SEMEANDO VIDA ALÉM O MEU FUTURO
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o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
709 – Semeando vida além o meu futuro |
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Semeando vida além o meu futuro |
Registo no soneto a terra chã |
Que avisto da altaneira barbacã |
Donde teres e haveres meus apuro. |
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A rega de cotio me asseguro |
Fruindo meu repasto da manhã |
Enquanto de meus bens chega louçã |
A cornucópia de sabor mais puro. |
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Assim me crio, me estruturo a vida |
E a vida inteira me amparando vem, |
O que sou revelando-me em seguida. |
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Acolhendo a palavra segredada |
A mim me acolherei, a mim, também: |
Vem despontando, enfim, a madrugada. |
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710 – Decairás |
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Decai um objecto de arte |
Em objecto de luxo, |
Decairás aparte, |
Qualquer que seja teu debuxo, |
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Dado o pendor natural |
De quanto deste mundo for |
Em piorar, de mal em mal, |
Enquanto o valor |
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Dum esforço nobre o não sustiver |
Acima do centro de gravidade |
Que nele houver. |
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Tal é tua identidade: |
- Para o que der e vier, |
Eterna ambiguidade. |
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711 – Trepas |
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Quando trepas a um algar, |
Disparas a uma perdiz, |
Depois retornas ao lar, |
- Ficas agrilhoado às vis |
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Tarefas de limpar cano, |
Culatra, carregador, |
Lubrificar com um pano |
Sujo de óleo e de rancor |
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A espingarda utilizada. |
- Toda a vida são faxinas |
Depois de cada jornada: |
Pagas a festa em rotinas. |
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Sabes que não terá fim |
E é o que mais fatiga, enfim. |
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712 – Evangelho |
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O verdadeiro evangelho |
Andas aí a pregar. |
Não sabes que a vida velho |
Já tornou teu dogma alvar, |
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Porque jamais se conforma |
A boas-novas quaisquer? |
A vida evangelhos forma |
Depois de se empreender, |
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Nunca são eles que a fazem. |
Mas tu e todos os mais |
Pensais que as vidas se aprazem |
A adaptar-se ao que pregais. |
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Não vedes que sois pequenos |
Demais para tais terrenos? |
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713 – Cérebro |
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O cérebro dos humanos, |
Somatório colectivo |
E de solitários planos, |
É um cartulário, um arquivo |
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Secreto e bem reservado. |
A qualquer golpe de vento |
Escancara-se o traslado, |
Fica à solta o pensamento. |
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Desfolha-se a lauda escrita, |
Lê-la pode quem a fita, |
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Mas noutrem não vai topá-la, |
Que a doutrem não tem janela |
E só para dentro fala |
No selo da própria cela. |
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714 – Difícil |
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Difícil é a pessoa controlada, |
No extremo refechando a intimidade. |
Tanto se encontra do imo desligada |
Que ele os laços jamais enfim lhe invade. |
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Crendo inviável a interioridade |
Jamais a pode ter manifestada |
Na vida transparente e que persuade |
De quem em si a tem sempre acordada. |
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De intimidade quem for incapaz |
Paira ansioso, simultaneamente, |
Do próprio imo separado atrás |
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Como do dos demais, a arder fremente. |
Por suas mãos o inferno mais veraz |
Anda a atear que alguém sofre presente. |
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715 – Personalidades |
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De personalidades muitas feito |
Quando não tomo tento de que sou |
Ou quando um ego o todo me tomou, |
A minha vida arena advém sem jeito |
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E os relacionamentos tomo a peito |
Em luta encegueirada em que me vou |
Ao sabor da inconsciência de meu voo |
E dos outros ignaro a que ando afeito. |
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O resultado é uma visão simplista |
Das vidas interiores e repletas |
Que em mim e noutrem jamais tenho em vista. |
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Prisioneiro do beco narcisista, |
Ato-me às estreitezas mais completas, |
E mais me perco quanto mais insista. |
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716 – Complexo |
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Quem é familiar de alma, extremamente |
Descobre que é complexa e muito raro |
Qualquer alma requer o que for caro |
Ao que a razão por fim mande e comente. |
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Quem do imo próprio for bem consciente |
Pluridimensional descobre o amparo |
Em que as almas desdobram seu preparo |
Do alicerce em que a vida mora assente. |
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Então capaz de ler as expressões |
Qualquer será de algum íntimo amigo, |
Dum familiar, dum cônjuge que houver, |
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Verá que as coisas lhe darão lições: |
Veladas por detrás de seu postigo |
Nem sempre são o que parecem ser. |
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717 – Reflexão |
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A reflexão retém um sinal de alma |
Quando ela não tiver de desbravar |
Da vida o tricotado leito alvar, |
Que explicações não quer reter na palma, |
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Pois conclusões ou teorias, calma, |
A intimidade tende a não prezar, |
Antes requer em sonhos madrugar, |
Em devaneios onde o mar acalma |
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Reflectindo emoções e sentimentos. |
Qualquer exploração que os elementos |
Procura descobrir de todo o encanto |
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Voará para além dos pensamentos |
Entre sombras, mistérios e fermentos: |
- Ter alma é sermos um perfil de espanto. |
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718 – Débil |
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Débil alma, que leque de emoções, |
Quanto humor, atitudes, fantasia |
De que és dotada, a retomar por dia |
Em meus projectos, minhas ilusões! |
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Controla-se de nós a maioria |
Bastante bem mas explodir vulcões |
Irão do irracional em que os senões |
Nos trocam as pegadas como um guia. |
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Quão mais alguém exibe a sanidade |
E quão mais drástico o perfil que tem, |
Tão mais difícil tal identidade. |
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Todos nós escondemos esqueletos |
No armário que do fundo nos retém |
E há monstros a espreitar de nossos tectos. |
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719 – Ideias |
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Nossas ideias moldam sobre a vida |
Inevitavelmente uma estrutura. |
Porque simples demais tomam figura, |
Procura visão delas reflectida. |
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Tonalidades vês em que a lisura |
Ao pessimismo antes de mais convida |
E a paranóia, a depressão dorida |
Uma emoção simplista as inaugura. |
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Em grande parte uma mitologia |
Oculta mora na filosofia, |
Inefável raiz do que é vital. |
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A ideia sobre a vida, por igual, |
E quão mais simples aparenta ser, |
Mais coisas anda à sombra a revolver. |
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720 – Fertilidade |
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Trabalho de alma é que a fertilidade |
Interminável da imaginação |
Atinja qualquer tema em que a função |
Requeira ter-lhe em mira a opacidade. |
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Declarações dogmáticas como há-de |
Ultrapassá-las então tal demão? |
É de impedir a dor clara a intenção |
Com que tolhem o sonho que as invade. |
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Liberto o imaginário, criativo |
Há-de ser tanto quanto iconoclástico. |
Pulveriza o simplismo proibitivo, |
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Joga-nos para a vida mas, sarcástico, |
Quão mais libertador for e mais vivo, |
Tanto mais dele o alarme dói fantástico. |
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721 – Olhar |
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Aquele olhar que possa ver o mundo |
Invisível que afecta o que é visível, |
Como o requeiro tanto e que falível |
Responde ao que procuro ali fecundo! |
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Fantasias de antanho, um bem credível, |
Das tradições o sótão, mesmo imundo, |
Que um lar infantil tornam e jucundo, |
A fé num modo em que arde amor vivível, |
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Qualquer mundivisão ambiental, |
- Tudo permeia, afunda nas entranhas |
E além do espelho de água se me esvai… |
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Aquele olhar que me é fundamental |
Que informações tão frágeis e tacanhas |
