SEGUNDO  TROVÁRIO

 

 

O MITO E O SONHO CIFRAREI QUE ME EMPOLGAREM

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ealeatoriamente um número entre 125 e 235 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                125 – O mito e o sonho cifrarei que me empolgarem

 

                                                O mito e o sonho cifrarei que me empolgarem,

                                                Em contrapé, no verso à rima interligado,

                                                Surpreso sempre dos mistérios que enredarem

                                                Minhas pegadas que, daqui ao se afastarem,

                                                Um novo mundo, além e no imo, hão revelado.

 

                                                Em verso incerto, silabando ao pé coxinho,

                                                Imito os passos que em tenteios hesitantes

                                                Vou avançando neste meu sonho adivinho,

                                                Tentando rimas doutros mundos concordantes.

 

                                                Então a fonte dos renovos inauditos

                                                Alimentando irei no jorro dos instantes,

                                                Surpreso sempre de segredos jamais ditos.

 

                                                E na esperança da matriz que então me invade

                                                Vivo o antegosto do que for a eternidade.

 

 

 

126 – Realizar

 

Para realizar um grande sonho

Não é questão

Nem de inventar o avião

Nem de criar um império medonho.

 

Desde já,

Até com mais eficácia,

Também chegamos lá

Com audácia.

 

 

127 – Dance

 

Ninguém se importa que não dance bem,

Erga-se e dance pelo palco além!

A vida,

Em qualquer que seja a forma,

Sempre foi descomedida:

É a norma.

 

 

128 – Sonhei

 

Muito sonhei que um dia

Havia de ser famoso!

Quão mais velho vou ficando

Mais descubro que a magia

Da vida é o pequeno gozo

Das coisas que vão passando.

 

Lograr, na triagem,

Um pouco mais de bem que de mal

Durante nossa terrena frugal

Passagem,

É o cume a que a maioria

Pode aspirar de magia.

 

Com ele reconciliado

Curo a ferida

Da vida

Que me sangra aqui de lado.

 

 

129 – Enjeitar

 

Não, não podemos

Responsabilidades enjeitar,

Assumindo-nos como espectadores,

Desviando o olhar.

Temos

De tomar partido por entre as dores,

De mergulhar nos assuntos

Onde corre sangue vivo.

 

Aos que recusam ficar juntos,

Cada qual mais esquivo

No trilho alienado e solitário,

É de contrapor,

Ao contrário,

Que nenhum do que os mais será melhor:

- Louco fementido,

Também daquele modo tomou partido.

 

 

130 – Há-de

 

O meu filho há-de ler,

Há-de os livros abrir,

O meu filho há-de escrever,

Há-de conhecer a escrita,

Há-de os números redigir…

E há-de trazer-nos a dita

De com tal nos libertar

Só porque ele há-de saber,

Há-de saber e sonhar…

 

- E nós, mesmo em nossa pele,

Iremos saber através dele!

 

 

131 – Dito

 

Por ter dito o futuro

Tinha-o criado.

Um plano é realidade que inauguro

E o projecto projectado

É aquilo que fica feito.

Uma vez imaginado,

Descrito e eleito,

Um plano é realidade como as mais,

Concreta e vulgar:

Destruída no que vai sendo não pode sê-lo jamais,

Mas é fácil de atacar.

 

Deste modo o futuro é real

Mas, havendo-o erigido,

Outrem logo se apronta para destruí-lo.

Conheço o sinal

Preconcebido

E terei de, intranquilo,

Preparar-me para o ataque

E para o saque.

 

E os deuses que não gostam dos planos

Humanos

Senão quando foram eles, no caso,

Obra de mero acaso!

E como se vingam dum homem

Que atinja a vitória

Por força do próprio braço e da memória:

- Como rápido o somem!

 

 

132 – Dado

 

Foi-me dado mais que aos mais,

Mais, portanto, me é exigido.

De acender tenho os fanais

Do que um homem deve ser

Trilho a trilho percorrido.

 

Exigir não poderei

De quenquer

O que disposto não estiver

De mim próprio a exigir

Como imperativa lei

De prosseguir.

 

 

133 – Melhor

 

O melhor da vida

É uma prenda adquirida

Por algo que não dinheiro:

É pago com a verdade.

 

O melhor fica em primeiro

E o custo da prioridade

São a agonia, o suor

E a radical devoção.

 

O melhor do que é melhor,

Que na vida é a própria vida,

Ou melhor, dela o valor,

O sonho com que é medida,

Não tem preço, não:

Cimeiro e derradeiro afago

Que nos rasga o peito,

Com a própria vida é pago

O valor perfeito.

 

 

134 – Algo

 

Algo pode ocorrer ainda,

Aliás, tudo.

De absorto na hora advinda

Nem reparo quanto me iludo:

Cada evento

Que me vai acontecendo deixa intacto,

Momento a momento,

O que me pode acontecer.

 

O que pode acontecer, de facto,

Vai-se regenerando

Constantemente,

Multiplicando, multiplicando…

Basta ver

Como um dia é doutro dia diferente.

 

O porvir

É um infinito de possibilidades

Que daqui agito,

Quando estou a ir,

Quando o invado, quando o invades…

 

- É a possibilidade do Infinito!

 

 

135 – Fruto

 

Como a morte definitiva

É  fruto derradeiro

Da vontade de esquecimento,

A vontade de lembrança aviva

E perpetua, por inteiro,

A Vida, momento a momento.

 

A eternidade actua

Plantando tabuletas rua a rua.

 

 

136 – Move

 

Importa é o que move a acção,

O vento que impele ao acto,

Que a sola empurra ao sapato

Para o desvão,

O que às armas prende a mão,

A sombra que ao corpo anima

E ninguém vê,

Que uma obra de arte sublima

Fazendo ali finca-pé.

 

O grande artista descobre

O sopro que anima o gesto

E dele cobre

Todo o apresto.

 

Da sombra tem de entrar dentro,

Incorporar-se nos passos,

Tocar as almas que exprime.

Pela mão dele então entro

A recobrir-lhe os mil traços

Do que em tudo há de sublime.

 

 

137 – Meta

 

A meta mais alta colocara

Para si como para os companheiros,

Excelente, inalcançável e tão rara

Que boa se lhe antolha para todos os parceiros.

 

À medida que, por inalcançável, os mais

Dela se afastam,

Mais ele se fixa dela nas auroras boreais,

Enquanto os sonhos se gastam.

 

Aí parado, chama-os com voz suave,

Agreste depois,

Por fim, como traidores, desfaz o conclave,

Solitário a sonhar com arrebóis.

 

Porém, estava errado

E os outros, certos.

Quando apela a que o libertem do cercado,

Em redor apenas há desertos.

 

E o libertário,

O sonho em chaga,

Devém incendiário:

Doravante é uma praga

 

Que urge, terminante, erradicar

De todo o tempo e lugar.

 

 

138 – Monturo

 

O mundo repousa

Num imenso monturo de matéria inerte.

Apenas a justiça ousa

Balouçá-lo, para que desperte,

Ao lutar pelos direitos.

O que triunfa na grande massa é o anti-valor,

Um invulnerável mal,

Que a beleza tem tais trejeitos

Que da corrupção o sinal

Se lhe acaba por impor.

 

Ora, este é que para nós no-la inflama,

Exacerba o desejo dela:

Ante a suspeita da trama

De algo de irremediável,

De que não é viável vivê-la,

À beleza desejável,

Senão com morte sentida

No âmago em que ela é bela,

- Então é que importa a vida,

Apontar o dedo à estrela,

Antes que a terra fendida

Nos engula dentro dela!

