AS
GRUTAS DA MADRUGADA
PRIMEIRO TROVÁRIO
Escplha um número aleatório entre
1 e 124 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1 – Trovário de Rumos
Em livre métrica o amor canto e os laços meus
O mito e o sonho cifrarei que me empolgarem,
O imperativo que o cotio brinda aos céus,
Desfio os traços do que for rosto de Deus,
Os regulares laços dou que me enlaçarem.
Em metro e rima retomar vou o Infinito
Nestes degraus dos actos vagos, dia a dia,
Até ver claro em que consiste este meu grito.
Então na quadra a amatr, sonhar, com alegria,
Em voz de povo o saber traço ao que vislumbro,
Na quadra irregular tudo, por fim, me guia.
Em trovários, da vida com mil sóis me alumbro,
Nos sonetos resumo picturais ideias,
De mil formas rirei vidas de graça cheias.
2 – Em livre métrica o amor canto e laços meus
Em livre métrica o amor canto e laços meus,
Os nós que devo atar comigo e com os mais,
Com todo o mundo que me envolve, com os céus,
Os mil afectos que trocamos, gineceus
Onde geramos sangue e rumos cruciais.
Em rimas rimo o que me rima a meu contento,
Sílabas livres no compasso que liberta,
Desencontrado como o passo com que tento
Nos nós e afectos manter sempre a porta aberta.
Do íntimo vou rumo às fronteiras mais distantes
A palmilhar, verso a poema, a trilha incerta
Onde as apostas ganho e perco dos instantes.
Nestas palavras ato o véu no qual desvendo
O que me encobre e me desvela o que vou sendo.
3 – Requer
O cantochão
Requer a concordância
Do entono
E não
O individualismo da ganância.
Ao escolher um dono
Jamais o cão
Revela intolerância.
Então,
A luz do dia
É uma harmonia.
4 – Amamos
Amamos velhas catedrais,
Móveis velhos, pratas antigas,
Velhos dicionários, edições originais,
Mas esquecemo-nos da beleza das fadigas
No rosto dos velhos seres humanos.
Belo é o velho, maduro e curtido,
Estrutural à vida, em que os desenganos
Delimitam a fronteira ao que é sentido
E apontam, sonhando, para além
A magia do que jamais vem.
5 – Amigo
Não é useiro e vezeiro,
Nem, quando adrega,
Se esvai.
Amigo verdadeiro
É o que chega
Quando toda a gente sai.
6 – Esperamos
Ao melhor amigo
Não fazemos juramentos.
Esperamos (e sempre dele ao abrigo,
Sem palavras, nem razões, nem argumentos…),
Esperamos compreensão, bondade, interesse.
E que uma amizade dure
Enquanto o tempo a depure,
Até que o tempo se esquece:
- Uma amizade é um lugar
De pelo tempo durar.
7 – Total
Não é a total revelação
Que gera a intimidade
Duma relação.
É saber ouvir,
Agrade ou desagrade,
E, em comum,
Da partilha do pão e da palavra fruir,
Cada dois a formar um.
8 – Afirmar-lhe
Afirmar-lhe a ela que é “atraente”
É confirmar que nada em particular é,
Embora lhe empreste personalidade:
É o beijo da morte indiferente
Pôr-lhe ao pé.
Quem vislumbra adiante
Quanto lhe agrade,
Ao invés,
Que alguém lhe murmure que é “deslumbrante”,
Ao menos uma vez?
9 – Raio
Que diferença
Entre o raio que incendeia o coração
Aos vinte anos
E a presença
Do amor que tem à mão
O adulto maduro de desenganos!…
A osmose deste, lenta
E poderosa,
Em que o que atormenta
Até cru finalmente o goza…
Afecto duradoiro,
Ondulando ao sabor da babugem da vida,
Paixão madura
Não é um imutável tesoiro,
Ao contrário, depura
Crescimento espiritual em tudo a que convida.
Como com tudo muda e se transmuda,
Paciente,
A ela eternamente
Nos gruda.
10 – Perdi
Se perdi a fé em Deus,
O amor toma-lhe o lugar:
Minha fé, a fé dos meus,
Serás tu no meu altar.
O amor é religião:
Haver Deus ou não haver,
É retirar deste chão
O pão
Da semente ainda a crescer.
11 – Encontro
O que o vero sentido inaugura
Num encontro, decerto,
É a procura.
E quanto é preciso andar
Para atingir o lugar
Do que está perto!
12 – Primeira
Vejo-te a primeira vez,
Que as palavras dele fizeram
De ti alguém ao invés.
Antes de ouvi-lo, teus traços eram,
Mas depois recompuseram
Uma figura diferente,
Como se te baptizaram:
Levamos ao colo um ente,
Outro vem que as águas revelaram.
Vejo-te a primeira vez
E aquilo que és, aquilo
Foi a palavra que to fez.
Como então ficar tranquilo
(Se a vida é deste jaez)
Com as palavras que perfilo?
13 – Nada
Um nada desperta a chama
Entre quem se ama.
Um nada é introdução
Ao que explode no coração.
- Um nada é o grito
Da fresta do Infinito.
14 – Cativa
Nada nos cativa mais
Do que um coração bondoso:
Levando nos bornais
Um modo insinuante e afectuoso,
Atrairá bem mais fundo
Que todas as inteligências do mundo.
15 – Desperta
Temporão desperta a solidão
Este humano coração
E da unidade o distancia
Em que tudo ingenuamente ocorreria.
Põe doravante o dedo na ferida
Que ignorada já não pode mais ser vivida.
16 – Primeiro
O primeiro movimento
Em que agir a sedução
Delibera da paixão,
Dando-lhe de resistência
Um cimento
Que nunca teria
Se, naquele momento,
Dela a inteira consequência
Vindoira nos anuncia.
17 – Abusivo
Um amor heróico, abusivo, selvagem,
Cheira a blasfemo.
Um amor pessoal
Tem do feiticeiro a imagem,
Pacto com o demo,
É insuportável, iníquo, criminal.
A comunidade
Quer viver precavida
Contra a paixão cega que a invade,
Que a morte busca dominar em vida
E deter o envelhecimento
E prolongar o prazer carnal
Como direito, um direito divinal
De quem tem merecimento.
Ora, a multidão tem de continuar
Cada vez mais submetida,
Optando pelo fim sem sofrimento,
Desaparecendo, modelar,
Rápida e sem vestígios.
Entretanto, a permissividade,
Em compensação, operará prodígios,
Tão efémera quanto alheia à sensualidade,
Esvaziado cada qual,
Reduzido à soma de órgãos corporal.
Mas é a mentira da nova alquimia
A imitar juventude por falsa magia.
Abolidas as fronteiras do prazer,
Não há mais autoridade ou Deus sequer.
O que ocorre, porém,
É que o homem se afasta do desejo,
Não habita mais qualquer alma que tem,
Já que esta se alimenta dum conduto,
Não do que vejo,
Mas da paixão pelo absoluto.
18 – Pai
Quem eras, pai? Sei lá bem!
Só me lembram teus joelhos
No jeito de me sentar.
Como o amor retém
O mais invisível dentre os traços velhos
Para poder criar
Dum ser humano
Toda a história, todo o engano!
19 – Ávido
Do próprio poder
Dominador
Se ávido for
Quenquer,
A liberdade de amante, marido ou mulher
Há-de senti-la como um rasgão,
Mancha de desengano,
Em seu manto de papão
Inumano.
E finda dele próprio prisioneiro,
Por todos abandonado no atoleiro
Da solidão.
20 – Serviçal
Submissão:
A outrem dar satisfação,
Ignorando mais plenitude
Que a do prazer que lhe é proporcionado.
