AS GRUTAS  DA  MADRUGADA

 

 

 

PRIMEIRO  TROVÁRIO

 

EM LIVRE MÉTRICA O AMOR CANTO E LAÇOS MEUS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escplha um número aleatório entre 1 e 124 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 – Trovário de Rumos

 

Em livre métrica o amor canto e os laços meus

O mito e o sonho cifrarei que me empolgarem,

O imperativo que o cotio brinda aos céus,

Desfio os traços do que for rosto de Deus,

Os regulares laços dou que me enlaçarem.

 

Em metro e rima retomar vou o Infinito

Nestes degraus dos actos vagos, dia a dia,

Até ver claro em que consiste este meu grito.

Então na quadra a amatr, sonhar, com alegria,

 

Em voz de povo o saber traço ao que vislumbro,

Na quadra irregular tudo, por fim, me guia.

Em trovários, da vida com mil sóis me alumbro,

 

Nos sonetos resumo picturais ideias,

De mil formas rirei vidas de graça cheias.

 

 

                                                2 – Em livre métrica o amor canto e laços meus

 

                                                Em livre métrica o amor canto e laços meus,

                                                Os nós que devo atar comigo e com os mais,

                                                Com todo o mundo que me envolve, com os céus,

                                                Os mil afectos que trocamos, gineceus

                                                Onde geramos sangue e rumos cruciais.

 

                                                Em rimas rimo o que me rima a meu contento,

                                                Sílabas livres no compasso que liberta,

                                                Desencontrado como o passo com que tento

                                                Nos nós e afectos manter sempre a porta aberta.

 

                                                Do íntimo vou rumo às fronteiras mais distantes

                                                A palmilhar, verso a poema, a trilha incerta

                                                Onde as apostas ganho e perco dos instantes.

 

                                                Nestas palavras ato o véu no qual desvendo

                                                O que me encobre e me desvela o que vou sendo.

 

 

3 – Requer

 

O cantochão

Requer a concordância

Do entono

E não

O individualismo da ganância.

Ao escolher um dono

Jamais o cão

Revela intolerância.

Então,

A luz do dia

É uma harmonia.

 

 

4 – Amamos

 

Amamos velhas catedrais,

Móveis velhos, pratas antigas,

Velhos dicionários, edições originais,

Mas esquecemo-nos da beleza das fadigas

 

No rosto dos velhos seres humanos.

Belo é o velho, maduro e curtido,

Estrutural à vida, em que os desenganos

Delimitam a fronteira ao que é sentido

 

E apontam, sonhando, para além

A magia do que jamais vem.

 

 

5 – Amigo

 

Não é useiro e vezeiro,

Nem, quando adrega,

Se esvai.

Amigo verdadeiro

É o que chega

Quando toda a gente sai.

 

 

6 – Esperamos

 

Ao melhor amigo

Não fazemos juramentos.

Esperamos (e sempre dele ao abrigo,

Sem palavras, nem razões, nem argumentos…),

Esperamos compreensão, bondade, interesse.

E que uma amizade dure

Enquanto o tempo a depure,

Até que o tempo se esquece:

 

- Uma amizade é um lugar

De pelo tempo durar.

 

 

7 – Total

 

Não é a total revelação

Que gera a intimidade

Duma relação.

 

É saber ouvir,

Agrade ou desagrade,

E, em comum,

Da partilha do pão e da palavra fruir,

Cada dois a formar um.

 

 

8 – Afirmar-lhe

 

Afirmar-lhe a ela que é “atraente”

É confirmar que nada em particular é,

Embora lhe empreste personalidade:

É o beijo da morte indiferente

Pôr-lhe ao pé.

 

Quem vislumbra adiante

Quanto lhe agrade,

Ao invés,

Que alguém lhe murmure que é “deslumbrante”,

Ao menos uma vez?

 

 

9 – Raio

 

Que diferença

Entre o raio que incendeia o coração

Aos vinte anos

E a presença

Do amor que tem à mão

O adulto maduro de desenganos!…

 

A osmose deste, lenta

E poderosa,

Em que o que atormenta

Até cru finalmente o goza…

 

Afecto duradoiro,

Ondulando ao sabor da babugem da vida,

Paixão madura

Não é um imutável tesoiro,

Ao contrário, depura

Crescimento espiritual em tudo a que convida.

 

Como com tudo muda e se transmuda,

Paciente,

A ela eternamente

Nos gruda.

 

 

10 – Perdi

 

Se perdi a fé em Deus,

O amor toma-lhe o lugar:

Minha fé, a fé dos meus,

Serás tu no meu altar.

 

O amor é religião:

Haver Deus ou não haver,

É retirar deste chão

O pão

Da semente ainda a crescer.

 

 

11 – Encontro

 

O que o vero sentido inaugura

Num encontro, decerto,

É a procura.

E quanto é preciso andar

Para atingir o lugar

Do que está perto!

 

 

12 – Primeira

 

Vejo-te a primeira vez,

Que as palavras dele fizeram

De ti alguém ao invés.

Antes de ouvi-lo, teus traços eram,

Mas depois recompuseram

Uma figura diferente,

Como se te baptizaram:

Levamos ao colo um ente,

Outro vem que as águas revelaram.

 

Vejo-te a primeira vez

E aquilo que és, aquilo

Foi a palavra que to fez.

Como então ficar tranquilo

(Se a vida é deste jaez)

Com as palavras que perfilo?

 

 

13 – Nada

 

Um nada desperta a chama

Entre quem se ama.

 

Um nada é introdução

Ao que explode no coração.

 

- Um nada é o grito

Da fresta do Infinito.

 

 

14 – Cativa

 

Nada nos cativa mais

Do que um coração bondoso:

Levando nos bornais

Um modo insinuante e afectuoso,

Atrairá bem mais fundo

Que todas as inteligências do mundo.

 

 

15 – Desperta

 

Temporão desperta a solidão

Este humano coração

 

E da unidade o distancia

Em que tudo ingenuamente ocorreria.

 

Põe doravante o dedo na ferida

Que ignorada já não pode mais ser vivida.

 

 

16 – Primeiro

 

O primeiro movimento

Em que agir a sedução

Delibera da paixão,

Dando-lhe de resistência

Um cimento

Que nunca teria

Se, naquele momento,

Dela a inteira consequência

Vindoira nos anuncia.

 

 

17 – Abusivo

 

Um amor heróico, abusivo, selvagem,

Cheira a blasfemo.

Um amor pessoal

Tem do feiticeiro a imagem,

Pacto com o demo,

É insuportável, iníquo, criminal.

 

A comunidade

Quer viver precavida

Contra a paixão cega que a invade,

Que a morte busca dominar em vida

E deter o envelhecimento

E prolongar o prazer carnal

Como direito, um direito divinal

De quem tem merecimento.

 

Ora, a multidão tem de continuar

Cada vez mais submetida,

Optando pelo fim sem sofrimento,

Desaparecendo, modelar,

Rápida e sem vestígios.

 

Entretanto, a permissividade,

Em compensação, operará prodígios,

Tão efémera quanto alheia à sensualidade,

Esvaziado cada qual,

Reduzido à soma de órgãos corporal.

Mas é a mentira da nova alquimia

A imitar juventude por falsa magia.

Abolidas as fronteiras do prazer,

Não há mais autoridade ou Deus sequer.

 

O que ocorre, porém,

É que o homem se afasta do desejo,

Não habita mais qualquer alma que tem,

Já que esta se alimenta dum conduto,

Não do que vejo,

Mas da paixão pelo absoluto.

 

 

18 – Pai

 

Quem eras, pai? Sei lá bem!

Só me lembram teus joelhos

No jeito de me sentar.

 

Como o amor retém

O mais invisível dentre os traços velhos

Para poder criar

Dum ser humano

Toda a história, todo o engano!

 

 

19 – Ávido

 

Do próprio poder

Dominador

Se ávido for

Quenquer,

A liberdade de amante, marido ou mulher

Há-de senti-la como um rasgão,

Mancha de desengano,

Em seu manto de papão

Inumano.

