TERCEIRO TROVÁRIO

 

 

 

O IMPERATIVO QUE O COTIO BRINDA AOS CÉUS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 236 e 372 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                236 – O imperativo que o cotio brinda aos céus

 

                                                O imperativo que o cotio brinda aos céus

Canto em meu verso de pegadas desenvoltas

Rimando a vida nos degraus que forem meus,

Termo com termo, acto com acto, infante deus

Gerando um mundo destas mãos à roda soltas.

 

Canto o bom senso do equilíbrio dia a dia,

Sabedoria refinada tempo além,

Das profundezas a luz pura que alumia

Cada caminho de hora a hora a abrir também.

 

São os meus actos e do bem toda a peneira

Que rasgam terra nesta terra de ninguém,

Nestas palavras verso a verso abrindo a jeira.

 

Sabendo agir em qualquer ponto, hausto qualquer,

É mais que agir, é ser poema, enfim é Ser.               

 

 

37 - Preocupa

 

Quem faz a diferença

Não o faz pelas credenciais.

O que leva a que vença

E convença

É que se preocupa mais.

 

 

238 – Azedume

 

O azedume só convém

Se se perde por um triz:

Um passo além

E tudo fora doutro cariz.

 

A cortesia,

Quando a derrota fora

Aniquiladora,

É a única via.

 

 

239 – Muda

 

Quando te defrontas

Com o que não podes mudar,

Muda o modo de pensar.

 

Quando para tal apontas,

Mudar de mentalidade

Poderá significar

Que da vida a identidade

Mudaste em tudo o que aprontas.

 

 

240 – Formas

 

Quantas formas diversas de verdade!

Não é tão fácil assim:

Mesmo que eu a fale,

Podes não ser capaz de a escutar de mim.

Nesta corformidade,

O que quer que eu diga ou cale,

Por mais que o confira,

Para ti será sempre então mentira.

 

 

241 – Controlo

 

Controlo o animal

Que mora dentro de mim.

É meu parceiro vital,

Dele, porém, sou eu o amo

Até ao fim,

E não o escravo.

Ora, é assim

Que deveras o amo,

Conforme o açulo ou o travo

No porão de meu bergantim,

Enquanto as ondas do mar cavo

Corto da vida que conclamo

E deste modo lentamente desagravo.

 

 

242 – Mestre

 

És mestre e, por aqui,

Devieste humano:

Dominas o animal que há dentro de ti.

Toma, porém, sentido,

Não vás cair no engano:

- Dá-lhe aquilo que lhe é devido,

Ou frustrado, de ronha,

Logo ele te empeçonha.

  

 

243 – Hausto

 

O hausto da vida, ao nascer,

É comparado

Com enorme esforço e dor.

Quem de lutar tiver

Dele pelos brinquedos de agrado,

Como o recém-nado

Para à vida se impor,

Muito feliz há-de ser

E rico!

 

Como as facilidades por ora vão,

O que nelas verifico

É uma desilusão:

- Que pena a pobreza

De toda esta riqueza!

 

 

244 – Cidadania

 

Cidadania é atitude,

De espírito um estado,

A convicção emocional

Da virtude

Dum dado

Radical:

Um todo é maior do que uma parte.

E desta parte o dever

Será, destarte,

Humildemente se orgulhar

De se sacrificar

Para o todo poder viver.

 

 

245 – Lugar

 

Com que então, ser o primeiro!

Porque ele o foi, ela também,

Todos no lugar cimeiro,

Terei também de ser primeiro?

 

Aquilo que me convém,

Nem primeiro, nem segundo,

Nem sequer é o derradeiro.

Percorro o mundo,

Não me alinho com quenquer,

Não me presto ao rapapé,

Prefiro a minha medida:

- Quem si próprio quiser ser,

Único em sua libré,

Fora está de tal corrida.

 

 

246 – Vontade

 

Quando há vontade de agradar

Deverei ser indulgente,

Tanto bate o mar

Que um dia dá-me a praia de presente.

Quando um homem faz o que pode

Com os limitados pavios

E fios

Do que na vida lhe acode,

Vantagem tem alta

E merece mais elogios

Que o negligente a que nada falta.

 

 

247 – Jogar

 

Jogar com o sacrifício,

Jogar com a poesia,

É abordar o quotidiano com o resquício

Dum apelo à transcendência,

Para lhe suportar a agonia

Da falência.

 

 

248 – Fascina

 

O que fascina corrompe

E o que se ama,

Fracturada nossa trama

Pelo livre arbítrio que a rompe,

Bem nos pode destruir.

 

Todo o grande coração

Propende a uma irrealidade

Que, a seguir,

Como a peste, o furacão,

Se abate na Humanidade

Causando por todo o mundo

Um dano imenso e profundo.

 

Só enraizando-o no chão,

Comedido,

Se lhe logra estancar o sangue vertido.

 

 

249 – Prestes

 

A sabedoria,

Prestes sempre a evaporar-se,

Do desejo como é ténue fatia,

Só é veste que não se esgarce

Pelo pendor inarticulável:

De espírito a pobreza.

 

Ao materializar imaginário viável

Não abandones dos pés a ligeireza

Capaz de trocar as voltas,

Com breve leveza,

Aos desejos negros que de ti soltas.

 

 

250 – Devoradora

 

A morte,

A mais devoradora das paixões,

Remata a sorte:

Ponto final nas ilusões.

 

Esta impaciência

É entrar em profundidade,

Ante a própria decadência,

Da morte na identidade.

 

Privando-se do prazer da vida,

Não renuncia:

Descobre como a Natureza na Morte resumia

Do inteiro Universo a perdida

Magia

E então por inteiro se lhe entrega

Após a derradeira refrega.

 

 

251 – Desejável

 

Mesmo uma identificação

Com a espécie humana inteira

Não é a derradeira

Desejável condição.

 

Se vivemos um respeito profundo

Pelos demais humanos

Como recipientes de quatro biliões e meio de anos

De evolução da vida no mundo,

 

Por que não aplicá-lo além,

A todos os organismos,

Produtos também

Dos mesmos mecanismos?

 

Importamo-nos com uma ínfima fracção,

O gato, a vaca, a galinha, o cão,

 

- Porque úteis ou agradáveis.

Mas aranhas, cobras, salamandras, sáveis,

Mosquitos, achegãs…

- São, benéficos ou malsãos,

Por igual nossos irmãos

E irmãs.

 

 

252 – Humano

 

O ser humano apenas pode sobreviver

Matando qualquer outro ser.

