UNDÉCIMO  ITINERÁRIO

 

 

SEMEANDO VIDA ALÉM O MEU FUTURO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 709 e 836 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

709 – Semeando vida além o meu futuro

 

Semeando vida além o meu futuro

Registo no soneto a terra chã

Que avisto da altaneira barbacã

Donde teres e haveres meus apuro.

 

A rega de cotio me asseguro

Fruindo meu repasto da manhã

Enquanto de meus bens chega louçã

A cornucópia de sabor mais puro.

 

Assim me crio, me estruturo a vida

E a vida inteira me amparando vem,

O que sou revelando-me em seguida.

 

Acolhendo a palavra segredada

A mim me acolherei, a mim, também:

Vem despontando, enfim, a madrugada.

 

 

710 – Decairás

 

Decai um objecto de arte

Em objecto de luxo,

Decairás aparte,

Qualquer que seja teu debuxo,

 

Dado o pendor natural

De quanto deste mundo for

Em piorar, de mal em mal,

Enquanto o valor

 

Dum esforço nobre o não sustiver

Acima do centro de gravidade

Que nele houver.

 

Tal é tua identidade:

- Para o que der e vier,

Eterna ambiguidade.

 

 

711 – Trepas

 

Quando trepas a um algar,

Disparas a uma perdiz,

Depois retornas ao lar,

- Ficas agrilhoado às vis

 

Tarefas de limpar cano,

Culatra, carregador,

Lubrificar com um pano

Sujo de óleo e de rancor

 

A espingarda utilizada.

- Toda a vida são faxinas

Depois de cada jornada:

Pagas a festa em rotinas.

 

Sabes que não terá fim

E é o que mais fatiga, enfim.

 

 

712 – Evangelho

 

O verdadeiro evangelho

Andas aí a pregar.

Não sabes que a vida velho

Já tornou teu dogma alvar,

 

Porque jamais se conforma

A boas-novas quaisquer?

A vida evangelhos forma

Depois de se empreender,

 

Nunca são eles que a fazem.

Mas tu e todos os mais

Pensais que as vidas se aprazem

A adaptar-se ao que pregais.

 

Não vedes que sois pequenos

Demais para tais terrenos?

 

 

713 – Cérebro

 

O cérebro dos humanos,

Somatório colectivo

E de solitários planos,

É um cartulário, um arquivo

 

Secreto e bem reservado.

A qualquer golpe de vento

Escancara-se o traslado,

Fica à solta o pensamento.

 

Desfolha-se a lauda escrita,

Lê-la pode quem a fita,

 

Mas noutrem não vai topá-la,

Que a doutrem não tem janela

E só para dentro fala

No selo da própria cela.

 

 

714 – Difícil

 

Difícil é a pessoa controlada,

No extremo refechando a intimidade.

Tanto se encontra do imo desligada

Que ele os laços jamais enfim lhe invade.

 

Crendo inviável a interioridade

Jamais a pode ter manifestada

Na vida transparente e que persuade

De quem em si a tem sempre acordada.

 

De intimidade quem for incapaz

Paira ansioso, simultaneamente,

Do próprio imo separado atrás

 

Como do dos demais, a arder fremente.

Por suas mãos o inferno mais veraz

Anda a atear que alguém sofre presente.

 

 

715 – Personalidades

 

De personalidades muitas feito

Quando não tomo tento de que sou

Ou quando um ego o todo me tomou,

A minha vida arena advém sem jeito

 

E os relacionamentos tomo a peito

Em luta encegueirada em que me vou

Ao sabor da inconsciência de meu voo

E dos outros ignaro a que ando afeito.

 

O resultado é uma visão simplista

Das vidas interiores e repletas

Que em mim e noutrem jamais tenho em vista.

 

Prisioneiro do beco narcisista,

Ato-me às estreitezas mais completas,

E mais me perco quanto mais insista.

 

 

716 – Complexo

 

Quem é familiar de alma, extremamente

Descobre que é complexa e muito raro

Qualquer alma requer o que for caro

Ao que a razão por fim mande e comente.

 

Quem do imo próprio for bem consciente

Pluridimensional descobre o amparo

Em que as almas desdobram seu preparo

Do alicerce em que a vida mora assente.

 

Então capaz de ler as expressões

Qualquer será de algum íntimo amigo,

Dum familiar, dum cônjuge que houver,

 

Verá que as coisas lhe darão lições:

Veladas por detrás de seu postigo

Nem sempre são o que parecem ser.

 

 

717 – Reflexão

 

A reflexão retém um sinal de alma

Quando ela não tiver de desbravar

Da vida o tricotado leito alvar,

Que explicações não quer reter na palma,

 

Pois conclusões ou teorias, calma,

A intimidade tende a não prezar,

Antes requer em sonhos madrugar,

Em devaneios onde o mar acalma

 

Reflectindo emoções e sentimentos.

Qualquer exploração que os elementos

Procura descobrir de todo o encanto

 

Voará para além dos pensamentos

Entre sombras, mistérios e fermentos:

- Ter alma é sermos um perfil de espanto.

 

 

718 – Débil

 

Débil alma, que leque de emoções,

Quanto humor, atitudes, fantasia

De que és dotada, a retomar por dia

Em meus projectos, minhas ilusões!

 

Controla-se de nós a maioria

Bastante bem mas explodir vulcões

Irão do irracional em que os senões

Nos trocam as pegadas como um guia.

 

Quão mais alguém exibe a sanidade

E quão mais drástico o perfil que tem,

Tão mais difícil tal identidade.

 

Todos nós escondemos esqueletos

No armário que do fundo nos retém

E há monstros a espreitar de nossos tectos.

 

 

719 – Ideias

 

Nossas ideias moldam sobre a vida

Inevitavelmente uma estrutura.

Porque simples demais tomam figura,

Procura visão delas reflectida.

 

Tonalidades vês em que a lisura

Ao pessimismo antes de mais convida

E a paranóia, a depressão dorida

Uma emoção simplista as inaugura.

 

Em grande parte uma mitologia

Oculta mora na filosofia,

Inefável raiz do que é vital.

 

A ideia sobre a vida, por igual,

E quão mais simples aparenta ser,

Mais coisas anda à sombra a revolver.

 

 

720 – Fertilidade

 

Trabalho de alma é que a fertilidade

Interminável da imaginação

Atinja qualquer tema em que a função

Requeira ter-lhe em mira a opacidade.

 

Declarações dogmáticas como há-de

Ultrapassá-las então tal demão?

É de impedir a dor clara a intenção

Com que tolhem o sonho que as invade.

 

Liberto o imaginário, criativo

Há-de ser tanto quanto iconoclástico.

Pulveriza o simplismo proibitivo,

 

Joga-nos para a vida mas, sarcástico,

Quão mais libertador for e mais vivo,

Tanto mais dele o alarme dói fantástico.

 

 

721 – Olhar

 

Aquele olhar que possa ver o mundo

Invisível que afecta o que é visível,

Como o requeiro tanto e que falível

Responde ao que procuro ali fecundo!

 

Fantasias de antanho, um bem credível,

Das tradições o sótão, mesmo imundo,

Que um lar infantil tornam e jucundo,

A fé num modo em que arde amor vivível,

 

Qualquer mundivisão ambiental,

- Tudo permeia, afunda nas entranhas

E além do espelho de água se me esvai…

 

Aquele olhar que me é fundamental

Que informações tão frágeis e tacanhas

De minha obscuridade ele me extrai!

 

 

722 – Fina

 

Se não implanto uma relação fina

Com meu mundo de esconsos invisíveis,

Alienações, rupturas bem terríveis

Meu imo ferirão no que o domina.

 

Doenças a que a vida nos inclina,

Endémicas no mundo, de infalíveis,

Como fracturas do ego iniludíveis

As poderei reler quando declina.

 

A tragédia, porém, é bem maior.

Um eu feito em pedaços ruma ao pó

E ainda mais depressa quando for

 

De áreas hostis rasgado que houver só.

Quando o estranho que andar em meu confim

Adverso for à luz, cheguei ao fim.

 

 

723 – Véu

 

Observar com um véu em frente aos olhos

Os eventos da vida ocasionais

É aquela das tendências mais gerais

Do mundo actual que mais nos traz abrolhos.

 

Este desinteresse dá sinais

De nivelar valores, tudo em molhos,

Nada choca, os problemas aos sobrolhos

Nem justificam um franzir jamais.

 

Os eventos ocorrem e ninguém

Mesmo acredita que algo haja a operar,

Nem a dizer nem a pensar também.

 

Contudo a conjuntura à reflexão

Cada vez mais premente anda a apelar:

- Da cegueira ninguém colhe a visão.

 

 

724 – Terapia

 

Se a terapia alguém desencadeia

Honestamente anseia descobrir-se.

Mas também algo o quer ver esvair-se

Ignorante do mal que nele ameia:

 

Trava o caminho, acaso o imo o receia,

Trabalha contra, mas, ao lá bulir-se,

Tão disfarçado logra escapulir-se

Que entrelaçado esconde a boa teia.

 

Tão difícil acaba em detectar-se

Que executa, por trás de tal disfarce,

Tranquilamente, sem qualquer imagem,

 

O tempo ao tempo dando, em corrupção,

De qualquer um a lenta destruição,

É um perfeito labor de sabotagem.

 

 

725 – Esforço

 

De meu esforço na privacidade,

Quando saber de mim num alto grau

Tentar, então irei transpor a vau,

Transpor das resistências a acuidade.

