A criticada indiferença

É, afinal, a de nossa presença!

 

 

482 – Teor

 

O que pensamos ao raciocinar

Determinado é do teor da língua:

Vivemos sempre na míngua

Da fronteira a ultrapassar.

 

A razão em japonês

Não pode aparentemente

O que pode em português,

Que outro é o mapa condizente.

 

Tem ideológica agenda

Bem capaz de se esconder

De quem afinal a entenda:

É uma maneira de ser!

 

Como expressão natural

De quem e como nós somos,

Simula que é original,

Sem preconceitos, e o que pomos

Na palavra, em boa fé,

Parece o mundo qual é.

 

A máquina fica fora,

É fácil verificar

Que o mundo que ela elabora

Dela o há-de recriar.

 

Mas a frase em certo aspecto

Como uma máquina opera:

Qualquer pergunta é um projecto

Cujo esquema nos onera.

 

Sempre impelidos por ele

Espalhamos pelo  mundo

O manto de nossa pele,

Vejo onde serei fecundo.

 

Para além há opacidade:

- O ser que houver é inverdade.

 

 

483 – Pintura

 

A história das artes nos consente

Libertar-nos da tirania do presente.

Três vezes mais velha é a pintura

Do que a escrita:

Quinze mil anos assegura

E credita

Na ascensão da Humanidade.

 

Miopia

De verdade

É crer que apenas hoje é dia.

 

 

484 – Aboliu

 

Aboliu sempre o comunismo,

Impôs o controlo colectivo,

Do mercado ao mecanismo.

Do mercado o fundamentalismo

Procura abolir, altivo,

Qualquer voto comunitário,

Impondo a supremacia

Do valor ao numerário.

 

Cada qual dele na via,

Ambos erram, extremados.

 

Só quanto equilibraria

Políticas e mercados,

As regras com os mandados

Mais a acção que os cumpriria,

É que, finalmente,

Em vez de quanto agora nos ilude

Em qualquer ideologia,

Tal atitude

Nos consente

A saúde

Que no mundo escasseia,

Hoje em dia,

E o desfeia.

 

 

485 – Eventos

 

Nos eventos sociais

Há participantes

Pensantes

Demais.

 

Do pensamento ao dado

O laço

É deveras complicado,

Já que nele me embaraço:

 

A mente é da realidade,

Guia-nos os actos,

E os actos terão impactos

Em tudo o que a mente invade.

A conjuntura

Varia, contingente,

Pelo que penso na altura

E o porvir

É diferente

Pelo modo como agir.

 

Mesmo que certo pensara

O que pensara, decerto

Ao fim nunca estou mais perto

Do que ao princípio visara.

 

E, se mais longe alcancei,

É que da altura diviso

A imensidão que não sei

E já nem sei que é que viso.

 

 

486 – Complexo

 

O mundo em que vivemos é complexo.

Para ter a perspectiva

De onde as decisões podem radicar

Não vou dar ao todo meu amplexo:

A realidade esquiva

Antes vou simplificar.

 

Metáfora, analogia,

Toda a construção mental

No caos introduzia

Qualquer ordem sectorial,

Quando embora distorcia

Tudo o mais neste sinal.

 

A distorção acrescenta

Algo ao mundo compreendido:

Quanto mais pensamos mais aumenta

O que há para pensar, descomedido:

A realidade é dada

Ao pensamento

E é também por ele formada,

Como um fermento..

 

Nunca o pensamento compreender

Pode por inteiro a realidade,

Que mais rica fatalmente ela há-de ser

Que a compreensão que nos agrade.

 

O real tem a capacidade

De surpreender o pensamento

E pensar é um elemento

Capaz de criar realidade.

Esta reciprocidade,

Se é o nosso tormento,

É também nossa esperança:

- É a verdade

Que se alcança,

Tanto na mente que a entrança

Como na factualidade.

 

 

487 – Falta

 

Qual,

Na falta de seguro critério,

O interesse geral?

- Este é o fundamental

Mistério.

 

Depois, tem de ser perseguido

Com grande circunspecção,

Por tentativa e erro, de ouvido,

Com olhos no coração…

 

Reclamar que se conhece

O que é do geral interesse

É um erro tão profundo

Como negar-lhe existência neste mundo.

 

Entre o ser e o não-ser

Nasce, cresce e floresce

O que é do geral interesse,

- E ninguém o vislumbra sequer!

 

 

488 – Mina

 

O fundamentalismo do mercado

Nos mina o democrático caminho.

E o fracasso político, por seu lado,

Daquele sendo um resultado,

De peso é um argumento que adivinho

A favor

Do fervor

Do fundamentalismo de mercado.

- Como quebrar então o cadeado

Que a si próprio se alimenta

Do que em nós há destroçado

Na tormenta?