Uma compensação ecológica pode, porém,

Tentar empreender,

Outros organismos cultivando também,

Protegendo florestas,

Evitando a matança indiscriminada,

Focas, baleias e outras bestas

Garantindo em reserva vigiada,

Banindo a caça destas,

Benéficas embora de entrada

Ou molestas…

 

- O ambiente da Terra deviria, como dantes,

Mais habitável a todos os habitantes.

 

 

253 – Ritmo

 

O ritmo da mudança

Não pode continuar indefinidamente

Mesmo se o limite o não alcança

Ainda o presente.

 

A velocidade de comunicação

Mostra e produz

Fronteiras que se nos imporão:

As da velocidade da luz.

Ninguém mais depressa

Que ela atravessa.

 

População maior

Que a que pode ser mantida

Não é de supor

Que à Terra seja permitida.

 

O ritmo da mudança

Qualquer dia encrava a dança.

 

 

254 – Teoria

 

Quando a teoria não é adequada

A única abordagem realista

É a experimental.

Experiência contraprovada

É a pedra de toque do cientista,

De último recurso tribunal.

 

Do que precisamos, antes de mais,

É de comunidades experimentais.

 

Era o fim da crendice, da superstição,

Do dogma, do catecismo,

Era a sem-razão

Do fundamentalismo…

 

Sem mais alibi

Enraizados no chão,

Aqui, finalmente aqui

À mão!

 

 

255 – Diminuir

 

O maior nacionalista

Há-de reconsiderar

O ponto de vista

Quando reparar

Na Terra a dimunuir gradualmente,

De débil crescente

A minúsculo ponto luminoso

Perdido entre biliões de estrelas.

O espaço permite calibrar

O nada tão nada que nem falá-lo ouso

Deste Planeta perdido,

Sem bússola nem velas,

Num Universo imenso e desconhecido.

 

 

256 – Geocentrismo

 

Não é didáctico

Mas aquilo em que confio:

Há um geocentrismo prático

Em nossa vida de cotio:

Falamos de sol-nascente

E poente,

E não há no mundo moda

Que afirme que a Terra roda.

Ainda olhamos o Universo

Como se fora organizado

Em nosso proveito,

De tal jeito

Que, em inúmeras migalhas disperso,

Apenas por nós seria povoado.

 

A espacial exploração da infinidade

Trazer-nos-á também,

Como convém,

Um pouco de realística humildade.

 

 

257 – Suprir

 

Suprir o metal pode-o quenquer

Mas não a tecnologia,

Nem o apego ao trabalho que houver,

Nem o engenho subtil e o que anuncia…

 

Não há nada, não há nada,

Quando alguém isto esbanjar,

Que coloquemos na bancada

Em lugar.

 

 

258 – Dogmas

 

De dogmas arrepelam crinas,

Insultam de ritos o mau feitio…

Orgulho de teólogos cujas sinas

Contraditórias verdades

Detêm no mesmo rio.

E nunca os persuades

De que tais gotas e borrifos

Fazem parte das ondas, das vagas,

Não de seus estreitos cacifos

A que mutuamente rogam pragas,

- Fazem parte da mole imensa, do fulgor

Do mesmo mar do Criador!

  

 

259 – Carreiras

 

As carreiras profissionais,

Tal como os foguetões,

Nem sempre arrancam, leais,

Na hora marcada pelas pretensões.

Para lhes garantirmos os favores,

A melhor das soluções

É aperfeiçoar os motores.

 

 

260 – Frágil

 

A mais frágil criatura,

Ao concentrar energias

Num único ser ou objecto,

Vitoriosa muitas vezes apura,

Dela pelas débeis vias,

Seu projecto.

 

A mais forte,

Se espalhar a força,

Joga a sorte

Na estrada,

E ao fim, do muito que se esforça,

Não logra realizar nada.

 

 

261 – Natureza

 

Com a natureza colaborando

Sem, ao invés, a violentar,

Vamos a doença curar,

Tal qual como a economia:

É só dar-lhe um jeito brando

Que a ajude na própria via.

 

As desgraças

Vêm de trocar-lhe as traças.

 

 

262 – Anos

 

Quanto mais os anos morrerm

Mais me importa encontrar na vida

A Beleza

De que pareço troçar ou que me despreza

Nos objectos que das mãos me correm

Por medida.

 

Ao menos, encontrar a plenitude

Que fruir o Belo consigo

Deveria trazer,

Alguma beatitude,

A dar-me obrigo.

 

Encontramo-nos à deriva

Entre o que por dentro somos

E o que, obrigados por esta época furtiva,

Nela pomos.

 

 

263 – Escrevo

 

Quando escrevo, nego

O que o Estado quer fazer

Quando julga que escreve:

Dele pego

No dever

E revelo quanto deve.

 

Nego o que o Estado escreve

Quando julga que o faz:

Nego que se atreva ao que se atreve

Quando a um Povo jamais nos satisfaz.

 

 

264 – Meias

 

Aquele que tudo embeleza

Triunfalistamente

Ou tudo transfigura por piedade,

Como o que tudo despreza

Cinicamente

Em agressividade,

- Todos são meia verdade

E, portanto, meio erro,

Nenhum transpõe o fatigado cerro

Da seriedade.

 

Tanto o ódio como o amor

Podem ser clarividentes

Como também, entrementes,

Cegos nos poderão pôr.

 

No teso da serrania,

A meio de cada pendor,

Aí é que a verdade espia,

Da imensidão esplendor.

 

 

265 – Felicidade

 

Felicidade deveras

Tem pontas de sofrimento.

Não vem de extraordinárias

Esferas,

De lançar mão, a todo o momento,

De arbitrárias

Medidas artificiais,

Nem de cultivar perene bom humor

Com esforços sobre-humanais.

 

Ser feliz é me propor,

Para além da miséria sem fim

E da dor que exista,

Dar à vida um sim

Realista.

  

 

266 – Reparar

 

A cristandade esvaziou-se do cristianismo

Sem bem reparar em tal.

Para reparar o abismo

Cumpre-nos, afinal,

Reintroduzir o cristianismo de verdade

Na cristandade.

 

- E nisto quantas vezes o ateu

É o mais fiel mensageiro do céu!

 

 

267 – Meio

 

Meio brasileiro e meio português

Poderei ser,

Cidadão de dois países a que me irmano,

Apegado e cortês.

 

É, porém, difícil ver

Como ser meio cristão e meio muçulmano.

Não há perfil deste jaez:

- Não é vinda

Para assumi-lo quenquer

A hora ainda?