 

E finda dele próprio prisioneiro,

Por todos abandonado no atoleiro

Da solidão.

 

 

20 – Serviçal

 

Submissão:

A outrem dar satisfação,

Ignorando mais plenitude

Que a do prazer que lhe é proporcionado.

Não implica o amor que ilude,

Mas um serviçal cuidado

Do que o amor ainda mais irresistível:

- É o impossível

Direito a ser sacrificado.

 

 

21 – Convida

 

Não há nada tão belo

Como a mulher

Que nos convida ao prazer.

Pode um nada dar singelo.

Porém, conseguiu de nós

O melhor:

A descoberta da sede, da fome atroz

Deste feminino amor,

Aquilo que nada satisfaz,

Cujo perfume,

Que tanto seduz,

Quebra a paz

E produz

O ciúme.

 

- E nos atira ao cume!

 

 

22 – Pedra

 

Como da pedra a lasca

Solta o vento,

Dou-vos da palavra a casca,

Não vos dou meu pensamento.

 

Mas, quando se desatasca

De meu íntimo elemento,

O que a palavra em mim masca

Afinal não é o que invento.

  

Se me minto ao vos mentir,

Sei lá bem o que é que penso!

A palavra, ao de mim ir,

Vejo é que é um mistério imenso.

 

 

23 – Força

 

A força das palavras articuladas!

Atiramos os pensamentos

E outros os acolhem como pedradas.

Há sempre cabeças atingidas,

Sensíveis como tegumentos.

 

Que medidas,

Em que idade

Custará menos acolher a verdade?

 

 

24 – Morte

 

A morte de quem amamos

Faz doer também por nós,

É que mais pobres ficamos,

Mais sós

E de vez desamparados.

De nós próprios é ter pena,

Autocomiseração,

Lembrados

De que é cada vez mais pequena

A lonjura até ao vão

Do lugar

Em que a morte nos venha a nós buscar.

 

 

25 – Palavra

 

Nenhuma palavra há-de conter

O amor:

Das profundas são as palavras inimigas.

Se a palavra que vais dizer

Mais bela que o silêncio não for,

Não a digas.

 

Falam muito mais

Silêncios que tais.

 

 

26 – Batido

 

O mais interessante

É ver como o apaixonado

É perseverante:

Batido por todo o lado,

Em dificuldade tanta,

Pretende mesmo assim continuar,

Ter êxito com quem o encanta,

Nem que isto o ande a matar…

 

- É um mártir por sua santa!

 

 

27 – Tempo

 

Tempo de viver a vida

Arranje-o também.

Aos amigos dedique-o, de seguida,

À família e tempos livres que tem.

A memória logo registará

Toda a melhoria que lhe vem dacolá.

 

Um afecto apaixonado,

Um fascinante objectivo

Ajuda o que a fogo foi gravado

A recordar perenemente vivo.

A memória nos requer

À nossa vida com cuidado atender,

Levando a eternizar nela

Quanto vale a pena recordar:

 

- Toda a estrela

Que vida fora soltámos pelo ar.

 

 

28 – Árvore

 

Árvore minha dos problemas,

Plantada à porta do lar…

Traz-me o labor apostemas

Que jamais posso evitar.

Nada, porém, têm eles a ver

Com minha casa, a família, a mulher…

 

Penduro-os, portanto, à noite,

Aos problemas, em tal árvore, ao chegar

À porta do lar

Onde breve me acoite.

 

De manhã, depois, então,

Pego neles outra vez,

Tenho-os à mão.

 

Vejo o que a noite lhes fez:

Nunca há tantos problemas lado a lado,

Ao alvor,

Como os que me lembro de haver lá pendurado

A noite anterior.

 

 

29 – Cúmulo

 

Todos têm o direito

A ter uma opinião

E exprimi-la livremente.

Por mais que a tome a peito

Quenquer, então,

Por melhor que a fundamente,

Há-de ela tanto valer

Como outra qualquer.

 

Discutir empenhado

Na ocorrência,

A tentar outrem convencer,

Pode ser considerado

O cúmulo da insolência.

 

Melhor portão

Trancado contra o fanatismo,

O fundamentalismo

Malsão,

Toda a forma de extremismo

Que advier,

- Melhor não há-de haver,

Entre tudo quanto lhes resiste,

Do que a liberdade de opinião

E de expressão,

Quando ela existe

E renitente persiste

Em mantê-los curtos e à mão.

 

 

30 – Palcos

 

De nós a maioria

É desta gente comum

Que noutros palcos vive a vida

Que os da fama ou fantasia:

De nossa casa na lida,

De labor em balcão algum,

Pelas ruas da cidade,

No grupo, em comunidade…

 

Jamais, porém,

Encontrei alguém

Que de sentir não precise,

De vez em quando,

Que lhe deslize,

Cruzando o infinito além da janela,

Fugaz perpassando,

O brilho irrecusável duma estrela.

 

 

31 – Felicidade

 

Não amar,

Quando as almas são feitas para o amor,

É a si como a outrem privar

Da felicidade maior.

 

O amor em concreto não existe,

É uma hipótese desmesurada:

A felicidade que persiste

É apenas da mente a configurada.

 

O fundamental

Do fogo

É o mental

Jogo.

  

De não amar, o problema

Não é que me desarme,

É que o efeito de tal lema

É apagar-me.

 

 

32 – Podengos

 

Os podengos do poder,

A esburgar ossos dum país invertebrado,

Deliciados a se entreter

Em corruptas campanhas de badalo enfuriado,

Guerrilhas de gabinete

Empeixeiradas,

Cada cabeça, uma retrete,

As testas brutas carenciadas

De recheio,

Os podengos jamais terão lampejo nem suspeita,

Algures do esterquilínio pelo meio,

De que o amor é a receita,

O centro e o pináculo do Mundo.

 

A mulher,

Nem deusa nem rainha sequer,

Mora-lhes num arrabalde infecundo

Como um armazém, um albergue,

De serviço uma estação,

Rampa de lançamento de quem se ergue,

Parque de diversão…

 

Que devenha centro do centro,

Eixo da vida,

Porta do céu ou do inferno onde entro

Humilde e por medida,

Chave de tudo,

Redenção do nada,

Não fende o crânio cascudo

De alma nenhuma castrada.

 

Examino-as por miúdo,

Nenhuma tem nenhuma entrada.

 

 

33 – Sugar

 

Para nos sugar nasceu a mulher,

Temos sempre de dar-lhe uma coisa qualquer:

Dinheiro, porrada ou erecção…

Mas há as que apenas têm precisão

Duma palavra boa,

Duma ternurinha à toa.

 

Se calhar são todas

Que precisam destas minúsculas bodas.

 

E, enquanto elas se consomem,

É do que menos se lembra um homem.

 

 

 

34 – Sempre

 

Há sempre mulheres,

Há sempre crianças

Que salvam o resto,

Quando em saberes

E danças e contradanças

Não presto.

 

Mas as crianças, mais:

Menos tempo são bonitas.

Deixam-nos as memórias esquisitas

Dos sinais.

 

Mal advindas,

Logo se vão.

E a cabeça não nos desfarão

Pelo facto de serem lindas.

 

 

35 – Maravilha

 

A maravilha, a glória

De escrever um livro em acção!

A invenção dentro da memória,

A memória dentro da invenção,

A cavalgada

Dos eventos em fuga,

A lua-de-mel secreta e arrebatada,

Poligâmicas núpcias de quem madruga

Das palavras com a feminil multidão:

As que se entregam e esquivam,

As que de mortas revivam,

As que urge perseguir,

Ludibriar,

Seduzir,

As que se deixam capturar,

Palpar, despir,

Penetrar,

Proporcionando, no variegado cariz,

Horas mágicas duma paixão feliz.

 

Incorporeamente incarnada,

A palavra é a aposta

Mais predisposta

A ser por amor fecundada.

 

 

36 – Escolher

 

Não fujas de escolher a trama,

Nem esperes:

Ama

E faz o que quiseres!

 

Sem amor, a obrigação

Desgosta, morta a fragrância.

Por amor, ao invés, então,

Dá-nos constância.

