Ealeatoriamente
um número entre 125 e 235 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
125 – O mito e o sonho cifrarei que me empolgarem
O mito e o sonho cifrarei
que me empolgarem,
Em contrapé, no verso à rima interligado,
Surpreso sempre dos mistérios que enredarem
Minhas pegadas que, daqui ao se afastarem,
Um novo mundo, além e no imo, hão revelado.
Em verso incerto, silabando ao pé coxinho,
Imito os passos que em tenteios hesitantes
Vou avançando neste meu sonho adivinho,
Tentando rimas doutros mundos concordantes.
Então a fonte dos renovos inauditos
Alimentando irei no jorro dos instantes,
Surpreso sempre de segredos jamais ditos.
E na esperança da matriz que então me invade
Vivo o antegosto do que for a eternidade.
126 – Realizar
Para realizar um grande sonho
Não é questão
Nem de inventar o avião
Nem de criar um império medonho.
Desde já,
Até com mais eficácia,
Também chegamos lá
Com audácia.
127 – Dance
Ninguém se importa que não dance bem,
Erga-se e dance pelo palco além!
A vida,
Em qualquer que seja a forma,
Sempre foi descomedida:
É a norma.
128 – Sonhei
Muito sonhei que um dia
Havia de ser famoso!
Quão mais velho vou ficando
Mais descubro que a magia
Da vida é o pequeno gozo
Das coisas que vão passando.
Lograr, na triagem,
Um pouco mais de bem que de mal
Durante nossa terrena frugal
Passagem,
É o cume a que a maioria
Pode aspirar de magia.
Com ele reconciliado
Curo a ferida
Da vida
Que me sangra aqui de lado.
129 – Enjeitar
Não, não podemos
Responsabilidades enjeitar,
Assumindo-nos como espectadores,
Desviando o olhar.
Temos
De tomar partido por entre as dores,
De mergulhar nos assuntos
Onde corre sangue vivo.
Aos que recusam ficar juntos,
Cada qual mais esquivo
No trilho alienado e solitário,
É de contrapor,
Ao contrário,
Que nenhum do que os mais será melhor:
- Louco fementido,
Também daquele modo tomou partido.
130 – Há-de
O meu filho há-de ler,
Há-de os livros abrir,
O meu filho há-de escrever,
Há-de conhecer a escrita,
Há-de os números redigir…
E há-de trazer-nos a dita
De com tal nos libertar
Só porque ele há-de saber,
Há-de saber e sonhar…
- E nós, mesmo em nossa pele,
Iremos saber através dele!
131 – Dito
Por ter dito o futuro
Tinha-o criado.
Um plano é realidade que inauguro
E o projecto projectado
É aquilo que fica feito.
Uma vez imaginado,
Descrito e eleito,
Um plano é realidade como as mais,
Concreta e vulgar:
Destruída no que vai sendo não pode sê-lo jamais,
Mas é fácil de atacar.
Deste modo o futuro é real
Mas, havendo-o erigido,
Outrem logo se apronta para destruí-lo.
Conheço o sinal
Preconcebido
E terei de, intranquilo,
Preparar-me para o ataque
E para o saque.
E os deuses que não gostam dos planos
Humanos
Senão quando foram eles, no caso,
Obra de mero acaso!
E como se vingam dum homem
Que atinja a vitória
Por força do próprio braço e da memória:
- Como rápido o somem!
132 – Dado
Foi-me dado mais que aos mais,
Mais, portanto, me é exigido.
De acender tenho os fanais
Do que um homem deve ser
Trilho a trilho percorrido.
Exigir não poderei
De quenquer
O que disposto não estiver
De mim próprio a exigir
Como imperativa lei
De prosseguir.
133 – Melhor
O melhor da vida
É uma prenda adquirida
Por algo que não dinheiro:
É pago com a verdade.
O melhor fica em primeiro
E o custo da prioridade
São a agonia, o suor
E a radical devoção.
O melhor do que é melhor,
Que na vida é a própria vida,
Ou melhor, dela o valor,
O sonho com que é medida,
Não tem preço, não:
Cimeiro e derradeiro afago
Que nos rasga o peito,
Com a própria vida é pago
O valor perfeito.
134 – Algo
Algo pode ocorrer ainda,
Aliás, tudo.
De absorto na hora advinda
Nem reparo quanto me iludo:
Cada evento
Que me vai acontecendo deixa intacto,
Momento a momento,
O que me pode acontecer.
O que pode acontecer, de facto,
Vai-se regenerando
Constantemente,
Multiplicando, multiplicando…
Basta ver
Como um dia é doutro dia diferente.
O porvir
É um infinito de possibilidades
Que daqui agito,
Quando estou a ir,
Quando o invado, quando o invades…
- É a possibilidade do Infinito!
135 – Fruto
Como a morte definitiva
É fruto derradeiro
Da vontade de esquecimento,
A vontade de lembrança aviva
E perpetua, por inteiro,
A Vida, momento a momento.
A eternidade actua
Plantando tabuletas rua a rua.
136 – Move
Importa é o que move a acção,
O vento que impele ao acto,
Que a sola empurra ao sapato
Para o desvão,
O que às armas prende a mão,
A sombra que ao corpo anima
E ninguém vê,
Que uma obra de arte sublima
Fazendo ali finca-pé.
O grande artista descobre
O sopro que anima o gesto
E dele cobre
Todo o apresto.
Da sombra tem de entrar dentro,
Incorporar-se nos passos,
Tocar as almas que exprime.
Pela mão dele então entro
A recobrir-lhe os mil traços
Do que em tudo há de sublime.
137 – Meta
A meta mais alta colocara
Para si como para os companheiros,
Excelente, inalcançável e tão rara
Que boa se lhe antolha para todos os parceiros.
À medida que, por inalcançável, os mais
Dela se afastam,
Mais ele se fixa dela nas auroras boreais,
Enquanto os sonhos se gastam.
Aí parado, chama-os com voz suave,
Agreste depois,
Por fim, como traidores, desfaz o conclave,
Solitário a sonhar com arrebóis.
Porém, estava errado
E os outros, certos.
Quando apela a que o libertem do cercado,
Em redor apenas há desertos.
E o libertário,
O sonho em chaga,
Devém incendiário:
Doravante é uma praga
Que urge, terminante, erradicar
De todo o tempo e lugar.
138 – Monturo
O mundo repousa
Num imenso monturo de matéria inerte.
Apenas a justiça ousa
Balouçá-lo, para que desperte,
Ao lutar pelos direitos.
O que triunfa na grande massa é o anti-valor,
Um invulnerável mal,
Que a beleza tem tais trejeitos
Que da corrupção o sinal
Se lhe acaba por impor.
Ora, este é que para nós no-la inflama,
Exacerba o desejo dela:
Ante a suspeita da trama
De algo de irremediável,
De que não é viável vivê-la,
À beleza desejável,
Senão com morte sentida
No âmago em que ela é bela,
- Então é que importa a vida,
Apontar o dedo à estrela,
Antes que a terra fendida
Nos engula dentro dela!