Não implica o amor que ilude,
Mas um serviçal cuidado
Do que o amor ainda mais irresistível:
- É o impossível
Direito a ser sacrificado.
21 – Convida
Não há nada tão belo
Como a mulher
Que nos convida ao prazer.
Pode um nada dar singelo.
Porém, conseguiu de nós
O melhor:
A descoberta da sede, da fome atroz
Deste feminino amor,
Aquilo que nada satisfaz,
Cujo perfume,
Que tanto seduz,
Quebra a paz
E produz
O ciúme.
- E nos atira ao cume!
22 – Pedra
Como da pedra a lasca
Solta o vento,
Dou-vos da palavra a casca,
Não vos dou meu pensamento.
Mas, quando se desatasca
De meu íntimo elemento,
O que a palavra em mim masca
Afinal não é o que invento.
Se me minto ao vos mentir,
Sei lá bem o que é que penso!
A palavra, ao de mim ir,
Vejo é que é um mistério imenso.
23 – Força
A força das palavras articuladas!
Atiramos os pensamentos
E outros os acolhem como pedradas.
Há sempre cabeças atingidas,
Sensíveis como tegumentos.
Que medidas,
Em que idade
Custará menos acolher a verdade?
24 – Morte
A morte de quem amamos
Faz doer também por nós,
É que mais pobres ficamos,
Mais sós
E de vez desamparados.
De nós próprios é ter pena,
Autocomiseração,
Lembrados
De que é cada vez mais pequena
A lonjura até ao vão
Do lugar
Em que a morte nos venha a nós buscar.
25 – Palavra
Nenhuma palavra há-de conter
O amor:
Das profundas são as palavras inimigas.
Se a palavra que vais dizer
Mais bela que o silêncio não for,
Não a digas.
Falam muito mais
Silêncios que tais.
26 – Batido
O mais interessante
É ver como o apaixonado
É perseverante:
Batido por todo o lado,
Em dificuldade tanta,
Pretende mesmo assim continuar,
Ter êxito com quem o encanta,
Nem que isto o ande a matar…
- É um mártir por sua santa!
27 – Tempo
Tempo de viver a vida
Arranje-o também.
Aos amigos dedique-o, de seguida,
À família e tempos livres que tem.
A memória logo registará
Toda a melhoria que lhe vem dacolá.
Um afecto apaixonado,
Um fascinante objectivo
Ajuda o que a fogo foi gravado
A recordar perenemente vivo.
A memória nos requer
À nossa vida com cuidado atender,
Levando a eternizar nela
Quanto vale a pena recordar:
- Toda a estrela
Que vida fora soltámos pelo ar.
28 – Árvore
Árvore minha dos problemas,
Plantada à porta do lar…
Traz-me o labor apostemas
Que jamais posso evitar.
Nada, porém, têm eles a ver
Com minha casa, a família, a mulher…
Penduro-os, portanto, à noite,
Aos problemas, em tal árvore, ao chegar
À porta do lar
Onde breve me acoite.
De manhã, depois, então,
Pego neles outra vez,
Tenho-os à mão.
Vejo o que a noite lhes fez:
Nunca há tantos problemas lado a lado,
Ao alvor,
Como os que me lembro de haver lá pendurado
A noite anterior.
29 – Cúmulo
Todos têm o direito
A ter uma opinião
E exprimi-la livremente.
Por mais que a tome a peito
Quenquer, então,
Por melhor que a fundamente,
Há-de ela tanto valer
Como outra qualquer.
Discutir empenhado
Na ocorrência,
A tentar outrem convencer,
Pode ser considerado
O cúmulo da insolência.
Melhor portão
Trancado contra o fanatismo,
O fundamentalismo
Malsão,
Toda a forma de extremismo
Que advier,
- Melhor não há-de haver,
Entre tudo quanto lhes resiste,
Do que a liberdade de opinião
E de expressão,
Quando ela existe
E renitente persiste
Em mantê-los curtos e à mão.
30 – Palcos
De nós a maioria
É desta gente comum
Que noutros palcos vive a vida
Que os da fama ou fantasia:
De nossa casa na lida,
De labor em balcão algum,
Pelas ruas da cidade,
No grupo, em comunidade…
Jamais, porém,
Encontrei alguém
Que de sentir não precise,
De vez em quando,
Que lhe deslize,
Cruzando o infinito além da janela,
Fugaz perpassando,
O brilho irrecusável duma estrela.
31 – Felicidade
Não amar,
Quando as almas são feitas para o amor,
É a si como a outrem privar
Da felicidade maior.
O amor em concreto não existe,
É uma hipótese desmesurada:
A felicidade que persiste
É apenas da mente a configurada.
O fundamental
Do fogo
É o mental
Jogo.
De não amar, o problema
Não é que me desarme,
É que o efeito de tal lema
É apagar-me.
32 – Podengos
Os podengos do poder,
A esburgar ossos dum país invertebrado,
Deliciados a se entreter
Em corruptas campanhas de badalo enfuriado,
Guerrilhas de gabinete
Empeixeiradas,
Cada cabeça, uma retrete,
As testas brutas carenciadas
De recheio,
Os podengos jamais terão lampejo nem suspeita,
Algures do esterquilínio pelo meio,
De que o amor é a receita,
O centro e o pináculo do Mundo.
A mulher,
Nem deusa nem rainha sequer,
Mora-lhes num arrabalde infecundo
Como um armazém, um albergue,
De serviço uma estação,
Rampa de lançamento de quem se ergue,
Parque de diversão…
Que devenha centro do centro,
Eixo da vida,
Porta do céu ou do inferno onde entro
Humilde e por medida,
Chave de tudo,
Redenção do nada,
Não fende o crânio cascudo
De alma nenhuma castrada.
Examino-as por miúdo,
Nenhuma tem nenhuma entrada.
33 – Sugar
Para nos sugar nasceu a mulher,
Temos sempre de dar-lhe uma coisa qualquer:
Dinheiro, porrada ou erecção…
Mas há as que apenas têm precisão
Duma palavra boa,
Duma ternurinha à toa.
Se calhar são todas
Que precisam destas minúsculas bodas.
E, enquanto elas se consomem,
É do que menos se lembra um homem.
34 – Sempre
Há sempre mulheres,
Há sempre crianças
Que salvam o resto,
Quando em saberes
E danças e contradanças
Não presto.
Mas as crianças, mais:
Menos tempo são bonitas.
Deixam-nos as memórias esquisitas
Dos sinais.
Mal advindas,
Logo se vão.
E a cabeça não nos desfarão
Pelo facto de serem lindas.
35 – Maravilha
A maravilha, a glória
De escrever um livro em acção!
A invenção dentro da memória,
A memória dentro da invenção,
A cavalgada
Dos eventos em fuga,
A lua-de-mel secreta e arrebatada,
Poligâmicas núpcias de quem madruga
Das palavras com a feminil multidão:
As que se entregam e esquivam,
As que de mortas revivam,
As que urge perseguir,
Ludibriar,
Seduzir,
As que se deixam capturar,
Palpar, despir,
Penetrar,
Proporcionando, no variegado cariz,
Horas mágicas duma paixão feliz.
Incorporeamente incarnada,
A palavra é a aposta
Mais predisposta
A ser por amor fecundada.
36 – Escolher
Não fujas de escolher a trama,
Nem esperes:
Ama
E faz o que quiseres!
Sem amor, a obrigação
Desgosta, morta a fragrância.
Por amor, ao invés, então,
Dá-nos constância.
Sem amor, a responsabilidade
Intolerante leva a agir.
Por amor, o amor persuade
Solicitude a produzir.
Justiça sem amor
É dureza de coração.