 

Sem amor, a responsabilidade

Intolerante leva a agir.

Por amor, o amor persuade

Solicitude a produzir.

 

Justiça sem amor

É dureza de coração.

Por amor, incute a maior

Confiança da justiça na mão.

 

Sem amor educação

A contradição suscita.

Por amor, germinarão

Frutos da paciência que hesita.

 

Sem amor devém manhoso

Todo o inteligente vivo.

Por amor, a inteligência é o gozo

De devir compreensivo.

 

É mera hipocrisia,

Sem amor, a amabilidade.

Por amor, germina dela o dia

Da bondade.

 

Sem amor será mesquinho

Cumprir ordens, tira o ânimo.

Por amor é um vinho

Que torna magnânimo.

 

Sem amor, a competência

Torna o agente capcioso.

Por amor, a eficiência

Gera a fé no laborioso.

 

Sem amor, o poder

Violento vai tornar.

Por amor, torna quenquer

Disposto a ajudar.

 

Quando me esquivo,

Quando me apresto?

Honra sem amor torna altivo;

Por amor, torna modesto.

 

Sem amor, os bens

Tornam avarento.

Por amor, manténs

Generoso intento.

 

Sem amor, a fé

Fanático torna.

Por amor, de pé

Em paz te lavra toda a jorna.

 

 

37 – Carismático

 

O carismático roubou-me

E deu-me ainda mais:

Cada amigo meu atrás dele se some

Entre sarças e pedregais.

Roubou-mos, decerto,

Mas deu-me a mim mesmo a mim

Que o não sigo

E eis-me então de mim mais perto.

A espalhar-se inócua pela alfombra,

Não sou dele, sem confim,

A volátil sombra,

Nem me serve ele de abrigo:

- É nisto, afinal, que é meu amigo.

 

 

38 – Boca

 

Dela a boca vermelha, experiente,

Muito lhe ensinou.

Dela a mão terna, previdente,

Tudo lhe guiou.

 

Ele, no amor ainda criança,

Tendendo a se atirar sôfrego e cego

Do prazer ao pego

Como quem dança,

 

Aprendeu que ninguém pode

Acolher prazer sem prazer dar

E que acode

Em cada contacto e olhar,

 

Em cada gesto e carícia

Do corpo no mais íntimo recanto,

Um segredo de delícia

Pronto a germinar,

Prenhe de encanto,

Em quem o souber despertar.

 

Ela ensinou-lhe que os amantes

Não se devem separar

Após o festim do amor,

Sem cada qual ser conquistado ou conquistar,

Agora como dantes,

A renovar o fervor,

Para nenhum sentir tédio nem solidão

E para evitar, por outro lado,

A execrável impressão

De maltratar ou ser maltratado.

 

Muito ela lhe ensinou…

- E a Vida principiou!

 

 

39 – Contempla

 

Há muito contempla o rosto dela adormecido,

Longamente lhe repara na boca velha e fatigada,

De lábios mirrados.

Recorda que um dia há muito ido,

No verdor da jornada,

Comparara aquela boca aos valados

De morangos pejados.

 

Muito tempo fica sentado

Lendo o pálido rosto,

As rugas exaustas…

Nesta visão mergulhado,

Vê seu próprio corpo ao lado posto,

Branco, apagado,

Do termo da vida nas horas infaustas.

 

E ao mesmo tempo viu

Os rostos jovens dos dois,

Com lábios vermelhos de cio,

Com olhos ardentes de arrebóis.

 

O sentimento do eterno presente

O invadiu,

Da simultaneidade

Em tudo vigente:

O frémito da eternidade.

 

Então sentiu

Profundamente,

Profundamente mais

Que jamais,

De todas as vidas a imperecibilidade,

A transitoriedade de todos os tormentos,

A eternidade

A bater no coração de todos os momentos.

 

 

40 – Obrigá-lo

 

Obrigá-lo não obrigas,

Não lhe bates, não castigas,

Nem sequer ordens lhe dás.

Pode mais a brandura

No rapaz

Do que a força que o segura,

Água mais forte

Há-de ser que rocha dura,

Em qualquer pendência

O amor tem mais sorte

Que a violência.

 

Extirpaste o quisto,

És digno de louvor por isto.

 

Não é um erro, porém, de tua parte,

Não o forçar, não o castigar?

Não o andas, destarte,

Com teu amor a acorrentar,

Persistente, devagar?

Diariamente o não humilhas,

Não lhe tornas mais difícil tudo,

Com tua bondade a transbordar das vasilhas,

Tua paciência contra que não tem escudo?

Não o obrigas a viver

Em teu mundo ultrapassado,

Não é para ele um dever,

Não é um castigo disfarçado?

 

Tens de ter sobre ti vigilância constante,

Não vá o vinho avinagrar-se logo adiante.

 

 

41 – Tornei-me

 

Tornei-me um deste povo

Sofrendo por mor de alguém,

Amando-o, nascido de novo,

Perdido por amor, em pelém,

Louco por causa dele.

 

Finalmente sinto também,

Pela primeira vez na pele,

Esta forte e estranha paixão,

Sofro por ela, miseravelmente,

De rastos no chão.

 

Mas sinto-me feliz e me aplico,

Eis-me renovado, todo contente,

- E sou mais rico!

 

 

42 – Cego

 

O amor cego da mãe pelo filho,

Orgulho tolo do pai vaidoso,

Ambição louca da jovem por jóias e brilho,

Por impressionar dos homens o olho guloso,

- Todos estes impulsos, infantilidades,

Meros desejos, todavia mui fortes,

De tão vivos, de tão influentes,

Já não são apenas veleidades:

Quantos se agarram a eles, como a suportes

Fiáveis e persistentes,

Por eles agem, viajam, combatem,

Sofrem, suportam mil tormentos!

Amo-os, amo-os a todos, que se não desatem

Do fio da vida, dos mil elementos

Do Imperecível, do Uno de actos e paixões,

Da sinceridade das ilusões.

 

Que força e tenacidade!

Nada lhes falta…

O sábio supera-os apenas pela verdade

Ínfima, porém alta:

- A subida

Ideia consciente da unidade

De toda a vida.

 

Porém, esta sabedoria

Será que tanto assim valia,

 

Não é mais uma infantilidade a desoras

De crianças-pensadoras?

 

Em tudo o mais

As gentes do mundo

Têm direitos iguais

Aos do sábio mais profundo

E muitas vezes o superam

Como os animais

Quando, tenazes, não desesperam

De lutas cruciais.

 

A verdadeira sabedoria,

Objectivo de nossa longa demanda,

É uma prontidão de alma de vigia,

Pendor que nos comanda,

Arte oculta de ter,

Em cada instante da vida,

A ideia da Unidade do ser,

De a sentir,

De respirá-la conseguir:

A harmonia,

A eterna plenitude do mundo

Que me sorri e se anuncia,

Fundo,

Da inumerável mesquinhez do dia-a-dia.

 

 

43 – Ferida

 

Mostrar a ferida a um ouvinte

É banhá-la no rio,

Arrefentá-la com requinte,

Até una derivar das águas com o corropio.

Enquanto falo e me confesso,

Não é alguém já que me escuta,

Impassível e professo,

É quase árvore sorvendo minha chuva, arguta,

Tem dum deus a identidade,

Ponte de eternidade.

 

Deixo de pensar em mim e na ferida,

Tudo é natural e fica em ordem

E sempre de tudo foi, afinal, esta a medida.

 

Apenas o não reconheço quando me mordem

Da superficialidade os mil ferrões,

Quando aqui tropeço,

A pele a enxamear-me de contusões,

E à raiz já não regresso.

 

 

44 – Escuto

 

Escuto o rio atentamente,

A decifrar-lhe o assunto.