 

 

139 – Finito

 

O amor, finito como é,

Tem de ser cumprido.

 

Substituído,

(Mas continuando fatal naquele pé)

Pretendemos torná-lo infinito,

Para tornar disponível e viável

O que define do amor o fito:

- Dele o carácter insaciável.

 

Resta-nos depois o grito,

O grito irremediável.

 

 

140 – Mistério

 

O mistério é uma forma incontornável

De fundir amigos e inimigos.

Confundem-se de modo indecifrável

Nos precários abrigos,

Ante o fito

Basilar:

- Enfrentar o Infinito

A explorar.

 

 

141 – Barro

 

Não somos o barro falhado

Dum qualquer

Criador desapontado,

Antes somos todos,

Até ao derradeiro átomo do corpo de quenquer,

Matéria estelar,

Conjuntos organizados de infindos modos

De milhares de milhões de biliões

De átomos a cirandar,

Doutros átomos levando a intérminas evoluções.

 

Eras além, da longa jornada

Aqui, na Terra, nasceu a evidência

Semeada

Da consciência.

 

Somos cinza de estrelas

Reciclada, inesperado berço

De novas caravelas

Em demanda do Universo.

 

 

142 – Criança

 

Da criança a pequena mão

Na mão robusta do adulto:

A primordial ligação

Que o mundo potencializa,

O revelado e o oculto.

 

A pergunta a criança formaliza.

Tomada a sério,

Junta-se-lhe um ente querido

Na busca da resposta

Que lhe traga o refrigério

Pretendido.

 

Quando verso

Esta aposta

Abrem-se as portas para o Universo.

 

 

143 – Rebento

 

Último rebento é a inteligência

Da evolucionária tendência,

Nos mais simples organismos logo aparente,

De controlar o ambiente.

 

De controlo biológico o alerta

Foi material hereditário,

De ácidos nucleicos a certa

Transmitida informação,

Geração a geração,

Imemorial sumário

De multimilenar tradição:

Arte de construir um ninho,

Medo da queda, da cobra, da escuridão,

Para o sul, no Inverno, qual o caminho…

 

A inteligência, porém, requer

Informação moldável desenvolvida

Durante o tempo de vida

De quenquer.

 

A Terra vive pejada

De enorme variedade

De organismos com a qualidade

De inteligência apelidada:

Golfinho, chimpanzé pigmeu

E o mais evidente de quantos se tomem

Como tendo-a de seu,

- O Homem.

 

No homem, a informação de moldagem,

Mais do que em vida,

É transmitida

Por aprendizagem:

Nos livros, na escola, na educação…

Para ser inteligente,

Eis a função

Que no planeta nos garante o lugar proeminente.

 

Somos o produto

De quatro biliões e meio de anos

De lenta e casual evolução.

Para pensar não há razão

Que somos o derradeiro fruto

Duma evolução cujos arbitrários planos

Em nós pararam.

 

O Homem é animal de transição,

Da evolução os sulcos ainda nos aram,

Não somos o apogeu da criação.

 

Sobre a evolução futura

Prognóstico preciso

Ninguém o augura.

 

Em termos práticos,

O único indubitável juízo

É que não podemos manter-nos estáticos.

 

 

144 – Hoje

 

Hoje, um instante particular

Em quatro biliões e meio de anos de vida,

Momento singular

Nos vários milhões de anos da espécie humana,

Hoje, algo faz que a maioria incida,

Quanto à fidelidade primária,

Na nação-estado a que se irmana.

 

A mente

Visionária

Sonha com a era

Em que um individual humano ente,

Na instância primeira,

Seja fiel e se identifique,

Não a um estado-nação,

Raça, classe ou religião,

Mas à Humanidade como um todo que autentique:

 

- Quando de alguém o bem-estar

A dez mil quilómetros de nós

Para nós tanto pesar

Como o de nossos irmãos, pais ou avós.

 

 

 

145 – Máquinas

 

Máquinas construídas

Pelos nucleicos ácidos

São o homem e as demais vidas

Para, eficientes e plácidos,

De mais nucleicos ácidos

Criarem réplicas seguidas.

 

Nossos impulsos mais fortes,

Mais nobres iniciativas,

As mais prementes carências,

De acaso trocas em sortes,

Ânsias mortas, ânsias vivas,

Da liberdade evidências,

- De algum modo

Uma complexa expressão

De codificada informação,

São um todo

Em genético material:

Somos o repositório ambulante

E temporal

De nossos ácidos nucleicos, em cada instante.

 

Não nos nega a humana natureza:

Nada impede a busca do bem, verdade e beleza.

 

Mas era um erro ignorar

A raiz donde nos vêm os ramos

Na tentativa de buscar

Para onde vamos.

 

 

146 – Desesperadamente

 

Desesperadamente urge encontrar

A via de retorno aos humanos,

De retorno ao lar,

Da religião, porventura, aos desenganos.

 

Se a natureza é a religião

Que mais agrada,

Precisamos então

Duma ideia largamente partilhada,

Com a poética dum verso,

Do lugar do homem no Universo.

 

Pouco importa a nota de sobrenatural

Ou Deus:

- Algures espreitará o sinal

Dos Céus!

 

 

147 – Berço

 

A Terra é o berço da Humanidade,

Mas no berço ninguém pode

Para sempre viver.

A criança atinge a maturidade

Quando a descoberta lhe acode

De que não é tudo na infinidade

Do ser.

O mesmo é verdade,

Ao explorar além-fronteiras o que alcança,

Para uma comunidade

Que descobre, surpresa, a vizinhança.

Alargando o patamar

Da espacial exploração

Vamos decerto acelerar

Da humanidade a maturação.

 

E da verdade para o credo

Jamais é demasiado cedo.

 

 

148 – Disperso

 

Tão disperso caminhar,

Tortuoso, ondulante,

Que vai ou vem hesitante,

Desce ou trepa um patamar,

Cruza rios, vales,

Montanhas, bosques de agoiros,

Prados de sonhar tesoiros,

Ruínas de que te cales,

O pântano, o ar marinho,

- São um e único caminho.

 

O tempo que leva,

Para ao fim

O ver assim,

O homem que a tal se atreva!

 

- É tudo humanidade a caminhar

Em busca de lugar.

 

 

149 – Força

 

Que força leva o Homem a pegar

No metal e no fogo,

No vento e no ar,

Nas árvores, na rocha, no jogo,

E erguer aos deuses, a Deus, aos santos,

Ao diabo, aos medos, ao amor,

À vida, à morte, hinos de encantos

E de horror,

De palavras entalhados,

De sons, de cores,

De oiro e prata gravados,

De vidro soprados

Em habilidoso rolo,

De mil humores

Cambiados,

De tijolo?…

 

- Que força leva o Homem a pegar

Em tudo,

A tentar celebrar

O que só logrará, talvez,

Quando, de vez,

Ficar mudo?

 

 

150 – Alturas

 

Nas alturas vislumbramos,

À ventania vergados vimes,

Que acaso nos vocacionamos

A destinos mais sublimes.

 

Logo, porém, verificamos

Os pés pregados ao chão

E as asas, as asas que sempre nos faltarão.

 

Não há como a noite

Contemplada duma hospedaria

Junto às estrelas

Para que em nós se acoite

Que somos, disperso,

Um grão de nada que esparzia

A poeira do Universo.