Por amor, incute a maior
Confiança da justiça na mão.
Sem amor educação
A contradição suscita.
Por amor, germinarão
Frutos da paciência que hesita.
Sem amor devém manhoso
Todo o inteligente vivo.
Por amor, a inteligência é o gozo
De devir compreensivo.
É mera hipocrisia,
Sem amor, a amabilidade.
Por amor, germina dela o dia
Da bondade.
Sem amor será mesquinho
Cumprir ordens, tira o ânimo.
Por amor é um vinho
Que torna magnânimo.
Sem amor, a competência
Torna o agente capcioso.
Por amor, a eficiência
Gera a fé no laborioso.
Sem amor, o poder
Violento vai tornar.
Por amor, torna quenquer
Disposto a ajudar.
Quando me esquivo,
Quando me apresto?
Honra sem amor torna altivo;
Por amor, torna modesto.
Sem amor, os bens
Tornam avarento.
Por amor, manténs
Generoso intento.
Sem amor, a fé
Fanático torna.
Por amor, de pé
Em paz te lavra toda a jorna.
37 – Carismático
O carismático roubou-me
E deu-me ainda mais:
Cada amigo meu atrás dele se some
Entre sarças e pedregais.
Roubou-mos, decerto,
Mas deu-me a mim mesmo a mim
Que o não sigo
E eis-me então de mim mais perto.
A espalhar-se inócua pela alfombra,
Não sou dele, sem confim,
A volátil sombra,
Nem me serve ele de abrigo:
- É nisto, afinal, que é meu amigo.
38 – Boca
Dela a boca vermelha, experiente,
Muito lhe ensinou.
Dela a mão terna, previdente,
Tudo lhe guiou.
Ele, no amor ainda criança,
Tendendo a se atirar sôfrego e cego
Do prazer ao pego
Como quem dança,
Aprendeu que ninguém pode
Acolher prazer sem prazer dar
E que acode
Em cada contacto e olhar,
Em cada gesto e carícia
Do corpo no mais íntimo recanto,
Um segredo de delícia
Pronto a germinar,
Prenhe de encanto,
Em quem o souber despertar.
Ela ensinou-lhe que os amantes
Não se devem separar
Após o festim do amor,
Sem cada qual ser conquistado ou conquistar,
Agora como dantes,
A renovar o fervor,
Para nenhum sentir tédio nem solidão
E para evitar, por outro lado,
A execrável impressão
De maltratar ou ser maltratado.
Muito ela lhe ensinou…
- E a Vida principiou!
39 – Contempla
Há muito contempla o rosto dela adormecido,
Longamente lhe repara na boca velha e fatigada,
De lábios mirrados.
Recorda que um dia há muito ido,
No verdor da jornada,
Comparara aquela boca aos valados
De morangos pejados.
Muito tempo fica sentado
Lendo o pálido rosto,
As rugas exaustas…
Nesta visão mergulhado,
Vê seu próprio corpo ao lado posto,
Branco, apagado,
Do termo da vida nas horas infaustas.
E ao mesmo tempo viu
Os rostos jovens dos dois,
Com lábios vermelhos de cio,
Com olhos ardentes de arrebóis.
O sentimento do eterno presente
O invadiu,
Da simultaneidade
Em tudo vigente:
O frémito da eternidade.
Então sentiu
Profundamente,
Profundamente mais
Que jamais,
De todas as vidas a imperecibilidade,
A transitoriedade de todos os tormentos,
A eternidade
A bater no coração de todos os momentos.
40 – Obrigá-lo
Obrigá-lo não obrigas,
Não lhe bates, não castigas,
Nem sequer ordens lhe dás.
Pode mais a brandura
No rapaz
Do que a força que o segura,
Água mais forte
Há-de ser que rocha dura,
Em qualquer pendência
O amor tem mais sorte
Que a violência.
Extirpaste o quisto,
És digno de louvor por isto.
Não é um erro, porém, de tua parte,
Não o forçar, não o castigar?
Não o andas, destarte,
Com teu amor a acorrentar,
Persistente, devagar?
Diariamente o não humilhas,
Não lhe tornas mais difícil tudo,
Com tua bondade a transbordar das vasilhas,
Tua paciência contra que não tem escudo?
Não o obrigas a viver
Em teu mundo ultrapassado,
Não é para ele um dever,
Não é um castigo disfarçado?
Tens de ter sobre ti vigilância constante,
Não vá o vinho avinagrar-se logo adiante.
41 – Tornei-me
Tornei-me um deste povo
Sofrendo por mor de alguém,
Amando-o, nascido de novo,
Perdido por amor, em pelém,
Louco por causa dele.
Finalmente sinto também,
Pela primeira vez na pele,
Esta forte e estranha paixão,
Sofro por ela, miseravelmente,
De rastos no chão.
Mas sinto-me feliz e me aplico,
Eis-me renovado, todo contente,
- E sou mais rico!
42 – Cego
O amor cego da mãe pelo filho,
Orgulho tolo do pai vaidoso,
Ambição louca da jovem por jóias e brilho,
Por impressionar dos homens o olho guloso,
- Todos estes impulsos, infantilidades,
Meros desejos, todavia mui fortes,
De tão vivos, de tão influentes,
Já não são apenas veleidades:
Quantos se agarram a eles, como a suportes
Fiáveis e persistentes,
Por eles agem, viajam, combatem,
Sofrem, suportam mil tormentos!
Amo-os, amo-os a todos, que se não desatem
Do fio da vida, dos mil elementos
Do Imperecível, do Uno de actos e paixões,
Da sinceridade das ilusões.
Que força e tenacidade!
Nada lhes falta…
O sábio supera-os apenas pela verdade
Ínfima, porém alta:
- A subida
Ideia consciente da unidade
De toda a vida.
Porém, esta sabedoria
Será que tanto assim valia,
Não é mais uma infantilidade a desoras
De crianças-pensadoras?
Em tudo o mais
As gentes do mundo
Têm direitos iguais
Aos do sábio mais profundo
E muitas vezes o superam
Como os animais
Quando, tenazes, não desesperam
De lutas cruciais.
A verdadeira sabedoria,
Objectivo de nossa longa demanda,
É uma prontidão de alma de vigia,
Pendor que nos comanda,
Arte oculta de ter,
Em cada instante da vida,
A ideia da Unidade do ser,
De a sentir,
De respirá-la conseguir:
A harmonia,
A eterna plenitude do mundo
Que me sorri e se anuncia,
Fundo,
Da inumerável mesquinhez do dia-a-dia.
43 – Ferida
Mostrar a ferida a um ouvinte
É banhá-la no rio,
Arrefentá-la com requinte,
Até una derivar das águas com o corropio.
Enquanto falo e me confesso,
Não é alguém já que me escuta,
Impassível e professo,
É quase árvore sorvendo minha chuva, arguta,
Tem dum deus a identidade,
Ponte de eternidade.
Deixo de pensar em mim e na ferida,
Tudo é natural e fica em ordem
E sempre de tudo foi, afinal, esta a medida.
Apenas o não reconheço quando me mordem
Da superficialidade os mil ferrões,
Quando aqui tropeço,
A pele a enxamear-me de contusões,
E à raiz já não regresso.
44 – Escuto
Escuto o rio atentamente,
A decifrar-lhe o assunto.