 

 

489 – Mentira

 

O sistema prefere

A mentira que preserva a convenção

À verdade que a fere

E deita ao chão.

 

Que há-de ser de nossa vida

Se apenas com sistemas lida?

Logo que a verdade que o abale

Quenquer

Fale,

O sistema impõe a medida

Que o cale.

 

A farsa

De nossa vida

Por sistemas esparsa

E diluída!

 

 

490 – Produtoras

 

Inteligência e criatividade

São produtoras, não produto

De qualquer educação que persuade.

 

Às vezes a pior sequela

Que a esta imputo

É que sejam vítimas dela.

 

A perversão

Vem de ser a educação a condutora

Em lugar de atenta e devotada produção

Provinda da inovação

Da criatividade que nos melhora.

 

 

491 – Sabedoria

 

A sabedoria

Instaura ideais e fins valiosos.

É o que nos diferencia

Das máquinas, dos robôs especiosos

Que nada extasia

Nem choram eventos dolorosos.

 

- Por que será que a educação

Nunca inicia

Aos gozos

De tal função?

 

Entre a aprendizagem do facto

E a do valor,

Por que não um pacto

Em lugar do desamor?

 

Custará tanto assim respeitar

A liberdade de optar?

 

 

492 – Buscam

 

As ciências buscam o comum

No aparentemente diferente,

As humanidades, o diferente

No aparentemente semelhante.

Que o rumo de ambas seja um,

Como é difícil e distante!

O problema,

O humanista melhor o formula

Que o soluciona,

O cientista melhor o soluciona

Que o formula.

Eis o dilema!

 

O humanista mora mais perto

Da solução errada para o problema certo,

A solução certa o cientista

Para o problema errado tem em vista…

 

- A mútua integração numa só via

Um porvir bem melhor prometeria!

 

 

493 – Entender

 

É mau que a maioria creia

Entender o próprio comportamento.

Pior, quando dos outros, volta e meia,

Julga ter o final desvelamento

 

Os indivíduos ignoram

Porque fazem o que fazem

E, dos mais, porque demoram

E se comprazem

Em arbitrárias atitudes.

 

Por que te iludes?

Ninguém se compreende,

Quanto mais

Aos demais!

 

O mistério nos surpreende

E rende,

Só nos ficam vestígios e sinais.

 

 

494 – Desenvolvimento

 

Desenvolvimento,

Desejo e capacidade

Em aumento

Para acorrer à própria necessidade

E anseios morais,

Bem como aos dos mais,

 

Quer motivação e aprendizagem.

Como ensinado ou motivado

Por outrem não pode ser ninguém,

Nenhum personagem,

Grupo, povoado

Ou país pode também

Desenvolver

Outro qualquer.

 

Encorajar ou facilitar, pode.

Só, porém,

Quando o protagonismo do outro acode,

Inelutável, como convém.

 

Em troca, dele a preterição

É um fracasso:

Não há desenvolvimento escasso,

É definitivamente um aleijão!

 

 

495 – Respeito

 

Respeito

Baseado no preconceito

Não tem futuro: dele o rumo

É uma nuvem de fumo.

 

Respeito de facto

Assenta do indivíduo no acto,

 

Não em qualquer

Outro pendor que houver.

 

E é uma ilusão

O respeito por obrigação.

 

 

496 – Recurso

 

Sendo o tempo o recurso mais valioso,

Único que jamais é renovável,

Ninguém, nem mesmo nós, terá fiável

Direito a esperdiçá-lo, preguiçoso.

 

No desleixo,

Mais do que ao tempo, é a mim que me deixo.

 

 

497 – Artes

 

Bem menos desenvolvidas

São as artes de dar que as de receber.

Mas porque mais desenvolvidas

Hão-de ser

Entre os menos desenvolvidos

Que entre os mais favorecidos?

É, porém, a constante

Que poderemos ver

Mundo adiante:

- Quão mais rico,

Mais usurário fico!

 

 

498 – Encantamento

 

O encantamento

Que tanto na vida nos falece

Em simultâneo a mente obscurece

E aguça a percepção do momento.

 

Até que o coração

Toma assento.

 

Eis a paz: equilibração

Entre razão

E sentimento.

 

 

499 – Tingido

 

Um encantamento é tingido

De erotismo e ludicidade,

O que não tem sentido

Na cultura da ambição:

Não tem lógica, desligada da verdade,

Zomba da razão…

 

Põe de lado as ferramentas

Com que tentas

Compreender.

Delas em lugar,

Prefere perder

Para ganhar.

 

 

500 – Complexo

 

Trabalhar demais

É um complexo emocional:

Quando ocupados corrermos mais,

A fazer menos andaremos, em geral.