 

 

268 – Espírito

 

O espírito do Nazareno logrou romper,

Apesar das falhas de indivíduos, igrejas, reinos,

Quando os fiéis, descontentes da palavra mera,

Desataram a segui-lo na esfera

Dos tenteios, dos gestos, dos treinos

Ante quanto ocorrer:

A verdade cristã não é tanto para conhecer,

Nem é para olhar, à espera,

- É verdade para tratar de viver!

 

 

269 – Cobra

 

Como a cobra abandona a pele velha,

Já me não vejo

No que a vida aconselha

E a que a juventude inclina:

Nem de ter mestres me resta o desejo,

Nem de escutar doutrina.

 

Não, não é que tudo saiba:

É que bem menos ilusão há que em mim caiba.

 

 

270 – Convém

 

Eis o tom

Que convém a teu teor:

Escrever é bom,

Pensar é melhor.

 

E, para não agires à toa,

Convém-te supor:

A inteligência é boa,

A paciência é melhor.

 

 

271 – Caminho

 

Onde me conduzirá

Este meu caminho ainda?

Às curvas para aqui, para acolá,

É um caminho louco,

Onde à loucura sobrevinda

Me adiantarei decerto pouco,

Que ele andará, de vez,

Em círculos talvez.

 

Vá embora por onde quiser,

Minha lei

Não tem por onde escolher:

- Segui-lo-ei.

 

 

272 – Aprendi

 

Aprendi, quando criança,

Que os prazeres do mundo e a riqueza

Não são bons para o que os alcança

E preza.

 

Há muito o sabia,

Apenas agora, porém, o vivi:

Não é só memória e fantasia

Que tenho aqui,

Mas meus olhos, meu coração,

Meu estômago, cada mão…

 

Senão, em mim quem era rei?

- Ainda bem que agora sei!

 

 

273 – Retorno

 

O que até ao fim

Não é suportado e resolvido

Retorna então assim,

Procurando consumar o próprio sentido:

- Enfrentamos a todo o momento

Sempre o mesmo primitivo sofrimento.

 

 

274 – Meta

 

Quando alguém procura

Pode ocorrer que dele os olhos

Apenas o que procura vejam

E então de facto sejam

Escolhos

Em tal postura:

Não permitem encontrá-lo

Porque ele vive possuído

Pela meta do regalo,

Como objectivo

Obsessivo

Que lhe tapa vista e ouvido.

 

Procurar é ter um horizonte

E então encontrar é ser liberto,

Manter-se aberto

Para erguer a ponte

Onde aflorar um gesto vivo,

E nunca acabar a monte,

Prisioneiro dum objectivo.

 

 

275 – Partilhar

 

Podemos partilhar conhecimentos,

Não a sabedoria.

Podemos encontrá-la entre os eventos,

Vivê-la para além da fantasia,

Ganhar relevo com ela,

Com ela gerar maravilhas,

Que lhe não comunicamos nenhuma parcela,

Não a ensinamos, isoladas ilhas.

 

Convém pressenti-lo,

Cada qual um aprendiz,

Que colher dos mestres aquilo

É o que mestres gera de raiz.

 

 

276 – Meditação

 

Tem a meditação profunda

De abolir o tempo a possibilidade,

De ver simultânea, em procissão jucunda,

Toda a vida

Outrora acontecida,

A que hoje acontece

E a que há-de

Vir a acontecer.

E aí tudo é bom, tudo é perfeito,

Tudo é Ser.

 

Por isso o Todo a eito

Me parece

Bom:

Pecado e santidade,

Morte e vida,

Sensatez e loucura,

Toda a figura

É requerida

De fundo naquele tom

E só quer minha vontade

Afectuosa.

Então, sendo tudo bom para mim,

Apenas me pode encorajar,

Não molestar.

E quem o mundo goza,

Enfim,

É quem lhe permitir ser como for,

Para poder amá-lo

Com o devido fervor,

Sem nele introduzir o próprio abalo.

E feliz ser

Pelo milagre simples de lhe pertencer.

 

 

277 – Contado

 

A palavra não faz bem ao sentido oculto,

O igual devém um pouco diferente,

Mesmo contado em voz de culto

É um pouco falseado, louco, demente.

 

Mas é bom e agrada também

Que o que é para uns tesoiro e sabedoria,

A fonte da alegria,

Seja sempre uma loucura para alguém.

 

Assim se mantém perenemente vivo

O pendor do que é fatalmente esquivo.

 

 

278 – Verdade

 

A verdade desesperante

Prefira

Sempre a qualquer repugnante

Mentira.

 

A não ser que queira

Tombar, a prazo, na jeira.

 

 

279 – Silêncio

 

O silêncio dos páramos infinitos

Envolve o frenesim humano

Dissolvendo gestos e gritos,

Diluindo a  mágoa

Da mancheia de pó que, no desengano,

Se esboroa dentro do infindo oceano

Como em água.

 

 

280 – Grande

 

Se um grande homem não tem moralidade,

É sinal

De que a moralidade pouco vale:

Importante,

Então, de verdade,

É devir tal

Grande homem adiante.

 

Tal é a lógica infantil,

Não lhe escapa um em mil.

 

 

281 – Músico

 

De músico para um coração

Tudo é música, tudo:

O que vibra, agita e pulsa no Verão,

As  noites em que o vento apita agudo,

A luz a fluir, os astros a piscar,

A tempestade, das aves o canto,

Os insectos a zumbir,

As árvores a fremir,

A voz que amar ou detestar,

Ruídos familiares do lar,

A porta que range entretanto,

O silêncio a latejar

Numa qualquer noite de encanto…

 

É música tudo o que existe

De músico para um coração.

Através de tudo subsiste,

Veste de gala

O serão.

 

A questão

É dar-lhe a fala:

- É de vez interpretá-la.

 

 

282 – Cruel

 

É cruel para os pobres

Prenderem-se ao passado,

Que não têm direito, como os ricos,

A um passado que lhes cobres:

Não têm casa, nem monte, nem valado,

De jóias as arestas, de alfinetes os picos,

Onde as recordações guardar.

 

Deles a alegria

E o pesar,

A euforia

E o tormento

São cada dia

Em demasia

Dispersos ao vento.

Não deixam memória os pobres

Que algum dia lhes cobres.

 

 

283 – Maioria

 

A maioria morre

Dos vinte aos trinta anos.

O período decorre,

Depois tudo são enganos,

Nada mais do que um reflexo

Deles próprios vida fora,

Num inútil auto-amplexo

Que o que foram lhes rememora.