De minha obscuridade ele me extrai! |
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722 – Fina |
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Se não implanto uma relação fina |
Com meu mundo de esconsos invisíveis, |
Alienações, rupturas bem terríveis |
Meu imo ferirão no que o domina. |
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Doenças a que a vida nos inclina, |
Endémicas no mundo, de infalíveis, |
Como fracturas do ego iniludíveis |
As poderei reler quando declina. |
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A tragédia, porém, é bem maior. |
Um eu feito em pedaços ruma ao pó |
E ainda mais depressa quando for |
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De áreas hostis rasgado que houver só. |
Quando o estranho que andar em meu confim |
Adverso for à luz, cheguei ao fim. |
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723 – Véu |
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Observar com um véu em frente aos olhos |
Os eventos da vida ocasionais |
É aquela das tendências mais gerais |
Do mundo actual que mais nos traz abrolhos. |
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Este desinteresse dá sinais |
De nivelar valores, tudo em molhos, |
Nada choca, os problemas aos sobrolhos |
Nem justificam um franzir jamais. |
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Os eventos ocorrem e ninguém |
Mesmo acredita que algo haja a operar, |
Nem a dizer nem a pensar também. |
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Contudo a conjuntura à reflexão |
Cada vez mais premente anda a apelar: |
- Da cegueira ninguém colhe a visão. |
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724 – Terapia |
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Se a terapia alguém desencadeia |
Honestamente anseia descobrir-se. |
Mas também algo o quer ver esvair-se |
Ignorante do mal que nele ameia: |
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Trava o caminho, acaso o imo o receia, |
Trabalha contra, mas, ao lá bulir-se, |
Tão disfarçado logra escapulir-se |
Que entrelaçado esconde a boa teia. |
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Tão difícil acaba em detectar-se |
Que executa, por trás de tal disfarce, |
Tranquilamente, sem qualquer imagem, |
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O tempo ao tempo dando, em corrupção, |
De qualquer um a lenta destruição, |
É um perfeito labor de sabotagem. |
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725 – Esforço |
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De meu esforço na privacidade, |
Quando saber de mim num alto grau |
Tentar, então irei transpor a vau, |
Transpor das resistências a acuidade. |
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Trabalho de alma a sombra tem que invade |
A lucidez, aresta de calhau, |
Sombra que em mim navega como nau |
Fantasma das razões da escuridade. |
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Se não reconhecer este contrário, |
Durante anos trabalho sem efeito, |
Que tudo em mim ele desfaz sumário. |
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Tranquilamente e sempre em bastidores |
A sombra a que jamais eu preste preito |
Me anula a luz em noite de terrores. |
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726 – Explicação |
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Sou aquele que sempre explicação |
Arranja para seu comportamento, |
Sofisticado brilho no argumento |
Ajustado ao conflito de ocasião. |
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Nunca, porém, permito ao pensamento |
Que tenha efeito e que me dê lição, |
Que me provoque uma reconversão |
Da consciência e do conhecimento. |
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Das razões cada qual existe em si |
E não enquanto meio de ir além, |
Formam o meu escudo e um alibi. |
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Simulam consciência muito bem |
E, enquanto imitam que minha alma as preza, |
Mais não são que perder-me na defesa. |
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727 – Exibir |
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Algo exibir costuma dar sinal |
De que maior a mostra, mais a falta. |
Auto-leitura dita em versão alta |
O mais comum é que afinal só vale |
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Como um pé decisivo contra o real |
Auto-exame de alma que faz falta. |
Num livro ler perfis rápido salta |
Para uma distracção do que afinal |
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Antes devera ser a reflexão: |
Os livros estudar devém agora |
Contemporânea larga turvação. |
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As estruturas doutrem, na demora, |
Ocupam o lugar que o próprio não |
Constrói, como devia, de hora a hora. |
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728 – Itinerário |
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O itinerário dum problema sério |
A forma às vezes tem paradoxal. |
Para mim olho e vejo em mim o mal, |
Planeio-me melhor e, com império, |
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Melhorar tento, toma forma real |
Meu desempenho, toca um sonho etéreo. |
Mas correm anos e o final mistério |
Da imperfeição antiga fica igual. |
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Poderei aprender como aceitar: |
Subitamente é tudo diferente, |
Sou o mesmo e não sou neste lugar. |
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O imaginário nunca sonha em vão: |
Quando mudar no mundo eu de oriente, |
Mudo o mundo ao mudar meu coração. |
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729 – Irrelevante |
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Por vezes se afigura o reino de alma |
Irrelevante e bem pequeno até |
Se o mundo lá de fora vejo ao pé |
Onde a vida agitada não acalma. |
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É um microcosmos onde o louro e a palma |
São invisíveis mesmo à boa-fé. |
Porém, às almas crucial o que é |
São ridículos nadas onde há calma. |
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Alma dum casamento são folguedos |
De gnomos, anões, elfos nas clareiras |
Onde exorcisam dos papões os medos: |
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Alma criada por pequenos actos, |
Por pequenas palavras e maneiras, |
E inteiros somos estes entreactos. |
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730 – Científico |
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Não é uma ideia fácil de acolher |
Por quem na precisão fora formado, |
Que é tão técnico, tão iluminado, |
Tão científico a mais não poder, |
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Mas é crucial, já que alma ter requer |
Um acto ritual bem desdobrado, |
Palavras escolhidas em tom dado, |
Uma prenda simbólica qualquer, |
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Um tom de voz por vezes modulado… |
- Tudo pode alcançar aquele efeito |
Que acaso falha mas é tão sonhado. |
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Um gesto pequeníssimo algum dia |
Tem resultados tais e de tal jeito |
Que a vida inteira envolve de magia. |
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731 – Inocência |
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É um problema a inocência em exagero |
Que um casamento ler sentimental, |
Como nos filmes, como no jornal, |
Mera defesa contra o desespero: |
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Contra o pesado desafio altero |
O inferno que podia ser real |
Numa frívola forma passional, |
Tanto pior quanto melhor pondero. |
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O bom humor mais adequada via |
De atingir é a ladeira algo sombria |
Que as anedotas picam do casal. |
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Aqui no lar não vejo um paraíso, |
Para que um casamento ganhe siso |
Tem lá o diabo seu papel fatal. |
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732 – Casamento |
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Primeiro, o casamento é dum senhor |
E logo ali requer uma senhora, |
Depois são ambos quem se vai embora |
Como quem diz que o mais não tem valor. |
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Desta comunidade o perfil-mor |
Sempre é que mais alguém por ela mora, |
Se bem que ninguém veja a toda a hora |
Quem é nem como irá se contrapor. |
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O senhor, a senhora e os dois escravos, |
É o que a contar acabarei depois |
De vislumbrar do amor todos os travos. |
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Por mais que some volto ao mesmo, pois, |
Ao dividir desta fracção os avos, |
São sempre aqueles quatro ao fim os dois. |
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733 – Sentimental |
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Sentimental imagem do casal, |
Felicidade plena e sem fronteiras? |
- Recorda que é uma arena adonde inteiras |
As duas almas lidam, cada qual |
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Ali se desenvolve até final |
E amadurece ou apodrece as leiras. |
São casamento as relações primeiras, |
Só que, mais fundo, é a criação cabal |
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Dum alambique a destilar-nos alma. |
Mais que oportunidade para alguém |
À individualidade testar rumo, |
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ece famílias, tece, e leva a palma |
Duas almas semeando mais além: |
- Gera a comunidade ao dar-lhes sumo. |
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734 – Mortificação |
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Da vida de qualquer alma a verdade, |
Para existir, lograr desenvolver-se, |
Da mortificação requer que verse |
Nas experiências do correr da idade. |