139 – Finito
O amor, finito como é,
Tem de ser cumprido.
Substituído,
(Mas continuando fatal naquele pé)
Pretendemos torná-lo infinito,
Para tornar disponível e viável
O que define do amor o fito:
- Dele o carácter insaciável.
Resta-nos depois o grito,
O grito irremediável.
140 – Mistério
O mistério é uma forma incontornável
De fundir amigos e inimigos.
Confundem-se de modo indecifrável
Nos precários abrigos,
Ante o fito
Basilar:
- Enfrentar o Infinito
A explorar.
141 – Barro
Não somos o barro falhado
Dum qualquer
Criador desapontado,
Antes somos todos,
Até ao derradeiro átomo do corpo de quenquer,
Matéria estelar,
Conjuntos organizados de infindos modos
De milhares de milhões de biliões
De átomos a cirandar,
Doutros átomos levando a intérminas evoluções.
Eras além, da longa jornada
Aqui, na Terra, nasceu a evidência
Semeada
Da consciência.
Somos cinza de estrelas
Reciclada, inesperado berço
De novas caravelas
Em demanda do Universo.
142 – Criança
Da criança a pequena mão
Na mão robusta do adulto:
A primordial ligação
Que o mundo potencializa,
O revelado e o oculto.
A pergunta a criança formaliza.
Tomada a sério,
Junta-se-lhe um ente querido
Na busca da resposta
Que lhe traga o refrigério
Pretendido.
Quando verso
Esta aposta
Abrem-se as portas para o Universo.
143 – Rebento
Último rebento é a inteligência
Da evolucionária tendência,
Nos mais simples organismos logo aparente,
De controlar o ambiente.
De controlo biológico o alerta
Foi material hereditário,
De ácidos nucleicos a certa
Transmitida informação,
Geração a geração,
Imemorial sumário
De multimilenar tradição:
Arte de construir um ninho,
Medo da queda, da cobra, da escuridão,
Para o sul, no Inverno, qual o caminho…
A inteligência, porém, requer
Informação moldável desenvolvida
Durante o tempo de vida
De quenquer.
A Terra vive pejada
De enorme variedade
De organismos com a qualidade
De inteligência apelidada:
Golfinho, chimpanzé pigmeu
E o mais evidente de quantos se tomem
Como tendo-a de seu,
- O Homem.
No homem, a informação de moldagem,
Mais do que em vida,
É transmitida
Por aprendizagem:
Nos livros, na escola, na educação…
Para ser inteligente,
Eis a função
Que no planeta nos garante o lugar proeminente.
Somos o produto
De quatro biliões e meio de anos
De lenta e casual evolução.
Para pensar não há razão
Que somos o derradeiro fruto
Duma evolução cujos arbitrários planos
Em nós pararam.
O Homem é animal de transição,
Da evolução os sulcos ainda nos aram,
Não somos o apogeu da criação.
Sobre a evolução futura
Prognóstico preciso
Ninguém o augura.
Em termos práticos,
O único indubitável juízo
É que não podemos manter-nos estáticos.
144 – Hoje
Hoje, um instante particular
Em quatro biliões e meio de anos de vida,
Momento singular
Nos vários milhões de anos da espécie humana,
Hoje, algo faz que a maioria incida,
Quanto à fidelidade primária,
Na nação-estado a que se irmana.
A mente
Visionária
Sonha com a era
Em que um individual humano ente,
Na instância primeira,
Seja fiel e se identifique,
Não a um estado-nação,
Raça, classe ou religião,
Mas à Humanidade como um todo que autentique:
- Quando de alguém o bem-estar
A dez mil quilómetros de nós
Para nós tanto pesar
Como o de nossos irmãos, pais ou avós.
145 – Máquinas
Máquinas construídas
Pelos nucleicos ácidos
São o homem e as demais vidas
Para, eficientes e plácidos,
De mais nucleicos ácidos
Criarem réplicas seguidas.
Nossos impulsos mais fortes,
Mais nobres iniciativas,
As mais prementes carências,
De acaso trocas em sortes,
Ânsias mortas, ânsias vivas,
Da liberdade evidências,
- De algum modo
Uma complexa expressão
De codificada informação,
São um todo
Em genético material:
Somos o repositório ambulante
E temporal
De nossos ácidos nucleicos, em cada instante.
Não nos nega a humana natureza:
Nada impede a busca do bem, verdade e beleza.
Mas era um erro ignorar
A raiz donde nos vêm os ramos
Na tentativa de buscar
Para onde vamos.
146 – Desesperadamente
Desesperadamente urge encontrar
A via de retorno aos humanos,
De retorno ao lar,
Da religião, porventura, aos desenganos.
Se a natureza é a religião
Que mais agrada,
Precisamos então
Duma ideia largamente partilhada,
Com a poética dum verso,
Do lugar do homem no Universo.
Pouco importa a nota de sobrenatural
Ou Deus:
- Algures espreitará o sinal
Dos Céus!
147 – Berço
A Terra é o berço da Humanidade,
Mas no berço ninguém pode
Para sempre viver.
A criança atinge a maturidade
Quando a descoberta lhe acode
De que não é tudo na infinidade
Do ser.
O mesmo é verdade,
Ao explorar além-fronteiras o que alcança,
Para uma comunidade
Que descobre, surpresa, a vizinhança.
Alargando o patamar
Da espacial exploração
Vamos decerto acelerar
Da humanidade a maturação.
E da verdade para o credo
Jamais é demasiado cedo.
148 – Disperso
Tão disperso caminhar,
Tortuoso, ondulante,
Que vai ou vem hesitante,
Desce ou trepa um patamar,
Cruza rios, vales,
Montanhas, bosques de agoiros,
Prados de sonhar tesoiros,
Ruínas de que te cales,
O pântano, o ar marinho,
- São um e único caminho.
O tempo que leva,
Para ao fim
O ver assim,
O homem que a tal se atreva!
- É tudo humanidade a caminhar
Em busca de lugar.
149 – Força
Que força leva o Homem a pegar
No metal e no fogo,
No vento e no ar,
Nas árvores, na rocha, no jogo,
E erguer aos deuses, a Deus, aos santos,
Ao diabo, aos medos, ao amor,
À vida, à morte, hinos de encantos
E de horror,
De palavras entalhados,
De sons, de cores,
De oiro e prata gravados,
De vidro soprados
Em habilidoso rolo,
De mil humores
Cambiados,
De tijolo?…
- Que força leva o Homem a pegar
Em tudo,
A tentar celebrar
O que só logrará, talvez,
Quando, de vez,
Ficar mudo?
150 – Alturas
Nas alturas vislumbramos,
À ventania vergados vimes,
Que acaso nos vocacionamos
A destinos mais sublimes.
Logo, porém, verificamos
Os pés pregados ao chão
E as asas, as asas que sempre nos faltarão.
Não há como a noite
Contemplada duma hospedaria
Junto às estrelas
Para que em nós se acoite
Que somos, disperso,
Um grão de nada que esparzia
A poeira do Universo.
151 – Mestre
O melhor mestre seria
O que nem sabedoria
Nem poder
Tiver,
Mas que disposto estaria
Poder a perder,
A fim de desvendar
Múltiplas sabedorias.