 

 

151 – Mestre

 

O melhor mestre seria

O que nem sabedoria

Nem poder

Tiver,

Mas que disposto estaria

Poder a perder,

A fim de desvendar

Múltiplas sabedorias.

 

Perder, então, é ganhar

E conhecer é principiar

No ovo,

De novo,

Todas as romarias.

 

 

152 – Mister

 

Do animal o verdadeiro mister

É um romance num estábulo escrever,

Que o prazer de escrever loucuras prefiro

Ao de usar o paramento doirado que adquiro

De euros por múltiplos milhares

Em sofisticados bazares.

 

No animal mergulha a raiz

A mais nobre flor-de-lis.

 

 

153 – Criar

 

De criar a ilusão

Do que já foi criado

Não é mais que a perseguição

Ou até o encontro revelado.

 

À luz da eternidade

Que diferença haverá, que diferença

Entre o ser vivo e a estátua de alvaiade,

O linho de minha pertença,

Um bloco de pedra,

A seara que medra?…

 

Mas os escassos

Minutos

Que ali me interno

São meus pedaços

Diminutos

De eterno.

 

 

154 – Infinito

 

O infinito em si

É pura abstracção:

Nunca o vi,

Não!

 

O infinito jamais há-de ser apreensível

Senão no finito:

Exterioriza-o, manifesta-o, visível,

A infinita variedade que concito

Das formas onde o vislumbro

E delimito.

 

- E nelas é que dele me deslumbro.

 

 

155 – Muito

 

Há muito principiei

A aprender isto

Que jamais rematarei:

- Nada podemos aprender!

Existo

Mas não existe nada

Sequer

A que deveras aprender chamemos.

Apenas, em toda a parte integrada,

Uma sabedoria:

O Ser Universal,

Mar do Cosmos cujos remos

Navegam em mim, em ti, na harmonia

Da lei deste deus em todos os seres,

Visceral.

 

O pior inimigo que venceres

É desta sabedoria o desejo:

O enganador ensejo

De o inatingível aprenderes.

  

 

156 – Atingirás

 

Nada atingirás pelas doutrinas,

Ninguém por elas logrará libertação.

Partilhar, no que ensinas,

O instante da iluminação

Jamais conseguirás.

Tua instrução

Contém luz assaz,

Muito estimula quenquer

Com honradez a viver,

A driblar o mal.

Algo, porém,

O que é tão claro, tão venerável,

Não contém,

Afinal:

O segredo

Inominável

Daquilo que viveste,

Tu, único entre biliões, que o medo

Um momento venceste,

O medo do abscôndito lado celeste.

 

 

157 – Vislumbrar

 

Nada vislumbrar acerca de mim,

Ser um estranho para mim ignoto

Tem um motivo remoto

E a que não logro pôr fim:

 

De mim tenho horrível medo

E ando de mim a fugir.

O Ser inquirir,

Uno, mudo e quedo

 

Disposto a fragmentar este meu Eu

Para, em profundezas desconhecidas,

Descobrir o cerne, a porta do céu,

Fio das coisas por haver e havidas,

Da vida o sigiloso hino,

O derradeiro, o divino?…

 

Por aqui, porém,

Não atinjo nunca o fim:

Engano é também,

Perco-me de mim.

 

Onde me atingirei, enfim?

 

 

158 – Voltar

 

De mim não quero

Voltar a escapar.

Meu pensamento delibero

E minha vida não iniciar

Por Deus, o Ser, o Imo do Universo,

Do Mundo a dor do que é disperso…

 

Não quero matar-me,

Fragmentar-me,

Em demanda, entre meus ossos,

Dum segredo perdido,

Entre os destroços

Porventura escondido.

 

Não quero mais ascese,

Nem jejum, nem penitência,

Nem mil rosários que reze,

Nem púlpitos a ler-me a sina,

Nem bulas de beneficência,

Nem qualquer outra doutrina.

 

Quero aprender comigo,

Ser de mim o meu aluno,

Desvendar-me ao meu postigo,

Surpreender, se me ensimesmo,

O segredo a que me uno

Do infinito de mim mesmo.

 

 

159 – Decifrar

 

Quando alguém quer decifrar o que lê,

As letras não despreza

Como casca inútil, engano que nos lesa,

Acaso que ninguém prevê.

Antes lê, estuda e ama,

Letra por letra, o texto.

Mas eu, que aquilo que o Livro do Mundo clama

Queria ler,

A pretexto

Do reino das aparências,

Desprezei quer

Letras e sinais,

Com um sentido

Contra todas as evidências

Preconcebido,

Quer os factos mais reais:

Apelidei de escolhos,

Chamei de engano inútil e casual

A meus olhos

E à minha língua, degrau a degrau racional.

 

Não, isto é já passado morto.

Eu despertei,

Confiro, doravante, de lés a lés,

Do Universo inteiro o horto.

 

Nasci hoje pela primeira vez:

- Eis doravante a lei!

 

 

160 – Escapulir-se

 

Dias e noites cada vez mais curtos,

Cada hora a escapulir-se cada vez mais veloz,

Como vela mar fora de navios jamais surtos…

- Mas, sob cada vela, o porão dos tesoiros

Onde, connosco a sós,

Cada dia, cada dia,

Ferrados das arcas os coiros,

Nos inaugura a alegria.

 

A cada um de nós, a cada um de nós…

 

 

161 – Segredo

 

Segredo e tesoiro do profeta

Não é a doutrina,

É o inexprimível, o incomunicável

Que o afecta

No momento em que o ilumina

O inominável.

 

É o que a quenquer

Convém encontrar

Para começar a viver,

- Para começar!

 

 

162 – Folha

 

A maior parte das gentes

São folha que se desprende,

Flutua ao vento entrementes,

Hesita, que não entende,

E cai de leve no chão.

 

Outros, não.

Uns poucos são como estrelas

A seguir um rumo firme,

Nenhum vento afecta as velas,

Do imo vem quanto os confirme.

 

Estes, em resumo,

Seguem sempre o próprio rumo.

 

São, não tarda, quem, no fundo,

O tom dá que afina o mundo.

 

 

163 – Apenas

 

Não sigo nenhum traslado,

Nem creio num adivinho

Diabólico ou diivino.

Não vou para nenhum lado,

Vou apenas a caminho:

- Sou peregrino.

 

 

164 – Segredo

 

O segredo do rio,

Água correndo, correndo continuamente,

Em cachoeira ou num fio,

Sempre a escoar e sempre presente,

A mesma sempre e sempre nova…

 

Ah! Quem o compreendera,

Ao rio de pôr-me à prova!

Agito um pressentimento,

Evocação doutra era,

Recordação distante da sina

Duma espera,

O tormento

Duma vaga voz divina…

 

- E sou eu este rio,

Sou-o, enfim,

Eterno a marulhar o mesmo e o novo desafio,

Eu a correr no fundo de mim.

 

 

165 – Acolher

 

Quem procura sincero

Não pode acolher nenhuma doutrina,

Se quer encontrar algo de sangue vero.

Quando o encontrou, logo se inclina,

Porém,

Toda e qualquer doutrina a confirmar,

Todo o caminho que sobrevém,

Todo o objectivo a visar…

 

Nada o separa então

Dos biliões que vivem a eternidade

E já respirarão

Divindade.