 

Trabalho de alma a sombra tem que invade

A lucidez, aresta de calhau,

Sombra que em mim navega como nau

Fantasma das razões da escuridade.

 

 

Se não reconhecer este contrário,

Durante anos trabalho sem efeito,

Que tudo em mim ele desfaz sumário.

 

Tranquilamente e sempre em bastidores

A sombra a que jamais eu preste preito

Me anula a luz em noite de terrores.

 

 

726 – Explicação

 

Sou aquele que sempre explicação

Arranja para seu comportamento,

Sofisticado brilho no argumento

Ajustado ao conflito de ocasião.

 

Nunca, porém, permito ao pensamento

Que tenha efeito e que me dê lição,

Que me provoque uma reconversão

Da consciência e do conhecimento.

 

Das razões cada qual existe em si

E não enquanto meio de ir além,

Formam o meu escudo e um alibi.

 

Simulam consciência muito bem

E, enquanto imitam que minha alma as preza,

Mais não são que perder-me na defesa.

 

 

727 – Exibir

 

Algo exibir costuma dar sinal

De que maior a mostra, mais a falta.

Auto-leitura dita em versão alta

O mais comum é que afinal só vale

 

Como um pé decisivo contra o real

Auto-exame de alma que faz falta.

Num livro ler perfis rápido salta

Para uma distracção do que afinal

 

Antes devera ser a reflexão:

Os livros estudar devém agora

Contemporânea larga turvação.

 

As estruturas doutrem, na demora,

Ocupam o lugar que o próprio não

Constrói, como devia, de hora a hora.

 

 

728 – Itinerário

 

O itinerário dum problema sério

A forma às vezes tem paradoxal.

Para mim olho e vejo em mim o mal,

Planeio-me melhor e, com império,

 

Melhorar tento, toma forma real

Meu desempenho, toca um sonho etéreo.

Mas correm anos e o final mistério

Da imperfeição antiga fica igual.

 

Poderei aprender como aceitar:

Subitamente é tudo diferente,

Sou o mesmo e não sou neste lugar.

 

O imaginário nunca sonha em vão:

Quando mudar no mundo eu de oriente,

Mudo o mundo ao mudar meu coração.

 

 

729 – Irrelevante

 

Por vezes se afigura o reino de alma

Irrelevante e bem pequeno até

Se o mundo lá de fora vejo ao pé

Onde a vida agitada não acalma.

 

É um microcosmos onde o louro e a palma

São invisíveis mesmo à boa-fé.

Porém, às almas crucial o que é

São ridículos nadas onde há calma.

 

Alma dum casamento são folguedos

De gnomos, anões, elfos nas clareiras

Onde exorcisam dos papões os medos:

 

Alma criada por pequenos actos,

Por pequenas palavras e maneiras,

E inteiros somos estes entreactos.

 

 

730 – Científico

 

Não é uma ideia fácil de acolher

Por quem na precisão fora formado,

Que é tão técnico, tão iluminado,

Tão científico a mais não poder,

 

Mas é crucial, já que alma ter requer

Um acto ritual bem desdobrado,

Palavras escolhidas em tom dado,

Uma prenda simbólica qualquer,

 

Um tom de voz por vezes modulado…

- Tudo pode alcançar aquele efeito

Que acaso falha mas é tão sonhado.

 

Um gesto pequeníssimo algum dia

Tem resultados tais e de tal jeito

Que a vida inteira envolve de magia.

 

 

731 – Inocência

 

É um problema a inocência em exagero

Que um casamento ler sentimental,

Como nos filmes, como no jornal,

Mera defesa contra o desespero:

 

Contra o pesado desafio altero

O inferno que podia ser real

Numa frívola forma passional,

Tanto pior quanto melhor pondero.

 

O bom humor mais adequada via

De atingir é a ladeira algo sombria

Que as anedotas picam do casal.

 

Aqui no lar não vejo um paraíso,

Para que um casamento ganhe siso

Tem lá o diabo seu papel fatal.

 

 

732 – Casamento

 

Primeiro, o casamento é dum senhor

E logo ali requer uma senhora,

Depois são ambos quem se vai embora

Como quem diz que o mais não tem valor.

 

Desta comunidade o perfil-mor

Sempre é que mais alguém por ela mora,

Se bem que ninguém veja a toda a hora

Quem é nem como irá se contrapor.

 

O senhor, a senhora e os dois escravos,

É o que a contar acabarei depois

De vislumbrar do amor todos os travos.

 

Por mais que some volto ao mesmo, pois,

Ao dividir desta fracção os avos,

São sempre aqueles quatro ao fim os dois.

 

 

733 – Sentimental

 

Sentimental imagem do casal,

Felicidade plena e sem fronteiras?

- Recorda que é uma arena adonde inteiras

As duas almas lidam, cada qual

 

Ali se desenvolve até final

E amadurece ou apodrece as leiras.

São casamento as relações primeiras,

Só que, mais fundo, é a criação cabal

 

Dum alambique a destilar-nos alma.

Mais que oportunidade para alguém

À individualidade testar rumo,

 

ece famílias, tece, e leva a palma

Duas almas semeando mais além:

- Gera a comunidade ao dar-lhes sumo.

 

 

734 – Mortificação

 

Da vida de qualquer alma a verdade,

Para existir, lograr desenvolver-se,

Da mortificação requer que verse

Nas experiências do correr da idade.

 

Compreensão querida em claridade,

Expectativa ao fim de tudo ler-se,

Método racional que me converse,

Altos valores como identidade,

 

A mortificadoras experiências

Os hei-de sujeitar e, dissolvidos,

Germinarão então novas vivências.

 

Sem tais mortes jamais serão colhidos

Os dons de qualquer alma: as evidências

Jamais são dela os trilhos preferidos.

 

 

735 – Torvelinho

 

O casamento pode parecer

Um acordo entre dois, mas bem mais fundo,

É um torvelinho de almas tão profundo

Que iniciação é sempre de quenquer,

 

Muda fundamental tanto do mundo

Como da percepção de si que houver.

O iniciático rito a dor prefere,

Emoções reorganiza que, fecundo,

 

Perspectivou noutro perfil de vida,

Por meio de tensão bem dolorosa

No imaginário que ao amor convida.

 

Quem a felicidade espera, goza

De amarga confusão de sentimentos

- E serão meros do casal fermentos.

 

 

736 – Retiver

 

Num casamento que alma retiver

O par descobre aquela intimidade

Que mais que a confiança lhe requer,

Que a compreensão mútua que lhe agrade.

 

O estranho deste além é que ser há-de

Duma incompreensão fruto qualquer,

Da desconfiança algures que o invade,

Que obriga cada qual a se conter,

 

É num distanciamento que há lugar

Doutrem a qualquer alma que vier

Como à do casamento em meio ao lar,

 

Imprevisíveis sempre a acontecer.

Apenas o que for superficial

Conhecer-se acredita no casal.

 

 

737 – Intuitos

 

Nossos intuitos, mesmo os mais conscientes,

Podem ter subjacentes mecanismos

Que servem a escapar mais aos abismos

Que as almas a acolher lá residentes.

 

Se exprimimos, porém, antes os sismos

Que abalam regiões mais inconscientes,

Os campos do destino então presentes

Suportam arrojados montanhismos.

 

Providência e factores transpessoais

Aproximamos com respeito e calma,

Serão do espírito fiéis sinais.

 

A intimidade cria qualquer alma

Se utilizarmos meios adequados

Dela a acolher os vínculos sagrados.

 

 

738 – Desafio

 

Haverá melhor forma de evitar

O desafio de evoluir no amor

Do que preocupar-se, com fervor,

Com as razões, explicações a dar?

 

De maneira pacífica e sem par

Vou contra a validade ou o valor

Das mudanças sentidas e a propor,

Que tudo permaneça no lugar.

 

As mudas é melhor analisar

Como do casamento o génio que anda

Mui subrepticiamente a caminhar.

 

Então já não há culpas nem doenças

A lançar para uma ou outra banda,

De liberdade são tudo sentenças.

 

 

739 – Recentrado

 

Um casamento em almas recentrado

É menos de elementos subjectivos,

Intencionais, pois não são dos mais vivos

Em relação que nada põe de lado.

 

Pode ser uma vida o resultado

Em que há lugar aos feitos mais esquivos,

A germinar de potenciais e arquivos

Originais que de alma são traslado.

 

A lonjura um quer, outro a intimidade,

Um a vida em casal, outrem os filhos,

Aqui, mudança, além, perenidade,

 

Um é por ordem, outro, por sarilhos…

- Se de mim próprio quero as preferências

Vou preferir é do outro as evidências.

 

 

740 – Celebrem

 

Celebrem os casais a união das vidas

E de alma as qualidades ancestrais

Com a poesia, preces rituais,

Actos tradicionais, vinhos, bebidas…

 

O casamento é sacro, que o sagrais

Por nele as vidas serem erigidas

E por o espiritual tomar medidas

De penetrar nas vidas que levais.

 

Não é pensando em mitos, teologia,

Que o milagre vivemos do casal,

É nele entrando inteiro pela via

 

Do que ele tem de milagroso e mágico.

Se honrar dele os mistérios é que vale,

O intuito contrariar-lhe será trágico.

 

 

741 – Chave

 

Dar alma à vida familiar que a quer,

Dar vida familiar que as almas queiram

Implica a chave, aos que daqui se abeiram,

De apreciar o que a poesia aufere

 

Daquilo que a família mais requer.