 

Imitam-se, repetindo,

Mecânica e caricaturalmente,

O que disseram, indo e vindo

De outrora até ao presente,

O que fizeram,

Pensaram,

- O que amaram

Nos tempos idos em que eram.

 

 

284 – Rumos

 

Ninguém faz o que quer,

São dois rumos divergentes

Querer e viver.

A tal importa se conformar,

Com as atitudes convenientes

A quenquer.

Fundamental, os pés assentes,

É não se cansar

De viver e querer.

 

O resto,

Após,

É todo o apresto

Que não depende de nós.

 

 

285 – Cuida

 

Cuida bem do dia de hoje,

Põe de parte as teorias,

Foge

Das fantasias!

 

Ideologias,

Mesmo as da virtude,

São tolas e fazem mal.

Não violentes a vida,

Vive o dia presente,

Único que não te ilude,

Real.

Ama a aurora que convida,

Florescente,

Não a macules nem impeças.

 

Mesmo quando tropeças

No que for cinzento e triste,

Não te inquietes!

O Inverno existe,

Tudo dorme e o que projectes

Vai fecundar terra boa.

Aguarda, paciente,

Que não há-de ser à toa

Que tudo correrá bem.

Se não triunfas, alguém

Te impede de andar contente?

O melhor é ser feliz.

Não tens poder para mais?

Por que então buscar fanais

Além de teus peitoris?

Não te entristeças

Do que não podes fazer,

Basta que meças

Aquilo que podes.

Se a tal acodes,

Aqui termina teu dever.

 

 

286 – Sol

 

Alegria,

Sol que ilumina

O que é e o que há-de germinar

Algum dia,

Alegria divina

De criar!

 

Além do que cria

Outro ser não há,

Que os outros sombras são

Pela terra a adejar,

Estranhos à vida que se dá

No amor, no génio, na acção,

Labaredas de força da mesma fogueira.

Mesmo os que não encontram lugar

Ao redor da grande lareira,

Os ambiciosos, egoístas, depravados,

No que auguram

Aquecer-se procuram

Dela nos reflexos descorados.

 

 

287 – Desgraçado

 

Desgraçado de quem não vive fecundo,

Pejado de vida e de amor,

Como na Primavera do mundo

Árvore em flor!

 

Cumulam-no de honrarias e verbenas?

- Um cadáver coroam apenas!

 

 

288 – Ideias

 

Quase sempre as ideias se revelam

Em estado bruto

E do caos onde melam

Urge retirá-las penosamente,

Com jeito arguto

E persistente.

 

Brotam as ideias sem continuidade,

Em bruscas explosões,

E, para as ligar,

À fina razão e à fria vontade

É imprescindível apelar,

A fim de com elas tecer

Os tendões

Dum novo ser.

Não, não é um dado

Gratuito,

É um dom muito,

Muito suado.

 

 

289 – Idade

 

Há uma idade na vida

Em que é de ousar ser injusto,

Fazer tábua rasa de admirações,

Da medida

E do custo,

Dos respeitos aprendidos

E negar mentiras e verdades,

Todas as razões

Em que a razão por ela mesma nem sentidos

Nem objectividades

Reconheça.

 

A criança,

Por toda a educação,

Por quanto a vista e o ouvido meça,

Por quanto alcança,

De mentiras e idiotices absorve tal aluvião,

 

Misturadas às pedras angulares da vida,

Que o primeiro dever do adolescente

Que homem quer ser de fronte erguida

É vomitar tudo, repentinamente.

 

 

290 – Ordem

 

A ordem, a ordem

E outra não conheceis que a da polícia,

Os caminhos trilhados que mordem

O génio com sevícia.

 

Ao invés de se deixar levar,

O génio a ordem cria,

Erige a vontade singular

Em lei onde tudo principia.

 

 

291 – Horror

 

Tenho horror aos rebanhos de carneiros

Que uns aos outros precisam de se encostar

Para berrarem juntos, todos muito ordeiros,

No lugar.

 

Gritem aos carneiros que eu sou lobo,

Tenho dentes de ferrar

Tudo o que deles vislumbro e englobo,

Que não fui feito para pastar!

  

 

292 – Medo

 

Que medo tens da luz intensa,

Da brutalidade dos gestos,

De termos de ofensa,

Das paixões da vida em teus aprestos!

 

Ora, a vida não é refinada,

Merenda a gosto pão e uvas

Da latada.

 

A vida não se agarra com luvas,

Ocorre de empreitada,

Ora à soalheira, ora às chuvas,

Tem de ser pelos cornos agarrada!

 

 

293 – Povo

 

Quando um povo envelhece,

Abdica da vontade, da fé, das razões de viver,

Depondo-as na mão refece

Da mulher dispensadora de prazer.

 

Do que investes cobras

O que os montantes somem:

Os homens fazem as obras,

As mulheres fazem o homem.

 

E, quando elas são de tal jaez,

Desfazem o que ele fez.

 

 

294 – Ébrios

 

Vivemos ébrios de liberdade

E, após delirar,

Cairemos em coma.

Quando cada um acordar,

Assoma

O que a cada qual ameia:

Há-de

Encontrar-se na cadeia.

 

 

295 – Escrever

 

Escrever por escrever?

Vê lá bem que é que apalavras,

Em que é que, enfim, repoisas:

- Ao dizer,

Não digas palavras,

Diz coisas!

 

 

296 – Importa-lhe

 

Importa-lhe com algo se ocupar,

Não lhe importa aquilo de que se ocupa?

Trabalho febril a tricotar

Da mulher, entre mãos, em catadupa,

As agulhas sem descanso a tilintar

Como se do mundo a salvação

Dependera de tão frenética laboração,

Para depois ninguém saber

De tudo aquilo, afinal, que fazer…

 

Além disto, em tal obreiro

Há uma vaidade de mulher honesta

A dar, com o exemplo cimeiro,

Uma lição ao mundo que não presta!

 

Nem vale a pena o aviso:

A pretensão

Da falta de siso

Não tem perdão.

 

 

297 – Cosmopolitas

 

Não trabalham para a razão

Da razão os paladinos,

Trabalham para um oportunista malsão:

O partido dos cosmopolitas ladinos

Que espezinham alegremente a tradição

Dos povos e do país

E cuja intenção

Não é, de raiz,

Destruir uma fé para implantar

Outra dela no lugar,

Mas antes, mal os outros não reparem,

- Para a eles próprios se instalarem.

 

 

298 – Fé

 

A fé será uma atitude

Das que a gente refinada menos perdoa

Pela razão de que a perdeu.