 

 

166 – Junto

 

Tudo junto, vozes, projectos,

Nostalgia, sofrimento,

O prazer íntimo dos tectos,

O bom e o mau momento,

Tudo junto é o mundo, o Universo.

É o fluir de cada evento,

Da vida a música e o verso.

 

Quando escuto com atenção

Esta canção a mil vozes,

Este único e plural som,

Quando me liberto dos ferozes

Recantos íntimos de meu Eu,

Afloro o céu:

Escuto a Totalidade,

A Unidade acolho

E, quando deveras olho,

Vislumbro o que não me ilude:

- A verdade

Da plenitude.

  

 

167 – Pecador

 

O pecador que cada um de nós é

É um pecador

Mas um dia atingirá, pelo próprio pé,

A plenitude,

Alcançará o Nirvana, sonhador,

Será Deus, com a Virtude.

 

Dizer “um dia”, porém, é uma ilusão,

Mascara a verdade.

Sob o manto, o chão

É doutra densidade:

Ninguém vai a caminho de se transformar,

Ninguém a evoluir,

Embora nosso modo de falar

Outro dizer não logre conseguir.

 

O porvir já mora,

Aqui e agora,

No pecador,

Dentro dele todo inteiro:

Em quem se transforma vive oculto o Senhor

A venerar cimeiro.

O mundo não é imperfeito

Nem vive acorrentado

A um trilho lento para a perfeição:

A cada instante, dele o jeito

É o de ser completo e acabado,

A misericórdia já contém todo o pecado,

As criancinhas já terão

Dentro delas a velhice,

O bebé tem dentro a morte

E o moribundo tem, superna,

Para quem deveras o intuísse,

Já nele a vida eterna.

 

O Todo, em todo o lado,

Mora no múltiplo ancorado

E fervilha em vulcão

Em toda a cósmica, familiar e diária mutação.

 

 

168 – Repouso

 

Hoje em dia penso: esta pedra é pedra

Mas também animal

E deus e o agitado repouso universal.

Não a venero porque medra,

Por devir,

Mas porque ela é tudo

Há muito, desde sempre igual.

O facto de ser pedra

E de como pedra me surgir

Leva-me a amá-la no miúdo,

No valor e sentido do veio, da cavidade,

Do amarelo e do cinzento,

Da secura e da humidade

De que a cobre o relento.

 

Resumo do Universo

Que a cruza e é por ela cruzado,

Nisto me agrada quando a converso,

- É o Infinito a meu lado.

 

 

169 – Artista

 

O artista experimentado

Descobre que a inspiração

É rara

E que requer muito cuidado

Dar a cara

Incorporando a intuição.

 

Põe as ideias na prensa,

Suga-lhes até à derradeira gota

O suco divino que aí condensa.

Entre dores e mágoas

Atinge às vezes do píncaro a cota:

Dilui as ideias em límpidas águas,

Na transparência

Do fito

De traduzir a esplendência

Do Infinito.

 

 

170 – Luz

 

As grandes ideias

Levam a luz por toda a parte.

Por mais, porém, que mudem as candeias,

Os homens ficam iguais.

Destarte,

Como, por fim, a não ser os homens nada importa,

As ideias são o que eles forem, reais.

Se medíocres e servis,

O génio devém medíocre ao cruzar-lhes a porta

E do herói o grito de libertação,

Rompendo perfis

De prisão,

Longe do que nele agoiras,

É o contrato de servidão

De gerações vindoiras.

 

Nem ídolos, nem clássicos quaisquer!

Quem do espírito herdeiro pretenda ser

A todos os tem de calcar aos pés

Para seguir em frente,

A direito e não de través,

Olhando para diante, independente,

E nunca para trás.

Importa deixar morrer o que morrer deve

E de manter-se em comunhão ser capaz

Ardente com a vida que a tudo sobreleve.

 

 

171 – Acreditava

 

Não acreditava em Deus

Mas era urgente rezar:

Rezar a si mesmo, aos profundos apogeus.

 

Só os medíocres não rezam

Em nenhum tempo e lugar,

Não prezam

O apetite primário

De retiro

No próprio santuário

Que nas almas fortes admiro

E sumário

Confiro.

 

Não acreditava em Deus

Mas era urgente rezar

Aos céus

Que dentro e fora de nós

Nos importa logo após

Conquistar.

 

 

172 – Valemos

 

Sem génio

Não valemos nada.

É duro meu convénio

Para a estrada.

 

Importa que génio alguém o seja,

Que mais não fora,

No interesse dos mais:

O que se almeja

Demora

Demais…

 

Se no mundo não houvera

Algumas pedras por acolá, por aqui,

Tudo acabaria por transformar-se em mera

Lama de pantanal,

Repugnante alibi

Do fracasso final.

 

Do milénio

Na peugada,

Sem génio

Ninguém dará uma passada.

 

 

173 – Obras

 

As obras são caminhos diferentes

Que levam ao mesmo cume

Do imo na montanha:

Percorremos-lhe os caminhos divergentes,

Alguns se demoram na sombra do lume

Em curva branda de quem se acanha,

Trepam outros áridos, asperamente,

Rumo à estrela luminescente.

Todos encaminham ao píncaro dos céus,

Apontam um Deus:

Amor, ódio, renúncia, vontade,

Toda a força humana

Levada ao paroxismo que a invade

Atinge a Eternidade.

Porque dela emana

Já participa então dela.

Cada pessoa trá-la dentro,

Dela própria sequela,

O religioso e o ateu,

O que descobre a vida na salsa e no coentro,

O que em tudo nega que a viu,

O que de tudo duvida,

Da negação

Como da afirmação

Da vida…

 

Do lusco-fusco do fundo

Vislumbra-se o cume

Onde chispa o lume

Do Mundo.

 

 

174 – Sacudir

 

Sacudir o jugo

Dos mestres de antanho

Não é de verdugo

Mero ganho,

Nem brincadeira

De espíritos belos

Preguiçando na pasmaceira,

Singelos.

 

É a terrível seriedade

Da revolta que tem

A vida por finalidade,

A vida fecunda que contém,

Prenhe, nela a bulir,

Os séculos por vir.

 

 

175 – Arrebatá-la

 

Arte,

Agarrar a vida como a águia a presa,

Arrebatá-la pelos ares por onde parte,

Elevar-se com ela na imensidão serena,

Como o fumo do lar, como uma reza

Em alba plena!

 

É preciso ter garras,

Grandes asas,

Um coração poderoso,

Não é qualquer pardal das farras,

No beiral das casas,

Que das alturas toma o gozo.

 

Arte é vida domada,

Impera incontida:

Prémio duma luta encarniçada,

Os louros coroam a força desmedida.

 

Quem quer ser imperador,

Alma de imperador terá de ter,

Não é um rei qualquer

Que devirá senhor.

 

Actor que se vangloria de aleijões,

Literatura da deformidade

Roubam-nos de agir as razões,

Entorpecem a vontade,

Põem-nos a cantar no corredor da morte.

 

Arte a sério, ao invés,

Não nos abandona à sorte:

Ata-nos asas nos pés

E aponta imperativa o norte!

 

 

176 – Corpo

 

Um corpo débil e atormentado

Por um activismo desregrado

Que uma inteligência livre e serena

Observa

Sem poder ter sobre tal mão plena

Nem daquilo ser serva,

Sem se deixar atingir,

- Eis como a paz radical, enfim,

Há-de persistir

No meio da agitação sem fim.

 

De igual modo

Nos agitamos,

Múltiplos nervosos ramos

Na imutável constância do Todo.