Minha imagem, a de cada parente,
Fluem em conjunto,
A de cada amigo aflora e se esvai
Na correnteza,
Doravante parte dela, folha que ali cai
E entra a dançar na devesa,
Aspirando do rio à meta
Como rua que projecta,
Ansiando,
Sofrendo,
Cobiçando,
E a voz do rio soa doendo
Por dentro de todos nós,
De pais, filhos, amigos, avós…
Um desejo inquieto agita o rio,
Vejo-o apressar-se,
Ao rio que a mim e a todos incluiu,
A todas as ondas sem disfarce,
Correndo, remoendo,
Rumo ao objectivo,
À cachoeira, aos rápidos, ao lago,
Ao mar esquivo,
À rebentação, ao afago…
E toda a meta é atingida,
Todo o objectivo, alcançado
E, logo de seguida,
Nos ameia um outro fito renovado:
Água em vapor trepa ao céu,
Em chuva alimenta a fonte,
Regato a regato o rio cresceu
E corre rumo a novo horizonte…
Minha voz ansiosa
Se transmudou.
Ouço-a ainda, dolorosa,
À procura.
Mas um imenso coral se lhe juntou,
Milhões de vozes à mistura,
De alegria, sofrimento,
Sorridentes, lamentosas…
É o eterno, o infinito Intento
A que me entroso, a que te entrosas
No infindo rio do nosso invento
Em cuja torrente me acalentas e te acalento.
45 – Amar
Posso amar uma pedra, uma planta,
Um bocado de casca:
Cada coisa me encanta
E meu pé desatasca.
Uma coisa poderei amar,
Não poderei amar as palavras:
Não logro as doutrinas apreciar,
Delas nas lavras
Não têm dureza nem moleza,
Nem cores, nem arestas,
Nem cheiro, nem gosto,
Nenhuma preza
Que lhe faças festas
Nem tem o sabor do mosto.
As palavras como amar,
As palavras sem rosto?
- Jamais as poderei abraçar,
Jamais, aposto…
46 – Igual
Se tudo for aparência,
Também aparência sou
E então tudo é igual a mim.
Esta aparência,
Dela com a imitada consistência,
É que, por fim,
Me leva as coisas a amar.
Pelo amor é que vou
E não por outro lugar.
Compreender o mundo,
Explicá-lo,
Ignorá-lo,
De filósofo é o mister profundo.
Mas o mais importante
É a todas as coisas me dar:
Ódio, não, nem desprezo, senão, adiante,
A mim me levarão a desprezar.
O verdadeiro preceito
É distribuir em meu redor,
Por todos os seres, amor,
Admiração e respeito.
Estão bem quaisquer saberes,
Mas, primeiro, os seres!
47 – Ignorar
Buda, Jesus, Maomé,
Como poderiam ignorar o amor?
Cada qual reconheceu, de boa-fé,
Como é efémero quanto é humano
E, apesar disso, amou com tal fervor
Tanta gente, toda a gente
Que empregou uma vida cansativa
No engano
Persistente
De ajudar, de ensinar a trilha viva.
Também neles prefiro
O acto à palavra, a vida ao discurso,
O gesto às ideias.
Adiro
Ao curso
Das vidas cheias:
Em falar ou pensar o fim não vejo,
- Agir é que vislumbro e almejo.
48 – Amo
Amo, muito embora
Acabe fatigado e desiludido
A cada dia, em cada hora,
Com a vida a passar ao lado.
Hostil e perdido,
De animosidade marcado,
Sei, contudo, no fundo dos abismos,
Que o amor, uma vez as sombras expulsas,
É o que fica depois dos antagonismos,
Do contraste de atracções e repulsas.
A ponte entre ternura e vontade
É o que resta e persuade.
49 – Chão
Vem daí! Do que precisas
É de amado ser deveras
E de amar todas as brisas,
Do chão até às esferas.
O amor não deixa
Envelhecer,
Não há lugar à queixa
De morrer.
Escapa-se, esquivo,
Ao jogo das sortes:
- Morrer estando vivo
É que é a pior das mortes!
50 – Íntimos
Mesmo os mais íntimos concluem
Que nada se altera
Com a morte seja de quem for.
Na vida os mortos se diluem,
Que ela jamais os recupera:
Dispensa-os, digere-os no torpor
Dum ritual singular
Que jamais vise
Que o pesar
Se interiorize
E eternize.
A Primavera
Abre em flor.
Na vida nada se altera
Com a morte seja de quem for.
51 – Dor
Não há dor mais radical
Que a da criança ao descobrir,
Pela primeira vez,
Do mundo o mal,
Dos outros a malvadez.
Crê que a vão perseguir
Todos e em todo o lugar
Sem mais ninguém que a ampare.
É uma vida condenada:
Não há mais nada, mais nada!
Jamais uma criança
Sem ajuda
Outra lonjura alcança
Que lhe acuda.
52 – Fraco
Quando alguém fraco demais
Se descobrir
Para os desejos e o orgulho
Que tiver,
Transfere
Para os pais
Os sonhos que em entulho
Nele vir derruir,
Se for criança.
E, mais tarde,
Bandeira vencida
Pela vida,
O que não alcança
Aposta que arde
Ou vai arder nos filhos:
Cada qual, vingador ou paladino
Vai-lhe reatar os atilhos
Que lhe desatou o destino.
O amor e o egoísmo
Equilibram-no sobre o abismo.
53 – Terna
Entre pais e filhos a intimidade,
Mesmo com terna afeição,
Que intransponível dificuldade!
Dum lado, o respeito é um travão
À confidência,
Doutro, o preconceito da idade
E da experiência
Não atribui seriedade
Da criança aos sentimentos.
Ora, quantas vezes, como os dos adultos,
Eles são fiel manga dos ventos
E nós, estultos,
Em meio aos desesperos,
Nem vemos que são por norma mais sinceros!
54 – Ausências
Das ausências a terrível dor,
Tormento intolerável do coração amante,
Mundo vazio, vida vazia, do vazio o horror,
Angústia mortificante,
- Como respirar, como respirar? –
Mormente quando em redor
Andam as pegadas de quem se amar,
Quando no cenário familiar
Permanecemos
Onde o céu juntos vivemos,
Quando continuamos a teimar,
Ne eterna romaria à ermida,
Em reviver, no mesmo lugar,
A alegria desaparecida…
Rasga-se-nos o abismo aos pés,
Inclinamo-nos para ele,
A vertigem nos impele,
Tombamos ali de vez.
Vemos a morte de frente
Mascarada de ausência,
A morte lentamente,
A tortura em persistência.
Assisto em vida ao desaparecimento
Do mais caro ao coração,
A vela a apagar-se, momento a momento,
Abismo negro: o nada em lugar do chão.
55 – Amizades
Das amizades a maioria
De mútua complacência
São mera companhia
Que apenas vale
Para que dum ao outro a confidência
Cada qual fale.
Tudo repoisa
Neste pouco.
Mas é já qualquer coisa
Não ser mouco.
56 – Aproxima
Nada aproxima tanto
As medíocres almas sofredoras,
Descontentes, em pranto,
Como a comum impotência verificarem
De todas as horas.
Nestas ao repararem,
Nada tanto contribui
Para o gosto da saúde nos sãos
Como o contacto do tolo pessimismo que flui
Das mãos
De medíocres e doentes
Que, por não serem felizes,
Negam, com todos os matizes,
A alegria das demais gentes.
57 – Trabalhava
Trabalhava sem descanso
E queria os mais
Nisto iguais.
Não para que o fim que nisto alcanço
Seja ao fim tornar, no fundo,
Mais feliz todo o mundo.
Ao invés, dele o objectivo
É provocar um incómodo a todos,
Tornar a vida um desagradável negativo
De tempos, usos e modos,
Corrê-la à bala,
- De modo a santificá-la!
E eis como, em nome dum doentio deus,
Se erige uma saudável máquina de ateus.
58 – Admito
Admito que me são superiores
Em títulos, inteligência ou saber.
Ao discutir, porém,
Não há superiores nem inferiores,
Nem títulos sequer,
Nem nome, nem idade
Também:
Existe apenas a verdade.