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Compreensão querida em claridade, |
Expectativa ao fim de tudo ler-se, |
Método racional que me converse, |
Altos valores como identidade, |
|
A mortificadoras experiências |
Os hei-de sujeitar e, dissolvidos, |
Germinarão então novas vivências. |
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Sem tais mortes jamais serão colhidos |
Os dons de qualquer alma: as evidências |
Jamais são dela os trilhos preferidos. |
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735 – Torvelinho |
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O casamento pode parecer |
Um acordo entre dois, mas bem mais fundo, |
É um torvelinho de almas tão profundo |
Que iniciação é sempre de quenquer, |
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Muda fundamental tanto do mundo |
Como da percepção de si que houver. |
O iniciático rito a dor prefere, |
Emoções reorganiza que, fecundo, |
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Perspectivou noutro perfil de vida, |
Por meio de tensão bem dolorosa |
No imaginário que ao amor convida. |
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Quem a felicidade espera, goza |
De amarga confusão de sentimentos |
- E serão meros do casal fermentos. |
|
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736 – Retiver |
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Num casamento que alma retiver |
O par descobre aquela intimidade |
Que mais que a confiança lhe requer, |
Que a compreensão mútua que lhe agrade. |
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O estranho deste além é que ser há-de |
Duma incompreensão fruto qualquer, |
Da desconfiança algures que o invade, |
Que obriga cada qual a se conter, |
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É num distanciamento que há lugar |
Doutrem a qualquer alma que vier |
Como à do casamento em meio ao lar, |
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Imprevisíveis sempre a acontecer. |
Apenas o que for superficial |
Conhecer-se acredita no casal. |
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737 – Intuitos |
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Nossos intuitos, mesmo os mais conscientes, |
Podem ter subjacentes mecanismos |
Que servem a escapar mais aos abismos |
Que as almas a acolher lá residentes. |
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Se exprimimos, porém, antes os sismos |
Que abalam regiões mais inconscientes, |
Os campos do destino então presentes |
Suportam arrojados montanhismos. |
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Providência e factores transpessoais |
Aproximamos com respeito e calma, |
Serão do espírito fiéis sinais. |
|
A intimidade cria qualquer alma |
Se utilizarmos meios adequados |
Dela a acolher os vínculos sagrados. |
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738 – Desafio |
|
Haverá melhor forma de evitar |
O desafio de evoluir no amor |
Do que preocupar-se, com fervor, |
Com as razões, explicações a dar? |
|
De maneira pacífica e sem par |
Vou contra a validade ou o valor |
Das mudanças sentidas e a propor, |
Que tudo permaneça no lugar. |
|
As mudas é melhor analisar |
Como do casamento o génio que anda |
Mui subrepticiamente a caminhar. |
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Então já não há culpas nem doenças |
A lançar para uma ou outra banda, |
De liberdade são tudo sentenças. |
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739 – Recentrado |
|
Um casamento em almas recentrado |
É menos de elementos subjectivos, |
Intencionais, pois não são dos mais vivos |
Em relação que nada põe de lado. |
|
Pode ser uma vida o resultado |
Em que há lugar aos feitos mais esquivos, |
A germinar de potenciais e arquivos |
Originais que de alma são traslado. |
|
A lonjura um quer, outro a intimidade, |
Um a vida em casal, outrem os filhos, |
Aqui, mudança, além, perenidade, |
|
Um é por ordem, outro, por sarilhos… |
- Se de mim próprio quero as preferências |
Vou preferir é do outro as evidências. |
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740 – Celebrem |
|
Celebrem os casais a união das vidas |
E de alma as qualidades ancestrais |
Com a poesia, preces rituais, |
Actos tradicionais, vinhos, bebidas… |
|
O casamento é sacro, que o sagrais |
Por nele as vidas serem erigidas |
E por o espiritual tomar medidas |
De penetrar nas vidas que levais. |
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Não é pensando em mitos, teologia, |
Que o milagre vivemos do casal, |
É nele entrando inteiro pela via |
|
Do que ele tem de milagroso e mágico. |
Se honrar dele os mistérios é que vale, |
O intuito contrariar-lhe será trágico. |
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741 – Chave |
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Dar alma à vida familiar que a quer, |
Dar vida familiar que as almas queiram |
Implica a chave, aos que daqui se abeiram, |
De apreciar o que a poesia aufere |
|
Daquilo que a família mais requer. |
Não são contratos onde se emparceiram |
Casais e filhos, pois sempre aligeiram |
As relações no jogo do dever. |
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Família de alma é comunhão em rede, |
Sentida aos feixes numa evocação |
Em que se ancora, anicha e se enraíza. |
|
À perfeição os dons não os concede, |
É imaginária, pinta uma emoção, |
Toca nas almas com dedos de brisa. |
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742 – Literal |
|
É fácil a família literal |
Manter negligenciando qualquer alma. |
Talvez seja melhor rever com calma |
A imagem de família principal, |
|
Que é que ela me erigiu de espiritual, |
Se a animar meus afectos toma a palma, |
Dos sonhos que acolheu quantos acalma, |
Que faz do imaginário pessoal… |
|
Foco então a família, o lar reais. |
É provável um lar estruturado |
Na rota perder alma em qualquer lado, |
|
Que as almas nunca são estruturais: |
Por vezes o mais certo é um ideal |
Não alimentar almas, afinal. |
|
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743 – Tradicionais |
|
Rituais, costumes, hábitos preservam |
Formas tradicionais de criar filhos, |
De juntar a família com atilhos |
Que as vidas de hoje já não mais conservam. |
|
A produtividade em que refervam |
As comunicações de estrénuos brilhos, |
Mobilidades tais que nem cadilhos |
Restam – eis os ideais que nos enervam. |
|
Sentem jovens algum antagonismo, |
Rompem com tradições, largam o fardo, |
Ensaiam livre um passo mais galhardo. |
|
Mas perder tradições é um outro abismo: |
Emocionais lacunas traz a fio |
E um sonho a emurchecer sabe a vazio. |
|
|
744 – Mistérios |
|
O mal e o sofrimento são mistérios, |
Os mais profundos, sérios, de abordar. |
Os nossos pais humanos inculpar, |
Afasta-nos a nós e a eles fere-os. |
|
Responsabilidades alijar |
É um fardo aos ombros pôr-lhes, sob impérios |
Que transportar não logram, pois sidéreos |
Os abismos serão deste avatar. |
|
Fugimos a enfrentar o sofrimento |
Bem como o mal em nossas próprias vidas |
E os desafios perdem-se no vento |
|
Quando iriam moldar-nos as pegadas. |
Divinos pais desumanizam lidas, |
Casas ideais de inferno irão queimadas. |
|
|
745 – Paraíso |
|
A vida poderia um paraíso |
Devir – tal nos ocorre com frequência. |
Porém, sempre acontece uma falência, |
Esfuma no ar a meta do que viso. |
|
Mítico, este padrão é uma evidência |
Que faz parte de tudo o que ajuízo, |
Sinto-o no pormenor que me balizo, |
Em trilhos pessoais vejo-lhe a essência. |
|
Por isto é que inculpamos nossos pais |
De não sermos crianças pelo céu, |
Cândidos serafins angelicais. |
|
Mais verdadeiro era, porém, saber |
Que queda e paraíso o camafeu |
Conformam do mistério de homem ser. |
|
|
746 – Fortalecer |
|
O poder de educar, enriquecer, |
Fortalecer um filho, um familiar, |
Que a família detém, vai suplantar |
Autoridade ou medição qualquer. |
|
É-lhe inerente o dom de estimular |
A vida humana que nalguém houver, |
Tão inefável que nem pode ser |
Descrito, de tão fundo radicar. |
|
Nenhuma análise lhe explica a origem |
Mas a religião pode atestá-lo. |
Como poder de radical vertigem, |
|
Tem a magia para o bem e o mal: |
Se aqui é fortaleza sem abalo, |
Além magoa e nada então lhe vale. |
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747 – Incenso |
|
Se teu incenso não se eleva ao Pai |
Divino e mítico, então não possuis |
A sensibilidade a que atribuis |
Da família a largura que te vai |
|
De teu lar às nações que nela incluis, |
Na igual fraternidade que te atrai. |
Este sentir global, quando não cai, |
Tua sobrevivência dele fruis |
|
Na família mundial dotada de alma, |
Com a diversidade inesgotável |
Que o mundo largo traz inexorável. |
|
Na aldeia global vives que te espalma |
A tecnológica final fronteira, |
Falta a global família ter inteira. |
|
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748 – Símile |
|
Quando é que um homem símile é divino? |
Quando acasale, homem-mulher num só, |
Com alegria e com prazer, do pó |
Um filho deles gerem ao destino. |
|
Eis a trindade onde completo afim |
Tanto o que sou (de pobre mete dó) |
Como o trigo alvo que me vem da mó |
Que me transcende, se bem tomo tino. |
|
Há um paralelo entre a vivência humana |
Duma família e a natura obscura |
Da divindade que ela espelha e emana. |
|
Divinos somos mais quando casais |
Sexuais, eróticos, na força pura |
Duma família formos sendo mais. |
|
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749 – Piquenique |
|
Familiar piquenique pela empresa, |
Actividade laboral em casa |
- E depois a cultura nossa apraza |
Lar e labor, sempre ambos à defesa, |
|
A viver separados: ninguém preza, |
Se a produtividade não nos casa, |
Da família a presença, que ela atrasa |
A eficiência que nos mede a mesa. |
|
Monásticas parecem algo ser |
Certas empresas: o empregado-monge |
Mesmo família nem terá sequer. |
|
E bem mais alma poderia longe |