Não são contratos onde se emparceiram

Casais e filhos, pois sempre aligeiram

As relações no jogo do dever.

 

Família de alma é comunhão em rede,

Sentida aos feixes numa evocação

Em que se ancora, anicha e se enraíza.

 

À perfeição os dons não os concede,

É imaginária, pinta uma emoção,

Toca nas almas com dedos de brisa.

 

 

742 – Literal

 

É fácil a família literal

Manter negligenciando qualquer alma.

Talvez seja melhor rever com calma

A imagem de família principal,

 

Que é que ela me erigiu de espiritual,

Se a animar meus afectos toma a palma,

Dos sonhos que acolheu quantos acalma,

Que faz do imaginário pessoal…

 

Foco então a família, o lar reais.

É provável um lar estruturado

Na rota perder alma em qualquer lado,

 

Que as almas nunca são estruturais:

Por vezes o mais certo é um ideal

Não alimentar almas, afinal.

 

 

743 – Tradicionais

 

Rituais, costumes, hábitos preservam

Formas tradicionais de criar filhos,

De juntar a família com atilhos

Que as vidas de hoje já não mais conservam.

 

A produtividade em que refervam

As comunicações de estrénuos brilhos,

Mobilidades tais que nem cadilhos

Restam – eis os ideais que nos enervam.

 

Sentem jovens algum antagonismo,

Rompem com tradições, largam o fardo,

Ensaiam livre um passo mais galhardo.

 

Mas perder tradições é um outro abismo:

Emocionais lacunas traz a fio

E um sonho a emurchecer sabe a vazio.

 

 

744 – Mistérios

 

O mal e o sofrimento são mistérios,

Os mais profundos, sérios, de abordar.

Os nossos pais humanos inculpar,

Afasta-nos a nós e a eles fere-os.

 

Responsabilidades alijar

É um fardo aos ombros pôr-lhes, sob impérios

Que transportar não logram, pois sidéreos

Os abismos serão deste avatar.

 

Fugimos a enfrentar o sofrimento

Bem como o mal em nossas próprias vidas

E os desafios perdem-se no vento

 

Quando iriam moldar-nos as pegadas.

Divinos pais desumanizam lidas,

Casas ideais de inferno irão queimadas.

 

 

745 – Paraíso

 

A vida poderia um paraíso

Devir – tal nos ocorre com frequência.

Porém, sempre acontece uma falência,

Esfuma no ar a meta do que viso.

 

Mítico, este padrão é uma evidência

Que faz parte de tudo o que ajuízo,

Sinto-o no pormenor que me balizo,

Em trilhos pessoais vejo-lhe a essência.

 

Por isto é que inculpamos nossos pais

De não sermos crianças pelo céu,

Cândidos serafins angelicais.

 

Mais verdadeiro era, porém, saber

Que queda e paraíso o camafeu

Conformam do mistério de homem ser.

 

 

746 – Fortalecer

 

O poder de educar, enriquecer,

Fortalecer um filho, um familiar,

Que a família detém, vai suplantar

Autoridade ou medição qualquer.

 

É-lhe inerente o dom de estimular

A vida humana que nalguém houver,

Tão inefável que nem pode ser

Descrito, de tão fundo radicar.

 

Nenhuma análise lhe explica a origem

Mas a religião pode atestá-lo.

Como poder de radical vertigem,

 

Tem a magia para o bem e o mal:

Se aqui é fortaleza sem abalo,

Além magoa e nada então lhe vale.

 

 

747 – Incenso

 

Se teu incenso não se eleva ao Pai

Divino e mítico, então não possuis

A sensibilidade a que atribuis

Da família a largura que te vai

 

De teu lar às nações que nela incluis,

Na igual fraternidade que te atrai.

Este sentir global, quando não cai,

Tua sobrevivência dele fruis

 

Na família mundial dotada de alma,

Com a diversidade inesgotável

Que o mundo largo traz inexorável.

 

Na aldeia global vives que te espalma

A tecnológica final fronteira,

Falta a global família ter inteira.

 

 

748 – Símile

 

Quando é que um homem símile é divino?

Quando acasale, homem-mulher num só,

Com alegria e com prazer, do pó

Um filho deles gerem ao destino.

 

Eis a trindade onde completo afim

Tanto o que sou (de pobre mete dó)

Como o trigo alvo que me vem da mó

Que me transcende, se bem tomo tino.

 

Há um paralelo entre a vivência humana

Duma família e a natura obscura

Da divindade que ela espelha e emana.

 

Divinos somos mais quando casais

Sexuais, eróticos, na força pura

Duma família formos sendo mais.

 

 

749 – Piquenique

 

Familiar piquenique pela empresa,

Actividade laboral em casa

- E depois a cultura nossa apraza

Lar e labor, sempre ambos à defesa,

 

A viver separados: ninguém preza,

Se a produtividade não nos casa,

Da família a presença, que ela atrasa

A eficiência que nos mede a mesa.

 

Monásticas parecem algo ser

Certas empresas: o empregado-monge

Mesmo família nem terá sequer.

 

E bem mais alma poderia longe

Este labor readquirir se em conta

Tivera o peso a que a família monta.

 

 

750 – Obscurecido

 

Por vezes cada qual obscurecido

Resulta dos papéis que desempenha

Ou das emoções fortes que desenha

Por ele nos demais, cujo sentido

 

Radica na estrutura que hão vivido

Na mútua relação e que os empenha.

A revelar um outro lado, a senha

São doutrem as histórias, dum olvido

 

A evocar novos rostos ignorados

Que cada qual reveste sem dar conta.

Paga-se o preço de ceder a imagem

 

Simples demais dos entes adorados

E a recompensa que a mais alto monta

É o novo toque de alma da triagem.

 

 

751 – Escola

 

Qualquer escola é programado ensino

E uma comunidade afim de amigos.

Da distinção menosprezar artigos

É a rotina também a que me inclino.

 

Mas que mudança quando alguns respigos

Celebrar da centelha de divino

Na estrutura social: se a subordino

Ao amor e à função mondo os perigos!

 

O valor muda e bem radicalmente:

Qualquer humano grupo prioritária

A comunhão terá sobre o aparelho,

 

Mais que os produtos a amizade sente.

Se uma cultura o condenar sumária,

Mede a que ponto o mundo andará velho.

 

 

752 – Vazio

 

Quando um amigo morre é que o vazio

O elevado valor duma amizade

Sublinha de crueza e soledade,

Tal se da vida me quebrara o fio.

 

Com a morte a final profundidade

Breve toquei, mas neste desafio

Descubro o fado a que me não confio

De minha radical mortalidade.

 

Vagueio pela vida com o medo

Colado à pele e a verrumar entranhas,

Sempre na busca do fugaz segredo.

 

Da vil ceifeira ando a driblar gadanhas

Com médicos, sermões, crendice mágica,

Sou de imortalidade a busca trágica.

 

 

753 – Mote

 

Primeiro a doença, a dor, o sofrimento

Darão o mote ao tema do limite:

Por mais que me projecte e me desquite

Prenunciarão fatais o acabamento.

 

Dos mais velhos, após, o passamento

E o dos percalços que ninguém evite,

Todos demonstram o que ao fim palpite

Que me apunhale num qualquer momento.

 

A morte dum amigo é a derradeira

Pegada que penetra neste pleito,

Queimando-me a saudade na fogueira.

 

Descobre-me mortal e, deste jeito,

A amizade a lição dá-me primeira

De a morte ser como um punhal ao peito.

 

 

754 – Esfera

 

Se cada amigo é realmente um mundo,

Particular esfera de emoções,

Experiências, memórias, relações,

Qualidades que alguém terá por fundo,

 

Então me leva para aí, jucundo,

Breve sou de tal mundo as mutações.

Qualquer de nós é feito de uniões,

Mundos e mundos que de amor fecundo.

 

A amizade constela um universo

De meus significados e valores.

Com cada amigo um certo ver converso

 

E sinto a vida ao filtro dos amores.

Perder amigos, mundos que disperso,

Amputa-me meus fios condutores.

 

 

755 – Doença

 

Se o corpo sofre, é de o tolher doença;

Se for alma, é de falta de amizade.

Esta germina o cosmos de verdade

Em que vivemos: não há mais pertença

 

Se um mundo cultivado não condensa

Em redor, em conversa que me agrade,

Em trocas de alguns nós de afinidade,

Nos desapegos que feliz dispensa.

 

Atando amarras presas a um lugar,

A amizade não é tangencial,

Qualquer gratuita bênção concedida,

 

Mero acessório inútil e vulgar:

É precisão e bem primordial

Sem a qual alma alguma é construída.

 

 

756 – Contenção

 

Importa na amizade a contenção,

Que um segredo guardar pode importante

Ser para o amigo então que, confiante,

Confidencial reporta uma ilusão.

 

O que entre amigos ocorrer serão

Doutros amigos vindos adiante

A intimidade que então se garante,

A requerer discreta protecção.

 

Igualmente contido os pensamentos

Do amigo acolherei sem comentar

Nem ligar aos infaustos elementos.

 

Se minha opinião solicitar,

Eu lha darei com todo o acatamento,

Que ser amigo é receber e dar.

 

 

757 – Compatibilidade

 

Compatibilidade não requer

Uma amizade nunca, já que pode

Qualquer alma ligar-se ao que lhe acode,

Em meio às divergências que aprouver:

 

Opinião, política que rode,

Convicções e fés, crenças de quenquer…

É um receptáculo a amizade, quer

Quando conjuga, quer quando sacode.