Ante a qual, quanto ao mais,
Todos somos iguais.
59 – Calvário
O calvário dos séculos remonta-o cada qual,
Torna a encontrar as dores,
Torna a encontrar a esperança
Desesperada, abismal,
Dos séculos de nossos maiores
Que já ninguém alcança.
Cada qual
Retoma os passos dos que partiram,
Dos que lutaram até funal
Antes dele contra a morte
E submergiram,
Dos que a negaram, não creram
Em tal
Sorte
- E morreram.
Este é o calvário a que a sina
Da vida nos destina.
60 – Finda
Quem ama não é amado,
Quem é amado não ama.
Quem ama e é amado,
Um dia, cedo ou tarde,
Do amor finda separado,
É a vida, é a morte,
É a sorte…
Sofremos com a chama
Que arde
E fazemos sofrer…
Disto o pior cariz,
Descobrimo-lo de chofre,
É que o mais infeliz
Nem sequer
É sempre aquele que sofre.
61 – Gosto
Que gosto é aquele de enlamear
Que existe nas maiorias,
Esta raiva de macular
O que há de puro nelas e pelas cercanias,
Almas suínas
Com a volúpia de chafurdar
Nas latrinas,
Felizes quando não resta
Na pele, em nenhum bocado
Onde alguém faça uma festa,
Um único lugar
Lavado?
Qual é o gosto
Avinagrado
Deste mosto
Do pecado?
Que doença, que doente
Mina o coração de tanta gente?
62 – Prazer
Com prazer ou sem ele,
Sinto-me infeliz
Por dentro e fora da pele,
De raiz.
Do amor provado o vinho,
Sozinho já não vou poder estar
E já não poderei deixar
De estar sozinho.
Inaugurei um lugar
De infinidade adivinho.
63 – Razão
A dor, a ausência, a morte,
- Mais uma razão para amar:
Nunca o amor é mais forte
Que quando se encaminhar
Para o momento
Angular
Do sofrimento.
O que dele me faltar
Colho-o então em aumento
Com quem comigo partilhar
Meu tormento.
64 – Benefício
No benefício reflicto cada dia
Que para um artista
Representaria
Pressentir algures a pista
Dos amigos desconhecidos
Que a mensagem lhe encontram pelo mundo,
Pela voz dele despertos do sono profundo
Em que viveram adormecidos:
Para as almas, que reconforto,
Para as energias, que porto!
O adulador
Vulgar
Em falar não tem dificuldade,
Mas o que melhor
Souber amar
É violento que algo o persuade
A murmurar que ama.
Importa ficar grato
A quem desta fala ousar a trama,
Pois, sem suspeita nem fantasia,
Mal me precato,
É o melhor colaborador de quem cria.
65 – Angustia
Angustia mais,
Não a hostilidade das pessoas,
Mas a inconsciência informe e sem fundo
Dos gestos e sinais.
Antes enfrentar, furibundo,
O crânio estreito e duro que escanhoas,
Coriáceo ovo
Onde não penetra pensamento novo!
Contra a granítica dureza bruta
A picarerta e o explosivo
Perfuram e estilhaçam a rocha.
A força diminuta
Do que for vivo
Desabrocha.
Mas contra a massa amorfa da geleia
Retraída à menor pressão,
Que perde e cerceia
De qualquer dedo a impressão,
Todo o pensamento,
Toda a energia,
Tudo no pântano peganhento
Desapareceria.
Ao cair a pedra,
Uma vaga ondulação estremecia,
A mandíbula se abria,
Fecha-se engolindo a semente que já não medra
E do que foram promessas de fastígios
Não restam nem vestígios.
66 – Simples
Dos simples o poder do amor
Permite-lhes descobrir logo, de imediato,
O que a mente tacteante do génio maior,
Incerto e cordato,
Ou as artes em demasia
Apuradas
Duma civilização que agoniza dia a dia,
Apenas alcançarão, alquebradas,
Após uma vida, após séculos delirantes
De lutas furiosas e de esforços esgotantes.
Discreto, evanescente,
Dos simples o poder do amor
É que, deveras eficiente,
É o farol norteador.
67 – Amar
Qualquer alma musical,
Quando amar um corpo belo,
Vê-o, afinal,
Como música, singelo.
Enoja-me o formalismo
Da plebe pedante:
Para eles a forma é que tem o abismo
Hiante;
Deles na lavra
Revolvida,
Dos sentimentos, do carácter, da vida,
Nem uma palavra.
Nenhum deles suspeitava
Que o verdadeiro artista
Mora num universo cuja pista
Lhe escoa os dias como torrentes de lava:
Arte é quanto ele ama, odeia, sofre,
Teme, espera…
- Eis o cofre
Das jóias que gera!
68 – Grande
Uma grande alma nunca está só,
Por mais desprovida de amigos,
Ao acaso da sorte.
Acaba por criá-los do pó,
Irradia em redor abrigos
Do amor que transporte.
Nas horas em que se creia
Para sempre isolada
É de amor, afinal, mais cheia
Que os mais felizes do mundo à balaustrada.
69 – Cerne
O cerne da música e das artes
É de tal maneira o amor
Que lhes não sinto deveras o estupor
Senão partilhando-lhes apartes
Com quem seja sonhador:
Busco em meio à multidão
O amigo com quem compartilhar
De alegria o vulcão
Vivo demais para um só olhar.
70 – Vós
Ó vós, a quem amo e não conheço,
A quem a vida não maculou ainda,
Que sonhais enormes pedras de tropeço
Inviáveis e, por tal,
Cada qual
Mais apetecível e linda,
Que vos debateis no perene perigo
Contra o mundo inimigo
- Como adoraria, no que faço e fiz,
Tornar-vos a cada um feliz, feliz!
Sei que estais aí,
Estendo-vos os braços,
Mas há um muro entre nós que eu entrevi
A tolher-nos os passos.
Pedra a pedra o vou demolindo
E ao mesmo tempo me destruo.
Virá o dia em que nos acabaremos reunindo?
Chegarei até vós antes que a sorte
Me imponha o final recuo
Da morte?
- Pois que eu fique sozinho toda a vida,
Contanto que trabalhe para vós,
Que vos seja benéfico na lida
E que ameis um pouco,depois, minha voz
Depois, mais tarde,
Quando então este fogo já não arde.
71 – Memória
Tudo passa,
A memória das palavras e dos beijos,
Do corpo apaixonado que abraça,
Das fomes e dos desejos…
Porém, das almas o contacto
Que uma vez se tocaram e reconheceram
No meio do turbilhão compacto
Das formas efémeras que se perderam,
Este contacto, nenhum mais,
Este não se apaga jamais.
72 – Olhos
De que valem as belezas
Quando não tens para as ver
Os olhos de quem tu prezas?
Que fazer
Da beleza, da alegria
Se não são
Desfrutadas nenhum dia
Num outro coração?
73 – Limites
Quem teve a felicidade
Uma vez na vida de conhecer,
Sem limites, a completa intimidade
Dum coração amigo,
A mais divina alegria que houver
Vislumbrou de seu postigo.
Alegria cuja evidência
O tornará infeliz o resto da existência.
A pior desgraça, talvez,
Para uma alma débil e terna
É ter conhecido apenas uma vez
A felicidade eterna.
74 – Amigo
Um amigo empresta à vida
Todo o valor que ela tem:
Vivemos para ele, de seguida,
Defendemos quanto baste
A integridade que nos convém
Do tempo contra o desgaste.
Um amigo empresta à vida
Sem fulgor
Dum horizonte que convida
O fio condutor
De saída.