Perder, então, é ganhar
E conhecer é principiar
No ovo,
De novo,
Todas as romarias.
152 – Mister
Do animal o verdadeiro mister
É um romance num estábulo escrever,
Que o prazer de escrever loucuras prefiro
Ao de usar o paramento doirado que adquiro
De euros por múltiplos milhares
Em sofisticados bazares.
No animal mergulha a raiz
A mais nobre flor-de-lis.
153 – Criar
De criar a ilusão
Do que já foi criado
Não é mais que a perseguição
Ou até o encontro revelado.
À luz da eternidade
Que diferença haverá, que diferença
Entre o ser vivo e a estátua de alvaiade,
O linho de minha pertença,
Um bloco de pedra,
A seara que medra?…
Mas os escassos
Minutos
Que ali me interno
São meus pedaços
Diminutos
De eterno.
154 – Infinito
O infinito em si
É pura abstracção:
Nunca o vi,
Não!
O infinito jamais há-de ser apreensível
Senão no finito:
Exterioriza-o, manifesta-o, visível,
A infinita variedade que concito
Das formas onde o vislumbro
E delimito.
- E nelas é que dele me deslumbro.
155 – Muito
Há muito principiei
A aprender isto
Que jamais rematarei:
- Nada podemos aprender!
Existo
Mas não existe nada
Sequer
A que deveras aprender chamemos.
Apenas, em toda a parte integrada,
Uma sabedoria:
O Ser Universal,
Mar do Cosmos cujos remos
Navegam em mim, em ti, na harmonia
Da lei deste deus em todos os seres,
Visceral.
O pior inimigo que venceres
É desta sabedoria o desejo:
O enganador ensejo
De o inatingível aprenderes.
156 – Atingirás
Nada atingirás pelas doutrinas,
Ninguém por elas logrará libertação.
Partilhar, no que ensinas,
O instante da iluminação
Jamais conseguirás.
Tua instrução
Contém luz assaz,
Muito estimula quenquer
Com honradez a viver,
A driblar o mal.
Algo, porém,
O que é tão claro, tão venerável,
Não contém,
Afinal:
O segredo
Inominável
Daquilo que viveste,
Tu, único entre biliões, que o medo
Um momento venceste,
O medo do abscôndito lado celeste.
157 – Vislumbrar
Nada vislumbrar acerca de mim,
Ser um estranho para mim ignoto
Tem um motivo remoto
E a que não logro pôr fim:
De mim tenho horrível medo
E ando de mim a fugir.
O Ser inquirir,
Uno, mudo e quedo
Disposto a fragmentar este meu Eu
Para, em profundezas desconhecidas,
Descobrir o cerne, a porta do céu,
Fio das coisas por haver e havidas,
Da vida o sigiloso hino,
O derradeiro, o divino?…
Por aqui, porém,
Não atinjo nunca o fim:
Engano é também,
Perco-me de mim.
Onde me atingirei, enfim?
158 – Voltar
De mim não quero
Voltar a escapar.
Meu pensamento delibero
E minha vida não iniciar
Por Deus, o Ser, o Imo do Universo,
Do Mundo a dor do que é disperso…
Não quero matar-me,
Fragmentar-me,
Em demanda, entre meus ossos,
Dum segredo perdido,
Entre os destroços
Porventura escondido.
Não quero mais ascese,
Nem jejum, nem penitência,
Nem mil rosários que reze,
Nem púlpitos a ler-me a sina,
Nem bulas de beneficência,
Nem qualquer outra doutrina.
Quero aprender comigo,
Ser de mim o meu aluno,
Desvendar-me ao meu postigo,
Surpreender, se me ensimesmo,
O segredo a que me uno
Do infinito de mim mesmo.
159 – Decifrar
Quando alguém quer decifrar o que lê,
As letras não despreza
Como casca inútil, engano que nos lesa,
Acaso que ninguém prevê.
Antes lê, estuda e ama,
Letra por letra, o texto.
Mas eu, que aquilo que o Livro do Mundo clama
Queria ler,
A pretexto
Do reino das aparências,
Desprezei quer
Letras e sinais,
Com um sentido
Contra todas as evidências
Preconcebido,
Quer os factos mais reais:
Apelidei de escolhos,
Chamei de engano inútil e casual
A meus olhos
E à minha língua, degrau a degrau racional.
Não, isto é já passado morto.
Eu despertei,
Confiro, doravante, de lés a lés,
Do Universo inteiro o horto.
Nasci hoje pela primeira vez:
- Eis doravante a lei!
160 – Escapulir-se
Dias e noites cada vez mais curtos,
Cada hora a escapulir-se cada vez mais veloz,
Como vela mar fora de navios jamais surtos…
- Mas, sob cada vela, o porão dos tesoiros
Onde, connosco a sós,
Cada dia, cada dia,
Ferrados das arcas os coiros,
Nos inaugura a alegria.
A cada um de nós, a cada um de nós…
161 – Segredo
Segredo e tesoiro do profeta
Não é a doutrina,
É o inexprimível, o incomunicável
Que o afecta
No momento em que o ilumina
O inominável.
É o que a quenquer
Convém encontrar
Para começar a viver,
- Para começar!
162 – Folha
A maior parte das gentes
São folha que se desprende,
Flutua ao vento entrementes,
Hesita, que não entende,
E cai de leve no chão.
Outros, não.
Uns poucos são como estrelas
A seguir um rumo firme,
Nenhum vento afecta as velas,
Do imo vem quanto os confirme.
Estes, em resumo,
Seguem sempre o próprio rumo.
São, não tarda, quem, no fundo,
O tom dá que afina o mundo.
163 – Apenas
Não sigo nenhum traslado,
Nem creio num adivinho
Diabólico ou diivino.
Não vou para nenhum lado,
Vou apenas a caminho:
- Sou peregrino.
164 – Segredo
O segredo do rio,
Água correndo, correndo continuamente,
Em cachoeira ou num fio,
Sempre a escoar e sempre presente,
A mesma sempre e sempre nova…
Ah! Quem o compreendera,
Ao rio de pôr-me à prova!
Agito um pressentimento,
Evocação doutra era,
Recordação distante da sina
Duma espera,
O tormento
Duma vaga voz divina…
- E sou eu este rio,
Sou-o, enfim,
Eterno a marulhar o mesmo e o novo desafio,
Eu a correr no fundo de mim.
165 – Acolher
Quem procura sincero
Não pode acolher nenhuma doutrina,
Se quer encontrar algo de sangue vero.
Quando o encontrou, logo se inclina,
Porém,
Toda e qualquer doutrina a confirmar,
Todo o caminho que sobrevém,
Todo o objectivo a visar…
Nada o separa então
Dos biliões que vivem a eternidade
E já respirarão
Divindade.
166 – Junto
Tudo junto, vozes, projectos,
Nostalgia, sofrimento,
O prazer íntimo dos tectos,
O bom e o mau momento,
Tudo junto é o mundo, o Universo.
É o fluir de cada evento,
Da vida a música e o verso.