 

Relações tece, mas não compatíveis,

Pela homogeneidade não se esforça,

Cria terrenos para a intimidade:

 

Nisto é que os amigos são credíveis.

Ter alma quer vergéis muitos e em força,

Cada amizade é uma fecunda herdade.

 

 

758 – Fórmula

 

Que coisa faz de alguém um grande amigo

É inviável de vez de se explicar,

Ninguém sai por aí, para aplicar

A fórmula de pôr-nos sob o abrigo

 

Dum verdadeiro amigo que calhar.

Até onde mergulha não consigo

Ver da amizade o misterioso umbigo,

O além do intencional que ela operar.

 

É tal como se as almas conheceram

O tesoiro escondido em cada uma

E aliança entre elas vão forjar alguma,

 

Enquanto a mente que antes esqueceram

Continua, convicta e consciente,

Apostada em não ver quanto nos mente.

 

 

759 – Coexistente

 

Parece um outro coexistente em mim

Que faz o amigo de que irei fruir,

Nem a alegria terá mais porvir

Se me interponho, que lhe irei dar fim.

 

Da frente vejo que é melhor sair,

Olhar de fora se a amizade enfim

Sementes lança branda em meu confim

Que bem procuro e não sei atingir.

 

Esta amizade, todavia, pede,

Desenvolvida embora sem a mente,

Que a consciência os passos que lhe mede

 

Atenta cuide e devotadamente,

Parte integrante e firme da assistência

Que de pé põe das almas a valência.

 

 

760 – Despidas

 

Famílias cujos membros já não sentem

Amizade uns por outros são despidas

Da cola de alma que as mantém unidas.

Em troca de amizades que nos mentem,

 

O que há por norma são lutas renhidas

De poder nas famílias que consentem

Em contrapor-se em tudo o que apresentem,

Gerações umas doutras divididas.

 

Os pais esperam logo então que os filhos

Tenham valores seus determinados

Que lhes impõem duros como atilhos

 

E os filhos, por seu lado, o que pretendem

É os pais prender a um velho rol de fados:

- E apenas todos a ruptura aprendem.

 

 

761 – Mistura

 

Uma amizade implica uma mistura

Paradoxal do que é uma intimidade

Mais de indivíduo a justa qualidade,

E uma com outra briga e se depura.

 

Ao invés da família, uma amizade

Uma certa maneira não procura

Nem requer que vivamos, na aventura

Da distância que é dela a identidade.

 

É devido à distância que os amigos

Escolherão medir proximidade.

Em família escapamos aos perigos

 

Uma amizade estimulando funda

Que modere o poder que nos degrade:

- E eis, pois, como ela inteiros nos fecunda.

 

 

762 – Frágil

 

Na busca da amizade é-me pedido

A frágil alma olhar de minha esposa

Sem a pertença ou posse de quem goza,

Já que ela muda rápida o sentido,

 

Move-se e pára sem ter prevenido.

Sobre o casal a poesia e prosa,

Do companheiro qual a acção virtuosa,

Que é que o futuro nos tem já medido

 

- Tudo me há-de ocupar segundo plano,

Que sempre um lugar de alma é que é central.

O espírito de posse é quotidiano,

 

Porém um companheiro é tal e qual

O fez a flébil alma em cujos fitos

Obram além da mente nossos mitos.

 

 

763 – Cultura

 

Na actual cultura não é fácil ter

Amizade na vida atarefada,

Em que valores velhos, de assentada,

Foram varridos do alvo de quenquer.

 

Os bairros, campos de cultura, quer

Para a colmeia mudem habitada,

Quer a telha ofereçam abrigada

Para as ruas violentas que hoje houver,

 

Não favorecem muito as amizades.

Trabalhos de alma querem ambiente,

Lugar com lojas, pórticos, passeios,

 

Onde se cruzem as afinidades,

Com outrem cada qual devenha gente:

De alma não são as correrias veios.

 

 

764 – Anacrónico

 

Quase anacrónico nos dias de hoje,

Aura subtil da interacção humana,

Ter maneiras um mundo meigo emana

Que da vida pragmática nos foge.

 

Virada à economia, faz que enoje

Dos bons modos o apreço que engalana

Aquela Humanidade apenas lhana,

Que ao lucro dos proventos não se roje.

 

Em troca, vemos regras opressivas

E uma rudeza em trato negligente:

Nada, ao balcão de pé, noutrem motivas,

 

Na estrada foges ao que ao sonho tente…

- Tais conjunturas nada facilitam

E a vida afável nos jamais debitam.

 

 

765 – Cortesia

 

Cortesia não é facto evidente

Num tempo de eficiência em vez de estilo.

Das cortes esbanjaram nobre o silo

Dos trigais que alimentam a semente.

 

O director será o herói presente,

Um administrativo que em sigilo

O lucro mede à tonelada, ao quilo,

Que além da soma já mais nada sente.

 

Temos de imaginar a cortesia

Com certa liberdade e aura poética,

Dos castelos sem nobre cantaria,

 

Ressurgindo nalgum refinamento

De almas sensíveis a vestir de estética

A quotidiana capa de cinzento.

 

 

766 – Janela

 

O imaginário, de almas a janela,

Da prática ao estilo pouco força:

Flores na mesa, cor, e a mais não orça

Evocar qualquer sonho duma estrela.

 

As lojas bem podiam a comborça,

Sempre do custo e da eficiência à trela,

Deixar de ser, a melodia bela

Ofertando ao cliente, a dar-lhe força.

 

Coisas tão simples como a limpa toalha,

Rendas bonitas e, bem encerado,

Um móvel de carvalho, alguma talha,

 

Dão graça à vida de qualquer dos dias…

Estimulam bons modos que, educado,

Quem os partilha planta de alegrias.

 

 

767 – Superficiais

 

Podem bons modos ser superficiais

E formais meramente, mas também

Uma forma eficaz de fazer bem

Que pormenores mui comuns, vitais

 

Respondam à emoção como convém

A sensibilidades humanais.

O estilo genuíno em que jantais

É um ambiente que entrelaça além,

 

A convivialidade recriando.

Enfatizar a interacção apenas

Sobrecarrega a relação, pois quando

 

Mero é sendeiro de alegria e penas,

Os rituais ignora e os ambientes,

Clima e cultura de alma furta às gentes.

 

 

768 – Directa

 

Pode existir a relação directa

Entre uma perda de alma dia a dia

E toda a atrocidade que anuncia

A guerra mundial, clara ou discreta,

 

Como a barbaridade fugidia

Que as ruas violenta despoleta.

Sem relações um mundo o que acarreta

É o veneno inconsciente que espargia,

 

É negligenciar crianças, pobres,

Ignorar de finados quaisquer dobres,

Mormente se lhe vêm da negligência.

 

É chacinar e mui virtuosamente

Milhares de inimigos, reles gente,

- Que de negociar não há paciência!

 

 

769 – Grupo

 

Nem sempre um grupo dá comunidade,

Terá de ter labor conjunto, afecto,

Discórdia, o colectivo por objecto,

E os membros hão-de ser, mas de verdade,

 

Indivíduos que pensam a cidade

Cada qual com teor seu e projecto,

Diversas línguas falam e por tecto

Não é um partido só, é infinidade…

 

 

Quando indivíduo e grupo realidades

Deixam então de ser independentes,

Brotam deles daí comunidades.

 

O convívio partilha a comunhão

Além dos desacordos lá pendentes:

- Mas que abismal em nós é o coração!

 

 

770 – Epicurista

 

Uma comunidade que aprecia

A vida intelectual e tem um gosto

Epicurista no prazer do mosto

Que nos serve, cordial, o dia-a-dia,

 

Que na beleza descobrir magia

À espiritual prática a dar rosto,

- Duma existência de alma cobra o imposto

Nos sinais contrastantes que anuncia:

 

Do mundo retirada que estimula

Afinal uma vida mais intensa,

O gozo do prazer que se acumula

 

Com o ascetismo numa dose imensa

E a colectiva vida que permite

Que a individualidade em nós concite.

 

 

771 – Alimento

 

Propriedade comum, de alma alimento,

Requer das autarquias preservar

Os públicos locais, a beira-mar,

Parques, lagos, jardins, a cor do vento…

 

Não basta garantir ao popular

Que sobreviva num feliz momento,

São prazeres mais simples fundamento

Da alma de povos como dum lugar.

 

A sociabilidade importa mais

Que o apoio às empresas que produzem

Vida biqueira de comer demais.

 

Quando ricos e pobres mais se afastam,

Mais os laços prováveis se reduzem,

Todos perdem se os bens comuns se gastam.

 

 

772 – Independente

 

A fonte de existência independente

Por que todos ansiamos, enraizada

Em profundezas de alma, sobrenada

A ponto de a não vermos decorrente

 

Doutra matriz que não a consciente.

Não poderá, porém, ser despertada

Por qualquer força egoísta, por mais grada

E voluntária que ela se apresente.

 

Aquele que abdicar da própria ideia

Dele mesmo lograr pode algum dia

A rara dádiva da independência:

 

Dom de alma não se faz, só nos ameia.

Com hospitalidade a acolheria

Apenas quem se abrir dela à fluência.

 

 

773 – Âmago

 

O âmago do indivíduo é o Universo:

Nele descubro, pois, todas as coisas.

O sentimento de ser em que repoisas,

Que nos momentos calmos se impõe, terso,

 

Não sabes como, mas não é diverso

Da luz, do espaço, do homem cujas loisas

Registam a unidade em que tu poisas

Com ele na igual fonte onde o ser verso.