75 – Fruteira
Do mundo a fruteira emurchecida
Dois frutos produz mais doces
Que as águas da fonte da vida,
Serôdios por mais que algum dia
Fluir precoces
Lhes agrade:
- Um é a poesia,
O outro, a amizade.
76 – Doutrem
No amor, como em arte,
Ninguém a si deve pospor,
Imitar doutrem qualquer aparte.
Importa propor
O que sentimos
E quem se apresta a falar
Antes de ter algo a comunicar
Arrisca-se, na vertigem dos cimos,
A ficar pela espuma:
- A nunca dizer coisa nenhuma.
77 – Diverte-se
Uma rapariga bonita
Diverte-se, cruel, com o amor,
Crendo natural que a amem
E não se julgando, em meio à desdita
Que espalha em redor,
Obrigada a coisa alguma,
Seja o que for que as desfeitas dela tramem.
Embora quem a queira se consuma,
Aquele que a ama
E bendiz
Nisto já recolhe o prémio que reclama
E, para ela, é quanto baste feliz.
Do que o amor seja, ela nem suspeita a magia,
Além do arrepio da pele,
Embora perca todo o dia
A cuidar nele.
78 – Ver
Quem quer ver Deus vivo,
Face a face,
Deve procurá-lo, não num arquivo,
Não no estreito firmamento
Deserto do que lhe passe
Pelo pensamento,
Mas na fonte vital do calor:
- Dos homens no amor.
79 – Sorriso
O corpo da bem-amada
E a alma recolhida naquela carne sagrada
São toda a ciência, toda a fé.
Depois, que sorriso e piedade do que outrem adora,
Do que o próprio adorou outrora
E o que desde então se pôs doravante ali de pé!
Da vida poderosa e do rude esforço dela
Resta a pétala dum momento.
E, contudo, ficará para sempre como estrela
Imortal no firmamento.
80 – Desgraça
Magna desgraça para o casal unido
É desatarem-se os laços que um dia o hão prendido
À primavera do amor.
A imagem de antanho salvaguarda o calor
Contra desencorajamentos e hostilidades
Que, com incontornáveis securas,
Hão-de seguir-se, como fatalidades,
Às primeiras ternuras.
81 – Milhões
Entre milhões de criaturas
Haverá sempre uma ou duas
Que estarão comigo, firmes e puras.
Contento-me com isto,
Pois basta uma trapeira
Para vislumbrar todas as luas,
Respirar o ar das estrelas
Que insisto
Em ter à minha beira.
Uma fresta e avisto
Todo o mar das caravelas.
82 – Pobre
“Pobre de mim, mulher!
Se soubera que sofrimento
É para mim, às vezes, ver,
Não que você não me quer,
Mas de que maneira o evento
Pretende de me querer
E o que serei para aquele
Que, afinal, é quem mais me ama!…
O gesto que me atropele,
Mas que em ternura se amalgama…
Há momentos em que enterro
As unhas na palma das mãos,
Para não gritar me aferro
Aos votos vãos:
‘Não me ame mais, ponha-lhe um fim,
Tudo, menos ser amada assim!’
Mesmo em casa, em meio aos filhos,
De honrarias simuladas
Cercada como cadilhos,
Sofro humilhações caladas,
Um desprezo mais pesado
Que a pior miséria ao lado…
Ai, quantas relvas minhas calcadas!”
83 – Raro
É tão raro um casal
Que se compreende, se estima,
Do outro seguro cada qual,
Não por mera crença de amor
Que tantas vezes a ilusão sublima,
Mas pelo penhor
Da vivência de anos passados juntos,
Anos embora sombrios, medíocres, que sabemos
Sem assuntos
Mesmo com a recordação
Dos perigos que vencemos!
É que tudo se torna melhor,
Então,
À medida que envelhecemos.
É, porém, tão raro
O que nos deveria ser mais caro!
84 – Casais
Mesmo nos casais mais unidos,
Nas mulheres mais estimadas,
Há momentos sofridos,
De aberração, de dores desgarradas,
Intoleráveis,
Que podem arrastar a loucuras
E destruir uma vida, duas às vezes,
Com abominações inomináveis…
Mesmo nas paixões mais puras,
Qualquer deles, qualquer
Leva o outro a sofrer
Todos os anos, todos os dias, todos os meses…
85 – Sofrerá
Por muito que uma pessoa
Seja boa,
Inteligente, compadecida,
De mil mortes sofrida,
Mesmo assim, nem por castigo,
Sofrerá da dor dum amigo.
Para vê-la tem um postigo,
De doê-la, porém,
Fica sempre ao abrigo,
Mesmo quando é o contrário que mantém.
É definitivamente intransponível a fronteira
De mim a quem de mim se abeira.
86 – Argumento
Um argumento de nada vale,
Ninguém pode fazer bem
A não ser quando quer muito ao que sofre,
Querendo-lhe irreflectido, visceral,
Sem tentar convencer ninguém,
Sem tentar curá-lo de chofre,
Amando-o simplesmente
E lamentando.
Apenas o amor não mente.
Ora, quando o logra um argumento, quando?
87 – Elegemos
Quando elegemos o amor de nossa vida,
Não acaba o trabalho,
Falta mostrar, de seguida,
O que valho.
O amor e o casamento,
Como um jardim,
Precisam de cuidados a todo o momento
E jamais isto tem fim.
88 – Lavra
Lavra na carne o áspero desejo,
A carência de ternura
Que leva qualquer alma ferida,
Decepcionada pela vida,
Em busca dum ensejo
De cura:
O braço maternal
Da consoladora primordial.
Um grande homem é mais criança
Que outro homem qualquer
E mais que qualquer outro precisa e avança
A confiar-se a uma mulher,
A repousar a fronte
Na palma de mãos suaves,
No côncavo horizonte
Dum vestido de penas de aves,
No fiel abraço
Dum regaço…
- Quão maior quenquer for,
Mais criança carente de amor.
89 – Independentes
Os independentes de outrora
Procuram abafar os independentes de agora.
Os jovens de vinte anos há muito passados
São agora mais conservadores
Que os velhos batidos dos tempos anquilosados,
Enquanto os críticos, deles hoje mentores,
Não toleram aos novos sequer
O direito de aqui viver.
Nada muda, na aparência desnuda,
E assim é que tudo muda.
90 – Ausência
Ausência, aumentas ainda mais o poder
Dos que amamos
E apenas, coração, irás reter
O que deles nos é caro, com que nos confortamos,
Enquanto de cada palavra o eco
Que do longínquo amigo
Logra penetrar em nosso beco,
Vibra no silêncio, o nosso comum sacral abrigo.
91 – Medida
À medida que vivemos,
À medida que criamos,
À medida que amamos
E perdemos
Os entes queridos,
À morte escapamos
Em múltiplos sentidos.
A cada golpe que nos atinge,
A cada obra que produzimos,
De nós próprios nos evadimos
E nos salvamos
Na esfinge
Das obras que criamos,
Das almas que amámos
E nos deixaram ao sol-pôr.
Então, já de nós fora
Mora
De nós o melhor.
E para a eternidade aí demora,
Para sempre tão vivo
E tão activo
Como agora.
92 – Juntos
Envelhecer juntos, envelhecer…
Velhos encantadores,
Após a breve vigília da vida lado a lado
Vão adormecer
Lado a lado, na paz da noite,
Definitivamente senhores
Do fado
A que o sonho se afoite.
Poder dizer consigo:
Aquela rugazinha junto aos olhos
Sei quando veio, depois de que escolhos,
Amiga, amigo.
Aqueles cabelos grisalhos descoraram
Comigo,
Um pouco por mim, infelizmente.
Aquele rosto fino enrugaram-
-No os cansaços
Do labor entrançado até o presente.