Quando escuto com atenção
Esta canção a mil vozes,
Este único e plural som,
Quando me liberto dos ferozes
Recantos íntimos de meu Eu,
Afloro o céu:
Escuto a Totalidade,
A Unidade acolho
E, quando deveras olho,
Vislumbro o que não me ilude:
- A verdade
Da plenitude.
167 – Pecador
O pecador que cada um de nós é
É um pecador
Mas um dia atingirá, pelo próprio pé,
A plenitude,
Alcançará o Nirvana, sonhador,
Será Deus, com a Virtude.
Dizer “um dia”, porém, é uma ilusão,
Mascara a verdade.
Sob o manto, o chão
É doutra densidade:
Ninguém vai a caminho de se transformar,
Ninguém a evoluir,
Embora nosso modo de falar
Outro dizer não logre conseguir.
O porvir já mora,
Aqui e agora,
No pecador,
Dentro dele todo inteiro:
Em quem se transforma vive oculto o Senhor
A venerar cimeiro.
O mundo não é imperfeito
Nem vive acorrentado
A um trilho lento para a perfeição:
A cada instante, dele o jeito
É o de ser completo e acabado,
A misericórdia já contém todo o pecado,
As criancinhas já terão
Dentro delas a velhice,
O bebé tem dentro a morte
E o moribundo tem, superna,
Para quem deveras o intuísse,
Já nele a vida eterna.
O Todo, em todo o lado,
Mora no múltiplo ancorado
E fervilha em vulcão
Em toda a cósmica, familiar e diária mutação.
168 – Repouso
Hoje em dia penso: esta pedra é pedra
Mas também animal
E deus e o agitado repouso universal.
Não a venero porque medra,
Por devir,
Mas porque ela é tudo
Há muito, desde sempre igual.
O facto de ser pedra
E de como pedra me surgir
Leva-me a amá-la no miúdo,
No valor e sentido do veio, da cavidade,
Do amarelo e do cinzento,
Da secura e da humidade
De que a cobre o relento.
Resumo do Universo
Que a cruza e é por ela cruzado,
Nisto me agrada quando a converso,
- É o Infinito a meu lado.
169 – Artista
O artista experimentado
Descobre que a inspiração
É rara
E que requer muito cuidado
Dar a cara
Incorporando a intuição.
Põe as ideias na prensa,
Suga-lhes até à derradeira gota
O suco divino que aí condensa.
Entre dores e mágoas
Atinge às vezes do píncaro a cota:
Dilui as ideias em límpidas águas,
Na transparência
Do fito
De traduzir a esplendência
Do Infinito.
170 – Luz
As grandes ideias
Levam a luz por toda a parte.
Por mais, porém, que mudem as candeias,
Os homens ficam iguais.
Destarte,
Como, por fim, a não ser os homens nada importa,
As ideias são o que eles forem, reais.
Se medíocres e servis,
O génio devém medíocre ao cruzar-lhes a porta
E do herói o grito de libertação,
Rompendo perfis
De prisão,
Longe do que nele agoiras,
É o contrato de servidão
De gerações vindoiras.
Nem ídolos, nem clássicos quaisquer!
Quem do espírito herdeiro pretenda ser
A todos os tem de calcar aos pés
Para seguir em frente,
A direito e não de través,
Olhando para diante, independente,
E nunca para trás.
Importa deixar morrer o que morrer deve
E de manter-se em comunhão ser capaz
Ardente com a vida que a tudo sobreleve.
171 – Acreditava
Não acreditava em Deus
Mas era urgente rezar:
Rezar a si mesmo, aos profundos apogeus.
Só os medíocres não rezam
Em nenhum tempo e lugar,
Não prezam
O apetite primário
De retiro
No próprio santuário
Que nas almas fortes admiro
E sumário
Confiro.
Não acreditava em Deus
Mas era urgente rezar
Aos céus
Que dentro e fora de nós
Nos importa logo após
Conquistar.
172 – Valemos
Sem génio
Não valemos nada.
Para a estrada.
Importa que génio alguém o seja,
Que mais não fora,
No interesse dos mais:
O que se almeja
Demora
Demais…
Se no mundo não houvera
Algumas pedras por acolá, por aqui,
Tudo acabaria por transformar-se em mera
Lama de pantanal,
Repugnante alibi
Do fracasso final.
Do milénio
Na peugada,
Sem génio
Ninguém dará uma passada.
173 – Obras
As obras são caminhos diferentes
Que levam ao mesmo cume
Do imo na montanha:
Percorremos-lhe os caminhos divergentes,
Alguns se demoram na sombra do lume
Em curva branda de quem se acanha,
Trepam outros áridos, asperamente,
Rumo à estrela luminescente.
Todos encaminham ao píncaro dos céus,
Apontam um Deus:
Amor, ódio, renúncia, vontade,
Toda a força humana
Levada ao paroxismo que a invade
Atinge a Eternidade.
Porque dela emana
Já participa então dela.
Cada pessoa trá-la dentro,
Dela própria sequela,
O religioso e o ateu,
O que descobre a vida na salsa e no coentro,
O que em tudo nega que a viu,
O que de tudo duvida,
Da negação
Como da afirmação
Da vida…
Do lusco-fusco do fundo
Vislumbra-se o cume
Onde chispa o lume
Do Mundo.
174 – Sacudir
Sacudir o jugo
Dos mestres de antanho
Não é de verdugo
Mero ganho,
Nem brincadeira
De espíritos belos
Preguiçando na pasmaceira,
Singelos.
É a terrível seriedade
Da revolta que tem
A vida por finalidade,
A vida fecunda que contém,
Prenhe, nela a bulir,
Os séculos por vir.
175 – Arrebatá-la
Arte,
Agarrar a vida como a águia a presa,
Arrebatá-la pelos ares por onde parte,
Elevar-se com ela na imensidão serena,
Como o fumo do lar, como uma reza
Em alba plena!
É preciso ter garras,
Grandes asas,
Um coração poderoso,
Não é qualquer pardal das farras,
No beiral das casas,
Que das alturas toma o gozo.
Arte é vida domada,
Impera incontida:
Prémio duma luta encarniçada,
Os louros coroam a força desmedida.
Quem quer ser imperador,
Alma de imperador terá de ter,
Não é um rei qualquer
Que devirá senhor.
Actor que se vangloria de aleijões,
Literatura da deformidade
Roubam-nos de agir as razões,
Entorpecem a vontade,
Põem-nos a cantar no corredor da morte.
Arte a sério, ao invés,
Não nos abandona à sorte:
Ata-nos asas nos pés
E aponta imperativa o norte!
176 – Corpo
Um corpo débil e atormentado
Por um activismo desregrado
Que uma inteligência livre e serena
Observa
Sem poder ter sobre tal mão plena
Nem daquilo ser serva,
Sem se deixar atingir,
- Eis como a paz radical, enfim,
Há-de persistir
No meio da agitação sem fim.
De igual modo
Nos agitamos,
Múltiplos nervosos ramos
Na imutável constância do Todo.