Este labor readquirir se em conta |
Tivera o peso a que a família monta. |
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750 – Obscurecido |
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Por vezes cada qual obscurecido |
Resulta dos papéis que desempenha |
Ou das emoções fortes que desenha |
Por ele nos demais, cujo sentido |
|
Radica na estrutura que hão vivido |
Na mútua relação e que os empenha. |
A revelar um outro lado, a senha |
São doutrem as histórias, dum olvido |
|
A evocar novos rostos ignorados |
Que cada qual reveste sem dar conta. |
Paga-se o preço de ceder a imagem |
|
Simples demais dos entes adorados |
E a recompensa que a mais alto monta |
É o novo toque de alma da triagem. |
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751 – Escola |
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Qualquer escola é programado ensino |
E uma comunidade afim de amigos. |
Da distinção menosprezar artigos |
É a rotina também a que me inclino. |
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Mas que mudança quando alguns respigos |
Celebrar da centelha de divino |
Na estrutura social: se a subordino |
Ao amor e à função mondo os perigos! |
|
O valor muda e bem radicalmente: |
Qualquer humano grupo prioritária |
A comunhão terá sobre o aparelho, |
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Mais que os produtos a amizade sente. |
Se uma cultura o condenar sumária, |
Mede a que ponto o mundo andará velho. |
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752 – Vazio |
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Quando um amigo morre é que o vazio |
O elevado valor duma amizade |
Sublinha de crueza e soledade, |
Tal se da vida me quebrara o fio. |
|
Com a morte a final profundidade |
Breve toquei, mas neste desafio |
Descubro o fado a que me não confio |
De minha radical mortalidade. |
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Vagueio pela vida com o medo |
Colado à pele e a verrumar entranhas, |
Sempre na busca do fugaz segredo. |
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Da vil ceifeira ando a driblar gadanhas |
Com médicos, sermões, crendice mágica, |
Sou de imortalidade a busca trágica. |
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753 – Mote |
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Primeiro a doença, a dor, o sofrimento |
Darão o mote ao tema do limite: |
Por mais que me projecte e me desquite |
Prenunciarão fatais o acabamento. |
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Dos mais velhos, após, o passamento |
E o dos percalços que ninguém evite, |
Todos demonstram o que ao fim palpite |
Que me apunhale num qualquer momento. |
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A morte dum amigo é a derradeira |
Pegada que penetra neste pleito, |
Queimando-me a saudade na fogueira. |
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Descobre-me mortal e, deste jeito, |
A amizade a lição dá-me primeira |
De a morte ser como um punhal ao peito. |
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754 – Esfera |
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Se cada amigo é realmente um mundo, |
Particular esfera de emoções, |
Experiências, memórias, relações, |
Qualidades que alguém terá por fundo, |
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Então me leva para aí, jucundo, |
Breve sou de tal mundo as mutações. |
Qualquer de nós é feito de uniões, |
Mundos e mundos que de amor fecundo. |
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A amizade constela um universo |
De meus significados e valores. |
Com cada amigo um certo ver converso |
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E sinto a vida ao filtro dos amores. |
Perder amigos, mundos que disperso, |
Amputa-me meus fios condutores. |
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755 – Doença |
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Se o corpo sofre, é de o tolher doença; |
Se for alma, é de falta de amizade. |
Esta germina o cosmos de verdade |
Em que vivemos: não há mais pertença |
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Se um mundo cultivado não condensa |
Em redor, em conversa que me agrade, |
Em trocas de alguns nós de afinidade, |
Nos desapegos que feliz dispensa. |
|
Atando amarras presas a um lugar, |
A amizade não é tangencial, |
Qualquer gratuita bênção concedida, |
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Mero acessório inútil e vulgar: |
É precisão e bem primordial |
Sem a qual alma alguma é construída. |
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756 – Contenção |
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Importa na amizade a contenção, |
Que um segredo guardar pode importante |
Ser para o amigo então que, confiante, |
Confidencial reporta uma ilusão. |
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O que entre amigos ocorrer serão |
Doutros amigos vindos adiante |
A intimidade que então se garante, |
A requerer discreta protecção. |
|
Igualmente contido os pensamentos |
Do amigo acolherei sem comentar |
Nem ligar aos infaustos elementos. |
|
Se minha opinião solicitar, |
Eu lha darei com todo o acatamento, |
Que ser amigo é receber e dar. |
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757 – Compatibilidade |
|
Compatibilidade não requer |
Uma amizade nunca, já que pode |
Qualquer alma ligar-se ao que lhe acode, |
Em meio às divergências que aprouver: |
|
Opinião, política que rode, |
Convicções e fés, crenças de quenquer… |
É um receptáculo a amizade, quer |
Quando conjuga, quer quando sacode. |
|
Relações tece, mas não compatíveis, |
Pela homogeneidade não se esforça, |
Cria terrenos para a intimidade: |
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Nisto é que os amigos são credíveis. |
Ter alma quer vergéis muitos e em força, |
Cada amizade é uma fecunda herdade. |
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758 – Fórmula |
|
Que coisa faz de alguém um grande amigo |
É inviável de vez de se explicar, |
Ninguém sai por aí, para aplicar |
A fórmula de pôr-nos sob o abrigo |
|
Dum verdadeiro amigo que calhar. |
Até onde mergulha não consigo |
Ver da amizade o misterioso umbigo, |
O além do intencional que ela operar. |
|
É tal como se as almas conheceram |
O tesoiro escondido em cada uma |
E aliança entre elas vão forjar alguma, |
|
Enquanto a mente que antes esqueceram |
Continua, convicta e consciente, |
Apostada em não ver quanto nos mente. |
|
|
759 – Coexistente |
|
Parece um outro coexistente em mim |
Que faz o amigo de que irei fruir, |
Nem a alegria terá mais porvir |
Se me interponho, que lhe irei dar fim. |
|
Da frente vejo que é melhor sair, |
Olhar de fora se a amizade enfim |
Sementes lança branda em meu confim |
Que bem procuro e não sei atingir. |
|
Esta amizade, todavia, pede, |
Desenvolvida embora sem a mente, |
Que a consciência os passos que lhe mede |
|
Atenta cuide e devotadamente, |
Parte integrante e firme da assistência |
Que de pé põe das almas a valência. |
|
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760 – Despidas |
|
Famílias cujos membros já não sentem |
Amizade uns por outros são despidas |
Da cola de alma que as mantém unidas. |
Em troca de amizades que nos mentem, |
|
O que há por norma são lutas renhidas |
De poder nas famílias que consentem |
Em contrapor-se em tudo o que apresentem, |
Gerações umas doutras divididas. |
|
Os pais esperam logo então que os filhos |
Tenham valores seus determinados |
Que lhes impõem duros como atilhos |
|
E os filhos, por seu lado, o que pretendem |
É os pais prender a um velho rol de fados: |
- E apenas todos a ruptura aprendem. |
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|
761 – Mistura |
|
Uma amizade implica uma mistura |
Paradoxal do que é uma intimidade |
Mais de indivíduo a justa qualidade, |
E uma com outra briga e se depura. |
|
Ao invés da família, uma amizade |
Uma certa maneira não procura |
Nem requer que vivamos, na aventura |
Da distância que é dela a identidade. |
|
É devido à distância que os amigos |
Escolherão medir proximidade. |
Em família escapamos aos perigos |
|
Uma amizade estimulando funda |
Que modere o poder que nos degrade: |
- E eis, pois, como ela inteiros nos fecunda. |
|
|
762 – Frágil |
|
Na busca da amizade é-me pedido |
A frágil alma olhar de minha esposa |
Sem a pertença ou posse de quem goza, |
Já que ela muda rápida o sentido, |
|
Move-se e pára sem ter prevenido. |
Sobre o casal a poesia e prosa, |
Do companheiro qual a acção virtuosa, |
Que é que o futuro nos tem já medido |
|
- Tudo me há-de ocupar segundo plano, |
Que sempre um lugar de alma é que é central. |
O espírito de posse é quotidiano, |
|
Porém um companheiro é tal e qual |
O fez a flébil alma em cujos fitos |
Obram além da mente nossos mitos. |
|
|
763 – Cultura |
|
Na actual cultura não é fácil ter |
Amizade na vida atarefada, |
Em que valores velhos, de assentada, |
Foram varridos do alvo de quenquer. |
|
Os bairros, campos de cultura, quer |
Para a colmeia mudem habitada, |
Quer a telha ofereçam abrigada |
Para as ruas violentas que hoje houver, |
|
Não favorecem muito as amizades. |
Trabalhos de alma querem ambiente, |
Lugar com lojas, pórticos, passeios, |
|
Onde se cruzem as afinidades, |
Com outrem cada qual devenha gente: |
De alma não são as correrias veios. |
|
|
764 – Anacrónico |
|
Quase anacrónico nos dias de hoje, |
Aura subtil da interacção humana, |
Ter maneiras um mundo meigo emana |
Que da vida pragmática nos foge. |
|
Virada à economia, faz que enoje |
Dos bons modos o apreço que engalana |
Aquela Humanidade apenas lhana, |
Que ao lucro dos proventos não se roje. |
|
Em troca, vemos regras opressivas |
E uma rudeza em trato negligente: |
Nada, ao balcão de pé, noutrem motivas, |
|
Na estrada foges ao que ao sonho tente… |
- Tais conjunturas nada facilitam |
E a vida afável nos jamais debitam. |