Minha imagem, a de cada parente,

Fluem em conjunto,

A de cada amigo aflora e se esvai

Na correnteza,

Doravante parte dela, folha que ali cai

E entra a dançar na devesa,

Aspirando do rio à meta

Como rua que projecta,

Ansiando,

Sofrendo,

Cobiçando,

E a voz do rio soa doendo

Por dentro de todos nós,

De pais, filhos, amigos, avós…

 

Um desejo inquieto agita o rio,

Vejo-o apressar-se,

Ao rio que a mim e a todos incluiu,

A todas as ondas sem disfarce,

Correndo, remoendo,

Rumo ao objectivo,

À cachoeira, aos rápidos, ao lago,

Ao mar esquivo,

À rebentação, ao afago…

 

E toda a meta é atingida,

Todo o objectivo, alcançado

E, logo de seguida,

Nos ameia um outro fito renovado:

Água em vapor trepa ao céu,

Em chuva alimenta a fonte,

Regato a regato o rio cresceu

E corre rumo a novo horizonte…

 

Minha voz ansiosa

Se transmudou.

Ouço-a ainda, dolorosa,

À procura.

Mas um imenso coral se lhe juntou,

Milhões de vozes à mistura,

De alegria, sofrimento,

Sorridentes, lamentosas…

 

É o eterno, o infinito Intento

A que me entroso, a que te entrosas

No infindo rio do nosso invento

Em cuja torrente me acalentas e te acalento.

 

 

45 – Amar

 

Posso amar uma pedra, uma planta,

Um bocado de casca:

Cada coisa me encanta

E meu pé desatasca.

 

Uma coisa poderei amar,

Não poderei amar as palavras:

Não logro as doutrinas apreciar,

Delas nas lavras

Não têm dureza nem moleza,

Nem cores, nem arestas,

Nem cheiro, nem gosto,

Nenhuma preza

Que lhe faças festas

Nem tem o sabor do mosto.

 

As palavras como amar,

As palavras sem rosto?

- Jamais as poderei abraçar,

Jamais, aposto…

 

 

46 – Igual

 

Se tudo for aparência,

Também aparência sou

E então tudo é igual a mim.

Esta aparência,

Dela com a imitada consistência,

É que, por fim,

Me leva as coisas a amar.

Pelo amor é que vou

E não por outro lugar.

 

Compreender o mundo,

Explicá-lo,

Ignorá-lo,

De filósofo é o mister profundo.

 

Mas o mais importante

É a todas as coisas me dar:

Ódio, não, nem desprezo, senão, adiante,

A mim me levarão a desprezar.

O verdadeiro preceito

É distribuir em meu redor,

Por todos os seres, amor,

Admiração e respeito.

 

Estão bem quaisquer saberes,

Mas, primeiro, os seres!

 

 

47 – Ignorar

 

Buda, Jesus, Maomé,

Como poderiam ignorar o amor?

Cada qual reconheceu, de boa-fé,

Como é efémero quanto é humano

E, apesar disso, amou com tal fervor

Tanta gente, toda a gente

Que empregou uma vida cansativa

No engano

Persistente

De ajudar, de ensinar a trilha viva.

 

Também neles prefiro

O acto à palavra, a vida ao discurso,

O gesto às ideias.

Adiro

Ao curso

Das vidas cheias:

Em falar ou pensar o fim não vejo,

- Agir é que vislumbro e almejo.

  

 

48 – Amo

 

Amo, muito embora

Acabe fatigado e desiludido

A cada dia, em cada hora,

Com a vida a passar ao lado.

Hostil e perdido,

De animosidade marcado,

Sei, contudo, no fundo dos abismos,

Que o amor, uma vez as sombras expulsas,

É o que fica depois dos antagonismos,

Do contraste de atracções e repulsas.

 

A ponte entre ternura e vontade

É o que resta e persuade.

 

 

49 – Chão

 

Vem daí! Do que precisas

É de amado ser deveras

E de amar todas as brisas,

Do chão até às esferas.

 

O amor não deixa

Envelhecer,

Não há lugar à queixa

De morrer.

 

Escapa-se, esquivo,

Ao jogo das sortes:

- Morrer estando vivo

É que é a pior das mortes!

 

 

50 – Íntimos

 

Mesmo os mais íntimos concluem

Que nada se altera

Com a morte seja de quem for.

Na vida os mortos se diluem,

Que ela jamais os recupera:

Dispensa-os, digere-os no torpor

Dum ritual singular

Que jamais vise

Que o pesar

Se interiorize

E eternize.

 

A Primavera

Abre em flor.

Na vida nada se altera

Com a morte seja de quem for.

 

 

51 – Dor

 

Não há dor mais radical

Que a da criança ao descobrir,

Pela primeira vez,

Do mundo o mal,

Dos outros a malvadez.

Crê que a vão perseguir

Todos e em todo o lugar

Sem mais ninguém que a ampare.

 

É uma vida condenada:

Não há mais nada, mais nada!

 

Jamais uma criança

Sem ajuda

Outra lonjura alcança

Que lhe acuda.

 

 

52 – Fraco

 

Quando alguém fraco demais

Se descobrir

Para os desejos e o orgulho

Que tiver,

Transfere

Para os pais

Os sonhos que em entulho

Nele vir derruir,

Se for criança.

 

E, mais tarde,

Bandeira vencida

Pela vida,

O que não alcança

Aposta que arde

Ou vai arder nos filhos:

Cada qual, vingador ou paladino

Vai-lhe reatar os atilhos

Que lhe desatou o destino.

 

O amor e o egoísmo

Equilibram-no sobre o abismo.

 

 

53 – Terna

 

Entre pais e filhos a intimidade,

Mesmo com terna afeição,

Que intransponível dificuldade!

Dum lado, o respeito é um travão

À confidência,

Doutro, o preconceito da idade

E da experiência

Não atribui seriedade

Da criança aos sentimentos.

 

Ora, quantas vezes, como os dos adultos,

Eles são fiel manga dos ventos

E nós, estultos,

Em meio aos desesperos,

Nem vemos que são por norma mais sinceros!

 

 

54 – Ausências

 

Das ausências a terrível dor,

Tormento intolerável do coração amante,

Mundo vazio, vida vazia, do vazio o horror,

Angústia mortificante,

- Como respirar, como respirar? –

Mormente quando em redor

Andam as pegadas de quem se amar,

Quando no cenário familiar

Permanecemos

Onde o céu juntos vivemos,

Quando continuamos a teimar,

Ne eterna romaria à ermida,

Em reviver, no mesmo lugar,

A alegria desaparecida…

 

Rasga-se-nos o abismo aos pés,

Inclinamo-nos para ele,

A vertigem nos impele,

Tombamos ali de vez.

 

Vemos a morte de frente

Mascarada de ausência,

A morte lentamente,

A tortura em persistência.

 

Assisto em vida ao desaparecimento

Do mais caro ao coração,

A vela a apagar-se, momento a momento,

Abismo negro: o nada em lugar do chão.

 

 

55 – Amizades

 

Das amizades a maioria

De mútua complacência

São mera companhia

Que apenas vale

Para que dum ao outro a confidência

Cada qual fale.

 

Tudo repoisa

Neste pouco.

Mas é já qualquer coisa

Não ser mouco.

 

 

56 – Aproxima

 

Nada aproxima tanto

As medíocres almas sofredoras,

Descontentes, em pranto,

Como a comum impotência verificarem

De todas as horas.

 

Nestas ao repararem,

Nada tanto contribui

Para o gosto da saúde nos sãos

Como o contacto do tolo pessimismo que flui

Das mãos

De medíocres e doentes

Que, por não serem felizes,

Negam, com todos os matizes,

A alegria das demais gentes.

 

 

 

57 – Trabalhava

 

Trabalhava sem descanso

E queria os mais

Nisto iguais.

Não para que o fim que nisto alcanço

Seja ao fim tornar, no fundo,

Mais feliz todo o mundo.

 

Ao invés, dele o objectivo

É provocar um incómodo a todos,

Tornar a vida um desagradável negativo

De tempos, usos e modos,

Corrê-la à bala,

- De modo a santificá-la!

 

E eis como, em nome dum doentio deus,

Se erige uma saudável máquina de ateus.

 

 

58 – Admito

 

Admito que me são superiores

Em títulos, inteligência ou saber.