 

 

177 – Génio

 

Um génio, por mais que dê,

Recebe sempre em amor

Muito mais do que o que dá,

Que aquilo que um génio é

Será ser o absorvedor

De quanto houver e haverá

De grande em torno de si,

Tornando-o então logo ali

Ainda do que antes maior.

 

É desta troca de mão

Que se abrem rotas no chão.

 

 

178 – Força

 

Força que cala e perdura

Enquanto apodrece incessante

Um escol e outro se apura

Logo adiante,

 

É de quem não vive para ser feliz,

Feliz a qualquer preço,

Mas que, ao invés, quis

Pôr de pé

Esta pedra de tropeço:

Realizar ou servir a própria fé.

 

Ignorada mas segura

Esta é a força que perdura.

 

 

179 – Evitam

 

Evitam os messemídia o pensamento

Ou apenas o admitem

Quando de prazer é um instrumento

Ou dum partido arma que emitem.

 

Igrejinhas e cenáculos

É apenas à custa de aviltamento

Que abrem via livre para os pináculos.

Miséria, labor demais

Acabrunham-nos, letais.

 

Os políticos, a enricar,

Irão importar-se apenas

Com os proletários a comprar

E por custas bem pequenas.

 

A burguesia,

Indiferente e egoísta,

Vê morrer, sem lhe toldar a alegria

Da mísera morte a vista.

 

O povo ignora quem por ele combate

E mesmo os que lutam,

De silêncio cercados,

Ignoram quem pelo mesmo sonho se bate,

Como estes que ao lado disputam

Não sabem que existem aqueloutros ignorados.

 

É nesta desolação

Que a esperança,

Apesar da solidão,

Nos alcança

E a ponte nos lança

Para além do desvão:

- É que além é que o porvir dança!

 

 

180 – Artistas

 

Vemos artistas que pretendem

A liberdade ilimitada do sonho,

Subjectivistas desenfreados que subentendem

Que o mundo é medonho,

Com toda a objectividade,

Porque há brutos a crer das coisas na realidade.

 

Pensadores há cujo pensamento,

Múltiplo e ondulante,

Do que é móvel se molda na intérmina corrente,

A bulir e a rolar incessante,

Não se fixando em nenhum elemento,

Eternamente hesitante,

Em nada encontrando o solo resistente,

A rocha.

Não pinta o ser nem dele a imagem,

A tocha

Apenas ilumina a passagem,

A passagem eterna,

Dia a dia, minuto a minuto,

Cujo fruto

Para sempre hiberna.

 

Sábios que descobrem o vácuo e o nada universal

De que fabricam o pensamento e o ideal,

 

O deus, as artes, a ciência,

Continuando a criar, com paciência,

 

O mundo e dele as leis

No sonho poderoso dum dia por trás dos ouropéis.

 

Não pedem à ciência repouso nem felicidade,

Nem mesmo a Verdade,

 

Pois duvidam de a atingir

- Amam-na por ela,

A única bela,

A única real sem fingir.

 

Do pensamento no cume,

Os sábios, pirrónicos apaixonados,

Ardem no lume,

Indiferentes ao sofrimento, à decepção,

Quase à realidade de que vivem gorados,

Ouvindo, de olhos fechados,

A silente canção

Dos corações,

A delicada e grandiosa harmonia

Dos biliões e biliões

De números e formas com que o Universo desafia.

 

- Todos, sobre o abismo inclinados,

De vertigem embriagados,

Na noite sem limites fazem luzir,

Com sublime alegria, do vento

Do nadir,

O clarão do pensamento.

 

 

181 – Maneira

 

Não é a palavra que noutrem influi,

É a maneira própria de ser:

Há quem irradie um ar que flui,

Calmante, pelo olhar, pelo gesto que tiver,

Pelo contacto silente e pleno

Do espírito sereno.

 

Dali é que irradia

A luz do dia.

 

 

182 – Conquiste

 

Conquiste César a Terra, se quiser,

Nós conquistamos a verdade.

Para conquistar é preciso vencer

E viver é a primeira vitória que persuade

Ao que inauguro.

 

A verdade não é dogma duro,

Pelo cérebro segregado,

Em estado puro,

Estalactite do tecto duma gruta,

Pingente pendurado,

De saqueadores pronto à disputa.

 

A verdade é a vida,

Não é na cabeça que se deve procurá-la,

É dos outros no coração.

 

Unam-se a eles, de corrida:

Pensem quanto queiram, mas façam gala

De tomar diariamente, por infusão,

Um banho de humanidade!

É urgente viver a vida

Em toda a variedade

E, no voo generoso e fino,

Sem qualquer abalo

Submeter-se ao próprio destino

E amá-lo.

 

 

183 – Escolha

 

Neste mundo há escolha apenas

Entre a chama que devora e a noite.

Apesar das melancolias serenas

Dos enleios, à sonoite,

Repudio devir consorte

Desta paz precursora da morte.

 

Das amplidões do infinito

O silêncio apavora.

À fogueira que arde no granito

Joguemos, de hora a hora,

Novas braçadas de lenha

E que a chama rubicunda advenha,

Que o fogo que nos ilumina

Se não apague.

Se se extinguir a labareda divina

Que nos acalente e afague,

De guarda o querubim

Não resiste:

É o fim,

Acaba tudo o que existe.

 

 

184 – Livros

 

Os livros dos poetas

Falam de amor, bem entendido,

E preservam a mentalidade infantil,

Pois não vêem as coisas concretas,

Imaginam-nas pelo prisma gentil

Do desejo, da saudade ou dum olvido,

Parecendo que é, como em criança,

Pelas fendas dum muro que o poeta as alcança.

Mas o poeta sabe muito mais,

Sabe tudo quanto importa

E envolve-o em termos muito doces,

Misteriosos, irreais,

Que entreabrem a porta

Da magia mesmo a quem não tem posses

E que importa desenfaixar

Com infinitas precauções

Para encontrar, para encontrar…

 

Ah! Não se encontra nada

Nestes desvões.

Mas com jeito, devagar,

Por esta entrada,

Numa frase,

Estamos sempre quase a encontrar,

Quase, quase…

 

 

185 – Vasta

 

Aos homens de cotio

A vida de cotio vai-lhes revelar:

Ela é mais profunda e vasta que o mar

De qualquer navio,

 

O menor dentre nós leva consigo o infinito,

O infinito mora em cada homem

Que de ser um homem tem a simplicidade:

No precito,

Como quer que o tomem,

Na mulher que da vida as leivas grade,

No que obscuro se sacrifica

Mesmo quando ninguém o verifica…

 

Todo e qualquer é a torrente da vida

Correndo dum para o outro, daqui para acolá,

E dela outra medida não há

Que a da infinidade desmedida.

 

 

186 – Canto

 

Posso fazer tudo bem,

Cada dia mui certinho,

E acabar a um canto sozinho,

Com um sentimento de confuso desdém:

Aquilo não é bastante

Para encher uma vida.

Talvez mais atrás, mais adiante,

Outra coisa pudesse ter sido empreendida…

 

A tortura

Imanente

De ter de ser eternamente,

Sem vislumbre de cura,

Apenas, apenas semente…

  

 

187 – Palavras

 

As palavras, estelas

Que a cinzel aparas,

Que a pena pintas,

Hão-de ser como as estrelas

Muito claras

E distintas.