|
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765 – Cortesia |
|
Cortesia não é facto evidente |
Num tempo de eficiência em vez de estilo. |
Das cortes esbanjaram nobre o silo |
Dos trigais que alimentam a semente. |
|
O director será o herói presente, |
Um administrativo que em sigilo |
O lucro mede à tonelada, ao quilo, |
Que além da soma já mais nada sente. |
|
Temos de imaginar a cortesia |
Com certa liberdade e aura poética, |
Dos castelos sem nobre cantaria, |
|
Ressurgindo nalgum refinamento |
De almas sensíveis a vestir de estética |
A quotidiana capa de cinzento. |
|
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766 – Janela |
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O imaginário, de almas a janela, |
Da prática ao estilo pouco força: |
Flores na mesa, cor, e a mais não orça |
Evocar qualquer sonho duma estrela. |
|
As lojas bem podiam a comborça, |
Sempre do custo e da eficiência à trela, |
Deixar de ser, a melodia bela |
Ofertando ao cliente, a dar-lhe força. |
|
Coisas tão simples como a limpa toalha, |
Rendas bonitas e, bem encerado, |
Um móvel de carvalho, alguma talha, |
|
Dão graça à vida de qualquer dos dias… |
Estimulam bons modos que, educado, |
Quem os partilha planta de alegrias. |
|
|
767 – Superficiais |
|
Podem bons modos ser superficiais |
E formais meramente, mas também |
Uma forma eficaz de fazer bem |
Que pormenores mui comuns, vitais |
|
Respondam à emoção como convém |
A sensibilidades humanais. |
O estilo genuíno em que jantais |
É um ambiente que entrelaça além, |
|
A convivialidade recriando. |
Enfatizar a interacção apenas |
Sobrecarrega a relação, pois quando |
|
Mero é sendeiro de alegria e penas, |
Os rituais ignora e os ambientes, |
Clima e cultura de alma furta às gentes. |
|
|
768 – Directa |
|
Pode existir a relação directa |
Entre uma perda de alma dia a dia |
E toda a atrocidade que anuncia |
A guerra mundial, clara ou discreta, |
|
Como a barbaridade fugidia |
Que as ruas violenta despoleta. |
Sem relações um mundo o que acarreta |
É o veneno inconsciente que espargia, |
|
É negligenciar crianças, pobres, |
Ignorar de finados quaisquer dobres, |
Mormente se lhe vêm da negligência. |
|
É chacinar e mui virtuosamente |
Milhares de inimigos, reles gente, |
- Que de negociar não há paciência! |
|
|
769 – Grupo |
|
Nem sempre um grupo dá comunidade, |
Terá de ter labor conjunto, afecto, |
Discórdia, o colectivo por objecto, |
E os membros hão-de ser, mas de verdade, |
|
Indivíduos que pensam a cidade |
Cada qual com teor seu e projecto, |
Diversas línguas falam e por tecto |
Não é um partido só, é infinidade… |
|
|
Quando indivíduo e grupo realidades |
Deixam então de ser independentes, |
Brotam deles daí comunidades. |
|
O convívio partilha a comunhão |
Além dos desacordos lá pendentes: |
- Mas que abismal em nós é o coração! |
|
|
770 – Epicurista |
|
Uma comunidade que aprecia |
A vida intelectual e tem um gosto |
Epicurista no prazer do mosto |
Que nos serve, cordial, o dia-a-dia, |
|
Que na beleza descobrir magia |
À espiritual prática a dar rosto, |
- Duma existência de alma cobra o imposto |
Nos sinais contrastantes que anuncia: |
|
Do mundo retirada que estimula |
Afinal uma vida mais intensa, |
O gozo do prazer que se acumula |
|
Com o ascetismo numa dose imensa |
E a colectiva vida que permite |
Que a individualidade em nós concite. |
|
|
771 – Alimento |
|
Propriedade comum, de alma alimento, |
Requer das autarquias preservar |
Os públicos locais, a beira-mar, |
Parques, lagos, jardins, a cor do vento… |
|
Não basta garantir ao popular |
Que sobreviva num feliz momento, |
São prazeres mais simples fundamento |
Da alma de povos como dum lugar. |
|
A sociabilidade importa mais |
Que o apoio às empresas que produzem |
Vida biqueira de comer demais. |
|
Quando ricos e pobres mais se afastam, |
Mais os laços prováveis se reduzem, |
Todos perdem se os bens comuns se gastam. |
|
|
772 – Independente |
|
A fonte de existência independente |
Por que todos ansiamos, enraizada |
Em profundezas de alma, sobrenada |
A ponto de a não vermos decorrente |
|
Doutra matriz que não a consciente. |
Não poderá, porém, ser despertada |
Por qualquer força egoísta, por mais grada |
E voluntária que ela se apresente. |
|
Aquele que abdicar da própria ideia |
Dele mesmo lograr pode algum dia |
A rara dádiva da independência: |
|
Dom de alma não se faz, só nos ameia. |
Com hospitalidade a acolheria |
Apenas quem se abrir dela à fluência. |
|
|
773 – Âmago |
|
O âmago do indivíduo é o Universo: |
Nele descubro, pois, todas as coisas. |
O sentimento de ser em que repoisas, |
Que nos momentos calmos se impõe, terso, |
|
Não sabes como, mas não é diverso |
Da luz, do espaço, do homem cujas loisas |
Registam a unidade em que tu poisas |
Com ele na igual fonte onde o ser verso. |
|
Ser indivíduo é descobrir-me eu mesmo |
Enquanto comunhão do mundo inteiro, |
Que jamais sou eu quando me ensimesmo. |
|
O microcosmo sou, poço primeiro |
Misterioso e fundo, num segredo: |
Sinto-me eu próprio de raiz sem medo. |
|
|
774 – Conversas |
|
Falar com alma é preferir conversas |
Da terra próximas, do que é vivido, |
Do rumo em tudo que é por nós seguido, |
Mas à pragmática são acaso adversas. |
|
Técnicas não; no devaneio tersas, |
O modo favorito perseguido |
É a reflexão, reminiscência, erguido |
O imaginário, tal pendão nas berças. |
|
Conversar leva o sangue a circular, |
Inovador, membros além depois, |
Asas ao corpo leves a emprestar, |
|
Já que é um dos canais de alma e de arrebóis |
E mais rápido o corpo se aligeira |
Se de alma a vida real devém leveira. |
|
|
775 – Terapia |
|
A terapia de alma vem da fala, |
Já que é de alma falar e não curar, |
Mais significativo é conversar |
Que amarrar à quebrada vida a tala. |
|
A conversa ergue o evento ante quem cala |
Para alturas sem par de imaginar, |
Faz-nos sentir vivos, como a voar |
Sobre o tempo e o lugar sem fazer mala. |
|
De retornar a nós é uma maneira, |
De nos relacionar connosco e os mais. |
Portanto, agradar vai sobremaneira: |
|
É conhecer-nos, eis-nos como tais. |
Eu nem sabia que pensava assim |
Até o ter proferido e ver-me a mim. |
|
|
776 – Escrivaninha |
|
Dentro em mim trago a escrivaninha leve, |
Útero de conter e de incubar, |
De guardar coisas com que me importar, |
Acaso antigas, de memória breve… |
|
Humor, presença de alma sempre teve |
A minha escrivaninha e, ao conversar, |
Tesoiros de memória, de evocar, |
Trarei, as freimas pondo à vez em greve. |
|
Inextricavelmente todas minhas, |
Transportarei recordações dum lado |
Para o outro, como aura de adivinhas. |
|
De intimidades meu jardim selado, |
A fonte de conversa mais gostosa |
Almas gémeas fermenta e eterna glosa. |
|
|
777 – Descentrado |
|
Diverge conversar de discutir, |
De argumentar, é menos orientado, |
De objecto e de objectivo descentrado. |
Conversar é viver e residir, |
|
É falar e com sexo haver amado, |
Conforme a notação que revestir. |
Conversar é bem vivo me sentir, |
A ponto de a um local me haver ligado |
|
De maneira que nem a arquitectura |
Nem mesmo o enquadramento natural |
Podiam dar-me o que falar me apura. |
|
Algumas divisões da própria casa |
Vivas devêm só quando em geral |
Sopro à lareira de falar a brasa. |
|
|
778 – Escutar |
|
Quem escutar não sabe, então deveras |
Não sabe conversar: urge acolher |
O que outrem apresenta, receber |
Dos gavetões o material de esperas, |
|
Tratá-lo atento, respeitoso o ter. |
Muita conversa coroada de heras |
São disputas das mais altas esferas |
Onde ninguém ouve ninguém sequer. |
|
Nestas conversas não há fala, não, |
Já que não há ninguém que nos receba. |
Comunicar, tudo é simulação. |
|
Não há o prazer de andar aos pensamentos, |
Às lendas como de água que alguém beba, |
E o corpo estiola então sem sentimentos. |
|
|
779 – Polida |
|
Com amabilidades, a polida |
Conversa de epidérmica atenção |
Poderá não bastar para a função |
De as almas evocar que o mundo olvida. |
|
Similarmente a uma discussão |
Onde o apogeu da ideia perseguida |
Se atinge ao discernir luz dentre a vida, |
Também do falar íntimo a feição |
|
Evoca as almas do local sombrio, |
Muitas vezes, onde ambos gostariam |
De não atarem da conversa o fio. |
|
Atingir o lugar onde mais dói |
É o mais curto caminho que rompiam |
A um toque de alma em tudo o que nos rói. |
|
|
780 – Metáfora |
|
De hoje metáfora, o final produto |
Trai o cuidado exagerado tido |
Com conclusões e aplicações, sentido |
Que em nossos dias é um salvo-conduto. |
|
Resultado final não perseguido, |
Porém, é de conversa um bom conduto: |
De parte alguma é trilha ou viaduto, |
De mais conversa apenas é seguido, |
|
Sem findar em resposta ou solução. |
Verdadeira conversa apreciar |
É remoer ideias, experiências, |
|
Vezes sem conta, rumo ao coração, |
Com cambiantes mais a emocionar |
Que dum saber a duplicar vivências. |
|
|
781 - Ego |
|
Como o tema abordado na conversa |
Pouco importa, mal o ego anda envolvido. |
Quem se esforçar por ver bem acolhido |
Um argumento que um saber lhe versa, |
|
Marcar um ponto à crença nele imersa, |
Pregar sermão dos lemas ao sentido, |
Em tais metas apenas envolvido |
Terá o empenho e conversar dispersa. |
|
Tais objectivos andam carregados |
De narcisismo e não dão muito espaço |
Para haver com as almas os cuidados. |
|
À conversa é inerente um toque de alma, |
Abre pouco dos egos para o traço, |
Divaga no pomar por entre a calma. |
|
|
782 – Pairando |
|
Vai pairando a conversa entre as pessoas, |
Dela tomando o tempo, o ritmo acolhe |
Que descobre adequado, até que esfolhe |
Pétala a pétala o prazer e as loas. |
|
As rápidas conversas não são boas: |
Viáveis, são truncadas. Se as escolhe, |
Um substituto da genuína colhe |
Quem já os trigais não vê que sobrevoas. |
|
Uma conversa quer desenvolver-se |
Com um ritmo, um rumar que é próprio dela, |
Pouco ligando à lógica que verse, |