E, sem virtude,

Na hostilidade surda e irónica com que caçoa

Do sonho de céu

Da juventude,

Intervém, em grande parte,

A nota amarga de que eles próprios foram assim,

Com a ambição que entre os novos se reparte,

E a não realizaram por fim.

 

Os que as próprias almas renegaram,

Que neles traziam obras

Que não arroteiam nem aram,

Pensam, entre as migalhas das sobras:

“Já que não pude o que sonhei,

Por que o poderiam eles?

Não, não, jamais tolerarei…

Morte aos imbeles!”

  

 

299 – Ânimo

 

Jamais contemos o que obramos

Antes de o haver obrado,

Senão talvez não tenhamos

Ânimo de o levar a cabo:

Já não seria a própria ideia

Mas a doutrem, invocável,

De que finda a mente cheia

- E era alheia a terra arável.

 

 

300 – Público

 

O público comprara:

Suprema lei de qualquer arte!

 

E ninguém repara

Que deve ser posto de parte

O testemunho dum público depravado

Em proveito dos que o travam.

O artista tem o mandado

De farol ser dos que, perdidos, erravam,

Não são os errantes

Que podem ditar génios navegantes.

 

Do número a religião,

Dos milhares de leitores, do montante das receitas,

Domina a artística razão

Nas democracias degeneradas,

Afeitas

A ser mercantilizadas.

O crítico, o autor

Docilmente irão decretar

Que da obra de arte a finalidade-mor

É de agradar.

 

O lucro é a lei.

Ora, enquanto o lucro dura,

Nada mais farei

Que inclinar-me à ditadura?

 

 

301 – Condenar-se

 

Quem é capaz de condenar-se, por dever,

Ao inferno?

A opinião geral ousar deter,

Combate eterno

Contra a pública imbecilidade,

Dos triunfadores do dia

Pôr a nu a mediocridade,

Defender a magia

Do artista desconhecido,

Sozinho entregue às feras,

Impor os espíritos-príncipes no olvido

Ao espírito-esmoler,

Feito em todas as eras

Para obedecer?

 

 

302 – Aguardar

 

Resta aguardar apenas

Que escoe a inundação.

Ela não corroerá o granito das empenas

Do Homem são

E, sob a lama que ela extravasar,

Havemos de tocá-lo.

Agora já, por todo o lugar,

Andam os altos cumes a aflorar,

Emergindo firmes do abalo.

 

- O que importa é neles ancorar

A dor e o regalo.

 

 

303 – Coragem

 

A razão, a liberdade, a vida a desposar

Há padres admiráveis:

Têm a coragem de se fazer baptizar

Homens, Homens inteiros e fiáveis,

Reivindicando o direitro de tudo compreender,

De se unir a qualquer pensamento leal,

Pois o pensamento leal, todo e qualquer,

Mesmo quando é um desatino,

Quando se engana, parcial,

É, afinal,

Sagrado e divino.

 

 

304 – Brilho

 

Se o que dá brilho à existência

É a intensidade da luta

Que exalta todas as energias da vivência

Até ao sacrifício pelo mundo superior

De que ainda não desfruta,

Poucos combates mais honram da vida o vigor

Que a batalha pela razão ou contra ela.

E aos que lhe provaram o áspero sabor

A tolerância do irrazoável apática e servil

É uma sequela

Insulsa e pouco viril.

 

Das ideias no redil

Não há que tolerar a camuflagem velha

Do lobo com pele de ovelha,

Ou não haverá mal que se não perfile:

 

Das ideias fora da cerca,

Onde a tolerância entre pessoas deve ter lugar,

Tudo então será perca.

 

À tolerância

Entre nós não a logramos cultivar,

Uma vez solta a quadrilha da ganância,

A coberto da impunidade a campear

De qualquer errância.

 

305 – Fumador

 

Vossa alegria é um engodo,

Sonho dum fumador opiado.

Embriagais-vos de liberdade,

Como se ela fora o todo,

Pondes a vida de lado.

Liberdade absoluta é vacuidade:

Para o espírito é loucura,

Anarquia para o Estado.

 

Quem é que livre se apura?

Apenas o canalha.

 

O melhor é asfixiado,

Nada lhe resta na calha

Senão sonhar.

E em breve, pragana de palha

Que o vento leva,

Nem isto lhe irá restar

No meio da treva:

Não fica nada que valha.

 

 

306 – Satisfeitíssimo

 

Satisfeitíssimo com as páginas eloquentes

Que, de facto, não valem nada,

Nada lhe importam as auras da madrugada

Que forem excelentes.

 

Crê que assim é deveras grande

Com direito a que sobre tudo e todos mande.

 

E é, portanto, assim

Que a tudo o que é grande nos põe fim.

 

 

307 – Perdoar

 

Para perdoar aos patifes

Dizem que já são infelizes

Ou então irresponsáveis,

Não merecem os esquifes

Que lhes gizes,

Confiáveis.

 

Infelizes, é mentira,

Podem bem felizes ser.

Irresponsabilidade

Tolice é de quem delira,

Não quer ver

A realidade.

 

Um criminoso bem pode

Ser perfeitamente são.

A virtude não acode

Naturalmente no chão,

É um germe da humanidade

Edificado

Por um punhado

Dos mais nobres e mais fortes.

Que lhe defenda a sanidade

Contra as perdas e os cortes

É um prioritário dever.

 

Obra heróica e de brasão

Ameaçada sempre por tanta falha,

É de a não deixar corroer

Por qualquer alma de cão

Da canalha.

 

 

308 – Mortos

 

O caminho mais seguro

De nossos mortos para nos aproximarmos

Não é morrer mas viver com apuro,

Pois vivem com nossa vida e, se hesitarmos,

Ditamos-lhes a sorte:

- Morrem com a nossa morte.

 

 

309 – Favorecem

 

Sorte e génio favorecem apenas

Os povos que souberam merecê-los

Através de séculos de penas,

Pela fé, pelo trabalho, da paciência aos apelos

Sofridos e singelos.

 

Sorte e génio

Não se atingem por convénio.

 

É no sangue e no suor

Que o selo vêm apor.

 

 

310 – Tolerantes

 

Podemos e devemos

Ser tolerantes e humanos,

Mas o que bom e verdadeiro julguemos

Causa danos

Quando o suspendemos.

 

Aquilo em que cremos

Deve ser defendido.

Sejam quais forem as forças que temos,

Abdicar é proibido.

 

Tem neste mundo um dever

O menor como o maior.