Amo-te mais, muito além de tantos traços,
Por comigo teres sofrido
E envelhecido.
Que bom poder dizê-lo
Deitado na eternidade ao luar singelo!
93 – Demónios
Amamos porque há uma alma secreta,
Demónios e potências cegas
Que cada homem decreta
Nele aprisionar no fundão das adegas.
Todo o esforço humano,
Desde que o homem existe,
Consiste
Em opor
A este rebelde mar interior
Os diques de desengano
Da razão
E da religião.
Mas desencabreste-se a tempestade,
(E as almas mais ricas mais a tal vivem atreitas)
Que os diques cedam ao demónio que os invade,
Fique livre o campo às seitas
E às maleitas,
E logo todos uns sobre os outros se lançam
E sem se estraçalharem não descansam.
94 – Ideias
Ideias contrapostas
A outras opostas,
Reacções
A acções,
Democracia
À ditadura duma pretensa aristocracia,
Socialismo
A individualismo,
Romantismo
A classicismo,
Revolução
A tradição
-E aqui vamos, tempos fora,
Hoje como outrora.
Cada nova geração,
Consumida em menos de dez anos,
Acredita com a mesma ilusão
Ter sido a única a atingir do cume os planos,
Derruba a anterior à pedrada
E sa agita
E grita,
Da glória até se ver condecorada.
Depois foge
Sob as pedras dos recém-chegados,
E desaparece, ontem como hoje,
No oceano infindo dos ignorados.
95 – Tarefa
A tarefa obrigatória, os cuidados do lar pelo qual
Alguém
É responsável mantêm
Um homem tal
Como um cavalo que dorme em pé e continua
A andar, exausto, entre os varais, na rua.
Mas o homem sem peias,
Abertas todas as vias,
Nada tem que o ampare
Nas horas vazias,
Nada que o force a andar,
A defender as ameias.
Por hábito segue,
Sem saber onde vai:
Prossegue,
Nem repara onde cai.
Com as forças perturbadas
E a consciência obscurecida,
Ai dele se, quando quase adormece,
As pegadas
Lhe acordam, de fugida,
Algum trovão refece
A interromper-lhe a marcha sonâmbula em que vá:
- Então desmoronar-se-á.
96 – Miséria
A miséria quase sempre é provocada
Por não termos um companheiro.
Amigos de passagem na jornada
Deles temos um viveiro.
A sério, porém, não temos mais do que um
E raros são os que o têm.
É uma felicidade tão incomum
Que já nem sabemos bem
Como viver
Depois de a perder.
A vida nos preenchia
Sem o percebermos:
Quando se esvai, tudo fica sem termos
E cada hora, vazia.
Não é apenas o amigo singular
Que se perde de mau grado,
É toda a razão de amar,
Toda a razão de ter amado.
97 – Bodas
Quando hoje alguém comemora
As bodas de oiro dum casamento,
O casal, neste momento,
Não é o mesmo que foi outrora.
Houve crises, ciclos, fases,
Ao longo do caminho mil resoluções:
Da maleabilidade é que perfazes
A sobrevivência das relações.
Olhar a montanha-russa
É uma pobre vivência.
Percorrê-la é que esmiuça
Das sensações a cadência
Nova momento a momento:
Trepar é bem diferente
De ir em queda…
- E a mesma montanha-russa é permanente
Na diferente almoeda.
98 – Faltando
Faltando os constrangimentos,
A atenção
Abandona dos relacionamentos
A manutenção,
Questiona a todos os momentos
A utilidade da ligação
Entre os vários elementos.
Vista a relação
Em vertente negativa,
O degrau posterior é pôr-lhe fim,
Assim,
Sem mais esquiva
Nem razão
Justificativa:
Ninguém vai dar o suor
De a tornar melhor.
Como cada vez mais há quem alugue automóveis
Em vez de os comprar,
Também as relações devêm móveis,
Sujeitas a contrato temporário singular.
Isto um bólido flamejante
Põe-me à porta de três em três anos
Mas não garante
O carinho constante
Nem a manutenção contínua que supra desenganos,
- Tudo o que doira
Uma relação duradoira.
A mudança de óleo por quê pagar
Se o contrato estiver a findar?
Uma esposa exigente
Por quê aturar
Se o divórcio eminente
É tão fácil de alcançar?
A ideia de aproveitar
De cada evento o melhor
E descartar
O pior
Nunca vai proporcionar
Um convívio fecundo
Nem um relacionamento profundo.
Quando no amor como na guerra
Vale tudo e nada mais é medido,
Alguém vai ficar por terra
Gravemente ferido.
Paz absoluta não existe.
O custo da paz relativa
É submeter-me ao poder e à norma que persiste.
O lucro que daqui deriva,
Sendo incontornável,
Torna, afinal, o investimento rentável.
99 – Seguinte
Cada qual pode bem ser
Dele o pior inimigo
E o seguinte é quem tiver
Um laço íntimo consigo.
Viver com alguém diz
Toda a informação
De como torná-lo infeliz
Em primeira mão:
Saber doutrem os pontos fracos
Permite pôr-lhe a vida em cacos.
Se souberam de antemão
Os choques emocionais,
Financeiros e legais
Que dum divórcio explodirão,
Todos evitariam os conflitos,
Continuariam casados.
O rosário de atritos
Dos amores finados
São a melhor razão
Para manter e cultivar de raiz
Uma ligação
Feliz.
100 – Sê
Sê sabiamente
Egoísta:
Os demais
Põe na lista
Como teus iguais.
Se nenhum dos pólos for ausente,
Atinges o equilíbrio.
A vida
Sem ludíbrio
Tem perenemente
Esta medida.
101 – Cuidado
Num relacionamento
Toma tanto cuidado com o final
Como tiveste com o início:
Não sofrerás nem resquício
Do tormento
Do fracasso total.
102 – Vivo
O lar
Não é apenas o lugar
Onde tenho o coração,
Onde vivo o sonho à mão,
Mas também o recanto singular
Onde alguém sempre há-de haver
Empenhado no que eu disser,
Interessado em mim
Sem requerer outra razão
Senão a de ser eu e de eu ser assim.
103 – Adultez
Depende uma adultez feliz
Tanto de sentir pertencer
A uma família de dado cariz
Como da personalidade que nela florescer.
Dois pratos da balança
No equilíbrio que alcança.
104 – Perpetua
Teus filhos não são teus filhos,
São filhos da Vida
Que se perpetua por seus próprios atilhos.
A vida não lhes deste iludida,
Puseste-os no mundo
E, embora vivam contigo,
Não te pertencem, no fundo.
De teu amor dás-lhes o abrigo,
Não as tuas ideias,
Que das deles próprios têm as mentes cheias.
Aos corpos dás-lhes guarida,
As almas não lhes aprisionas,
Que habitam a casa erguida
No amanhã
Que não podes visitar, luminosa e sã,
Nem nos sonhos com que a abonas.
Ser como eles podes desejar,
De ti te despindo, nu,
Mas não vás procurar
Que eles sejam como tu!
105 – Paga
A paga do trabalho feito
Deveria ser
O prazer
Que ele nos gera no peito
E a utilidade
Que dele colhe a comunidade.
Viveríamos, assim,
No Paraíso
Ou o mais perto, enfim,
Do que dele diviso.
Se um trabalho temos que desprezamos,
Que nos aborrece,
Que a comunidade que amamos
Esquece,
Então, de Verão ou de Inverno,
A vida é um inferno.
106 – Bebé
O bebé olha para a mãe
E arrisca o primeiro passo.
Se ela no lugar se mantém,
Novamente avança
Em trémulo compasso.