|
Da fantasia busca a escapadela: |
Aos temas ligam fios invisíveis |
E os laços são por norma imprevisíveis. |
|
|
783 – Alimentos |
|
Os alimentos de alma são vulgares, |
Tanto, por conseguinte, que de lado |
Facilmente são postos: desprezado |
Tende a ser quanto, enfim, não se der ares, |
|
Quando problemas mais protocolares, |
Mais importantes hajam despontado |
A exigir atenção como cuidado. |
Parecem valer mais do que os vagares |
|
Duma conversa, feita a conferência, |
Quando, em boa verdade, as almas podem |
Requerer muito mais outra valência. |
|
É que bem mais que à mente informação |
Requer a fome de alma, se lhe acodem, |
O gozo puro ter da fala à mão. |
|
|
784 – Cartas |
|
Escrever cartas tem a fantasia, |
O ritual atento à intimidade. |
Algo há-de acontecer à identidade |
De pensamentos, emoções que havia |
|
Se numa carta os formular um dia. |
Logo divergem, se o papel invade |
A malha articulada que me agrade, |
Que altera o campo em quem a pronuncia. |
|
As palavras acabam colocadas |
Num contexto emotivo diferente, |
Falam a um nível de novéis entradas |
|
Que à ruminação prestam um serviço: |
Não é o entendimento dado à mente, |
É sempre um halo de alma que anda nisso. |
|
|
785 – Deambulamos |
|
Ao invés da conversa, numa carta |
Já não deambulamos ao acaso, |
Escolhemos palavras caso a caso, |
Mesmo o informal a cada qual aparta. |
|
Tudo é cuidado e o pensamento acarta |
O que iremos e não verter no vaso. |
Do dia-a-dia a estética que aprazo |
Um canal de alma abriu e ali a farta. |
|
Embora a carta seja endereçada |
A um indivíduo em particular, |
Para o que escreve oferta, na jornada, |
|
De reflectir o ensejo com vagar. |
É imaginário aquele a quem a devo |
E o que pensar a mim primeiro o escrevo. |
|
|
786 – Tonalidade |
|
Na carta escuto doutrem a palavra |
Com a tonalidade da figura |
Mais a cor que nosso íntimo lhe apura, |
Ela toda, afinal, de minha lavra. |
|
Quando escrevo a um amigo, ei-lo apalavra |
Em mim imagens que me configura, |
De meu íntimo parte da estrutura |
Que à imagem dele ao fim toda escalavra. |
|
Outrem recordo, não no que ele for, |
Mas no que em mim há inscrito de inefável, |
É de mim parte, gesta dum amor. |
|
Em minha carta falo do agradável |
Que é conversar com meu fiel amigo |
Tanto em si próprio como em mim comigo. |
|
|
787 – Frente |
|
Numa carta olho em frente o pensamento, |
Presenciá-lo vou fora de mim, |
Dou-lhe existência externa, às mais afim. |
Da fala às vezes vero fundamento |
|
É uma função que toma por seu fim. |
Ora, a carta destina-se ao momento |
De reflectir em cada fundamento |
Mais que ao contar de qualquer coisa assim… |
|
Mudar do funcionar ao reflectir |
Convida as almas a integrar-se ali, |
Dando-lhes tempo a ponderar, medir, |
|
A repensar no texto o que haja em si. |
A fala em carta, sendo literária, |
O imaginário solta em dança vária. |
|
|
788 – Sacrários |
|
De cartas minhas caixas são sacrários, |
Do Tabernáculo ecos da Aliança. |
Sempre que ali voltamos, lá descansa |
Nossa atenção, desviada dos cenários |
|
De preocupações, perigos vários, |
Orientada agora a quanto a lança |
Rumo a um eterno que jamais alcança. |
Tais evasões do tempo são precários |
|
Mas efectivos de alma condimentos |
Que lhe fornecem dieta de memória, |
De exaltação e de melancolia. |
|
Bom é revisitar quaisquer momentos |
De dor, de agrado, como aliás de glória, |
A alimentar meu imo em cada dia. |
|
|
789 – Sóbrio |
|
Àquele que for sóbrio, for severo |
Escapa a perspectiva da ironia. |
Qualquer alma é multímoda, aprecia |
Olhar o evento não dum ponto mero |
|
Mas dos mais variados que haveria. |
Ter humor é não ter ângulo zero, |
Mas ter os de fugir ao desespero, |
Da vista estreita escapo à tirania. |
|
O evento trágico, o infeliz, são vistos |
Na partilha comum da companhia, |
Da anedota na trama, da alegria. |
|
Sendo a inerrância, a perfeição, uns quistos, |
Nelas é que íntimo ninguém vai ser, |
Que é nos malogros que alma tem quenquer. |
|
|
790 – Tentações |
|
Às tentações que importa se esquivar |
Se do mito de Vénus a verdade |
Reside estranha na ilogicidade |
De na ilusão a vida germinar, |
|
De no que tece a ameaça culminar, |
Caindo nós, em nossa alvar vontade, |
Num insensato agir, se tal agrade? |
É o velho ensinamento retomar |
|
De que acolher a vida exuberante |
Convida à iniciação mais dolorosa |
Em obscuros mistérios logo adiante. |
|
As desilusões andam com certeza |
Servindo aspectos em que saborosa |
Se esconde funda nossa natureza. |
|
|
791 – Brinca |
|
Qualquer homem, enquanto ser que brinca, |
Brinca às actividades, desde a guerra |
Até montar a casa, que se aferra |
Ao prazer das acções em que se finca. |
|
De lado pondo o que há de sério, vinca |
O drama dos eventos terra-a-terra, |
Bebe as histórias em que a vida o ferra, |
Fruta no jogo dos negócios trinca… |
|
|
O lúdico da vida é um prazer de alma, |
Brincar eleva o chato quotidiano, |
Doutro modo pesado, cru, sem calma. |
|
Se meu ego aprecia a realidade, |
As almas gostam de sonhar todo o ano, |
Que inquietações não são menu que agrade. |
|
|
792 – Integrar |
|
Na vida integrar alma não é nunca |
Problemas resolver, que é na abertura |
Criada ao desistir, se nada apura, |
Se a lógica esgotou do chão que junca, |
|
Já quando a frustração tudo enfim trunca, |
Cede na tentativa de achar cura, |
Que então de alma germina uma figura |
Tudo mexendo com a garra adunca. |
|
Brota-nos alma quando nós mudamos |
De entender para um nível diferente |
E as emoções e sonhos acatamos. |
|
O esforço assim de resolver problemas |
Mantém as almas na lonjura ausente, |
Só a perda as deixa entrar em nossos lemas. |
|
|
793 – Sinal |
|
Sinal de alma em acção é imaginar, |
Como o dum ego agindo quanto pode, |
Através da razão, do que lhe acode, |
É sempre o de se, enfim, preocupar |
|
Por longe qualquer alma conservar: |
Compreender o expiatório bode |
Que sempre a mente em fúria ali sacode, |
Finda inviável, nunca tem lugar. |
|
Alma entender é sempre magicar, |
É ver o modo como toma forma |
Enquanto amor e apego aprofundar, |
|
É do que nos tocou aproximar-nos, |
Permanecer por baixo, como norma, |
Até que a luz culmine a revelar-nos. |
|
|
794 – Confiar |
|
Viver dum pouco de alma, pelo menos, |
Dá para confiar nas ilusões |
Românticas, desejos, emoções… |
Tal como a lógica governa plenos |
|
Os pensamentos, as mentais razões, |
Guia o desejo as almas: bem pequenos |
Soam no mundo lógico alguns trenos |
Ao desejo crivado de questões. |
|
Se num mundo vivermos que o valide |
Há quem confie, quem com ele lide: |
Logo o desejo a lógica abandona. |
|
Frequentemente é o que de nós exige: |
Insensato ao olhar do que o alije, |
É do louco, afinal, que o são se adona. |
|
|
795 – Precaução |
|
Se defensiva a precaução não for, |
Para a ilusão o salto não será |
Literalmente louco, desde já, |
Dele a loucura é de alma o pormenor |
|
De buscar alimento, festa e cor, |
De buscar a alegria que não há. |
Alma requer prazer deveras cá, |
Um gozo genuíno e de valor, |
|
Como a mente requer ideias, juízos, |
Como o corpo, alimentos, exercício. |
Quer que nos entreguemos sem avisos |
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Daquela às ilusões como a um vício, |
Às brincadeiras sérias que entretém, |
E em tais jogos do sonho nos mantém. |
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796 – Feminina |
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Das almas nossa imagem feminina, |
O nosso guia para a inconsciência, |
Mostra a ajuda que quero, de evidência, |
Ao desvendar o ignoto a que me inclina. |
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Ao penetrar mais fundo, ali destina |
De almas o trilho a positiva ciência |
Directa de rumar à fluorescência |
Da interioridade minha sina. |
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O eros se encaixa confortavelmente |
Naquele quadro de criar mais alma: |
Dos cantos misteriosos leva a palma. |
|
Estranhos sentimentos que fermente, |
Inesperadas relações, convidam |
À vida mais do que as razões que elidam. |
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|
797 – Escuridão |
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Se pretendo certezas no caminho |
Deverei caminhar na escuridão. |
Não olho junto ao candeeiro o chão |
Da chave o lugar vendo se adivinho |
|
Quando a perdi no pantanal maninho |
Onde não chega a luz deste desvão. |
Nosso eros compreender é o lampião |
Levar-lhe quando a luz não é cadinho. |
|
No escuro jaz a maior parte dele, |
Aí convida então a penetrar, |
Que ignorar a ter alma faz que apele. |
|
A vida quase inteira neste algar |
Corre, pelo que é bom penetrar nele |
E tanto o poço atrai quanto aterrar. |
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798 – Azul |
|
Pinta o eros de azul as nossas vidas, |
Eleva a estese aonde a fantasia |
Mais do que a realidade pronuncia, |
Onde nos vemos e às demais medidas |
|
Que, excedendo-nos, querem ser seguidas, |
Onde o real a branco e preto esfria, |
Trocado pela cor que eu sonharia. |
Quando o amor turva a vida, desmedidas |
|
As pegadas nos descem, sonhadoras, |
Ao abismal fundo do poço em busca |
Da beleza entrevista algumas horas, |
|
Do arco-íris retirando a cor do céu. |
De azulíneo vestida a luz que ofusca, |
No abismo ao fim tacteio o que sou eu. |
|
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799 – Compulsão |
|
A compulsão emocional é vista |
Por falta de controlo ou desrazão. |
Por que não um desejo de expressão, |
Tentativa de a vida ser conquista |
|
Das almas que a terão sempre na lista? |
Da sexualidade esta pulsão |
Pode-nos revelar onde há lesão |
Na carência vivida a que resista. |
|
Requer uma resposta, mas cuidado: |
Segui-la traz o extremo do outro lado, |
Os problemas compensa e não resolve. |
|
Busca no imaginário a via certa |
Para o nível profundo mais desperta |