 

Ser indivíduo é descobrir-me eu mesmo

Enquanto comunhão do mundo inteiro,

Que jamais sou eu quando me ensimesmo.

 

O microcosmo sou, poço primeiro

Misterioso e fundo, num segredo:

Sinto-me eu próprio de raiz sem medo.

 

 

774 – Conversas

 

Falar com alma é preferir conversas

Da terra próximas, do que é vivido,

Do rumo em tudo que é por nós seguido,

Mas à pragmática são acaso adversas.

 

Técnicas não; no devaneio tersas,

O modo favorito perseguido

É a reflexão, reminiscência, erguido

O imaginário, tal pendão nas berças.

 

Conversar leva o sangue a circular,

Inovador, membros além depois,

Asas ao corpo leves a emprestar,

 

Já que é um dos canais de alma e de arrebóis

E mais rápido o corpo se aligeira

Se de alma a vida real devém leveira.

 

 

775 – Terapia

 

A terapia de alma vem da fala,

Já que é de alma falar e não curar,

Mais significativo é conversar

Que amarrar à quebrada vida a tala.

 

A conversa ergue o evento ante quem cala

Para alturas sem par de imaginar,

Faz-nos sentir vivos, como a voar

Sobre o tempo e o lugar sem fazer mala.

 

De retornar a nós é uma maneira,

De nos relacionar connosco e os mais.

Portanto, agradar vai sobremaneira:

 

É conhecer-nos, eis-nos como tais.

Eu nem sabia que pensava assim

Até o ter proferido e ver-me a mim.

 

 

776 – Escrivaninha

 

Dentro em mim trago a escrivaninha leve,

Útero de conter e de incubar,

De guardar coisas com que me importar,

Acaso antigas, de memória breve…

 

Humor, presença de alma sempre teve

A minha escrivaninha e, ao conversar,

Tesoiros de memória, de evocar,

Trarei, as freimas pondo à vez em greve.

 

Inextricavelmente todas minhas,

Transportarei recordações dum lado

Para o outro, como aura de adivinhas.

 

De intimidades meu jardim selado,

A fonte de conversa mais gostosa

Almas gémeas fermenta e eterna glosa.

 

 

777 – Descentrado

 

Diverge conversar de discutir,

De argumentar, é menos orientado,

De objecto e de objectivo descentrado.

Conversar é viver e residir,

 

É falar e com sexo haver amado,

Conforme a notação que revestir.

Conversar é bem vivo me sentir,

A ponto de a um local me haver ligado

 

De maneira que nem a arquitectura

Nem mesmo o enquadramento natural

Podiam dar-me o que falar me apura.

 

Algumas divisões da própria casa

Vivas devêm só quando em geral

Sopro à lareira de falar a brasa.

 

 

778 – Escutar

 

Quem escutar não sabe, então deveras

Não sabe conversar: urge acolher

O que outrem apresenta, receber

Dos gavetões o material de esperas,

 

Tratá-lo atento, respeitoso o ter.

Muita conversa coroada de heras

São disputas das mais altas esferas

Onde ninguém ouve ninguém sequer.

 

Nestas conversas não há fala, não,

Já que não há ninguém que nos receba.

Comunicar, tudo é simulação.

 

Não há o prazer de andar aos pensamentos,

Às lendas como de água que alguém beba,

E o corpo estiola então sem sentimentos.

 

 

779 – Polida

 

Com amabilidades, a polida

Conversa de epidérmica atenção

Poderá não bastar para a função

De as almas evocar que o mundo olvida.

 

Similarmente a uma discussão

Onde o apogeu da ideia perseguida

Se atinge ao discernir luz dentre a vida,

Também do falar íntimo a feição

 

Evoca as almas do local sombrio,

Muitas vezes, onde ambos gostariam

De não atarem da conversa o fio.

 

Atingir o lugar onde mais dói

É o mais curto caminho que rompiam

A um toque de alma em tudo o que nos rói.

 

 

780 – Metáfora

 

De hoje metáfora, o final produto

Trai o cuidado exagerado tido

Com conclusões e aplicações, sentido

Que em nossos dias é um salvo-conduto.

 

Resultado final não perseguido,

Porém, é de conversa um bom conduto:

De parte alguma é trilha ou viaduto,

De mais conversa apenas é seguido,

 

Sem findar em resposta ou solução.

Verdadeira conversa apreciar

É remoer ideias, experiências,

 

Vezes sem conta, rumo ao coração,

Com cambiantes mais a emocionar

Que dum saber a duplicar vivências.

 

 

781 - Ego

 

Como o tema abordado na conversa

Pouco importa, mal o ego anda envolvido.

Quem se esforçar por ver bem acolhido

Um argumento que um saber lhe versa,

 

Marcar um ponto à crença nele imersa,

Pregar sermão dos lemas ao sentido,

Em tais metas apenas envolvido

Terá o empenho e conversar dispersa.

 

Tais objectivos andam carregados

De narcisismo e não dão muito espaço

Para haver com as almas os cuidados.

 

À conversa é inerente um toque de alma,

Abre pouco dos egos para o traço,

Divaga no pomar por entre a calma.

 

 

782 – Pairando

 

Vai pairando a conversa entre as pessoas,

Dela tomando o tempo, o ritmo acolhe

Que descobre adequado, até que esfolhe

Pétala a pétala o prazer e as loas.

 

As rápidas conversas não são boas:

Viáveis, são truncadas. Se as escolhe,

Um substituto da genuína colhe

Quem já os trigais não vê que sobrevoas.

 

Uma conversa quer desenvolver-se

Com um ritmo, um rumar que é próprio dela,

Pouco ligando à lógica que verse,

 

Da fantasia busca a escapadela:

Aos temas ligam fios invisíveis

E os laços são por norma imprevisíveis.

 

 

783 – Alimentos

 

Os alimentos de alma são vulgares,

Tanto, por conseguinte, que de lado

Facilmente são postos: desprezado

Tende a ser quanto, enfim, não se der ares,

 

Quando problemas mais protocolares,

Mais importantes hajam despontado

A exigir atenção como cuidado.

Parecem valer mais do que os vagares

 

Duma conversa, feita a conferência,

Quando, em boa verdade, as almas podem

Requerer muito mais outra valência.

 

É que bem mais que à mente informação

Requer a fome de alma, se lhe acodem,

O gozo puro ter da fala à mão.

 

 

784 – Cartas

 

Escrever cartas tem a fantasia,

O ritual atento à intimidade.

Algo há-de acontecer à identidade

De pensamentos, emoções que havia

 

Se numa carta os formular um dia.

Logo divergem, se o papel invade

A malha articulada que me agrade,

Que altera o campo em quem a pronuncia.

 

As palavras acabam colocadas

Num contexto emotivo diferente,

Falam a um nível de novéis entradas

 

Que à ruminação prestam um serviço:

Não é o entendimento dado à mente,

É sempre um halo de alma que anda nisso.

 

 

785 – Deambulamos

 

Ao invés da conversa, numa carta

Já não deambulamos ao acaso,

Escolhemos palavras caso a caso,

Mesmo o informal a cada qual aparta.

 

Tudo é cuidado e o pensamento acarta

O que iremos e não verter no vaso.

Do dia-a-dia a estética que aprazo

Um canal de alma abriu e ali a farta.

 

Embora a carta seja endereçada

A um indivíduo em particular,

Para o que escreve oferta, na jornada,

 

De reflectir o ensejo com vagar.

É imaginário aquele a quem a devo

E o que pensar a mim primeiro o escrevo.

 

 

786 – Tonalidade

 

Na carta escuto doutrem a palavra

Com a tonalidade da figura

Mais a cor que nosso íntimo lhe apura,

Ela toda, afinal, de minha lavra.

 

Quando escrevo a um amigo, ei-lo apalavra

Em mim imagens que me configura,

De meu íntimo parte da estrutura

Que à imagem dele ao fim toda escalavra.

 

Outrem recordo, não no que ele for,

Mas no que em mim há inscrito de inefável,

É de mim parte, gesta dum amor.

 

Em minha carta falo do agradável

Que é conversar com meu fiel amigo

Tanto em si próprio como em mim comigo.

 

 

787 – Frente

 

Numa carta olho em frente o pensamento,

Presenciá-lo vou fora de mim,

Dou-lhe existência externa, às mais afim.

Da fala às vezes vero fundamento

 

É uma função que toma por seu fim.

Ora, a carta destina-se ao momento

De reflectir em cada fundamento

Mais que ao contar de qualquer coisa assim…

 

Mudar do funcionar ao reflectir

Convida as almas a integrar-se ali,

Dando-lhes tempo a ponderar, medir,

 

A repensar no texto o que haja em si.

A fala em carta, sendo literária,

O imaginário solta em dança vária.

 

 

788 – Sacrários

 

De cartas minhas caixas são sacrários,

Do Tabernáculo ecos da Aliança.

Sempre que ali voltamos, lá descansa

Nossa atenção, desviada dos cenários

 

De preocupações, perigos vários,

Orientada agora a quanto a lança

Rumo a um eterno que jamais alcança.

Tais evasões do tempo são precários

 

Mas efectivos de alma condimentos

Que lhe fornecem dieta de memória,

De exaltação e de melancolia.

 

Bom é revisitar quaisquer momentos

De dor, de agrado, como aliás de glória,

A alimentar meu imo em cada dia.