E tem um poder.

Ninguém pode supor

Que a revolta isolada seja vã:

Uma consciência forte

Que ousa afirmar-se à barbacã

É uma potência e traça o norte.

 

 

311 – Contentar-nos

 

Devemos contentar-nos com o que temos.

Se nos ofertam algo, tanto melhor!

Senão, passar bem podemos

Sem tal supor.

 

Pelo facto de não ter bolo

Não há motivo para crer que o pão não presta,

Mormente se o pão duro foi meu colo

Com a fome a dormir em mim a sesta.

 

 

312 – Inteiro

 

Põe-te inteiro no que fazes,

Pensa o que pensas,

Sente o que sentes!

Contigo faz as pazes,

Vive-as, intensas,

Entrementes.

 

Que teu coração,

Reposta a calma,

A teus escritos imponha a demão:

O estilo é a alma.

 

 

313 – Rápido

 

Pobre de quem se acostuma

Tão rápido à felicidade!

Quando à felicidade se resuma

Da vida a única finalidade,

Em breve fica sem meta:

Hábito, intoxicação,

Que ninguém roube a chupeta

A este bebé-chorão.

 

E como é forçoso

Aprender a viver sem ela!

A felicidade é um momento de gozo

No ritmo universal,

Um dos pólos da sequela

Entre os quais oscila, fatal,

O pêndulo da vida.

Para o pêndulo deter,

Só se por quenquer

For a vida destruída.

 

 

314 – Felicidade

 

Quem a felicidade por dar-se

Não sentir nem entender

O mais que tem a fazer

É desistir sem disfarce,

Pois nem merece viver.

 

 

315 – Perseverar

 

Para perseverar em arte

Requeiro mais que um génio natural:

Acolho paixões, dores que encham a vida,

Por onde esta inteira se reparte,

Que a meu gesto dêem um sentido visceral.

 

Doutro modo, desconfio,

Escrevo livros por medida,

Não crio.

 

 

316 – Píncaro

 

De tão ocupados

Em atingir o píncaro da montanha,

Nem reparamos no líquen dos rochedos escarpados,

Nas flores alpinas que a encosta ganha,

Nos fósseis que, ao longo do caminho,

Do tempo disperso

Nos murmuram um segredo adivinho,

Nosso lugar a dispor-nos no Universo.

 

Do mundo toda a boniteza

Perde o significado

Se para ela não estiver preparado

Quem a preza.

 

Na viagem,

Como na vida,

O equilíbrio da equipagem

É que empresta uma saída.

 

 

317 – Jogo

 

Da vida o jogo de cartas

Perdeste já

Se te aqui não inicias:

Do princípio nunca partas

De que outrem nunca fará

O que tu nunca farias.

 

 

318 – Lusíadas

 

“Os Lusíadas” não valem um milhão,

Pois não há nenhuma relação

Entre dinheiro

E obra de arte.

Esta não fica acima nem abaixo,

Mas aparte

Por inteiro:

Ela fatalmente mora

Do preço que lhe encaixo

Definitivamente fora.

 

Não se trata de a pagar,

A verdade é mais furtiva:

O que nos deve importar

É que o artista viva.

 

 

319 – Injustiça

 

Antes de combater a injustiça distante

Urge a próxima combater,

A que nos cerca diante,

Pela qual havemos de responder.

 

Muitos se contentam com protestar

Contra o mal por outrem feito

Sem reparar

No que eles próprios levam a efeito.

 

 

320 – Inesgotável

 

O povo é o inesgotável reservatório

Onde se perdem os rios do passado

E donde borbotam os do futuro.

Acaso com outro envoltório,

São muitas vezes, no traslado,

Os mesmos que inauguro.

E, quando isto falho,

É que me não vingou o trabalho.

 

 

321 – Retiro

 

Um retiro temporário

Tem, para o espírito, valia,

Obriga ao recolhimento solitário

Desde que dali saia algum dia.

 

A solidão é nobre

Mas é mortal

Para o artista que, pobre,

Dela não possa arrancar-se no final.

 

Embora ruidosa e impura,

Importa viver a vida real,

A única que assegura

Dar e receber constantemente

O caldo que nos alimente.

 

 

322 – Menos

 

A maior atracção

Vem do que menos se nos assemelha,

Ao menos nalgum aspecto, nalgum instante,

Pois a refeição

Nos oferta e aconselha

Mais abundante.

  

 

323 – Ataquem

 

Que me ataquem, me desmotivem:

Ao menos vivem!

 

Tem a vitalidade tal virtude

Que quem dela é desprovido,

Mesmo quando com tudo o mais se ilude,

Jamais como homem de bem

Por inteiro é entendido,

Pois homem completamente

Também

Não é nunca nem se sente.

 

Que me ataquem, me desmotivem:

Ao menos vivem!

 

 

324 – Ídolos

 

A Humanidade

De alegria, despreocupação, audácia irreverente

Tem necessidade

Ante os ídolos, mesmo o mais santo, omnipotente.

Viva o sal que reaviva a terra!

Cepticismo e fé são ambos indispensáveis:

O cepticismo a fé rói em que se enterra,

A fé nos inviáveis,

No que já passou, não tem porvir,

E assim abre lugar à fé que há-de vir.

 

Como tudo se ilumina,

Da vida ao nos distanciarmos,

Como ante o belo quadro de luz divina,

Ao repararmos

Como se funde em harmoniosa magia

Cada cor contrastante

Que de perto as mais repelia

Quando delas me punha diante!

 

 

325 – Indulgente

 

Sê indulgente com a fraqueza cometida,

Não transijas com a que está por cometer!

Como duvidar alguém da fé por que viveu?

Era renunciar à vida…

Que importa tentar-se alguém ver

De modo diferente do que se viu,

Seja para outrem copiar,

Seja para o poupar?

Era a si se destruir

Sem aproveitar a ninguém,

Pois o primeiro dever é o de cada qual

Assumir

O que for, como convém,

Ousar afirmar que algo vai bem

Ou vai mal.

 

Maior ajuda aos fracos

Prestaremos quando fortes

Seguirmos rumo tal,

Do que quebrando-nos em cacos

Que nem deles as mil mortes.

 

Cada qual

Deveria

A si próprio ser igual:

Eis o projecto

Que a todos um dia

Nos augura, eventual,

Um tecto.

 

 

326 – Centelha

 

Se o animal tivera uma centelha de razão,

Que atroz era o mundo para ele!