E a compulsão de vez se então dissolve. |
|
|
800 – Distinga |
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É bom ter a consciência que distinga |
Quando a manipular e forçar vamos |
Ou a ser revelados nos deixamos, |
Quando ser lidos é quanto em nós vinga. |
|
É quando em nós a actividade minga |
Que a maneira devota estende os ramos, |
Que o deus faça de nós então deixamos |
O que entender até que encha a moringa: |
|
O sonho, a fantasia, o erotismo, |
Os amores, as paixões, todo o imprevisto |
Que um novo mundo arranca ao negro abismo. |
|
É que o melhor de nós consiste nisto: |
Não em nos revelar pormos cuidados, |
Antes, porém, em sermos revelados. |
|
|
801 – Mágico |
|
Do sexo o mágico poder de unir |
Tem um negligenciado vector preto, |
Ignorado perigo, mas concreto, |
Que poderá operar no que atrair. |
|
Por alguém sexualmente irei discreto |
Ficar prendido que no mais, se vir, |
Em todos os pendores que fruir, |
Não é um bom companheiro a que dê tecto. |
|
Há muito jovem que é bem inocente, |
Muita mulher que é pouco experiente, |
Grudados a violentos, criminosos… |
|
Encarar convirá tal magnetismo |
Como atracção do amor para o abismo: |
Pago a magia com da tumba os gozos. |
|
|
802 – Bênção |
|
É uma bênção um pouco de vaidade: |
Vai levar a cuidar melhor de si, |
Atractivo a postar-se agora aqui, |
Visível a devir com mais verdade. |
|
A moda pode derivar dali, |
Alma lhe dando, a estimular beldade |
E cuidados no lar, na identidade |
Que queira cultivar sem frenesi. |
|
|
Porém, quando a vaidade for sintoma, |
Fuga ou compensação do que frustrou, |
Não marca do carácter que se toma, |
|
Devém a vida vaga e já sem voo. |
Não é da sã vaidade este problema, |
É de algures perdido haver-lhe o lema. |
|
|
803 – Pureza |
|
Em nossa vida cultivar pureza |
A sexualidade enriquecer |
Pode, sem por pudor sê-lo sequer, |
Por resistir ao sexo a que embeleza. |
|
Como ofendida em piadas que despreza |
Ou por revistas que atrairão quenquer |
Pode a pureza se sentir sofrer, |
Como da ocasional do sexo presa |
|
Sentir-se retraída e condenar, |
- Só porque imenso tem prazer a dar. |
Da vida o afastamento há-de encarar-se |
|
Como maneira de elevar o sexo |
Ao mundo e às artes, que tudo é conexo, |
- Tudo é prazer no mais subtil disfarce. |
|
|
804 – Saltita |
|
Viver a vida erótica é seguir |
A bola que saltita de infantil |
E o lado brincalhão, por entre mil, |
Fazê-lo vida fora divertir. |
|
Que a própria vida venha distrair |
E nos seduza inteira em seu perfil! |
Quanto de sério tenho, o que refile, |
É que de ver ao fim vai-me impedir |
|
E de apreciar decerto a sedução |
Com que deparo aqui todos os dias. |
Levamos tudo a peito e as demasias |
|
Da adultez a secura é o que terão. |
O sexo às vezes é o convite aceite |
Para as almas brincarem com deleite. |
|
|
805 – Barreiras |
|
Morais barreiras contornando o sexo, |
Dado o poder da sombra que ele tem, |
Compreendemos que é quanto convém, |
Só que depende ao fim de qual é o nexo. |
|
O canto de alma que anda ali conexo |
Profundamente melindrado advém |
Pelo modelo errado que também |
Duma moral espúria tem reflexo. |
|
Defensiva moral não é genuína: |
Sendo autoprotectora, nos inclina |
Ao narcisismo mais superficial. |
|
Sendo imaginativa, se aprofunda |
E o prazer de alma orienta e tudo inunda: |
Quão mais sexual a vida, mais moral. |
|
|
806 – Subtil |
|
Moral com alma é gradual, subtil, |
Paradoxal, complexa, individual, |
De itinerário gradativo, actual, |
E leva tempo a construir perfil |
|
De errado e certo em áreas cada qual |
Mais hesitante em joeirar, de mil, |
As vidas e os valores que assimile |
Para a prioridade do que vale. |
|
Quem acolher apenas moralismo |
Contra a moral com alma já conhece |
À partida a resposta em catecismo, |
|
Julga, apressado, tudo o que acontece. |
E em áreas vulneráveis, mesmo o experto |
Tomba no preconceito mais deserto. |
|
|
807 – Moralidade |
|
Moralidade é força poderosa |
Se numa vida de alma bem dotada, |
Que mantém lealdades na jornada, |
Fidelidade à relação que goza. |
|
Desde que não actue, de enganosa, |
Como inimiga do desejo, à entrada, |
Nem do prazer da vida em cada estrada, |
É promotora em que eros se me entrosa. |
|
Ajuda a cultivá-lo, dimensão |
Da vida humana a agir todos os dias, |
Já não é mais factor de destruição, |
|
O erótico humaniza em alegrias. |
Moral é assim poder canalizar |
Formas humanas de o executar. |
|
|
808 – Limitado |
|
Enquanto o sexo penso limitado, |
Função biológica, de intimidade, |
De comunicação propriedade, |
Surpreso fico com o inesperado. |
|
Admitir é melhor toda a verdade, |
Que sexo é de alma o aspecto ilimitado, |
Tão profundo e de alcance dilatado |
Que une corpo, emoções, imagens e há-de, |
|
Na intensa experiência, afectar tudo, |
O sentimento, os fins e talvez nunca |
Se entenda por inteiro, pasmo e mudo. |
|
Por natureza misterioso, a adunca |
Garra nos prende: amor, pornografia, |
Que rota de estranhezas anuncia? |
|
|
809 – Intimidade |
|
A intimidade sexual actua |
Com reconhecimento e com respeito |
Por mistério e loucura onde dá preito |
À sexualidade doutrem nua. |
|
É que as almas apenas tomam peito |
Nos desvios à norma que pontua, |
Como à comunidade que as acua. |
A confusão a que outrem vive atreito |
|
Em mim a descobri até criar |
À fantasia alheia em mim lugar. |
Tolerá-la não logro, no limite, |
|
Mas, no geral, alargo o imaginário, |
Que as almas correm trilho rico e vário, |
A sexual fantasia é o meu desquite. |
|
|
810 – Raízes |
|
O sexo tem raízes que bem fundo |
Nos penetram no corpo e mui depressa |
No coração alastram que tropeça, |
Embora sem querer, no que é fecundo. |
|
Delicada, à invasão sensível, essa |
Matriz de alma é um espelho que jucundo |
Nos testa decisivo e, quanto abundo |
Dela, exprime no gesto em que começa. |
|
O sexo tira emocional poder |
Das fantasias de alma e dos contactos. |
Se exploro, manipulo, uso esconder, |
|
Tudo em potencial de alma serão factos. |
Como nos mais aspectos dela, importa |
Sair da frente e ei-la a abrir-me a porta! |
|
|
811 – Desrespeito |
|
Do nada, como a morte, andam rupturas |
Brotando contra quanto é verdadeiro. |
A morte surpreende, é o derradeiro |
Desrespeito dos planos que te auguras, |
|
Como da relação o fim apuras |
Que de interrogação é um ponto inteiro: |
Que sentido terá tal atoleiro? |
Já que tudo da morte são figuras, |
|
Para as reviravoltas nós talvez |
Nos preparemos duma relação, |
Incluindo também dela o revés, |
|
Se vislumbrarmos mais que uma missão: |
Se honrarmos o mistério que de vez |
Do esforço nos liberta de ser chão. |
|
|
812 – Potencial |
|
Toda a ruptura é potencial início, |
E um início, semente de ruptura. |
Olha o voluntarismo e quanto apura |
É que a contradição da vida é ofício. |
|
Imaginar com alma me assegura |
Que das iniciações qualquer resquício |
Sentido ao tempo traz, por benefício, |
Contra o que a mente lógica procura. |
|
Inícios e rupturas cá se imbricam |
Uns nos outros de modo misterioso |
E os conceitos jamais se lhes aplicam. |
|
Só pode apreciá-las generoso |
Quem sensibilidade ande a apurar |
À dimensão sagrada do vulgar. |
|
|
813 – Leiras |
|
Fora das leiras de alma a procurar |
Tendemos as razões dos sentimentos. |
O problema é que usamos argumentos |
Que das acções irão alma tirar. |
|
Quando do imaginário se lograr |
Ver a seriedade de elementos, |
Racionalizações jamais aos centos |
Queremos ter ao decisões tomar. |
|
Sempre nos sentirmos de viver culpados |
E com alma ao tomar iniciativas, |
Às intuições colhendo os predicados |
|
Como às expressões do íntimo mais vivas, |
As atitudes nunca mais serão |
Tão incompletas como as de hoje são. |
|
|
814 – Iniciação |
|
A iniciação é de alma, não dum eu: |
Não sou eu a crescer como a escutar |
Os cânticos sagrados devagar |
Que de adultez segredos têm de seu. |
|
Da relação perfeita o dogma meu, |
Auto-suficiências de bom par, |
Controlo dum porvir a assegurar, |
- A ritos de passagem submeteu |
|
Tudo a vida, senão não poderiam |
Servir a rota adulta nem cumprir |
O papel nos mistérios que auferiam. |
|
A ruptura é o momento de enfrentar |
O primário, o temível que surgir, |
As mortes que em mim haja a cultivar. |
|
|
815 – Impacto |
|
Quando o impacto da vida nós sentimos, |
Tal quando morre alguém que é nosso afim, |
O amor inesperado nos diz sim |
Ou significativa muda vimos, |
|
Chamar-lhe sofrimento decidimos, |
Que desorienta, abala e a dor enfim |
Provoca em nós de não saber que fim |
O futuro nos traz preso em tais limos. |
|
Porém, de ângulo mais universal |
De algo é visita sobrenatural, |
De angélico, fatídico ou diabólico. |
|
É simultaneamente impessoal |
E bem mais construtivo que, afinal, |
Um sofrimento sem fulgor bucólico. |
|
|
816 – Vantagem |
|
De trabalhar com alma uma vantagem, |
Em vez de se encontrar a solução |
Para os problemas que na vida irão, |
É uma oportunidade de a triagem |
|
Atingir o âmago em qualquer questão, |
Da inteligência vendo além da imagem: |
Pormenor literal corta a viagem, |
Distrai do mais profundo, da amplidão. |
|
Sentimentos de amor intensos podem |
As almas empurrar para a ribalta: |
No drama da paixão-ruptura acodem |
|
Os arqueológicos padrões em alta. |
Mais que da vida real imediata |
As almas são do tempo que nos ata. |
|
|
817 – Paradoxos |
|
Do poder o problema interpessoal |
É que de paradoxos é repleto. |
Quem indefeso e vítima em concreto |
Se sente acaso tem de, literal, |
|
Aprender a tornar-se por completo |
Vulnerável, aberto e, por igual, |
Receptivo ao poder que lhe faz mal |
Sem destruído ser dele ao decreto: |
|
Na impotência atolar-se é uma maneira |
De esquivar-se ao poder. A tentativa |
Não alcança, porém, a meta inteira: |
|
Anda o poder presente em forma bruta, |
Em agressão, ameaça, injúria esquiva, |
- E eis como se eternizam na disputa. |
|
|
818 – Ineficaz |
|
A mais ineficaz das reacções |