 

E, lá no infinito,

Um longínquo sonho que fito…

 

 

188 – Língua

 

Primeiro vem a língua sem palavras

Dos corpos vivos que falam.

Depois, as palavras que arroteiam

Dos livros as lavras

Que se escrevem e semeiam

O que calam:

 

O livro tenta inutilmente traduzir

A língua primeira

Que sempre vem e nunca chega a vir,

Eterna pioneira…

 

O livro é sempre incompleto

Porque é além que continua,

Na outra língua,

No falar silencioso e discreto

Para que remete a primordial míngua

De chão, de rua

Da palavra toda e qualquer

Dos livros que julgamos ler.

 

 

189 – Frente

 

Como poderás acompanhar

Quem sempre outro livro lê

Além do que à frente lhe cirandar,

Um livro que ainda não é

Mas, como ele o quer,

Não poderá deixar de vir a ser?

 

Como doutro mundo

Perseguir o rastro

Fecundo

Se lhe não vislumbras o astro

Por trás das cortinas da parede ao fundo?

 

 

190 – Ler

 

Ler é agarrar o que além está,

Feito de escrita,

Um sólido material acolá,

Que ninguém altera nem evita,

E através disto é comparar-nos a um outro qualquer

Que faz parte do mundo imaterial, invisível,

Apenas pensável, imaginável ou nem sequer,.

Que existiu e já não existe, invivível,

Sombra inalcançável, perdida,

A escorrer para país de mortos, sendo, afinal, vida.

Ou, então, ainda não está presente

Porque ainda não existe,

Algo desejado, temido, mas ausente,

Possível ou impossível, e que entretanto persiste…

 

Ler é ir ao encontro duma qualquer

Realidade que está para ser

E que ainda ninguém

Sabe o que vai ser mais além.

 

 

191 – Escritor

 

O escritor que se anula

Para dar voz ao que fora

Demora

Ou escreve um único livro que tudo engula

Ou escreve os livros todos

Que, totais,

Persigam o Todo de todos os modos,

Dele em todas as imagens parciais.

 

Livros únicos, só em texto sagrado,.

Na palavra revelada,

E o credo é tão variado,

Logo de entrada!

 

O todo, porém, não é abarcado,

Não é contível em linguagem falada.

De fora fica o não-escrito,

O não-escrevível.

 

Então, só um texto infinito,

O Impossível.

 

 

192 – Renunciar

 

Renunciar é mais fácil do que cremos,

Questão é começar.

Após abandonar

O que essencial erroneamente julguemos

Damos connosco a reparar

Que também podemos

Passar

Sem mais isto e mais aquilo…

 

- De repente onde me perfilo

É do mundo pela crosta vazia

Que percorro dia a dia.

 

Às tantas, renunciar

É um inesperado poder de voar,

Imponderável,

Pelo ar

Finalmente respirável.

 

 

193 – Frágeis

 

Os frágeis, no intérmino rol

De vertentes do cotio soturnas,

Contêm, entretanto, o farol

Onde costumam aterrar as aves mais nocturnas.

 

Pode ser mau para os frágeis, pode,

Mas é ainda à vida que o farol acode.

 

 

194 – Escol

 

Por mais que o escol se misture à multidão,

Sempre para o escol se orienta

De toda a classe e partido, de toda e qualquer nação

Quem empunha o fogo que nos sustenta.

 

E do escol o dever sagrado,

Por muito que o corpo lhe chague,

É velar por que em nenhum lado

Jamais o fogo se apague.

 

 

195 – Empalidece

 

É bela

Toda a fé

E, quando empalidece aquela

Cujo ciclo ficou consumado,

Urge pôr de pé

As novas que se houverem incendiado.

É que jamais

Quantas arderem

Serão demais

Para as vidas nos aquecerem.

 

 

196 – Pardal

 

Quanto pardal ferido

Pela vida

Que se consola,

A cabeça debaixo de asa,

Contraído

Numa bola,

No poleiro da casa!

 

Sonham, porém, com voos loucos

À luz descomedida.

 

E como são por fim nisto tão poucos,

Tão escassos,

Tão fracassos,

Em tudo o que aqui há de sem-medida!

 

 

197 – Crêem

 

Eles crêem como nós,

Apenas crêem menos.

Para verem a luz tapam-lhe os acenos,

Encobrem-na após,

Vão fechar-lhe o postigo

E acender um candeeiro:

Põem Deus num homem ao abrigo,

Ali a preservá-lo por inteiro.

 

Teremos melhores olhos, acaso…

Mas é sempre a mesma luz

Que, em qualquer caso,

A todos nos seduz.

 

 

198 – Sentido

 

Que sentido têm todas estas vidas,

Todas aquelas gerações,

Tantas esperanças e provações,

Que aqui chegaram, coloridas,

E no vácuo se afundaram,

De vez perdidas?

A vida, um contra-senso que nos mente,

A morte, um contra-senso igualmente,

Ambas fatais nos burlaram,

Nas promessas pressentidas

Que goraram.

Um ser riscado,

Toda uma estirpe desaparecida

Sem deixar vestígio…

 

Ou antes será o fastígio

De ficar de vez integrado

Na vivência-corpo do Cosmos mal pressentida,

O definitivo segredo jamais revelado?

 

Um ser, uma minúscula marca

Pelo corpo da Terra no Universo posta,

Que à Parca

Para a eternidade ganha a aposta,

Já que jamais a apaga

Dos tempos, por mais remotos, nenhuma plaga?

 

Ainda hoje sobrevive

A primitiva célula que no corpo da Terra

Mais longe e mais fundo eternamente se enterra,

A partir do caldo primevo que há mil eras a cultive.

 

 

199 – Frente

 

A vida

Apenas em retrospectiva

Pode ser compreendida.

 

Esquiva,

Porém, fatalmente,

Apenas pode ser vivida

Em frente.

 

 

200 – Endémica

 

Quando os ventos duma endémica paixão

Sopram pelos povos além,

Pouco pesa a razão

E a política também,

Pois os ventos nem ao trabalho se dão

De suprimir

Qualquer individual paixão:

- Utilizam-na em nome do porvir.

 

 

201 – Tecem

 

Que longe tecem a função

Os que moldam a nova geração!

 

Como corre o barco

Que leva nossos filhos!

Um dia virá em que todos que haja nem abarco,

Nos fundos porões milhos

Do mesmo horto,

Hão-de tornar a encontrar-se no porto.

 

Da festa

Ninguém sabe o dia nem a hora

Mas há-de despontar algures a fresta

Da nova aurora.

 

 

202 – Vento

 

Ninguém combate o vento que passa,

Aguarda que tenha passado.

Quando a razão fica lassa,

Deitemo-la em leito de lavado,

 

Deixemo-la respirar.

Amanhã, mais alerta,

Desperta

Fecundada por mil sonhos de luar.

 

 

203 – Crescem

 

Terríveis crianças!

Crescem em redor de nós,

Lianas a trepar até às franças,

Força da natureza a expulsar os cipós:

- Sai daí, parceiro,

É a minha vez de ocupar o terreiro!

 

 

204 – Marco

 

Viveis ao correr do dia-a-dia,

Nada vedes além do marco em frente,

Imaginais que assinala o fim da via

E a verdade é que isto mente.

 

Vedes a vaga que vos leva,

Não o mar.