177 – Génio
Um génio, por mais que dê,
Recebe sempre em amor
Muito mais do que o que dá,
Que aquilo que um génio é
Será ser o absorvedor
De quanto houver e haverá
De grande em torno de si,
Tornando-o então logo ali
Ainda do que antes maior.
É desta troca de mão
Que se abrem rotas no chão.
178 – Força
Força que cala e perdura
Enquanto apodrece incessante
Um escol e outro se apura
Logo adiante,
É de quem não vive para ser feliz,
Feliz a qualquer preço,
Mas que, ao invés, quis
Pôr de pé
Esta pedra de tropeço:
Realizar ou servir a própria fé.
Ignorada mas segura
Esta é a força que perdura.
179 – Evitam
Evitam os messemídia o pensamento
Ou apenas o admitem
Quando de prazer é um instrumento
Ou dum partido arma que emitem.
Igrejinhas e cenáculos
É apenas à custa de aviltamento
Que abrem via livre para os pináculos.
Miséria, labor demais
Acabrunham-nos, letais.
Os políticos, a enricar,
Irão importar-se apenas
Com os proletários a comprar
E por custas bem pequenas.
A burguesia,
Indiferente e egoísta,
Vê morrer, sem lhe toldar a alegria
Da mísera morte a vista.
O povo ignora quem por ele combate
E mesmo os que lutam,
De silêncio cercados,
Ignoram quem pelo mesmo sonho se bate,
Como estes que ao lado disputam
Não sabem que existem aqueloutros ignorados.
É nesta desolação
Que a esperança,
Apesar da solidão,
Nos alcança
E a ponte nos lança
Para além do desvão:
- É que além é que o porvir dança!
180 – Artistas
Vemos artistas que pretendem
A liberdade ilimitada do sonho,
Subjectivistas desenfreados que subentendem
Que o mundo é medonho,
Com toda a objectividade,
Porque há brutos a crer das coisas na realidade.
Pensadores há cujo pensamento,
Múltiplo e ondulante,
Do que é móvel se molda na intérmina corrente,
A bulir e a rolar incessante,
Não se fixando em nenhum elemento,
Eternamente hesitante,
Em nada encontrando o solo resistente,
A rocha.
Não pinta o ser nem dele a imagem,
A tocha
Apenas ilumina a passagem,
A passagem eterna,
Dia a dia, minuto a minuto,
Cujo fruto
Para sempre hiberna.
Sábios que descobrem o vácuo e o nada universal
De que fabricam o pensamento e o ideal,
O deus, as artes, a ciência,
Continuando a criar, com paciência,
O mundo e dele as leis
No sonho poderoso dum dia por trás dos ouropéis.
Não pedem à ciência repouso nem felicidade,
Nem mesmo a Verdade,
Pois duvidam de a atingir
- Amam-na por ela,
A única bela,
A única real sem fingir.
Do pensamento no cume,
Os sábios, pirrónicos apaixonados,
Ardem no lume,
Indiferentes ao sofrimento, à decepção,
Quase à realidade de que vivem gorados,
Ouvindo, de olhos fechados,
A silente canção
Dos corações,
A delicada e grandiosa harmonia
Dos biliões e biliões
De números e formas com que o Universo desafia.
- Todos, sobre o abismo inclinados,
De vertigem embriagados,
Na noite sem limites fazem luzir,
Com sublime alegria, do vento
Do nadir,
O clarão do pensamento.
181 – Maneira
Não é a palavra que noutrem influi,
É a maneira própria de ser:
Há quem irradie um ar que flui,
Calmante, pelo olhar, pelo gesto que tiver,
Pelo contacto silente e pleno
Do espírito sereno.
Dali é que irradia
A luz do dia.
182 – Conquiste
Conquiste César a Terra, se quiser,
Nós conquistamos a verdade.
Para conquistar é preciso vencer
E viver é a primeira vitória que persuade
Ao que inauguro.
A verdade não é dogma duro,
Pelo cérebro segregado,
Em estado puro,
Estalactite do tecto duma gruta,
Pingente pendurado,
De saqueadores pronto à disputa.
A verdade é a vida,
Não é na cabeça que se deve procurá-la,
É dos outros no coração.
Unam-se a eles, de corrida:
Pensem quanto queiram, mas façam gala
De tomar diariamente, por infusão,
Um banho de humanidade!
É urgente viver a vida
Em toda a variedade
E, no voo generoso e fino,
Sem qualquer abalo
Submeter-se ao próprio destino
E amá-lo.
183 – Escolha
Neste mundo há escolha apenas
Entre a chama que devora e a noite.
Apesar das melancolias serenas
Dos enleios, à sonoite,
Repudio devir consorte
Desta paz precursora da morte.
Das amplidões do infinito
O silêncio apavora.
À fogueira que arde no granito
Joguemos, de hora a hora,
Novas braçadas de lenha
E que a chama rubicunda advenha,
Que o fogo que nos ilumina
Se não apague.
Se se extinguir a labareda divina
Que nos acalente e afague,
De guarda o querubim
Não resiste:
É o fim,
Acaba tudo o que existe.
184 – Livros
Os livros dos poetas
Falam de amor, bem entendido,
E preservam a mentalidade infantil,
Pois não vêem as coisas concretas,
Imaginam-nas pelo prisma gentil
Do desejo, da saudade ou dum olvido,
Parecendo que é, como em criança,
Pelas fendas dum muro que o poeta as alcança.
Mas o poeta sabe muito mais,
Sabe tudo quanto importa
E envolve-o em termos muito doces,
Misteriosos, irreais,
Que entreabrem a porta
Da magia mesmo a quem não tem posses
E que importa desenfaixar
Com infinitas precauções
Para encontrar, para encontrar…
Ah! Não se encontra nada
Nestes desvões.
Mas com jeito, devagar,
Por esta entrada,
Numa frase,
Estamos sempre quase a encontrar,
Quase, quase…
185 – Vasta
Aos homens de cotio
A vida de cotio vai-lhes revelar:
Ela é mais profunda e vasta que o mar
De qualquer navio,
O menor dentre nós leva consigo o infinito,
O infinito mora em cada homem
Que de ser um homem tem a simplicidade:
No precito,
Como quer que o tomem,
Na mulher que da vida as leivas grade,
No que obscuro se sacrifica
Mesmo quando ninguém o verifica…
Todo e qualquer é a torrente da vida
Correndo dum para o outro, daqui para acolá,
E dela outra medida não há
Que a da infinidade desmedida.
186 – Canto
Posso fazer tudo bem,
Cada dia mui certinho,
E acabar a um canto sozinho,
Com um sentimento de confuso desdém:
Aquilo não é bastante
Para encher uma vida.
Talvez mais atrás, mais adiante,
Outra coisa pudesse ter sido empreendida…
A tortura
Imanente
De ter de ser eternamente,
Sem vislumbre de cura,
Apenas, apenas semente…
187 – Palavras
As palavras, estelas
Que a cinzel aparas,
Que a pena pintas,
Hão-de ser como as estrelas
Muito claras
E distintas.