Ao discutir, porém,

Não há superiores nem inferiores,

Nem títulos sequer,

Nem nome, nem idade

Também:

Existe apenas a verdade.

 

Ante a qual, quanto ao mais,

Todos somos iguais.

 

 

59 – Calvário

 

O calvário dos séculos remonta-o cada qual,

Torna a encontrar as dores,

Torna a encontrar a esperança

Desesperada, abismal,

Dos séculos de nossos maiores

Que já ninguém alcança.

 

Cada qual

Retoma os passos dos que partiram,

Dos que lutaram até funal

Antes dele contra a morte

E submergiram,

Dos que a negaram, não creram

Em tal

Sorte

- E morreram.

 

Este é o calvário a que a sina

Da vida nos destina.

 

 

60 – Finda

 

Quem ama não é amado,

Quem é amado não ama.

Quem ama e é amado,

Um dia, cedo ou tarde,

Do amor finda separado,

É a vida, é a morte,

É a sorte…

Sofremos com a chama

Que arde

E fazemos sofrer…

Disto o pior cariz,

Descobrimo-lo de chofre,

É que o mais infeliz

Nem sequer

É sempre aquele que sofre.

 

 

61 – Gosto

 

Que gosto é aquele de enlamear

Que existe nas maiorias,

Esta raiva de macular

O que há de puro nelas e pelas cercanias,

Almas suínas

Com a volúpia de chafurdar

Nas latrinas,

Felizes quando não resta

Na pele, em nenhum bocado

Onde alguém faça uma festa,

Um único lugar

Lavado?

Qual é o gosto

Avinagrado

Deste mosto

Do pecado?

 

Que doença, que doente

Mina o coração de tanta gente?

 

 

62 – Prazer

 

Com prazer ou sem ele,

Sinto-me infeliz

Por dentro e fora da pele,

De raiz.

 

Do amor provado o vinho,

Sozinho já não vou poder estar

E já não poderei deixar

De estar sozinho.

 

Inaugurei um lugar

De infinidade adivinho.

 

 

63 – Razão

 

A dor, a ausência, a morte,

- Mais uma razão para amar:

Nunca o amor é mais forte

Que quando se encaminhar

Para o momento

Angular

Do sofrimento.

 

O que dele me faltar

Colho-o então em aumento

Com quem comigo partilhar

Meu tormento.

 

 

64 – Benefício

 

No benefício reflicto cada dia

Que para um artista

Representaria

Pressentir algures a pista

Dos amigos desconhecidos

Que a mensagem lhe encontram pelo mundo,

Pela voz dele despertos do sono profundo

Em que viveram adormecidos:

Para as almas, que reconforto,

Para as energias, que porto!

 

O adulador

Vulgar

Em falar não tem dificuldade,

Mas o que melhor

Souber amar

É violento que algo o persuade

A murmurar que ama.

 

Importa ficar grato

A quem desta fala ousar a trama,

Pois, sem suspeita nem fantasia,

Mal me precato,

É o melhor colaborador de quem cria.

 

 

65 – Angustia

 

Angustia mais,

Não a hostilidade das pessoas,

Mas a inconsciência informe e sem fundo

Dos gestos e sinais.

Antes enfrentar, furibundo,

O crânio estreito e duro que escanhoas,

Coriáceo ovo

Onde não penetra pensamento novo!

 

 

Contra a granítica dureza bruta

A picarerta e o explosivo

Perfuram e estilhaçam a rocha.

A força diminuta

Do que for vivo

Desabrocha.

 

Mas contra a massa amorfa da geleia

Retraída à menor pressão,

Que perde e cerceia

De qualquer dedo a impressão,

Todo o pensamento,

Toda a energia,

Tudo no pântano peganhento

Desapareceria.

 

Ao cair a pedra,

Uma vaga ondulação estremecia,

A mandíbula se abria,

Fecha-se engolindo a semente que já não medra

E do que foram promessas de fastígios

Não restam nem vestígios.

 

 

66 – Simples

 

Dos simples o poder do amor

Permite-lhes descobrir logo, de imediato,

O que a mente tacteante do génio maior,

Incerto e cordato,

Ou as artes em demasia

Apuradas

Duma civilização que agoniza dia a dia,

Apenas alcançarão, alquebradas,

Após uma vida, após séculos delirantes

De lutas furiosas e de esforços esgotantes.

 

Discreto, evanescente,

Dos simples o poder do amor

É que, deveras eficiente,

É o farol norteador.

 

 

67 – Amar

 

Qualquer alma musical,

Quando amar um corpo belo,

Vê-o, afinal,

Como música, singelo.

 

Enoja-me o formalismo

Da plebe pedante:

Para eles a forma é que tem o abismo

Hiante;

Deles na lavra

Revolvida,

Dos sentimentos, do carácter, da vida,

Nem uma palavra.

 

Nenhum deles suspeitava

Que o verdadeiro artista

Mora num universo cuja pista

Lhe escoa os dias como torrentes de lava:

Arte é quanto ele ama, odeia, sofre,

Teme, espera…

- Eis o cofre

Das jóias que gera!

 

 

68 – Grande

 

Uma grande alma nunca está só,

Por mais desprovida de amigos,

Ao acaso da sorte.

Acaba por criá-los do pó,

Irradia em redor abrigos

Do amor que transporte.

 

Nas horas em que se creia

Para sempre isolada

É de amor, afinal, mais cheia

Que os mais felizes do mundo à balaustrada.

 

 

69 – Cerne

 

O cerne da música e das artes

É de tal maneira o amor

Que lhes não sinto deveras o estupor

Senão partilhando-lhes apartes

Com quem seja sonhador:

Busco em meio à multidão

O amigo com quem compartilhar

De alegria o vulcão

Vivo demais para um só olhar.

 

 

70 – Vós

 

Ó vós, a quem amo e não conheço,

A quem a vida não maculou ainda,

Que sonhais enormes pedras de tropeço

Inviáveis e, por tal,

Cada qual

Mais apetecível e linda,

Que vos debateis no perene perigo

Contra o mundo inimigo

- Como adoraria, no que faço e fiz,

Tornar-vos a cada um feliz, feliz!

 

Sei que estais aí,

Estendo-vos os braços,

Mas há um muro entre nós que eu entrevi

A tolher-nos os passos.

 

Pedra a pedra o vou demolindo

E ao mesmo tempo me destruo.

Virá o dia em que nos acabaremos reunindo?

Chegarei até vós antes que a sorte

Me imponha o final recuo

Da morte?

 

- Pois que eu fique sozinho toda a vida,

Contanto que trabalhe para vós,

Que vos seja benéfico na lida

E que ameis um pouco,depois, minha voz

Depois, mais tarde,

Quando então este fogo já não arde.

 

 

71 – Memória

 

Tudo passa,

A memória das palavras e dos beijos,

Do corpo apaixonado que abraça,

Das fomes e dos desejos…

 

Porém, das almas o contacto

Que uma vez se tocaram e reconheceram

No meio do turbilhão compacto

Das formas efémeras que se perderam,

Este contacto, nenhum mais,

Este não se apaga jamais.

 

 

72 – Olhos

 

De que valem as belezas

Quando não tens para as ver

Os olhos de quem tu prezas?

Que fazer

Da beleza, da alegria

Se não são

Desfrutadas nenhum dia

Num outro coração?

 

 

73 – Limites

 

Quem teve a felicidade

Uma vez na vida de conhecer,

Sem limites, a completa intimidade

Dum coração amigo,

A mais divina alegria que houver

Vislumbrou de seu postigo.

 

Alegria cuja evidência

O tornará infeliz o resto da existência.

 

A pior desgraça, talvez,

Para uma alma débil e terna

É ter conhecido apenas uma vez

A felicidade eterna.

 

 

74 – Amigo

 

Um amigo empresta à vida

Todo o valor que ela tem:

Vivemos para ele, de seguida,

Defendemos quanto baste

A integridade que nos convém

Do tempo contra o desgaste.

 

Um amigo empresta à vida

Sem fulgor

Dum horizonte que convida

O fio condutor

De saída.