A vaga de hoje foi a de ontem que, da treva,

Lhe imprimiu o impulso que levar,

Como a de hoje cava o sulco em que se ceva

A de amanhã, a energia a carregar,

A qual lança aquela ao esquecimento,

Como à anterior, em seu lugar,

Também esta fez no seu momento…

 

Eternamente

Assim a cadeia

Nos semeia

Em frente, sempre em frente, sempre em frente…

 

 

205 – Trabalhámos

 

Para nós trabalhámos ao criar

Uma geração que nos ultrapassa.

Coroámo-la dum colar

De graça.

 

Amontoámos-lhe economias,

Defendemo-la num pardieiro mal fechado

Por onde assobiavam todas as ventanias,

Que em todas as portas teve de ser escorado

A fim de à morte impedir

De o invadir.

 

Por nossas mãos foi rasgada

A triunfal estrada

Por onde nossos filhos irão caminhar:

Nosso empenhamento garantiu o porvir.

 

A arca às portas da terra prometida

Acabámos por levar

E ela aí penetrará de seguida

Com eles e por nós,

Cumprindo assim a fé dos mais remotos avós.

 

 

206 – Jovens

 

Os jovens, de Março aguaceiros

Sobre a terra que renasce…

Dêem-me lições, pioneiros,

Doravante a escola faz-se

Com os velhos a ir dos jovens às aulas.

Aproveitais-vos de nós e sois ingratos,

É certo.

Mas quem nos prende nas jaulas?

Mais peritos e sensatos

Por nosso esforço, eis-vos lá perto

Da meta que tentámos,

Longe daqui.

Por nossa vez aprendamos

Com as águas do tsunami,

Tratemos de nos renovar.

Se já não pudermos, velhos demais,

Com eles vamo-nos regozijar,

Que é belo ver florir os pantanais

Nos tenteios do luar,

A alegria do feito fecundo

Dos que renascem para a conquista do mundo.

 

 

207 – Gerações

 

Gerações que se encadeiam

Sentem de modo mais agudo

O que as separa

Que os laços em que umas noutras se enleiam.

Este pendor fica mudo

Enquanto aqueloutro afirmara

De viver toda a importância,

Mesmo se delira,

Com a ânsia,

Na injustiça e na mentira.

 

Varia o grau da ruptura

Conforme é no apogeu

Ou na decadência e renascimento duma cultura.

Acolá, no equilíbrio, mal se viu.

Aqui, nas íngremes ladeiras

Antes e após o planalto,

Os jovens trepam ou descem com tais canseiras

A vertente vertiginosa

Que, num salto,

Deixam para trás, longe, a geração que anquilosa.

 

Sempre, porém, a corrida,

É à procura de mais vida na vida.

 

 

208 – Grau

 

Arte impura,

O mais baixo grau de arte,

Doença a requerer cura,

Cogumelo em podridão que se reparte,

Arte para o prazer

É sempre arte levada ao bordel.

Arte, porém, pela moral de quenquer,

De insípido utilitarismo por farnel,

É um pégaso castrado

Triste arrastando pelos campos o arado.

 

Arte deveras,

Acima das leis de qualquer dia,

É um cometa das esferas

Do infinito lançado à caça da magia.

 

 

209 – Hábito

 

O hábito, fiel aliado,

Ao fugirem as razões de viver,

Tenaz e constante permanece a nosso lado,

Sem uma palavra, um gesto sequer,

De olhar fixo, o lábio mudo,

E conduz-nos com mão firme e segura,

Sem febre nem loucura,

Através do desfiladeiro de penhascos pontiagudo,

Até que reapareça à luz do dia

De viver a alegria.

 

 

210 – Revolução

 

A revolução, vitoriosa ou derrotada,

Dela sempre atinge os fins, que os opressores

Apenas atendem o pedido

Do oprimido

Quando deste a jornada

Lhes inspira medo, acorda os terrores.

 

A injusta violência

E duma causa a justiça

Ambas servem a tendência,

Com maior ou menor dano,

Da força obscura

E segura

Que enguiça

E fatídica enliça

O rebanho humano.

 

 

211 – Revolucionários

 

Há revolucionários por moda, por snobismo,

Há-os por selvajaria,

Por gosto de acção,

Pelo calor do heroísmo,

Por servilismo também os haveria,

Como pelo chão,

Por espírito de rebanho

Com o pensamento mais tacanho…

 

- Todos, sem o saberem,

São arrastados pela ventania,

Turbilhões de poeira a mal se verem

Revoluteando ao longe na larga via,

Anunciando, na confusão,

Da tempestade a aproximação.

 

 

212 – Conquistam

 

As ideias não conquistam como ideias

Mas como forças sem peias.

Não capturam os homens pelo conteúdo intelectual,

Mas pela irradiação vital

Que delas se solta

Em dados momentos da História revolta,

Como um perfume que irradia

E qualquer olfacto inebria.

 

A mais sublime ideia continua ineficaz

Até ao dia

Em que contagia,

Não pelos méritos que traz,

Mas pelo dos grupos humanos que nela se perfilam

E o sangue lhe instilam.

 

 

213 – Novos

 

Os novos precisam duma boa loucura,

Nos mais egoístas há um proliferar de vida,

Um capital de energia

Que procura,

Convida

E confia,

Que não quer permanecer improdutivo.

Então todos buscam o cultivo

Duma acção, duma teoria…

 

O jovem precisa de ter a ilusão

De participar num grande movimento

A renovar o chão,

Cruento.

 

Idade de sermos livres e leves,

Sem família, nada temos,

Nada arriscamos, breves,

Somos generosos quando podemos

Renunciar

Ao que ainda não pudemos conquistar.

 

É tão bom acreditar

Que não é dos mitos

A Terra transmudar

Apenas a poder de sonhos e gritos!

 

 

214 – Vácuo

 

O vácuo existencial

Não é uma frustração qualquer,

É a mais fundamental:

A do desejo de ser.

 

Cada dia mais pacientes

Sofrem dum vazio interior,

Duma falta de sentido que, entrementes,

À vida retirou qualquer valor.

 

Não vamos abandonar a aventura:

A meta do entremez

Ao ponto de partida é chegar

Vendo-o em tal figura

Que lhe conheçamos o lugar

Sempre pela primeira vez.

 

 

215 – Pena

 

A pena é mais poderosa

Do que a espada.

O poder de que a ideia goza

Tem vida mais prolongada

Do que a de qualquer governo,

Por mais que se creia eterno.

 

Uma ideia profunda, uma Ideia

Os séculos e os milénios permeia.

 

 

216 – Velas

 

Durante a tempestade,

As velas são recolhidas,

Com vento que me agrade

Iço as velas de todas as surtidas.

 

Qualquer que seja o destino derradeiro

Da viagem

Melhor é levar mapas na bagagem

E, em lugar

De capitão solitário, ter por par

Um bom marinheiro.

 

O mais prudente, à cautela,

É prevenir à partida qualquer sequela.

 

 

217 – Escravo

 

O senhor

É do escravo o opressor,

Mas também deste depende

Económica, emocionalmente…

Por aqui o escravo tende

A um poder que se mal sente.

Equilibram-se as fatias

Nalguns casos, alguns dias…

 

- É daqui que após provém

A aurora que mais convém.

 

 

218 – Capaz

 

Ser capaz de dar a vida

Pelo inatingível

Não é mera medida

De desporto.

Apenas indiscutível

É já estar, por tê-lo aceite, morto.

O mais

Que viso

São muralhas e portões reais

Para além do horizonte que diviso.

 

Assim é que aquela morte é vida,

Vida para além de toda e qualquer medida.