E, lá no infinito,
Um longínquo sonho que fito…
188 – Língua
Primeiro vem a língua sem palavras
Dos corpos vivos que falam.
Depois, as palavras que arroteiam
Dos livros as lavras
Que se escrevem e semeiam
O que calam:
O livro tenta inutilmente traduzir
A língua primeira
Que sempre vem e nunca chega a vir,
Eterna pioneira…
O livro é sempre incompleto
Porque é além que continua,
Na outra língua,
No falar silencioso e discreto
Para que remete a primordial míngua
De chão, de rua
Da palavra toda e qualquer
Dos livros que julgamos ler.
189 – Frente
Como poderás acompanhar
Quem sempre outro livro lê
Além do que à frente lhe cirandar,
Um livro que ainda não é
Mas, como ele o quer,
Não poderá deixar de vir a ser?
Como doutro mundo
Perseguir o rastro
Fecundo
Se lhe não vislumbras o astro
Por trás das cortinas da parede ao fundo?
190 – Ler
Ler é agarrar o que além está,
Feito de escrita,
Um sólido material acolá,
Que ninguém altera nem evita,
E através disto é comparar-nos a um outro qualquer
Que faz parte do mundo imaterial, invisível,
Apenas pensável, imaginável ou nem sequer,.
Que existiu e já não existe, invivível,
Sombra inalcançável, perdida,
A escorrer para país de mortos, sendo, afinal,
vida.
Ou, então, ainda não está presente
Porque ainda não existe,
Algo desejado, temido, mas ausente,
Possível ou impossível, e que entretanto persiste…
Ler é ir ao encontro duma qualquer
Realidade que está para ser
E que ainda ninguém
Sabe o que vai ser mais além.
191 – Escritor
O escritor que se anula
Para dar voz ao que fora
Demora
Ou escreve um único livro que tudo engula
Ou escreve os livros todos
Que, totais,
Persigam o Todo de todos os modos,
Dele em todas as imagens parciais.
Livros únicos, só em texto sagrado,.
Na palavra revelada,
E o credo é tão variado,
Logo de entrada!
O todo, porém, não é abarcado,
Não é contível em linguagem falada.
De fora fica o não-escrito,
O não-escrevível.
Então, só um texto infinito,
O Impossível.
192 – Renunciar
Renunciar é mais fácil do que cremos,
Questão é começar.
Após abandonar
O que essencial erroneamente julguemos
Damos connosco a reparar
Que também podemos
Passar
Sem mais isto e mais aquilo…
- De repente onde me perfilo
É do mundo pela crosta vazia
Que percorro dia a dia.
Às tantas, renunciar
É um inesperado poder de voar,
Imponderável,
Pelo ar
Finalmente respirável.
193 – Frágeis
Os frágeis, no intérmino rol
De vertentes do cotio soturnas,
Contêm, entretanto, o farol
Onde costumam aterrar as aves mais nocturnas.
Pode ser mau para os frágeis, pode,
Mas é ainda à vida que o farol acode.
194 – Escol
Por mais que o escol se misture à multidão,
Sempre para o escol se orienta
De toda a classe e partido, de toda e qualquer
nação
Quem empunha o fogo que nos sustenta.
E do escol o dever sagrado,
Por muito que o corpo lhe chague,
É velar por que em nenhum lado
Jamais o fogo se apague.
195 – Empalidece
É bela
Toda a fé
E, quando empalidece aquela
Cujo ciclo ficou consumado,
Urge pôr de pé
As novas que se houverem incendiado.
É que jamais
Quantas arderem
Serão demais
Para as vidas nos aquecerem.
196 – Pardal
Quanto pardal ferido
Pela vida
Que se consola,
A cabeça debaixo de asa,
Contraído
Numa bola,
No poleiro da casa!
Sonham, porém, com voos loucos
À luz descomedida.
E como são por fim nisto tão poucos,
Tão escassos,
Tão fracassos,
Em tudo o que aqui há de sem-medida!
197 – Crêem
Eles crêem como nós,
Apenas crêem menos.
Para verem a luz tapam-lhe os acenos,
Encobrem-na após,
Vão fechar-lhe o postigo
E acender um candeeiro:
Põem Deus num homem ao abrigo,
Ali a preservá-lo por inteiro.
Teremos melhores olhos, acaso…
Mas é sempre a mesma luz
Que, em qualquer caso,
A todos nos seduz.
198 – Sentido
Que sentido têm todas estas vidas,
Todas aquelas gerações,
Tantas esperanças e provações,
Que aqui chegaram, coloridas,
E no vácuo se afundaram,
De vez perdidas?
A vida, um contra-senso que nos mente,
A morte, um contra-senso igualmente,
Ambas fatais nos burlaram,
Nas promessas pressentidas
Que goraram.
Um ser riscado,
Toda uma estirpe desaparecida
Sem deixar vestígio…
Ou antes será o fastígio
De ficar de vez integrado
Na vivência-corpo do Cosmos mal pressentida,
O definitivo segredo jamais revelado?
Um ser, uma minúscula marca
Pelo corpo da Terra no Universo posta,
Que à Parca
Para a eternidade ganha a aposta,
Já que jamais a apaga
Dos tempos, por mais remotos, nenhuma plaga?
Ainda hoje sobrevive
A primitiva célula que no corpo da Terra
Mais longe e mais fundo eternamente se enterra,
A partir do caldo primevo que há mil eras a
cultive.
199 – Frente
A vida
Apenas em retrospectiva
Pode ser compreendida.
Esquiva,
Porém, fatalmente,
Apenas pode ser vivida
Em frente.
200 – Endémica
Quando os ventos duma endémica paixão
Sopram pelos povos além,
Pouco pesa a razão
E a política também,
Pois os ventos nem ao trabalho se dão
De suprimir
Qualquer individual paixão:
- Utilizam-na em nome do porvir.
201 – Tecem
Que longe tecem a função
Os que moldam a nova geração!
Como corre o barco
Que leva nossos filhos!
Um dia virá em que todos que haja nem abarco,
Nos fundos porões milhos
Do mesmo horto,
Hão-de tornar a encontrar-se no porto.
Da festa
Ninguém sabe o dia nem a hora
Mas há-de despontar algures a fresta
Da nova aurora.
202 – Vento
Ninguém combate o vento que passa,
Aguarda que tenha passado.
Quando a razão fica lassa,
Deitemo-la em leito de lavado,
Deixemo-la respirar.
Amanhã, mais alerta,
Desperta
Fecundada por mil sonhos de luar.
203 – Crescem
Terríveis crianças!
Crescem em redor de nós,
Lianas a trepar até às franças,
Força da natureza a expulsar os cipós:
- Sai daí, parceiro,
É a minha vez de ocupar o terreiro!
204 – Marco
Viveis ao correr do dia-a-dia,
Nada vedes além do marco em frente,
Imaginais que assinala o fim da via
E a verdade é que isto mente.
Vedes a vaga que vos leva,
Não o mar.