 

 

75 – Fruteira

 

Do mundo a fruteira emurchecida

Dois frutos produz mais doces

Que as águas da fonte da vida,

Serôdios por mais que algum dia

Fluir precoces

Lhes agrade:

- Um é a poesia,

O outro, a amizade.

 

 

76 – Doutrem

 

No amor, como em arte,

Ninguém a si deve pospor,

Imitar doutrem qualquer aparte.

Importa propor

O que sentimos

E quem se apresta a falar

Antes de ter algo a comunicar

Arrisca-se, na vertigem dos cimos,

A ficar pela espuma:

- A nunca dizer coisa nenhuma.

 

 

77 – Diverte-se

 

Uma rapariga bonita

Diverte-se, cruel, com o amor,

Crendo natural que a amem

E não se julgando, em meio à desdita

Que espalha em redor,

Obrigada a coisa alguma,

Seja o que for que as desfeitas dela tramem.

Embora quem a queira se consuma,

Aquele que a ama

E bendiz

Nisto já recolhe o prémio que reclama

E, para ela, é quanto baste feliz.

 

Do que o amor seja, ela nem suspeita a magia,

Além do arrepio da pele,

Embora perca todo o dia

A cuidar nele.

 

 

78 – Ver

 

Quem quer ver Deus vivo,

Face a face,

Deve procurá-lo, não num arquivo,

Não no estreito firmamento

Deserto do que lhe passe

Pelo pensamento,

Mas na fonte vital do calor:

- Dos homens no amor.

 

 

79 – Sorriso

 

O corpo da bem-amada

E a alma recolhida naquela carne sagrada

São toda a ciência, toda a fé.

Depois, que sorriso e piedade do que outrem adora,

Do que o próprio adorou outrora

E o que desde então se pôs doravante ali de pé!

 

Da vida poderosa e do rude esforço dela

Resta a pétala dum momento.

E, contudo, ficará para sempre como estrela

Imortal no firmamento.

 

 

80 – Desgraça

 

Magna desgraça para o casal unido

É desatarem-se os laços que um dia o hão prendido

À primavera do amor.

A imagem de antanho salvaguarda o calor

Contra desencorajamentos e hostilidades

Que, com  incontornáveis securas,

Hão-de seguir-se, como fatalidades,

Às primeiras ternuras.

 

 

81 – Milhões

 

Entre milhões de criaturas

Haverá sempre uma ou duas

Que estarão comigo, firmes e puras.

 

Contento-me com isto,

Pois basta uma trapeira

Para vislumbrar todas as luas,

Respirar o ar das estrelas

Que insisto

Em ter à minha beira.

 

Uma fresta e avisto

Todo o mar das caravelas.

 

 

82 – Pobre

 

“Pobre de mim, mulher!

Se soubera que sofrimento

É para mim, às vezes, ver,

Não que você não me quer,

Mas de que maneira o evento

Pretende de me querer

E o que serei para aquele

Que, afinal, é quem mais me ama!…

O gesto que me atropele,

Mas que em ternura se amalgama…

 

Há momentos em que enterro

As unhas na palma das mãos,

Para não gritar me aferro

Aos votos vãos:

‘Não me ame mais, ponha-lhe um fim,

Tudo, menos ser amada assim!’

 

Mesmo em casa, em meio aos filhos,

De honrarias simuladas

Cercada como cadilhos,

Sofro humilhações caladas,

Um desprezo mais pesado

Que a pior miséria ao lado…

Ai, quantas relvas minhas calcadas!”

 

 

83 – Raro

 

É tão raro um casal

Que se compreende, se estima,

Do outro seguro cada qual,

Não por mera crença de amor

Que tantas vezes a ilusão sublima,

Mas pelo penhor

Da vivência de anos passados juntos,

Anos embora sombrios, medíocres, que sabemos

Sem assuntos

Mesmo com a recordação

Dos perigos que vencemos!

 

É que tudo se torna melhor,

Então,

À medida que envelhecemos.

 

É, porém, tão raro

O que nos deveria ser mais caro!

 

 

84 – Casais

 

Mesmo nos casais mais unidos,

Nas mulheres mais estimadas,

Há momentos sofridos,

De aberração, de dores desgarradas,

Intoleráveis,

Que podem arrastar a loucuras

E destruir uma vida, duas às vezes,

Com abominações inomináveis…

 

Mesmo nas paixões mais puras,

Qualquer deles, qualquer

Leva o outro a sofrer

Todos os anos, todos os dias, todos os meses…

 

 

85 – Sofrerá

 

Por muito que uma pessoa

Seja boa,

Inteligente, compadecida,

De mil mortes sofrida,

Mesmo assim, nem por castigo,

Sofrerá da dor dum amigo.

 

Para vê-la tem um postigo,

De doê-la, porém,

Fica sempre ao abrigo,

Mesmo quando é o contrário que mantém.

 

É definitivamente intransponível a fronteira

De mim a quem de mim se abeira.

 

 

86 – Argumento

 

Um argumento de nada vale,

Ninguém pode fazer bem

A não ser quando quer muito ao que sofre,

Querendo-lhe irreflectido, visceral,

Sem tentar convencer ninguém,

Sem tentar curá-lo de chofre,

Amando-o simplesmente

E lamentando.

 

Apenas o amor não mente.

Ora, quando o logra um argumento, quando?

 

 

87 – Elegemos

 

Quando elegemos o amor de nossa vida,

Não acaba o trabalho,

Falta mostrar, de seguida,

O que valho.

 

O amor e o casamento,

Como um jardim,

Precisam de cuidados a todo o momento

E jamais isto tem fim.

 

 

88 – Lavra

 

Lavra na carne o áspero desejo,

A carência de ternura

Que leva qualquer alma ferida,

Decepcionada pela vida,

Em busca dum ensejo

De cura:

O braço maternal

Da consoladora primordial.

Um grande homem é mais criança

Que outro homem qualquer

E mais que qualquer outro precisa e avança

A confiar-se a uma mulher,

A repousar a fronte

Na palma de mãos suaves,

No côncavo horizonte

Dum vestido de penas de aves,

No fiel abraço

Dum regaço…

 

- Quão maior quenquer for,

Mais criança carente de amor.

 

 

89 – Independentes

 

Os independentes de outrora

Procuram abafar os independentes de agora.

Os jovens de vinte anos há muito passados

São agora mais conservadores

Que os velhos batidos dos tempos anquilosados,

Enquanto os críticos, deles hoje mentores,

Não toleram aos novos sequer

O direito de aqui viver.

 

Nada muda, na aparência desnuda,

E assim é que tudo muda.

 

 

90 – Ausência

 

Ausência, aumentas ainda mais o poder

Dos que amamos

E apenas, coração, irás reter

O que deles nos é caro, com que nos confortamos,

 

Enquanto de cada palavra o eco

Que do longínquo amigo

Logra penetrar em nosso beco,

Vibra no silêncio, o nosso comum sacral abrigo.

 

 

91 – Medida

 

À medida que vivemos,

À medida que criamos,

À medida que amamos

E perdemos

Os entes queridos,

À morte escapamos

Em múltiplos sentidos.

 

A cada golpe que nos atinge,

A cada obra que produzimos,

De nós próprios nos evadimos

E nos salvamos

Na esfinge

Das obras que criamos,

Das almas que amámos

E nos deixaram ao sol-pôr.

 

Então, já de nós fora

Mora

De nós o melhor.

E para a eternidade aí demora,

Para sempre tão vivo

E tão activo

Como agora.

 

 

92 – Juntos

 

Envelhecer juntos, envelhecer…

Velhos encantadores,

Após a breve vigília da vida lado a lado

Vão adormecer

Lado a lado, na paz da noite,

Definitivamente senhores

Do fado

A que o sonho se afoite.

Poder dizer consigo:

Aquela rugazinha junto aos olhos

Sei quando veio, depois de que escolhos,

Amiga, amigo.

Aqueles cabelos grisalhos descoraram

Comigo,

Um pouco por mim, infelizmente.

Aquele rosto fino enrugaram-

-No os cansaços

Do labor entrançado até o presente.