 

 

789 – Sóbrio

 

Àquele que for sóbrio, for severo

Escapa a perspectiva da ironia.

Qualquer alma é multímoda, aprecia

Olhar o evento não dum ponto mero

 

Mas dos mais variados que haveria.

Ter humor é não ter ângulo zero,

Mas ter os de fugir ao desespero,

Da vista estreita escapo à tirania.

 

O evento trágico, o infeliz, são vistos

Na partilha comum da companhia,

Da anedota na trama, da alegria.

 

Sendo a inerrância, a perfeição, uns quistos,

Nelas é que íntimo ninguém vai ser,

Que é nos malogros que alma tem quenquer.

 

 

790 – Tentações

 

Às tentações que importa se esquivar

Se do mito de Vénus a verdade

Reside estranha na ilogicidade

De na ilusão a vida germinar,

 

De no que tece a ameaça culminar,

Caindo nós, em nossa alvar vontade,

Num insensato agir, se tal agrade?

É o velho ensinamento retomar

 

De que acolher a vida exuberante

Convida à iniciação mais dolorosa

Em obscuros mistérios logo adiante.

 

As desilusões andam com certeza

Servindo aspectos em que saborosa

Se esconde funda nossa natureza.

 

 

791 – Brinca

 

Qualquer homem, enquanto ser que brinca,

Brinca às actividades, desde a guerra

Até montar a casa, que se aferra

Ao prazer das acções em que se finca.

 

De lado pondo o que há de sério, vinca

O drama dos eventos terra-a-terra,

Bebe as histórias em que a vida o ferra,

Fruta no jogo dos negócios trinca…

 

 

O lúdico da vida é um prazer de alma,

Brincar eleva o chato quotidiano,

Doutro modo pesado, cru, sem calma.

 

Se meu ego aprecia a realidade,

As almas gostam de sonhar todo o ano,

Que inquietações não são menu que agrade.

 

 

792 – Integrar

 

Na vida integrar alma não é nunca

Problemas resolver, que é na abertura

Criada ao desistir, se nada apura,

Se a lógica esgotou do chão que junca,

 

Já quando a frustração tudo enfim trunca,

Cede na tentativa de achar cura,

Que então de alma germina uma figura

Tudo mexendo com a garra adunca.

 

Brota-nos alma quando nós mudamos

De entender para um nível diferente

E as emoções e sonhos acatamos.

 

O esforço assim de resolver problemas

Mantém as almas na lonjura ausente,

Só a perda as deixa entrar em nossos lemas.

 

 

793 – Sinal

 

Sinal de alma em acção é imaginar,

Como o dum ego agindo quanto pode,

Através da razão, do que lhe acode,

É sempre o de se, enfim, preocupar

 

Por longe qualquer alma conservar:

Compreender o expiatório bode

Que sempre a mente em fúria ali sacode,

Finda inviável, nunca tem lugar.

 

Alma entender é sempre magicar,

É ver o modo como toma forma

Enquanto amor e apego aprofundar,

 

É do que nos tocou aproximar-nos,

Permanecer por baixo, como norma,

Até que a luz culmine a revelar-nos.

 

 

794 – Confiar

 

Viver dum pouco de alma, pelo menos,

Dá para confiar nas ilusões

Românticas, desejos, emoções…

Tal como a lógica governa plenos

 

Os pensamentos, as mentais razões,

Guia o desejo as almas: bem pequenos

Soam no mundo lógico alguns trenos

Ao desejo crivado de questões.

 

Se num mundo vivermos que o valide

Há quem confie, quem com ele lide:

Logo o desejo a lógica abandona.

 

Frequentemente é o que de nós exige:

Insensato ao olhar do que o alije,

É do louco, afinal, que o são se adona.

 

 

795 – Precaução

 

Se defensiva a precaução não for,

Para a ilusão o salto não será

Literalmente louco, desde já,

Dele a loucura é de alma o pormenor

 

De buscar alimento, festa e cor,

De buscar a alegria que não há.

Alma requer prazer deveras cá,

Um gozo genuíno e de valor,

 

Como a mente requer ideias, juízos,

Como o corpo, alimentos, exercício.

Quer que nos entreguemos sem avisos

 

Daquela às ilusões como a um vício,

Às brincadeiras sérias que entretém,

E em tais jogos do sonho nos mantém.

 

 

796 – Feminina

 

Das almas nossa imagem feminina,

O nosso guia para a inconsciência,

Mostra a ajuda que quero, de evidência,

Ao desvendar o ignoto a que me inclina.

 

Ao penetrar mais fundo, ali destina

De almas o trilho a positiva ciência

Directa de rumar à fluorescência

Da interioridade minha sina.

 

O eros se encaixa confortavelmente

Naquele quadro de criar mais alma:

Dos cantos misteriosos leva a palma.

 

Estranhos sentimentos que fermente,

Inesperadas relações, convidam

À vida mais do que as razões que elidam.

 

 

797 – Escuridão

 

Se pretendo certezas no caminho

Deverei caminhar na escuridão.

Não olho junto ao candeeiro o chão

Da chave o lugar vendo se adivinho

 

Quando a perdi no pantanal maninho

Onde não chega a luz deste desvão.

Nosso eros compreender é o lampião

Levar-lhe quando a luz não é cadinho.

 

No escuro jaz a maior parte dele,

Aí convida então a penetrar,

Que ignorar a ter alma faz que apele.

 

A vida quase inteira neste algar

Corre, pelo que é bom penetrar nele

E tanto o poço atrai quanto aterrar.

 

 

798 – Azul

 

Pinta o eros de azul as nossas vidas,

Eleva a estese aonde a fantasia

Mais do que a realidade pronuncia,

Onde nos vemos e às demais medidas

 

Que, excedendo-nos, querem ser seguidas,

Onde o real a branco e preto esfria,

Trocado pela cor que eu sonharia.

Quando o amor turva a vida, desmedidas

 

As pegadas nos descem, sonhadoras,

Ao abismal fundo do poço em busca

Da beleza entrevista algumas horas,

 

Do arco-íris retirando a cor do céu.

De azulíneo vestida a luz que ofusca,

No abismo ao fim tacteio o que sou eu.

 

 

799 – Compulsão

 

A compulsão emocional é vista

Por falta de controlo ou desrazão.

Por que não um desejo de expressão,

Tentativa de a vida ser conquista

 

Das almas que a terão sempre na lista?

Da sexualidade esta pulsão

Pode-nos revelar onde há lesão

Na carência vivida a que resista.

 

Requer uma resposta, mas cuidado:

Segui-la traz o extremo do outro lado,

Os problemas compensa e não resolve.

 

Busca no imaginário a via certa

Para o nível profundo mais desperta

E a compulsão de vez se então dissolve.

 

 

800 – Distinga

 

É bom ter a consciência que distinga

Quando a manipular e forçar vamos

Ou a ser revelados nos deixamos,

Quando ser lidos é quanto em nós vinga.

 

É quando em nós a actividade minga

Que a maneira devota estende os ramos,

Que o deus faça de nós então deixamos

O que entender até que encha a moringa:

 

O sonho, a fantasia, o erotismo,

Os amores, as paixões, todo o imprevisto

Que um novo mundo arranca ao negro abismo.

 

É que o melhor de nós consiste nisto:

Não em nos revelar pormos cuidados,

Antes, porém, em sermos revelados.

 

 

801 – Mágico

 

Do sexo o mágico poder de unir

Tem um negligenciado vector preto,

Ignorado perigo, mas concreto,

Que poderá operar no que atrair.

 

Por alguém sexualmente irei discreto

Ficar prendido que no mais, se vir,

Em todos os pendores que fruir,

Não é um bom companheiro a que dê tecto.

 

Há muito jovem que é bem inocente,

Muita mulher que é pouco experiente,

Grudados a violentos, criminosos…

 

Encarar convirá tal magnetismo

Como atracção do amor para o abismo:

Pago a magia com da tumba os gozos.

 

 

802 – Bênção

 

É uma bênção um pouco de vaidade:

Vai levar a cuidar melhor de si,

Atractivo a postar-se agora aqui,

Visível a devir com mais verdade.

 

A moda pode derivar dali,

Alma lhe dando, a estimular beldade

E cuidados no lar, na identidade

Que queira cultivar sem frenesi.

 

 

Porém, quando a vaidade for sintoma,

Fuga ou compensação do que frustrou,

Não marca do carácter que se toma,

 

Devém a vida vaga e já sem voo.

Não é da sã vaidade este problema,

É de algures perdido haver-lhe o lema.

 

 

803 – Pureza

 

Em nossa vida cultivar pureza

A sexualidade enriquecer

Pode, sem por pudor sê-lo sequer,

Por resistir ao sexo a que embeleza.

 

Como ofendida em piadas que despreza

Ou por revistas que atrairão quenquer

Pode a pureza se sentir sofrer,

Como da ocasional do sexo presa

 

Sentir-se retraída e condenar,

- Só porque imenso tem prazer a dar.

Da vida o afastamento há-de encarar-se

 

Como maneira de elevar o sexo

Ao mundo e às artes, que tudo é conexo,

- Tudo é prazer no mais subtil disfarce.

 

 

804 – Saltita

 

Viver a vida erótica é seguir

A bola que saltita de infantil

E o lado brincalhão, por entre mil,

Fazê-lo vida fora divertir.

 

Que a própria vida venha distrair

E nos seduza inteira em seu perfil!

Quanto de sério tenho, o que refile,

É que de ver ao fim vai-me impedir

 

E de apreciar decerto a sedução

Com que deparo aqui todos os dias.