A vaga de hoje foi a de ontem que, da treva,
Lhe imprimiu o impulso que levar,
Como a de hoje cava o sulco em que se ceva
A de amanhã, a energia a carregar,
A qual lança aquela ao esquecimento,
Como à anterior, em seu lugar,
Também esta fez no seu momento…
Eternamente
Assim a cadeia
Nos semeia
Em frente, sempre em frente, sempre em frente…
205 – Trabalhámos
Para nós trabalhámos ao criar
Uma geração que nos ultrapassa.
Coroámo-la dum colar
De graça.
Amontoámos-lhe economias,
Defendemo-la num pardieiro mal fechado
Por onde assobiavam todas as ventanias,
Que em todas as portas teve de ser escorado
A fim de à morte impedir
De o invadir.
Por nossas mãos foi rasgada
A triunfal estrada
Por onde nossos filhos irão caminhar:
Nosso empenhamento garantiu o porvir.
A arca às portas da terra prometida
Acabámos por levar
E ela aí penetrará de seguida
Com eles e por nós,
Cumprindo assim a fé dos mais remotos avós.
206 – Jovens
Os jovens, de Março aguaceiros
Sobre a terra que renasce…
Dêem-me lições, pioneiros,
Doravante a escola faz-se
Com os velhos a ir dos jovens às aulas.
Aproveitais-vos de nós e sois ingratos,
É certo.
Mas quem nos prende nas jaulas?
Mais peritos e sensatos
Por nosso esforço, eis-vos lá perto
Da meta que tentámos,
Longe daqui.
Por nossa vez aprendamos
Com as águas do tsunami,
Tratemos de nos renovar.
Se já não pudermos, velhos demais,
Com eles vamo-nos regozijar,
Que é belo ver florir os pantanais
Nos tenteios do luar,
A alegria do feito fecundo
Dos que renascem para a conquista do mundo.
207 – Gerações
Gerações que se encadeiam
Sentem de modo mais agudo
O que as separa
Que os laços em que umas noutras se enleiam.
Este pendor fica mudo
Enquanto aqueloutro afirmara
De viver toda a importância,
Mesmo se delira,
Com a ânsia,
Na injustiça e na mentira.
Varia o grau da ruptura
Conforme é no apogeu
Ou na decadência e renascimento duma cultura.
Acolá, no equilíbrio, mal se viu.
Aqui, nas íngremes ladeiras
Antes e após o planalto,
Os jovens trepam ou descem com tais canseiras
A vertente vertiginosa
Que, num salto,
Deixam para trás, longe, a geração que anquilosa.
Sempre, porém, a corrida,
É à procura de mais vida na vida.
208 – Grau
Arte impura,
O mais baixo grau de arte,
Doença a requerer cura,
Cogumelo em podridão que se reparte,
Arte para o prazer
É sempre arte levada ao bordel.
Arte, porém, pela moral de quenquer,
De insípido utilitarismo por farnel,
É um pégaso castrado
Triste arrastando pelos campos o arado.
Arte deveras,
Acima das leis de qualquer dia,
É um cometa das esferas
Do infinito lançado à caça da magia.
209 – Hábito
O hábito, fiel aliado,
Ao fugirem as razões de viver,
Tenaz e constante permanece a nosso lado,
Sem uma palavra, um gesto sequer,
De olhar fixo, o lábio mudo,
E conduz-nos com mão firme e segura,
Sem febre nem loucura,
Através do desfiladeiro de penhascos pontiagudo,
Até que reapareça à luz do dia
De viver a alegria.
210 – Revolução
A revolução, vitoriosa ou derrotada,
Dela sempre atinge os fins, que os opressores
Apenas atendem o pedido
Do oprimido
Quando deste a jornada
Lhes inspira medo, acorda os terrores.
A injusta violência
E duma causa a justiça
Ambas servem a tendência,
Com maior ou menor dano,
Da força obscura
E segura
Que enguiça
E fatídica enliça
O rebanho humano.
211 – Revolucionários
Há revolucionários por moda, por snobismo,
Há-os por selvajaria,
Por gosto de acção,
Pelo calor do heroísmo,
Por servilismo também os haveria,
Como pelo chão,
Por espírito de rebanho
Com o pensamento mais tacanho…
- Todos, sem o saberem,
São arrastados pela ventania,
Turbilhões de poeira a mal se verem
Revoluteando ao longe na larga via,
Anunciando, na confusão,
Da tempestade a aproximação.
212 – Conquistam
As ideias não conquistam como ideias
Mas como forças sem peias.
Não capturam os homens pelo conteúdo intelectual,
Mas pela irradiação vital
Que delas se solta
Em dados momentos da História revolta,
Como um perfume que irradia
E qualquer olfacto inebria.
A mais sublime ideia continua ineficaz
Até ao dia
Em que contagia,
Não pelos méritos que traz,
Mas pelo dos grupos humanos que nela se perfilam
E o sangue lhe instilam.
213 – Novos
Os novos precisam duma boa loucura,
Nos mais egoístas há um proliferar de vida,
Um capital de energia
Que procura,
Convida
E confia,
Que não quer permanecer improdutivo.
Então todos buscam o cultivo
Duma acção, duma teoria…
O jovem precisa de ter a ilusão
De participar num grande movimento
A renovar o chão,
Cruento.
Idade de sermos livres e leves,
Sem família, nada temos,
Nada arriscamos, breves,
Somos generosos quando podemos
Renunciar
Ao que ainda não pudemos conquistar.
É tão bom acreditar
Que não é dos mitos
A Terra transmudar
Apenas a poder de sonhos e gritos!
214 – Vácuo
O vácuo existencial
Não é uma frustração qualquer,
É a mais fundamental:
A do desejo de ser.
Cada dia mais pacientes
Sofrem dum vazio interior,
Duma falta de sentido que, entrementes,
À vida retirou qualquer valor.
Não vamos abandonar a aventura:
A meta do entremez
Ao ponto de partida é chegar
Vendo-o em tal figura
Que lhe conheçamos o lugar
Sempre pela primeira vez.
215 – Pena
A pena é mais poderosa
Do que a espada.
O poder de que a ideia goza
Tem vida mais prolongada
Do que a de qualquer governo,
Por mais que se creia eterno.
Uma ideia profunda, uma Ideia
Os séculos e os milénios permeia.
216 – Velas
Durante a tempestade,
As velas são recolhidas,
Com vento que me agrade
Iço as velas de todas as surtidas.
Qualquer que seja o destino derradeiro
Da viagem
Melhor é levar mapas na bagagem
E, em lugar
De capitão solitário, ter por par
Um bom marinheiro.
O mais prudente, à cautela,
É prevenir à partida qualquer sequela.
217 – Escravo
O senhor
É do escravo o opressor,
Mas também deste depende
Económica, emocionalmente…
Por aqui o escravo tende
A um poder que se mal sente.
Equilibram-se as fatias
Nalguns casos, alguns dias…
- É daqui que após provém
A aurora que mais convém.
218 – Capaz
Ser capaz de dar a vida
Pelo inatingível
Não é mera medida
De desporto.
Apenas indiscutível
É já estar, por tê-lo aceite, morto.
O mais
Que viso
São muralhas e portões reais
Para além do horizonte que diviso.