 

Amo-te mais, muito além de tantos traços,

Por comigo teres sofrido

E envelhecido.

 

Que bom poder dizê-lo

Deitado na eternidade ao luar singelo!

 

 

93 – Demónios

 

Amamos porque há uma alma secreta,

Demónios e potências cegas

Que cada homem decreta

Nele aprisionar no fundão das adegas.

 

Todo o esforço humano,

Desde que o homem existe,

Consiste

Em opor

A este rebelde mar interior

Os diques de desengano

Da razão

E da religião.

 

Mas desencabreste-se a tempestade,

(E as almas mais ricas mais a tal vivem atreitas)

Que os diques cedam ao demónio que os invade,

Fique livre o campo às seitas

E às maleitas,

E logo todos uns sobre os outros se lançam

E sem se estraçalharem não descansam.

 

 

94 – Ideias

 

Ideias contrapostas

A outras opostas,

 

Reacções

A acções,

 

Democracia

À ditadura duma pretensa aristocracia,

 

Socialismo

A individualismo,

 

Romantismo

A classicismo,

 

Revolução

A tradição

 

-E aqui vamos, tempos fora,

Hoje como outrora.

 

Cada nova geração,

Consumida em menos de dez anos,

Acredita com a mesma ilusão

Ter sido a única a atingir do cume os planos,

 

Derruba a anterior à pedrada

E sa agita

E grita,

Da glória até se ver condecorada.

 

Depois foge

Sob as pedras dos recém-chegados,

E desaparece, ontem como hoje,

No oceano infindo dos ignorados.

 

 

95 – Tarefa

 

A tarefa obrigatória, os cuidados do lar pelo qual

Alguém

É responsável mantêm

Um homem tal

Como um cavalo que dorme em pé e continua

A andar, exausto, entre os varais, na rua.

 

Mas o homem sem peias,

Abertas todas as vias,

Nada tem que o ampare

Nas horas vazias,

Nada que o force a andar,

A defender as ameias.

 

Por hábito segue,

Sem saber onde vai:

Prossegue,

Nem repara onde cai.

 

Com as forças perturbadas

E a consciência obscurecida,

Ai dele se, quando quase adormece,

As pegadas

Lhe acordam, de fugida,

Algum trovão refece

A interromper-lhe a marcha sonâmbula em que vá:

- Então desmoronar-se-á.

 

 

96 – Miséria

 

A miséria quase sempre é provocada

Por não termos um companheiro.

Amigos de passagem na jornada

Deles temos um viveiro.

 

A sério, porém, não temos mais do que um

E raros são os que o têm.

É uma felicidade tão incomum

Que já nem sabemos bem

Como viver

Depois de a perder.

 

A vida nos preenchia

Sem o percebermos:

Quando se esvai, tudo fica sem termos

E cada hora, vazia.

 

Não é apenas o amigo singular

Que se perde de mau grado,

É toda a razão de amar,

Toda a razão de ter amado.

 

 

97 – Bodas

 

Quando hoje alguém comemora

As bodas de oiro dum casamento,

O casal, neste momento,

Não é o mesmo que foi outrora.

Houve crises, ciclos, fases,

Ao longo do caminho mil resoluções:

Da maleabilidade é que perfazes

A sobrevivência das relações.

 

Olhar a montanha-russa

É uma pobre vivência.

Percorrê-la é que esmiuça

Das sensações a cadência

Nova momento a momento:

Trepar é bem diferente

De ir em queda…

- E a mesma montanha-russa é permanente

Na diferente almoeda.

 

 

98 – Faltando

 

Faltando os constrangimentos,

A atenção

Abandona dos relacionamentos

A manutenção,

Questiona a todos os momentos

A utilidade da ligação

Entre os vários elementos.

 

Vista a relação

Em vertente negativa,

O degrau posterior é pôr-lhe fim,

Assim,

Sem mais esquiva

Nem razão

Justificativa:

Ninguém vai dar o suor

De a tornar melhor.

 

Como cada vez mais há quem alugue automóveis

Em vez de os comprar,

Também as relações devêm móveis,

Sujeitas a contrato temporário singular.

Isto um bólido flamejante

Põe-me à porta de três em três anos

Mas não garante

O carinho constante

Nem a manutenção contínua que supra desenganos,

- Tudo o que doira

Uma relação duradoira.

 

A mudança de óleo por quê pagar

Se o contrato estiver a findar?

Uma esposa exigente

Por quê aturar

Se o divórcio eminente

É tão fácil de alcançar?

 

A ideia de aproveitar

De cada evento o melhor

E descartar

O pior

Nunca vai proporcionar

Um convívio fecundo

Nem um relacionamento profundo.

 

Quando no amor como na guerra

Vale tudo e nada mais é medido,

Alguém vai ficar por terra

Gravemente ferido.

 

Paz absoluta não existe.

O custo da paz relativa

É submeter-me ao poder e à norma que persiste.

O lucro que daqui deriva,

Sendo incontornável,

Torna, afinal, o investimento rentável.

 

 

99 – Seguinte

 

Cada qual pode bem ser

Dele o pior inimigo

E o seguinte é quem tiver

Um laço íntimo consigo.

 

Viver com alguém diz

Toda a informação

De como torná-lo infeliz

Em primeira mão:

 

Saber doutrem os pontos fracos

Permite pôr-lhe a vida em cacos.

 

Se souberam de antemão

Os choques emocionais,

Financeiros e legais

Que dum divórcio explodirão,

Todos evitariam os conflitos,

Continuariam casados.

 

O rosário de atritos

Dos amores finados

São a melhor razão

Para manter e cultivar de raiz

Uma ligação

Feliz.

 

 

100 – Sê

 

Sê sabiamente

Egoísta:

Os demais

Põe na lista

Como teus iguais.

 

Se nenhum dos pólos for ausente,

Atinges o equilíbrio.

A vida

Sem ludíbrio

Tem perenemente

Esta medida.

 

 

101 – Cuidado

 

Num relacionamento

Toma tanto cuidado com o final

Como tiveste com o início:

Não sofrerás nem resquício

Do tormento

Do fracasso total.

 

 

102 – Vivo

 

O lar

Não é apenas o lugar

Onde tenho o coração,

Onde vivo o sonho à mão,

Mas também o recanto singular

Onde alguém sempre há-de haver

Empenhado no que eu disser,

Interessado em mim

Sem requerer outra razão

Senão a de ser eu e de eu ser assim.

 

 

103 – Adultez

 

Depende uma adultez feliz

Tanto de sentir pertencer

A uma família de dado cariz

Como da personalidade que nela florescer.

Dois pratos da balança

No equilíbrio que alcança.

 

 

104 – Perpetua

 

Teus filhos não são teus filhos,

São filhos da Vida

Que se perpetua por seus próprios atilhos.

A vida não lhes deste iludida,

Puseste-os no mundo

E, embora vivam contigo,

Não te pertencem, no fundo.

De teu amor dás-lhes o abrigo,

Não as tuas ideias,

Que das deles próprios têm as mentes cheias.

Aos corpos dás-lhes guarida,

As almas não lhes aprisionas,

Que habitam a casa erguida

No amanhã

Que não podes visitar, luminosa e sã,

Nem nos sonhos com que a abonas.

 

Ser como eles podes desejar,

De ti te despindo, nu,

Mas não vás procurar

Que eles sejam como tu!

 

 

105 – Paga

 

A paga do trabalho feito

Deveria ser

O prazer

Que ele nos gera no peito

E a utilidade

Que dele colhe a comunidade.

 

Viveríamos, assim,

No Paraíso

Ou o mais perto, enfim,

Do que dele diviso.

 

Se um trabalho temos que desprezamos,

Que nos aborrece,

Que a comunidade que amamos

Esquece,

Então, de Verão ou de Inverno,

A vida é um inferno.

 

 

106 – Bebé

 

O bebé olha para a mãe

E arrisca o primeiro passo.

Se ela no lugar se mantém,

Novamente avança

Em trémulo compasso.

 

Vivemos em perene tensão

Entre o conforto velho da segurança

E de novas tentativas a excitação.