Levamos tudo a peito e as demasias

 

Da adultez a secura é o que terão.

O sexo às vezes é o convite aceite

Para as almas brincarem com deleite.

 

 

805 – Barreiras

 

Morais barreiras contornando o sexo,

Dado o poder da sombra que ele tem,

Compreendemos que é quanto convém,

Só que depende ao fim de qual é o nexo.

 

O canto de alma que anda ali conexo

Profundamente melindrado advém

Pelo modelo errado que também

Duma moral espúria tem reflexo.

 

Defensiva moral não é genuína:

Sendo autoprotectora, nos inclina

Ao narcisismo mais superficial.

 

Sendo imaginativa, se aprofunda

E o prazer de alma orienta e tudo inunda:

Quão mais sexual a vida, mais moral.

 

 

806 – Subtil

 

Moral com alma é gradual, subtil,

Paradoxal, complexa, individual,

De itinerário gradativo, actual,

E leva tempo a construir perfil

 

De errado e certo em áreas cada qual

Mais hesitante em joeirar, de mil,

As vidas e os valores que assimile

Para a prioridade do que vale.

 

Quem acolher apenas moralismo

Contra a moral com alma já conhece

À partida a resposta em catecismo,

 

Julga, apressado, tudo o que acontece.

E em áreas vulneráveis, mesmo o experto

Tomba no preconceito mais deserto.

 

 

807 – Moralidade

 

Moralidade é força poderosa

Se numa vida de alma bem dotada,

Que mantém lealdades na jornada,

Fidelidade à relação que goza.

 

Desde que não actue, de enganosa,

Como inimiga do desejo, à entrada,

Nem do prazer da vida em cada estrada,

É promotora em que eros se me entrosa.

 

Ajuda a cultivá-lo, dimensão

Da vida humana a agir todos os dias,

Já não é mais factor de destruição,

 

O erótico humaniza em alegrias.

Moral é assim poder canalizar

Formas humanas de o executar.

 

 

808 – Limitado

 

Enquanto o sexo penso limitado,

Função biológica, de intimidade,

De comunicação propriedade,

Surpreso fico com o inesperado.

 

Admitir é melhor toda a verdade,

Que sexo é de alma o aspecto ilimitado,

Tão profundo e de alcance dilatado

Que une corpo, emoções, imagens e há-de,

 

Na intensa experiência, afectar tudo,

O sentimento, os fins e talvez nunca

Se entenda por inteiro, pasmo e mudo.

 

Por natureza misterioso, a adunca

Garra nos prende: amor, pornografia,

Que rota de estranhezas anuncia?

 

 

809 – Intimidade

 

A intimidade sexual actua

Com reconhecimento e com respeito

Por mistério e loucura onde dá preito

À sexualidade doutrem nua.

 

É que as almas apenas tomam peito

Nos desvios à norma que pontua,

Como à comunidade que as acua.

A confusão a que outrem vive atreito

 

Em mim a descobri até criar

À fantasia alheia em mim lugar.

Tolerá-la não logro, no limite,

 

Mas, no geral, alargo o imaginário,

Que as almas correm trilho rico e vário,

A sexual fantasia é o meu desquite.

 

 

810 – Raízes

 

O sexo tem raízes que bem fundo

Nos penetram no corpo e mui depressa

No coração alastram que tropeça,

Embora sem querer, no que é fecundo.

 

Delicada, à invasão sensível, essa

Matriz de alma é um espelho que jucundo

Nos testa decisivo e, quanto abundo

Dela, exprime no gesto em que começa.

 

O sexo tira  emocional poder

Das fantasias de alma e dos contactos.

Se exploro, manipulo, uso esconder,

 

Tudo em potencial de alma serão factos.

Como nos mais aspectos dela, importa

Sair da frente e ei-la a abrir-me a porta!

 

 

811 – Desrespeito

 

Do nada, como a morte, andam rupturas

Brotando contra quanto é verdadeiro.

A morte surpreende, é o derradeiro

Desrespeito dos planos que te auguras,

 

Como da relação o fim apuras

Que de interrogação é um ponto inteiro:

Que sentido terá tal atoleiro?

Já que tudo da morte são figuras,

 

Para as reviravoltas nós talvez

Nos preparemos duma relação,

Incluindo também dela o revés,

 

Se vislumbrarmos mais que uma missão:

Se honrarmos o mistério que de vez

Do esforço nos liberta de ser chão.

 

 

812 – Potencial

 

Toda a ruptura é potencial início,

E um início, semente de ruptura.

Olha o voluntarismo e quanto apura

É que a contradição da vida é ofício.

 

Imaginar com alma me assegura

Que das iniciações qualquer resquício

Sentido ao tempo traz, por benefício,

Contra o que a mente lógica procura.

 

Inícios e rupturas cá se imbricam

Uns nos outros de modo misterioso

E os conceitos jamais se lhes aplicam.

 

Só pode apreciá-las generoso

Quem sensibilidade ande a apurar

À dimensão sagrada do vulgar.

 

 

813 – Leiras

 

Fora das leiras de alma a procurar

Tendemos as razões dos sentimentos.

O problema é que usamos argumentos

Que das acções irão alma tirar.

 

Quando do imaginário se lograr

Ver a seriedade de elementos,

Racionalizações jamais aos centos

Queremos ter ao decisões tomar.

 

Sempre nos sentirmos de viver culpados

E com alma ao tomar iniciativas,

Às intuições colhendo os predicados

 

Como às expressões do íntimo mais vivas,

As atitudes nunca mais serão

Tão incompletas como as de hoje são.

 

 

814 – Iniciação

 

A iniciação é de alma, não dum eu:

Não sou eu a crescer como a escutar

Os cânticos sagrados devagar

Que de adultez segredos têm de seu.

 

Da relação perfeita o dogma meu,

Auto-suficiências de bom par,

Controlo dum porvir a assegurar,

- A ritos de passagem submeteu

 

Tudo a vida, senão não poderiam

Servir a rota adulta nem cumprir

O papel nos mistérios que auferiam.

 

A ruptura é o momento de enfrentar

O primário, o temível que surgir,

As mortes que em mim haja a cultivar.

 

 

815 – Impacto

 

Quando o impacto da vida nós sentimos,

Tal quando morre alguém que é nosso afim,

O amor inesperado nos diz sim

Ou significativa muda vimos,

 

Chamar-lhe sofrimento decidimos,

Que desorienta, abala e a dor enfim

Provoca em nós de não saber que fim

O futuro nos traz preso em tais limos.

 

Porém, de ângulo mais universal

De algo é visita sobrenatural,

De angélico, fatídico ou diabólico.

 

É simultaneamente impessoal

E bem mais construtivo que, afinal,

Um sofrimento sem fulgor bucólico.

 

 

816 – Vantagem

 

De trabalhar com alma uma vantagem,

Em vez de se encontrar a solução

Para os problemas que na vida irão,

É uma oportunidade de a triagem

 

Atingir o âmago em qualquer questão,

Da inteligência vendo além da imagem:

Pormenor literal corta a viagem,

Distrai do mais profundo, da amplidão.

 

Sentimentos de amor intensos podem

As almas empurrar para a ribalta:

No drama da paixão-ruptura acodem

 

Os arqueológicos padrões em alta.

Mais que da vida real imediata

As almas são do tempo que nos ata.

 

 

817 – Paradoxos

 

Do poder o problema interpessoal

É que de paradoxos é repleto.

Quem indefeso e vítima em concreto

Se sente acaso tem de, literal,

 

Aprender a tornar-se por completo

Vulnerável, aberto e, por igual,

Receptivo ao poder que lhe faz mal

Sem destruído ser dele ao decreto:

 

Na impotência atolar-se é uma maneira

De esquivar-se ao poder. A tentativa

Não alcança, porém, a meta inteira:

 

Anda o poder presente em forma bruta,

Em agressão, ameaça, injúria esquiva,

- E eis como se eternizam na disputa.

 

 

818 – Ineficaz

 

A mais ineficaz das reacções

Ao equilíbrio do poder intenta

Superficial compensação que inventa

Como quem sofre e pede explicações.

 

Quem tem papel de vítima razões

A reagir com agressão violenta,

Cólera e raiva inútil acalenta

Nas mais extremas manifestações.

 

Caminhos tais que de alma nada têm

E pouco efeito exercem sobre o mundo

Pioram os eventos que revêem.

 

Cada vez mais se tornará patente

Que destituído de poder no fundo

Mais fica quem devém tão impotente.

 

 

819 – Vítimas

 

As vítimas não querem ter a ver

Nada com se tornarem vulneráveis,

Temem ficar demais tão vitimáveis

Que acabem mais magoadas a sofrer.

 

A solução, porém, nos infindáveis

Recantos de emoções é remexer,

Sentir o que é mais frágil e o poder.

Ao invés do comum não são fiáveis

 

As explosões de cólera, que apenas

Mantêm divididas as fronteiras.

As emoções em bruto bem pequenas

 

Portas abrirão de alma às escaleiras:

Sendo a matéria-prima de alimentos

Convém bem amassados ter fermentos.

 

 

820 – Alquimia

 

Da vítima a alquimia quer coragem

E paciência, que fácil é ceder

À emoção pura do rancor que houver,

Justificado, acaso, na triagem.

 

Da simpatia a tentação colher

Por a vítima ser, nova drenagem

Do sentimento fácil aos que reagem

Vai acabar por fim a requerer.