Ao equilíbrio do poder intenta |
Superficial compensação que inventa |
Como quem sofre e pede explicações. |
|
Quem tem papel de vítima razões |
A reagir com agressão violenta, |
Cólera e raiva inútil acalenta |
Nas mais extremas manifestações. |
|
Caminhos tais que de alma nada têm |
E pouco efeito exercem sobre o mundo |
Pioram os eventos que revêem. |
|
Cada vez mais se tornará patente |
Que destituído de poder no fundo |
Mais fica quem devém tão impotente. |
|
|
819 – Vítimas |
|
As vítimas não querem ter a ver |
Nada com se tornarem vulneráveis, |
Temem ficar demais tão vitimáveis |
Que acabem mais magoadas a sofrer. |
|
A solução, porém, nos infindáveis |
Recantos de emoções é remexer, |
Sentir o que é mais frágil e o poder. |
Ao invés do comum não são fiáveis |
|
As explosões de cólera, que apenas |
Mantêm divididas as fronteiras. |
As emoções em bruto bem pequenas |
|
Portas abrirão de alma às escaleiras: |
Sendo a matéria-prima de alimentos |
Convém bem amassados ter fermentos. |
|
|
820 – Alquimia |
|
Da vítima a alquimia quer coragem |
E paciência, que fácil é ceder |
À emoção pura do rancor que houver, |
Justificado, acaso, na triagem. |
|
Da simpatia a tentação colher |
Por a vítima ser, nova drenagem |
Do sentimento fácil aos que reagem |
Vai acabar por fim a requerer. |
|
Temos de descobrir que estar aberto, |
Admitir erros nossos e cegueira, |
Ser dependente dos demais, por certo |
|
É viável sem perda verdadeira |
Do poder pessoal que me persuade |
Nem de sentir a minha identidade. |
|
|
821 – Circunstâncias |
|
Quando das emoções toda a alquimia |
Corre bem na melhor das circunstãncias, |
Difícil pode ser, nas alternâncias, |
Distinguir da abertura que haveria |
|
Por um lado, a confiança e a ousadia |
E a força num crescendo cheio de ânsias |
Que por outro nos enchem de fragrâncias, |
Pois cada qualidade apoiaria, |
|
Tornaria viável a parceira |
Sem haver já segunda nem primeira. |
A cólera não tem de ser reactiva, |
|
Nem aberto ficar às influências |
De ser vítima leva às consequências: |
Nada postura quer minha passiva. |
|
|
822 – Subtis |
|
Sendo mais subtis, imaginando |
Os sentimentos, emoções, pesares, |
Não dividimos a videira aos pares, |
Moralistas de cachos sazonando, |
|
Em padrões dualistas. Sempre quando |
Vivermos nossa vida é com vagares, |
Colhendo bago a bago,quais manjares, |
Os sabores que hão-de ir-se aprofundando. |
|
As questões se alimentam do sabor, |
Não de intelectuais categorias, |
Vão emoção, não lógica, propor. |
|
Remédio e problema vão do modo |
Como cólera, raivas e alegrias, |
As concebo e a mim mesmo as acomodo. |
|
|
823 – Projecção |
|
Desastroso é tirar a projecção, |
Que as almas vivem ávidas de sonho, |
Do mundo imaginário mas risonho, |
Agridoce, da amada evocação. |
|
Unir-se qualquer alma quer e então |
Fugir não deve donde a pressuponho, |
Que a união jamais ocorre no enfadonho |
Mental conceito da visitação. |
|
Não é tão simples uma vida humana, |
A mente e o coração andam a par: |
Não quero mergulhar nem me afastar… |
|
Entre cedência e retirada emana |
O estímulo às ideias e ao desejo |
Até que à vida aprenda a dar o ensejo. |
|
|
824 – Potentes |
|
Em nós os sentimentos mais potentes |
É que contêm do íntimo as pressões, |
Quando ele nos requer as convulsões |
Da luta contra reis no trono assentes, |
|
Contradizendo nela, frequentes, |
Por rumos de alma, da razão razões. |
Dotada de alma, a vida é de emoções, |
De prazer cheia, contudo, entrementes, |
|
Uma pitada de excentricidade |
Requer de nós, de irracionalidade, |
Pagando um coração apaziguado. |
|
Imprevisível de alma é o desatino, |
Limitar-lhe é inviável o destino, |
Só no fim a inquietude há serenado. |
|
|
825 – Trejeitos |
|
De alma os trejeitos ignorar podemos |
Adormecendo-a num cruel impasse |
Quando se esforça por um novo enlace |
Que ameaçador demais nos antolhemos. |
|
Pode ser obra dum que ela ameace |
Ou da relação de ambos que tecemos: |
Casais, famílias, grupos conviemos |
Em resistir ao que nos perca a face. |
|
Um bairro viver anos pode sem |
Da integração ter de enfrentar as lutas, |
Laborais vícios sem mudar também… |
|
O desafio recusar, disputas, |
Deles ter medo sem trocar de vida, |
É o tédio germinar de alma falida. |
|
|
826 – Presto |
|
Quando presto atenção às fantasias, |
Quando ouvidos abrir a meus anseios |
A sério os reflectindo e sem receios, |
Embora contradigam minhas vias, |
|
Preferências conscientes e alegrias, |
Permitindo que confluam modo e meios |
Como vivendo irei nos entremeios, |
Já criativo animarei os dias |
|
Dando-lhes alma na contra-corrente. |
Os movimentos do imo então permito |
Que me criem o meu rosto de gente, |
|
Me esculpam toda a vida que concito. |
A identidade resultante ecoa |
Mistérios que ninguém nunca apregoa. |
|
|
827 – Bicicleta |
|
Tem duas rodas esta bicicleta |
Da vulgar vida, aqui, todos os dias: |
A temporal, a eterna, como as guias |
Por onde puxa familiar, concreta. |
|
Um monociclo às vezes preferias: |
A quotidiana roda ali directa |
Ou a da eternidade mais secreta, |
Já que ambas conjugar não deverias. |
|
De olhos no céu, perdeste o dia-a-dia, |
De olhos em terra, perdes o amanhã… |
Talvez a bicicleta quem veria |
|
Melhor conheça a vida aqui louçã: |
Eterno e tempo rodam indomáveis |
E ao fim são eles que nos tornam viáveis. |
|
|
828 – Eternidade |
|
A eternidade de alma é diferente |
Da do espírito que é de infinitude, |
Dum tempo transcendido por virtude, |
De graça estado, a bússola a oriente. |
|
De alma esta eternidade é estar presente, |
Cônscia de intemporal inquietude, |
De eventos não causados e que ilude |
A afecção pelo tempo recorrente: |
|
Meu encontro dos campos cultivados |
É eterno em mim e nunca mais se explica |
Em termos temporais convencionados. |
|
Pejado de mistério, não se aplica |
Aqui nenhum conceito e, de verdade, |
Em mim é vida e personalidade. |
|
|
829 – Fundamentalista |
|
O fundamentalista segue à risca, |
Superficial, a crença religiosa, |
Atendo-se ao sentido que há na prosa |
Do texto revelado em que se arrisca. |
|
Não lhe importam cambiantes, uma glosa, |
Leituras múltiplas, da luz faísca |
Que a ementa lhe requeima que petisca |
Da acepção literal a que se entrosa. |
|
Há fundamentalismo nos psicólogos, |
Médicos e cientistas racionais, |
Reduzidos da lógica aos monólogos. |
|
À letra, as relações têm varais. |
Importa apreciar a poesia |
De nossas ligações de cada dia. |
|
|
830 – Poética |
|
Da relação na poética um amigo |
Reconhece que um texto é cada qual, |
Dele com as histórias, manancial |
De memórias, desejos, como abrigo |
|
De intuitos e teorias que lhe sigo, |
Tudo o que exprime, que é dele sinal. |
Tal qualquer texto rico, por igual |
Camadas de sentido lhe lobrigo, |
|
Dele próprio por vezes ignoradas. |
Dizer “amo” ou “detesto”, na poesia, |
É reflexão, mudança em mil entradas, |
|
Da relação mistério à luz do dia: |
Jamais descubro inteiro que razões |
Meus pensamentos movem e emoções. |
|
|
831 – Artes |
|
Ao preparar a relação humana |
Contínuo convém mais expor-se às artes |
Que inteiro confiar só nos apartes |
Psíquicos que a ciência nos dimana. |
|
Terramoto afinal que tudo abana, |
Mais do que os temas delas que te apartes, |
Dão-te as artes saber do amor que acartes |
Na cultura geral dela mais lhana. |
|
Imersa em arte, a reflezão da vida |
Vai expandir-se e, consequentemente, |
Se um desafio vem logo em seguida, |
|
De imaginário rico pela frente |
Disporemos e a mente ei-la à medida |
De o reflectir então poeticamente. |
|
|
832 – Altas |
|
Todos temos morais posições altas |
Que, de elevadas, de pegar impedem |
Nas borras e resíduos que sucedem |
Ser a matéria de almas em que há faltas. |
|
Para nos não sujarmos, de pernaltas |
Os lamaçais transpomos, mal nos pedem |
O barro de esculpir com que nos medem |
Acasos de que, vida, nos assaltas. |
|
O paradoxo de alma construir |
É que a mais valiosa recompensa |
É a deste nada de valia imensa, |
|
Quando a matéria-prima em que bulir |
Será frequentemente, se calhar, |
A desprezada acaso e a mais vulgar. |
|
|
833 – Mutações |
|
Quando do mecanismo e da estrutura |
Da relação desvio as atenções, |
Várias ocorrem logo as mutações: |
Não pesa o fardo em nós da culpa dura, |
|
De incapazes de agir de forma pura, |
Da juvenil loucura os mais senões |
Ignoro, como à dor sinto os ferrões |
Sem dever responsável dar-me cura. |
|
Do prazer usufruo que uma vida |
De relações inteiras proporciona, |
Não busco cego a perfeição mentida. |
|
Ter alma não partilha deste apego |
À perfeição, da integridade à tona, |
Caldeia do imperfeito o meu sossego. |
|
|
834 – Modelos |
|
Da mente humana os modelos, |
Quer confinados num imo, |
Quer entrelaçando os elos |
Do mundo exterior ao cimo, |
|
Seja numa ideologia, |
Seja numa instituição, |
Por uma ou por outra via |
Sempre ao fim nos falharão. |
|
Por inconsistência interna, |
Externa contravenção, |
Ou por contra os objectivos |
|
Falhar a meta superna, |
Sempre a mente perde a mão |
Ao gerir nossos motivos. |
|
|
835 – Construção |
|
Toda a construção humana |
É fatalmente imperfeita. |
Não é desgraça ou desfeita, |
Mesmo em desespero engana. |
|
Sermos falíveis emana |
Tão negativa suspeita |
Porque a espera é sempre atreita |
A ultrapassar o que empana: |
|
Anseio de perfeição, |
De permanência e verdade, |
Querer a imortalidade… |
|
- A julgar por tal padrão |
É contraditória a sorte: |
Que vida vem de tal morte? |
|
|
836 – Estatuto |
|
Se um produto dá estatuto, |
A certa mentalidade |
Tê-lo é da vida o conduto |
|
|
Então a publicidade |
Pega a estupidez em bruto, |
Foros de racionalidade |
Lhe dá por salvo-conduto. |
|
Explora os ocos snobismos |
Baseados em causa alheia |
( Herança, origens, clubismos…) |
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De que a pretensão é cheia. |
- E quanto mais explorado |
Mais se julga o snobe grado. |