Vivemos em perene tensão
Entre o conforto velho da segurança
E de novas tentativas a excitação.
107 – Vida
Ter tido uma vida decente,
Ter amado e sido amado,
Da vida cada oferta premente
Ter saboreado,
Ter tido interesse para alguém,
Para alguma coisa ter servido,
- Eis tudo a que convém
Aspirar numa vida com sentido.
Às portas da morte, não vivemos em vão:
Se morrer é isto, não faz grande impressão.
108 – Morrem
Quando morrem os que amamos,
Com eles morrem universos inteiros.
Os que ficamos,
Se não nos sentimos tristes dos perdidos
parceiros,
Sentimo-nos tristes por nós,
Definitivamente sós.
As vidas deles eram luz
Que nos alumia,
Eram sol a dar-nos calor
E a morte as reduz
À noite que esfria,
Sem amor.
Quando alguém morre,
Perdemos de nós mesmos esta parte
Além de perdermos quem morreu.
A ausência de nós escorre
E, destarte,
Cada qual fica mais pobre daquilo que era seu.
109 – Inermes
Na infância e na velhice
Tudo é muito semelhante.
Ambas por igual, sem que nada as enguice,
São inermes o bastante.
Ainda não e já não
Se tem na vida parte activa,
O que permite que se viva
Com aberta disposição.
É durante a adolescência
Que se forma uma couraça
Em torno ao corpo, excrescência
Pela qual já nada passa.
E continua a engrossar
Pela vida adulta fora,
Como a pérola do mar:
Quão mais ferida, mais agora
Vai camadas reforçar.
Como o tempo vai passando,
Vestido usado demais,
Vai-se a couraça esfiando,
Vê-se a trama e rasgões mais.
Até que, de repente,
Algo estúpido nos alcança
E desesperadamente
Choramos que nem uma criança.
Nos limites extremos
Como iguais nos vemos!
110 – Relação
A relação com a casa,
Com o que há nele e dela em volta,
Apenas com os anos se apraza.
Aos sessenta, setenta anos,
A casa já se não solta,
Jardim, sala, quarto
Não são comodidade ao acaso, um bonito,
Bens utilitários e lhanos,
Pertencem-nos, são a concha que acarto,
Caracol esquisito,
De mim fruto dum parto
Com secreções de enganos
E desenganos,
Tenho nela minha história gravada
Em cada voluta,
Casa-casca a envolver-me,
Epiderme
Na minha carne enraizada,
Por cima e em redor como uma gruta
Feita de mim.
Já não logro dela separar-me
Sem dar-me
Fim.
111 – Tratar
Se eu amar deveras
Terei de me indignar,
De tratar com dureza,
Terei de obrigar
Às esperas,
De agir e não agir com aspereza.
É o que quem é amado quer,
Aquilo de que precisa,
Mesmo quando o não souber
Naquilo que visa.
A verdade elementar
É o mais duro de compreender:
Amar
É a força,
A força indomável de bem-querer.
Ora, quem se esforça
É porque, desde logo, gosta de ti
E, para gostar, é porque te conhece:
Conhece o que nunca vi,
Mais o que, de oculto, esquece
Como o que, fácil, aceita
E nada, nada em ti rejeita.
Este acolhimento
É que vai tornar o amor violento.
112 – Impressiona
O que impressiona não é a promiscuidade,
Mas o grande empobrecimento
Com que ela invade
O sentimento.
Com o fim da proibição,
De ser única a pessoa amada,
Desapareceu também a paixão,
Pouco fica ou nada.
Pessoas muito constipadas,
Para o banquete convidadas,
Por educação
Comem tudo o que lhes dão
Sem o saborear:
Carne, peixe, fruta do pomar…
- No banquete deste amor
Sensaborão
Tudo tem o mesmo sabor
A podridão.
113 – Odiarmos
Para odiarmos alguém
Importa que nos fira, faça mal.
Quem nos não faz nada por aí além
Não nos deixa marca real.
É mais fácil morrer de nada
Que de dor. Não é ilusão:
Contra a dor posso atirar uma pedrada,
Contra o nada, não.
114 – Observador
Ao observador sério
Que acaso testemunha a paixão,
Repugna usar o mistério
(Mesmo na própria solidão)
Daquilo que presencia:
- É que saltou, ladrão,
A proibida vedação
Para o mundo real da fantasia.
115 – Visível
Compraz-se Deus,
Para tornar visível o espiritual,
Em servir-se da forma e cor de filhos seus,
De beleza os enfeitando com esplendor irreal,
Para instrumento da lembrança,
De dor nos inflamando e de esperança.
116 – Meio
Do homem sensível o caminho
Para o espírito é a beleza.
É o meio apenas, mas é o cadinho
Da jóia que mais preza.
O amante
É mais divino que o amado:
Naquele mora o deus flamejante
Que deste é ignorado.
De êxtase estremece a natureza
Quando o íntimo se inclina
Em homenagem à beleza
Que inelutavelmente é divina.
117 – Executa
Um humano ama e respeita
Outro humano
Enquanto não executa o plano
De o julgar.
O desejo é a mente afeita
A um conhecimento singular:
É discernimento insuficiente
E portanto, simplesmente,
Vai bastar.
Se aumenta,
Desencadeia a tormenta
E vai varrer o amor inteiro para o mar.
118 – Paixão
A paixão como o crime
À ordem não se acomoda,
Ao bem-estar do dia mais sublime.
E qualquer dente quebra na roda,
Qualquer tribulação
Que o mundo aflija
É bem-vinda fermentação
Donde pode esperar,
Enquanto borda fora o antigo alija,
Que alguma novidade venha a germinar.
119 – Demónio
Os apaixonados,
A cabeça e o coração embriagados,
Seguem do demónio a indicação
Que aos pés se compraz em calcar a razão
E, no momento do desengano,
A dignidade do ser humano.
- Entretanto é, todavia, o deus
Que vêem por trás dos véus.
120 – Sinal
Qualquer sinal de cobardia
(Prostração, juramento,
Aviltamento
Escravizante…)
Jamais prenuncia
Vergonha para o amante,
Antes lhe traz a mais-valia
Do louvor constante.
O amor é singular:
Põe a vida de pernas para o ar.
121 – Separados
Continuamos
Quando nos unimos
Na leiva das lavras:
Quando juntos nos sentamos
Uns nos outros nos fundimos
Com frases meras e com palavras.
Enquanto a frustrada união infinita
Por dentro de nós nos grita,
Diluída nos limos,
Do intransponível na desdita.
122 – Passeando
Meus filhos os pinhais desbravarão,
Minhas filhas ei-las passeando o Verão.
Não somos de chuva gotas
Secas, de estéreis, ao vento,
Fertilizamos jardins em plagas remotas,
Rugimos nas florestas, a cada intento.
Tomaremos interminavelemnte
Em cada era uma forma diferente.
Seremos eternamente assim
Do Universo até ao extremo confim.
123 – Sempre
Quem não esquecerás jamais
Não é quem tem mais dinheiro nem credenciais.
Quem marca a diferença em tua vida
É quem se preocupa contigo, na hora e à medida.
Muitos ou poucos, estes são
Os que em ti para sempre viverão.
124 – Fuja
Muito embora lhe fuja, nunca mais a veja,
Lhe esqueça de vez o nome,
Em minha mente poreja
Até à morte, em tudo quanto em mim tem fome.
Amar e separar-me, como é impossível!
Desejarei porventura que assim seja,
Posso transmudar o amor,
Ignorá-lo, preterível,
Confundi-lo, aliás, com o que alguém almeja
Mas de mim arrancá-lo nunca o vou supor.
O amor, frágil sol de inverno,
Sempre o amor em nós é eterno.