 

Temos de descobrir que estar aberto,

Admitir erros nossos e cegueira,

Ser dependente dos demais, por certo

 

É viável sem perda verdadeira

Do poder pessoal que me persuade

Nem de sentir a minha identidade.

 

 

821 – Circunstâncias

 

Quando das emoções toda a alquimia

Corre bem na melhor das circunstãncias,

Difícil pode ser, nas alternâncias,

Distinguir da abertura que haveria

 

Por um lado, a confiança e a ousadia

E a força num crescendo cheio de ânsias

Que por outro nos enchem de fragrâncias,

Pois cada qualidade apoiaria,

 

Tornaria viável a parceira

Sem haver já segunda nem primeira.

A cólera não tem de ser reactiva,

 

Nem aberto ficar às influências

De ser vítima leva às consequências:

Nada postura quer minha passiva.

 

 

822 – Subtis

 

Sendo mais subtis, imaginando

Os sentimentos, emoções, pesares,

Não dividimos a videira aos pares,

Moralistas de cachos sazonando,

 

Em padrões dualistas. Sempre quando

Vivermos nossa vida é com vagares,

Colhendo bago a bago,quais manjares,

Os sabores que hão-de ir-se aprofundando.

 

As questões se alimentam do sabor,

Não de intelectuais categorias,

Vão emoção, não lógica, propor.

 

Remédio e problema vão do modo

Como cólera, raivas e alegrias,

As concebo e a mim mesmo as acomodo.

 

 

823 – Projecção

 

Desastroso é tirar a projecção,

Que as almas vivem ávidas de sonho,

Do mundo imaginário mas risonho,

Agridoce, da amada evocação.

 

Unir-se qualquer alma quer e então

Fugir não deve donde a pressuponho,

Que a união jamais ocorre no enfadonho

Mental conceito da visitação.

 

Não é tão simples uma vida humana,

A mente e o coração andam a par:

Não quero mergulhar nem me afastar…

 

Entre cedência e retirada emana

O estímulo às ideias e ao desejo

Até que à vida aprenda a dar o ensejo.

 

 

824 – Potentes

 

Em nós os sentimentos mais potentes

É que contêm do íntimo as pressões,

Quando ele nos requer as convulsões

Da luta contra reis no trono assentes,

 

Contradizendo nela, frequentes,

Por rumos de alma, da razão razões.

Dotada de alma, a vida é de emoções,

De prazer cheia, contudo, entrementes,

 

Uma pitada de excentricidade

Requer de nós, de irracionalidade,

Pagando um coração apaziguado.

 

Imprevisível de alma é o desatino,

Limitar-lhe é inviável o destino,

Só no fim a inquietude há serenado.

 

 

825 – Trejeitos

 

De alma os trejeitos ignorar podemos

Adormecendo-a num cruel impasse

Quando se esforça por um novo enlace

Que ameaçador demais nos antolhemos.

 

Pode ser obra dum que ela ameace

Ou da relação de ambos que tecemos:

Casais, famílias, grupos conviemos

Em resistir ao que nos perca a face.

 

Um bairro viver anos pode sem

Da integração ter de enfrentar as lutas,

Laborais vícios sem mudar também…

 

O desafio recusar, disputas,

Deles ter medo sem trocar de vida,

É o tédio germinar de alma falida.

 

 

826 – Presto

 

Quando presto atenção às fantasias,

Quando ouvidos abrir a meus anseios

A sério os reflectindo e sem receios,

Embora contradigam minhas vias,

 

Preferências conscientes e alegrias,

Permitindo que confluam modo e meios

Como vivendo irei nos entremeios,

Já criativo animarei os dias

 

Dando-lhes alma na contra-corrente.

Os movimentos do imo então permito

Que me criem o meu rosto de gente,

 

Me esculpam toda a vida que concito.

A identidade resultante ecoa

Mistérios que ninguém nunca apregoa.

 

 

827 – Bicicleta

 

Tem duas rodas esta bicicleta

Da vulgar vida, aqui, todos os dias:

A temporal, a eterna, como as guias

Por onde puxa familiar, concreta.

 

Um monociclo às vezes preferias:

A quotidiana roda ali directa

Ou a da eternidade mais secreta,

Já que ambas conjugar não deverias.

 

De olhos no céu, perdeste o dia-a-dia,

De olhos em terra, perdes o amanhã…

Talvez a bicicleta quem veria

 

Melhor conheça a vida aqui louçã:

Eterno e tempo rodam indomáveis

E ao fim são eles que nos tornam viáveis.

 

 

828 – Eternidade

 

A eternidade de alma é diferente

Da do espírito que é de infinitude,

Dum tempo transcendido por virtude,

De graça estado, a bússola a oriente.

 

De alma esta eternidade é estar presente,

Cônscia de intemporal inquietude,

De eventos não causados e que ilude

A afecção pelo tempo recorrente:

 

Meu encontro dos campos cultivados

É eterno em mim e nunca mais se explica

Em termos temporais convencionados.

 

Pejado de mistério, não se aplica

Aqui nenhum conceito e, de verdade,

Em mim é vida e personalidade.

 

 

829 – Fundamentalista

 

O fundamentalista segue à risca,

Superficial, a crença religiosa,

Atendo-se ao sentido que há na prosa

Do texto revelado em que se arrisca.

 

Não lhe importam cambiantes, uma glosa,

Leituras múltiplas, da luz faísca

Que a ementa lhe requeima que petisca

Da acepção literal a que se entrosa.

 

Há fundamentalismo nos psicólogos,

Médicos e cientistas racionais,

Reduzidos da lógica aos monólogos.

 

À letra, as relações têm varais.

Importa apreciar a poesia

De nossas ligações de cada dia.

 

 

830 – Poética

 

Da relação na poética um amigo

Reconhece que um texto é cada qual,

Dele com as histórias, manancial

De memórias, desejos, como abrigo

 

De intuitos e teorias que lhe sigo,

Tudo o que exprime, que é dele sinal.

Tal qualquer texto rico, por igual

Camadas de sentido lhe lobrigo,

 

Dele próprio por vezes ignoradas.

Dizer “amo” ou “detesto”, na poesia,

É reflexão, mudança em mil entradas,

 

Da relação mistério à luz do dia:

Jamais descubro inteiro que razões

Meus pensamentos movem e emoções.

 

 

831 – Artes

 

Ao preparar a relação humana

Contínuo convém mais expor-se às artes

Que inteiro confiar só nos apartes

Psíquicos que a ciência nos dimana.

 

Terramoto afinal que tudo abana,

Mais do que os temas delas que te apartes,

Dão-te as artes saber do amor que acartes

Na cultura geral dela mais lhana.

 

Imersa em arte, a reflezão da vida

Vai expandir-se e, consequentemente,

Se um desafio vem logo em seguida,

 

De imaginário rico pela frente

Disporemos e a mente ei-la à medida

De o reflectir então poeticamente.

 

 

832 – Altas

 

Todos temos morais posições altas

Que, de elevadas, de pegar impedem

Nas borras e resíduos que sucedem

Ser a matéria de almas em que há faltas.

 

Para nos não sujarmos, de pernaltas

Os lamaçais transpomos, mal nos pedem

O barro de esculpir com que nos medem

Acasos de que, vida, nos assaltas.

 

O paradoxo de alma construir

É que a mais valiosa recompensa

É a deste nada de valia imensa,

 

Quando a matéria-prima em que bulir

Será frequentemente, se calhar,

A desprezada acaso e a mais vulgar.

 

 

833 – Mutações

 

Quando do mecanismo e da estrutura

Da relação desvio as atenções,

Várias ocorrem logo as mutações:

Não pesa o fardo em nós da culpa dura,

 

De incapazes de agir de forma pura,

Da juvenil loucura os mais senões

Ignoro, como à dor sinto os ferrões

Sem dever responsável dar-me cura.

 

Do prazer usufruo que uma vida

De relações inteiras proporciona,

Não busco cego a perfeição mentida.

 

Ter alma não partilha deste apego

À perfeição, da integridade à tona,

Caldeia do imperfeito o meu sossego.

 

 

834 – Modelos

 

Da mente humana os modelos,

Quer confinados num imo,

Quer entrelaçando os elos

Do  mundo exterior ao cimo,

 

Seja numa ideologia,

Seja numa instituição,

Por uma ou por outra via

Sempre ao fim nos falharão.

 

Por inconsistência interna,

Externa contravenção,

Ou por contra os objectivos

 

Falhar a meta superna,

Sempre a mente perde a mão

Ao gerir nossos motivos.

 

 

835 – Construção

 

Toda a construção humana

É fatalmente imperfeita.

Não é desgraça ou desfeita,

Mesmo em desespero engana.

 

Sermos falíveis emana

Tão negativa suspeita

Porque a espera é sempre atreita

A ultrapassar o que empana:

 

Anseio de perfeição,

De permanência e verdade,

Querer a imortalidade…

 

- A julgar por tal padrão

É contraditória a sorte:

Que vida vem de tal morte?

 

 

836 – Estatuto

 

Se um produto dá estatuto,

A certa mentalidade

Tê-lo é da vida o conduto

Para viver de verdade.

 

Então a publicidade

Pega a estupidez em bruto,

Foros de racionalidade

Lhe dá por salvo-conduto.

 

Explora os ocos snobismos

Baseados em causa alheia

( Herança, origens, clubismos…)

 

De que a pretensão é cheia.

- E quanto mais explorado

Mais se julga o snobe grado.