 

 

219 – Períodos

 

Após longos períodos sem outro ambiente,

Os presos acabam receando

O mundo para lá da prisão.

Se todos os portões se abrirem de repente,

Muitos dos presos ir-se-ão deixando

Ficar onde estão.

 

Ora, vivemos todos presos neste planeta,

Timoratos, à espreita…

 

- Quem se atreve, quem se atreve

Para além deste espaço breve?

 

 

220 – Absurda

 

Absurda a vida declarar

É negar

Que um sentido

Lhe possamos um dia dar

Que valha a pena ser vivido.

 

Se ambígua for declarada,

Abro uma estrada

Para um sentido

Ainda por ser atingido,

Que então configuro em frente

Como uma conquista permanente.

 

 

221 – Minimamente

 

Reflectimos, vimo-nos em apuros

Para atirgir caminhos

Minimamente seguros.

Nossos ninhos

Numa região desenvolvida

Já não são de luta constante

Para vir a ter diante

A irremediável comida.

 

Ter tudo, porém, é um perigo

E um perigo bem maior

Que o do primeiro inimigo

A que tivemos de nos opor.

 

Se houver um objectivo,

Dele atingido o fim particular,

Se nada mais houver a ultrapassar,

De que vivo?

 

Mesmo Alexandre Magno chorou

Quando constatou

Não haver mais mundo a conquistar!

 

 

222 – Contribuis

 

A verdade

É que os céus

Têm uma fácil medida:

Se contribuis doutrem para a felicidade

Encontrarás o verdadeiro Deus

No verdadeiro sentido da vida.

 

 

223 – Ajudai-vos

 

Ajudai-vos a vós ajudando os mais.

O fio condutor, o fio

Para contrariar o vazio

É se os outros ajudais.

 

Isto dá-nos um sentido,

Um propósito inegável,

Descobre rumos que nem sequer hei pressentido,

Cego irremediável,

Liberta-me do cativeiro

De minha própria existência

Ao abrir-me o mundo inteiro

Da alheia mundividência.

 

É um luxo arguir

Que a vida não tem sentido:

Quem por sobreviver na luta persistir

Tem lá tempo de parar

E de pôr-se a cuidar

Que é que é dele destituído!

 

 

224 – Impacto

 

O impacto do tédio

Da falta de objectivos, no vazio,

Tem um remédio:

Retorno ao estado selvagem,

A refrescar a sensibilidade

No rio,

Na paisagem,

No píncaro que me agrade…

 

Após a domesticação e o cativeiro,

Uma lufada de ar puro

A clarificar por inteiro

À mente o que lhe apuro.

 

Tudo o que religue ao mundo natural

É o caminho mais seguro

Para reaver a perspectiva da vida real,

Onde como parte dum todo me inauguro:

Não mais um pedaço isolado, incidental,

Dum caos imenso e sem futuro,

Não um dente ocasional

Da enorme roda que me figuro

Sempre a girar, constante,

- Mas antes parte integral

Dum infinito conjunto eternamente vibrante.

 

 

225 – Enorme

 

Um enorme ideal,

Longínquo, inesgotável,

Pode ser a chave radical

Para uma vida plena inadiável.

 

Não é, porém, o fim do problema.

Perspectivas amplas em demasia

Nas grandes questões,

Um grande lema,

Levam a ignorar a valia

De que dispões

Num dia,

Num minuto de vida…

 

Quem lida

Com a imediata certeza

De não haver mais dias nem horas

Invalida

As demoras

Com uma clareza

Que a maioria

Nem sequer suspeitaria.

 

Saboreia então cada minuto

Prenhe de absoluto.

 

 

226 – Silêncio

 

Silêncio, trapo molhado,

Limpa-nos de vez o pó!

Das palavras a mente é prisioneira,

Dela o ritmo é o ritmo desordenado

Dos pensamentos, na canseira

De se atarem nó a nó.

Mas o coração pulsa, o coração

Respira em haustos promissores

Doutra harmonia,

E esta pulsação

Permite-nos entrar em sintonia

Com pulsações maiores,

Onde nem sequer nos chega a fantasia.

 

 

227 – Erro

 

O erro que sempre cometemos

É crer que a vida é imutável,

Que, mal escolhamos um carril,

Temos

De o seguir até ao fim, entre outros mil.

 

Ora, o destino é mais inimaginável

Do que nós.

Quando nos cremos num beco sem saída,

No cúmulo do desespero,

Logo após,

Uma rajada de vento tudo invalida,

Tudo transtorna com gesto severo,

E, sem mais nem menos,

Eis-nos vivendo, plenos,

Uma nova vida.

 

 

228 – Fácil

 

O mais fácil do mundo

É culpar terceiros,

Quando não queremos olhar fundo

Nossos pauis e lameiros.

 

Culpa exterior

Sempre existe.

Coragem é ter o pundonor

De assumir em nós a que em nós persiste.

 

É a única via consistente

De seguir em frente.

 

A vida é um percurso a prosseguir

E a verdade é que é sempre a subir.

 

Só bater no próprio peito

É da vitória o jeito.

 

 

229 – Repouso

 

O repouso na plenitude

É a utopia

De quem luta para o óptimo atingir.

E atingir o nada porventura teria

Igual virtude:

A perfeição do devir.

 

 

Tudo é nada,

Nada é tudo…

- Afinal, que é que me agrada

Naquilo com que me iludo?

 

 

230 – Pavor

 

Para o pavor de viver,

A perene saída:

A mim próprio me investir

Nos trilhos da vida,

Nos sinais me reconhecer,

Transmudar o mundo, de seguida,

Na trama dos símbolos por onde ir,

- Da cultura retomar o primeiro alvorecer

Da longa noite animal do ser.

 

 

231 – Recíproca

 

Na vida todos descobrem

Que a felicidade perfeita

É irrealizável.

Em contrapartida, encobrem

A verdade recíproca, mal afeita

Ao que por nós é pensável:

- A infelicidade perfeita

É igualmente irrealizável.

 

A nossa desgraça

E a nossa virtude

É que definitivamente nos ultrapassa

Qualquer dimensão de infinitude.

 

 

232 – Momento

 

Há na vida o momento repentino

Que tudo altera,

Desabam as seguranças,

Eis que me inclino

À quimera,

Adolescente de esperanças,

Do primeiro encontro ao cheiro de erva,

Ao apelo múrmuro do abismo…

 

Hora do encantamento serva,

De autoconfiança me crismo

E a triaga

Me desperta, me enerva

E me embriaga.

 

Repentinamente,

Ao acaso da sorte,

Sou semente, sou semente

De seguida,

- E sou morte

E sou Vida!

 

 

233 – Pó

 

Quem sacode o pó da solidão

Que pisam ágeis e distraídas

As pegadas da vida em turbilhão,

Estuantes de vigor, descomedidas?

Que é que faz a ponte

Para além da estreiteza do horizonte?

 

 

234 – Abissalmente

 

O que é humano

É abissalmente profundo

E sempre de passagem, como por engano.

Dura a fulguração dum raio

Mas, mal me distraio,

Já o trovão dela ribomba por todo o mundo.

 

 

235 – Prender

 

Quem não prender na ponta do anzol

Dos peixes o engodo preferido,

Na rocha desespera horas ao sol

Da pesca sem nada haver colhido.

 

Também no rio humano

Onde me ponho

Os peixes só respondem ao engano

Dum sonho.