 

Podemos ser activos, em suma,

Sem estarmos ocupados

E, sem realizar tarefa alguma,

Ocupar-nos, empenhados.

 

Poderei mesmo, obsessivo,

Empenhar-me numa actividade

Sem de todo activo

Me concentrar nela em verdade.

 

O trabalho mero meio

Pode ser doutro objectivo:

Ganhar dinheiro, vergar o receio,

Provar a alguém que ando vivo…

 

Hiperactividade pode

Ser a forma de evitar

Emoções, afectos, quanto acode

À razão difícil em busca de lar.

 

De repente talvez acreditemos

Que deveras importante

É o tempo que não perdemos…

- E assim nos iremos perdendo instante a instante.

 

 

501 – Sensibilidade

 

Sensibilidade moral,

A nosso encantamento mais profundo

É ser eternamente leal,

A vida inteira, até ao fim do mundo.

 

Mais questão de amor do que de norma,

De fluidez que de firmeza,

Humor elementar é o que no-la conforma.

E a qualquer princípio implantado,

Inconformado,

Em nome da primordial pureza,

Lesa.

 

Todos somos levados,

Cada qual dele à maneira,

Por todos os ventos cruzados,

Do próprio destino à jeira.

 

Cumpridos os fados,

Tudo afinal nos emparceira.

 

- Sensibilidade moral

É reconhecê-lo como a fonte primordial.

 

 

502 – Preciosa

 

A pedra preciosa

É já presente o divino:

Vagamente luminosa,

Evoca a vertente numinosa,

Espiritual destino.

 

Centelha dentro da vida material,

Aponta a divindade,

Tem magia real:

Para adulto ou criança,

Com simplicidade,

Cicatriza a ruptura que balança

Entre o céu e a terra,

O lá de cima e o cá de baixo.

 

Quando na pedra preciosa o coração encaixo,

A ferida cerra.

 

 

503 – Habitado

 

A terra é um organismo

Habitado pela alma do mundo.

Do cosmos o infindável abismo

É um animal fecundo

Que vive e respira

E tem mesmo um rosto expressivo.

 

No Universo quando isto confira

E dele o aufira,

Então deveras vivo:

O coração

Bate a compasso,

A par e passo

Com a razão.

 

 

504 – Limiar

 

O encantamento mora no limiar

Do encontro da actividade humana

Com a natureza.

 

Magia preliminar,

Momentânea faísca que dimana

Da combinatória de beleza

Entre as estrelas e a arte

Do encontro delas pela consciência,

O encantamento é a canção que o Universo

Reparte

Pelos ouvidos atentos à resplendência,

 

E é o labor artesanal e converso

Das mãos humanas admiradas

Com as geometrias pelo Cosmos espalhadas.

 

 

505 – Dádivas

 

A natureza são mil dádivas de oferta:

A beleza, um local de reclusão,

Matérias-primas, areia deserta,

De ar e de água purificação,

Território de lazer,

Habitat de infindas criaturas,

Contexto para desenvolver,

Por dentro de quenquer,

Novas estruturas…

 

A consciência verde apura tudo,

Excepto o desenvolvimento.

A de aço acinzentado

É o betão armado,

Sobretudo,

Que acolhe a cada momento.

 

Como deveras cada dom

Tem a própria razão,

Convém valorizá-lo

E um jardim no meio da floresta,

De todos para regalo,

Plantar em festa:

Talvez a fronteira fortificada

Entre a natureza e a civilização

Então

Acabe por uma vez derrubada

No chão.

 

 

506 – Obcecados

 

Quando obcecados por algo nos tornamos,

Do sexo ao chocolate,

Decerto iludidos deambulamos,

Acreditando no dislate

De que a grande quantidade

Equivale à qualidade.

 

Usar matéria-prima indiscriminadamente,

Sem consciência limitadora

Nem de inibição um quociente,

Dá-nos um lar onde ninguém mora

Ou um negócio que apenas nos devora,

Persistente.

 

A quantidade suficiente

Norteia a qualidade

De todos os vergéis da criatividade.

Explorar sem limite

É a neurose que pensa

Que há-de haver recompensa

Mas já não há nada que evite

Que nos traga uma doença.

 

 

507 – Requer

 

Dos gostos requer a comida o imaginário

Como a música o dos sons,

Como o de materiais e formas a escultura.

Primário,

Ao discernir gostos maus e bons,

Se afigura

Que provar um alimento

É uma forma de conhecimento.

 

Escola para os sentidos,

Eis do poder o lugar

Que à mesa, os pratos servidos,

A comida tem para encantar.

 

 

508 – Estranho

 

É estranho vermo-nos olhados

Como aparelhos complexos,

A análise e reparação condenados,

Em lugar de seres vivos, cuja medida

De saúde são os amplexos

E a boa comida.