Assim é que aquela morte é vida,
Vida para além de toda e qualquer medida.
219 – Períodos
Após longos períodos sem outro ambiente,
Os presos acabam receando
O mundo para lá da prisão.
Se todos os portões se abrirem de repente,
Muitos dos presos ir-se-ão deixando
Ficar onde estão.
Ora, vivemos todos presos neste planeta,
Timoratos, à espreita…
- Quem se atreve, quem se atreve
Para além deste espaço breve?
220 – Absurda
Absurda a vida declarar
É negar
Que um sentido
Lhe possamos um dia dar
Que valha a pena ser vivido.
Se ambígua for declarada,
Abro uma estrada
Para um sentido
Ainda por ser atingido,
Que então configuro em frente
Como uma conquista permanente.
221 – Minimamente
Reflectimos, vimo-nos em apuros
Para atirgir caminhos
Minimamente seguros.
Nossos ninhos
Numa região desenvolvida
Já não são de luta constante
Para vir a ter diante
A irremediável comida.
Ter tudo, porém, é um perigo
E um perigo bem maior
Que o do primeiro inimigo
A que tivemos de nos opor.
Se houver um objectivo,
Dele atingido o fim particular,
Se nada mais houver a ultrapassar,
De que vivo?
Mesmo Alexandre Magno chorou
Quando constatou
Não haver mais mundo a conquistar!
222 – Contribuis
A verdade
É que os céus
Têm uma fácil medida:
Se contribuis doutrem para a felicidade
Encontrarás o verdadeiro Deus
No verdadeiro sentido da vida.
223 – Ajudai-vos
Ajudai-vos a vós ajudando os mais.
O fio condutor, o fio
Para contrariar o vazio
É se os outros ajudais.
Isto dá-nos um sentido,
Um propósito inegável,
Descobre rumos que nem sequer hei pressentido,
Cego irremediável,
Liberta-me do cativeiro
De minha própria existência
Ao abrir-me o mundo inteiro
Da alheia mundividência.
É um luxo arguir
Que a vida não tem sentido:
Quem por sobreviver na luta persistir
Tem lá tempo de parar
E de pôr-se a cuidar
Que é que é dele destituído!
224 – Impacto
O impacto do tédio
Da falta de objectivos, no vazio,
Tem um remédio:
Retorno ao estado selvagem,
A refrescar a sensibilidade
No rio,
Na paisagem,
No píncaro que me agrade…
Após a domesticação e o cativeiro,
Uma lufada de ar puro
A clarificar por inteiro
À mente o que lhe apuro.
Tudo o que religue ao mundo natural
É o caminho mais seguro
Para reaver a perspectiva da vida real,
Onde como parte dum todo me inauguro:
Não mais um pedaço isolado, incidental,
Dum caos imenso e sem futuro,
Não um dente ocasional
Da enorme roda que me figuro
Sempre a girar, constante,
- Mas antes parte integral
Dum infinito conjunto eternamente vibrante.
225 – Enorme
Um enorme ideal,
Longínquo, inesgotável,
Pode ser a chave radical
Para uma vida plena inadiável.
Não é, porém, o fim do problema.
Perspectivas amplas em demasia
Nas grandes questões,
Um grande lema,
Levam a ignorar a valia
De que dispões
Num dia,
Num minuto de vida…
Quem lida
Com a imediata certeza
De não haver mais dias nem horas
Invalida
As demoras
Com uma clareza
Que a maioria
Nem sequer suspeitaria.
Saboreia então cada minuto
Prenhe de absoluto.
226 – Silêncio
Silêncio, trapo molhado,
Limpa-nos de vez o pó!
Das palavras a mente é prisioneira,
Dela o ritmo é o ritmo desordenado
Dos pensamentos, na canseira
De se atarem nó a nó.
Mas o coração pulsa, o coração
Respira em haustos promissores
Doutra harmonia,
E esta pulsação
Permite-nos entrar em sintonia
Com pulsações maiores,
Onde nem sequer nos chega a fantasia.
227 – Erro
O erro que sempre cometemos
É crer que a vida é imutável,
Que, mal escolhamos um carril,
Temos
De o seguir até ao fim, entre outros mil.
Ora, o destino é mais inimaginável
Do que nós.
Quando nos cremos num beco sem saída,
No cúmulo do desespero,
Logo após,
Uma rajada de vento tudo invalida,
Tudo transtorna com gesto severo,
E, sem mais nem menos,
Eis-nos vivendo, plenos,
Uma nova vida.
228 – Fácil
O mais fácil do mundo
É culpar terceiros,
Quando não queremos olhar fundo
Nossos pauis e lameiros.
Culpa exterior
Sempre existe.
Coragem é ter o pundonor
De assumir em nós a que em nós persiste.
É a única via consistente
De seguir em frente.
A vida é um percurso a prosseguir
E a verdade é que é sempre a subir.
Só bater no próprio peito
É da vitória o jeito.
229 – Repouso
O repouso na plenitude
É a utopia
De quem luta para o óptimo atingir.
E atingir o nada porventura teria
Igual virtude:
A perfeição do devir.
Tudo é nada,
Nada é tudo…
- Afinal, que é que me agrada
Naquilo com que me iludo?
230 – Pavor
Para o pavor de viver,
A perene saída:
A mim próprio me investir
Nos trilhos da vida,
Nos sinais me reconhecer,
Transmudar o mundo, de seguida,
Na trama dos símbolos por onde ir,
- Da cultura retomar o primeiro alvorecer
Da longa noite animal do ser.
231 – Recíproca
Na vida todos descobrem
Que a felicidade perfeita
É irrealizável.
Em contrapartida, encobrem
A verdade recíproca, mal afeita
Ao que por nós é pensável:
- A infelicidade perfeita
É igualmente irrealizável.
A nossa desgraça
E a nossa virtude
É que definitivamente nos ultrapassa
Qualquer dimensão de infinitude.
232 – Momento
Há na vida o momento repentino
Que tudo altera,
Desabam as seguranças,
Eis que me inclino
À quimera,
Adolescente de esperanças,
Do primeiro encontro ao cheiro de erva,
Ao apelo múrmuro do abismo…
Hora do encantamento serva,
De autoconfiança me crismo
E a triaga
Me desperta, me enerva
E me embriaga.
Repentinamente,
Ao acaso da sorte,
Sou semente, sou semente
De seguida,
- E sou morte
E sou Vida!
233 – Pó
Quem sacode o pó da solidão
Que pisam ágeis e distraídas
As pegadas da vida em turbilhão,
Estuantes de vigor, descomedidas?
Que é que faz a ponte
Para além da estreiteza do horizonte?
234 – Abissalmente
O que é humano
É abissalmente profundo
E sempre de passagem, como por engano.
Dura a fulguração dum raio
Mas, mal me distraio,
Já o trovão dela ribomba por todo o mundo.
235 – Prender
Quem não prender na ponta do anzol
Dos peixes o engodo preferido,
Na rocha desespera horas ao sol
Da pesca sem nada haver colhido.
Também no rio humano
Onde me ponho
Os peixes só respondem ao engano
Dum sonho.