 

 

107 – Vida

 

Ter tido uma vida decente,

Ter amado e sido amado,

Da vida cada oferta premente

Ter saboreado,

Ter tido interesse para alguém,

Para alguma coisa ter servido,

- Eis tudo a que convém

Aspirar numa vida com sentido.

 

Às portas da morte, não vivemos em vão:

Se morrer é isto, não faz grande impressão.

 

 

108 – Morrem

 

Quando morrem os que amamos,

Com eles morrem universos inteiros.

Os que ficamos,

Se não nos sentimos tristes dos perdidos parceiros,

Sentimo-nos tristes por nós,

Definitivamente sós.

 

As vidas deles eram luz

Que nos alumia,

Eram sol a dar-nos calor

E a morte as reduz

À noite que esfria,

Sem amor.

 

Quando alguém morre,

Perdemos de nós mesmos esta parte

Além de perdermos quem morreu.

A ausência de nós escorre

E, destarte,

Cada qual fica mais pobre daquilo que era seu.

 

 

 

109 – Inermes

 

Na infância e na velhice

Tudo é muito semelhante.

Ambas por igual, sem que nada as enguice,

São inermes o bastante.

 

Ainda não e já não

Se tem na vida parte activa,

O que permite que se viva

Com aberta disposição.

 

É durante a adolescência

Que se forma uma couraça

Em torno ao corpo, excrescência

Pela qual já nada passa.

 

E continua a engrossar

Pela vida adulta fora,

Como a pérola do mar:

Quão mais ferida, mais agora

Vai camadas reforçar.

 

Como o tempo vai passando,

Vestido usado demais,

Vai-se a couraça esfiando,

Vê-se a trama e rasgões mais.

 

Até que, de repente,

Algo estúpido nos alcança

E desesperadamente

Choramos que nem uma criança.

 

Nos limites extremos

Como iguais nos vemos!

 

 

110 – Relação

 

A relação com a casa,

Com o que há nele e dela em volta,

Apenas com os anos se apraza.

 

Aos sessenta, setenta anos,

A casa já se não solta,

Jardim, sala, quarto

Não são comodidade ao acaso, um bonito,

Bens utilitários e lhanos,

Pertencem-nos, são a concha que acarto,

Caracol esquisito,

De mim fruto dum parto

Com secreções de enganos

E desenganos,

Tenho nela minha história gravada

Em cada voluta,

Casa-casca a envolver-me,

Epiderme

Na minha carne enraizada,

Por cima e em redor como uma gruta

Feita de mim.

Já não logro dela separar-me

Sem dar-me

Fim.

 

 

111 – Tratar

 

Se eu amar deveras

Terei de me indignar,

De tratar com dureza,

Terei de obrigar

Às esperas,

De agir e não agir com aspereza.

 

É o que quem é amado quer,

Aquilo de que precisa,

Mesmo quando o não souber

Naquilo que visa.

 

A verdade elementar

É o mais duro de compreender:

Amar

É a força,

A força indomável de bem-querer.

 

Ora, quem se esforça

É porque, desde logo, gosta de ti

E, para gostar, é porque te conhece:

Conhece o que nunca vi,

Mais o que, de oculto, esquece

Como o que, fácil, aceita

E nada, nada em ti rejeita.

 

Este acolhimento

É que vai tornar o amor violento.

 

 

112 – Impressiona

 

O que impressiona não é a promiscuidade,

Mas o grande empobrecimento

Com que ela invade

O sentimento.

 

Com o fim da proibição,

De ser única a pessoa amada,

Desapareceu também a paixão,

Pouco fica ou nada.

 

Pessoas muito constipadas,

Para o banquete convidadas,

 

Por educação

Comem tudo o que lhes dão

 

Sem o saborear:

Carne, peixe, fruta do pomar…

 

- No banquete deste amor

Sensaborão

Tudo tem o mesmo sabor

A podridão.

 

 

113 – Odiarmos

 

Para odiarmos alguém

Importa que nos fira, faça mal.

Quem nos não faz nada por aí além

Não nos deixa marca real.

 

É mais fácil morrer de nada

Que de dor. Não é ilusão:

Contra a dor posso atirar uma pedrada,

Contra o nada, não.

 

 

114 – Observador

 

Ao observador sério

Que acaso testemunha a paixão,

Repugna usar o mistério

(Mesmo na própria solidão)

Daquilo que presencia:

- É que saltou, ladrão,

A proibida vedação

Para o mundo real da fantasia.

 

 

115 – Visível

 

Compraz-se Deus,

Para tornar visível o espiritual,

Em servir-se da forma e cor de filhos seus,

De beleza os enfeitando com esplendor irreal,

Para instrumento da lembrança,

De dor nos inflamando e de esperança.

 

 

116 – Meio

 

Do homem sensível o caminho

Para o espírito é a beleza.

É o meio apenas, mas é o cadinho

Da jóia que mais preza.

 

O amante

É mais divino que o amado:

Naquele mora o deus flamejante

Que deste é ignorado.

 

De êxtase estremece a natureza

Quando o íntimo se inclina

Em homenagem à beleza

Que inelutavelmente é divina.

 

 

117 – Executa

 

Um humano ama e respeita

Outro humano

Enquanto não executa o plano

De o julgar.

 

O desejo é a mente afeita

A um conhecimento singular:

É discernimento insuficiente

E portanto, simplesmente,

Vai bastar.

 

Se aumenta,

Desencadeia a tormenta

E vai varrer o amor inteiro para o mar.

 

 

118 – Paixão

 

A paixão como o crime

À ordem não se acomoda,

Ao bem-estar do dia mais sublime.

E qualquer dente quebra na roda,

Qualquer tribulação

Que o mundo aflija

É bem-vinda fermentação

Donde pode esperar,

Enquanto borda fora o antigo alija,

Que alguma novidade venha a germinar.

 

 

119 – Demónio

 

Os apaixonados,

A cabeça e o coração embriagados,

 

Seguem do demónio a indicação

Que aos pés se compraz em calcar a razão

 

E, no momento do desengano,

A dignidade do ser humano.

 

- Entretanto é, todavia, o deus

Que vêem por trás dos véus.

 

 

120 – Sinal

 

Qualquer sinal de cobardia

(Prostração, juramento,

Aviltamento

Escravizante…)

Jamais prenuncia

Vergonha para o amante,

Antes lhe traz a mais-valia

Do louvor constante.

 

O amor é singular:

Põe a vida de pernas para o ar.

 

 

121 – Separados

 

Continuamos

Quando nos unimos

Na leiva das lavras:

Quando juntos nos sentamos

Uns nos outros nos fundimos

Com frases meras e com palavras.

 

Enquanto a frustrada união infinita

Por dentro de nós nos grita,

Diluída nos limos,

Do intransponível na desdita.

 

 

122 – Passeando

 

Meus filhos os pinhais desbravarão,

Minhas filhas ei-las passeando o Verão.

 

Não somos de chuva gotas

Secas, de estéreis, ao vento,

Fertilizamos jardins em plagas remotas,

Rugimos nas florestas, a cada intento.

 

Tomaremos interminavelemnte

Em cada era uma forma diferente.

 

Seremos eternamente assim

Do Universo até ao extremo confim.

 

 

123 – Sempre

 

Quem não esquecerás jamais

Não é quem tem mais dinheiro nem credenciais.

 

Quem marca a diferença em tua vida

É quem se preocupa contigo, na hora e à medida.

 

Muitos ou poucos, estes são

Os que em ti para sempre viverão.

 

 

124 – Fuja

 

Muito embora lhe fuja, nunca mais a veja,

Lhe esqueça de vez o nome,

Em minha mente poreja

Até à morte, em tudo quanto em mim tem fome.

 

Amar e separar-me, como é impossível!

Desejarei porventura que assim seja,

Posso transmudar o amor,

Ignorá-lo, preterível,

Confundi-lo, aliás, com o que alguém almeja

Mas de mim arrancá-lo nunca o vou supor.

 

O amor, frágil sol de inverno,

Sempre o amor em nós é eterno.