Homens indiferentes, cada qual mais patrão,

O estripam, o esquartejam, arrancam-lhe a pele,

Cozinham-no vivo, alegres da dor à contorção…

 

Haverá horrores tais

Entre os canibais?

Senão, então,

Que é isto da civilização?

 

 

327 – Fias

 

Demais te fias em tua força vã,

Torrente de montanha,

Cheia hoje, seca amanhã.

Um artista captura sem disfarce

O génio que amanha,

Não lhe permite dispersar-se.

Canaliza tua força,

A bons hábitos a constrange,

A um trabalho de cotio que a torça,

Que horas fixas lhe arranje.

 

Tão incontornáveis para o artista

Tais hábitos serão

Como o ritual da revista

Para os militares que bater-se irão.

Nos momentos de crise

De ferro esta armadura

Impede que a moral caia

Ou que a queda se eternize.

 

Temos do colo a brandura

Segura

Desta aia.

 

 

328 – Centésima

 

Se confessáramos a centésima parte

Dos sonhos que sonha um homem de bem,

Que estranhos ardores o sonho reparte

Pelo corpo da casta mulher que os retém,

- De escândalo que brado

Mais grado!

 

Silêncio aos monstros, fechemos as grades!

Reconhece, porém, que os monstros existem

E que dos recém-nados, se os não persuades,

Estão prestes a sair quantos se listem.

 

 

329 – Escol

 

Apenas para o escol restrito

Da tela dos séculos são as palavras a voz.

Para os mais é o viver deles descrito

E o do grupo a que os atem laços e nós.

 

Certas palavras, gastas pelo escol,

Por ele desprezadas,

Fora do rol

Das conversadas,

São casas vazias

Onde, deles após a partida,

Se instalartam, de seguida,

Novas energias.

 

Quem quiser,

De mente limpa e rasa,

O novo hóspede conhecer,

É entrar em casa.

 

 

330 – Esconde

 

O desejo de ser senhor

Esconde uma fraqueza.

A força é do teor

Da luz: cega

O que a nega

E despreza.

 

Sede fortes tranquilamente,

Sem a teoria nem a violência que vos desmente,

E, como as plantas para a luz,

Logo após,

Porque isto seduz,

As almas dos fracos voltar-se-ão para vós.

 

 

331 – Nuvens

 

Dissolvidas as nuvens do desgosto,

Sorvi a luz.

Recomposto,

Reparo no que a cura me produz:

Minha enfermeira,

Em cuja casa devia

Ter morado a vida inteira,

É a Filosofia.

 

 

332 – Dura

 

A vida dura um momento,

A matéria é fluir perene,

A percepção é um grosseiro acolhimento,

O corpo é carne que o tempo condene,

A vivência é um turbilhão,

A fortuna, fugidia…

 

Onde pode um homem encontrar um guião?

- Apenas na Filosofia.

 

 

333 – Desejo

 

Se todo o desejo é logo satisfeito,

Morremos de tédio,

Enjoados a eito.

O termo justo

Paga o custo

De apostar num ponto médio:

A nossa equilibração

É sempre entre um já e um ainda não.

 

 

334 – Debaixo

 

Quem na Primavera estiver

Debaixo da macieira

Maçãs não logrará ver,

Nem que a abane com canseira

Algum fruto há-de colher.

 

Se for no Outono, porém,

Basta-lhe estender a mão

E logo maçãs obtém

Em profusão.

 

Tentamos demasiado,

Às vezes,

Ou no momento errado,

O que o coração deseja

Há muitos dias ou meses

E se não veja.

 

Tentemos desejar

Com intensidade menor

Mas, para contrabalançar,

Em altura melhor.

 

A fruta, serôdia ou temporã,

Apenas amadurece

Na manhã

Em que acontece.

 

 

335 – Procura

 

A procura de utópica excelência,

Num hábito tornada,

Transforma-se num vício, na demência

Da jornada.

 

A virtude não pode ser

Inatingível objectivo:

Este tem de estar, por mais esquivo,

Ao alcance de quenquer.

 

Ou devirá doença

O melhor de nossa querença.

 

 

336 – Melhor

 

Procurar a melhor via

Permite o melhor partido

Numa boa conjuntura.

E da má que haja vivido

Assegura

Retirar

A mais-valia

Que nela pode ter lugar.

 

Procurar a melhor via

Tem selo de garantia

De em qualquer alvo acertar.

 

 

337 – Contrário

 

O que está certo

Demora

Se o contrário, longe ou perto,

O não provoca lá fora:

 

- Quem o veria

Se o contrário não existia?

 

 

338 – Alimento

 

Reconhecer que alimento uma ideia

Falsa e destrutiva

Não é substituí-la, mal ameia,

Por outra verdadeira e construtiva.

 

A convicção fundamente enraizada

Prega-se à lapela,

Não é por ser intelectualizada

Que nos vemos livres dela.

 

A convicção negativa

É reforçada

A cada nova recidiva

Experimentada.

 

Invertê-la

É acumular actos diferentes,

Trocar o rumo ao barco e à vela

Direito a outras correntes,

Trocar o muro de auto-destruição,

Pedra a pedra,

Pela auto-afirmação

Que, hora a hora, um gesto de cada vez, medra.

 

 

339 – Estuda-os

 

Quando vários deveres

Entram em conflito,

Estuda-os até onde puderes

Com o fito

De por fim veres

Que um deles, razoavelmente,

É o mais premente.

 

Não hesites então mais:

- Abre-lhe os portais!

 

 

340 – Homem

 

O homem nada pode esperar

Sem começar por entender

Que com ninguém pode contar

Senão com ele próprio, no que ocorrer.

 

De raiz, é só,

Abandonado na Terra,

Carregando, sem dó,

A infinda responsabilidade que o aterra,

Sem ajuda,

Sem outros objectivos

Nem esperança de muda

Que não os que ele tornar vivos,

Sem outro destino

Que não o que ele traça

Por entre o desatino

Do mundo que passa.

 

 

341 – Vise

 

Que a tua motivação

Vise outro porvir

Que o pagamento duma acção!

Não te deixes seduzir

Pela preguiça, pela inacção!

 

Que o trabalho bem feito,

Com ou sem suor,

Seja o teu amor,

Seja o teu preceito!

 

 

342 – Satisfação

 

A satisfação do dever cumprido

Deveria ser

A força que nos faz mover,

Ao abrigo dum princípio-mor,

Mais ou menos consciente e definido,

Que nos é superior,

E nunca o pagamento interesseiro

Do labor,

Dividido às fatias,

Em dinheiro

E outras regalias.

 

O cerne do melhor porvir:

Age como gostarias

De ver

O mundo inteiro agir.

 

Isto teu lema deveria ser,

No marasmo dos dias,

Se a marca tivéramos do dever

Por detrás das agonias.

 

 

343 – Tarefa

 

Se desempenhas a tarefa que tens à mão

De acordo com os ditames da razão,

 

Com seriedade, com vigor, com calma,

Sem deixares que nada te distraia a alma,

 

Se manténs limpa de ti próprio a parte divina

Como se a tiveras de devolver a quem ta destina,

 

Sem esperar nada mas satisfeito

Por estares a cumprir da razão natural o preceito,

 

Dizendo a verdade em cada palavra que murmuras,

Viverás no imo feliz – te asseguras.

 

E nenhum homem te há-de

Roubar a felicidade.

 

 

344 – Experimentarmos

 

Se não experimentarmos, pode ocorrer

Que jamais cheguemos a saber.

Mas, se não pudermos reflectir

Sobre o evento de experiência,

Nunca iremos conseguir

Que ele concorra, afinal,

Com consistência,

Como convém,

Para o trilho individual

De ninguém.

 

 

345 – Melhor

 

Melhor é cumprir nosso dever,

Mesmo com falhas,

Que cumprir o doutro qualquer,

Embora melhor que ninguém

Dominemos as malhas

Para o cumprir como convém.

 

Deixemos a cada qual o espaço

De imprimir ou não no mundo o próprio traço.

 

 

346 – Preserva

 

Quem melhor preserva a vida

Foge do tigre e do rinoceronte,

Escapa a quem lhe aponte

A mira erguida,

Na batalha não se deixa

Ficar por qualquer queixa,

Antes vela por não o atingir

Qualquer arma que bulir.

 

A fera não encontra então

Onde marrar

Nem lugar

De rasgar músculo nem tendão,

As armas não encontrarão

Onde alvejar.

 

Tal é com bestas e lutas.

E o mesmo é com um chefe ou um patrão

Se com ele disputas.

 

 

347 – Manténs-te

 

Manténs-te a meditar

Noite e dia na montanha,

Sem nada encetar,

Cuidando que tal te ganha

A condição de bendito

Eleito.

 

Se num tijolo repito

Um polimento com jeito,

 

Nunca tal eu aconselho

A quem quer torná-lo espelho.

 

Como queres, aí sentado,

Ver-te num eleito transmudado?

 

- Faz pela vida,

Ou nunca atingirás tua medida!

 

 

348 – Multidão

 

A multidão humana

Vive no desespero silencioso.

A resignação emana,

Confirmado

Aquele desespero mórbido, viscoso.

Os actos

De quem age não desesperado

São os dísticos

Característicos

Dos sensatos.

 

 

349 – Perdido

 

Duas vezes pôr os pés

Nas águas do mesmo rio

É o perdido revés

Do desafio.

 

Mesmo assim é preferível

Os pés refrescar numa torrente

Que num charco estagnado.

Mais aprazível

É, certamente,

E de saúde é um predicado.

 

A água tem de continuar a correr

Para da turbulência, do fosco,

Limpa e fresca se manter.

 

- O mesmo ocorre connosco!

 

 

350 – Vaidade

 

É vaidade pretender

Que sabemos exactamente

O que estamos a fazer.

 

E é vaidade igualmente

Saber que não sabemos

Mas pensar que deveríamos saber.

 

Afloramos a verdade

Quando temos

A humildade

De respeitar o mistério radical do ser.

 

 

351 – Serenidade

 

Deus me dê serenidade para aceitar

O que eu não puder mudar,

 

Coragem para mudar as coisas erradas

Que podem ser mudadas

 

E a sabedoria

Para as diferenciar em cada dia.

 

 

352 – Desvendar

 

Mantém-te aberto

A desvendar as subjacentes camadas

De qualquer apresto:

Fazer o que está certo

Pelas razões erradas

Não torna ninguém honesto.

 

 

353 – Único

 

Aos outros faz

Como queres que te façam a ti

-Terás

O único verdadeiro alibi.

 

Os restantes decorrentes itinerários

Serão meros corolários.

 

 

354 – Justiça

 

A equidade

É melhor

Que a justiça cega:

O grau de generalidade

Corrige do legislador,

Nega

Da lei a falha

No caso concreto que lhe calha.

 

 

355 – Apreciar

 

Se a vida não é mais que um acidente

Estranhamente imprevisível,

Mais motivos temos, é evidente,

Para apreciar algo tão incrível.

 

Se do nada viemos

E ao nada retornamos,

Então celebremos

A imprevisibilidade da vida que fruamos,

Literalmente

Insubstituível,

O tempo que no mundo passamos

É precioso, precioso, precioso!

Por isso, vivamos

Duma vida autêntica o desafio e o gozo:

Jamais com afastamento

Relativamente a ela,

Antes com todo o envolvimento

A que apela.

 

 

356 – Enfrentar

 

Cuidar que a morte não vai ocorrer

E depois ficar devastado

Quando ela advier,

Não é bem congeminado.

 

Enfrentar a mortalidade

É reconhecer a morte

Como parte da vida.

Por igual ela nos invade

De maus augúrios com a corte

E a dor da perda não há nada que a elida.

 

De acolher a morte como um dado natural,

Porém,

Algum poder advém,

Pois por dentro nos fortalecemos.

Ora, sendo igual

O final

Porto,

Com esta atitude atingiremos

Ao menos o viável conforto.

 

 

357 – Árvore

 

Árvore de pouca raiz e muita rama

É derrubada

Na lama

De vento à primeira rajada.

Com muita raiz e pouca ramagem,

A seiva custa a cumprir a viagem.

 

Raízes e ramaria

Devem crescer de igual modo.

Tens de mergulhar no real e saltar além-periferia.

Só então toda a sombra, o abrigo todo

Podes dar

E, na adequada estação,

Cobrir-te da floração

E frutificar.

 

 

358 – Dor

 

A dor faz-nos crescer,

Quando encarada de frente.

Quem fugir ou dele próprio se compadecer

Condenado consente

Em se perder.

 

 

359 – Compreender

 

Compreender donde vimos,

De nós o que houve atrás,

É o primeiro passo eficaz:

Em frente seguimos

Sem o que a mentira em nós desfaz.

 

 

360 – Noutro

 

Ao longo dos anos de mim me esqueci,

Da parte mais funda,

Para noutro me transformar e eis-me aqui

Na versão que meus maiores esperavam,

Que em redor abunda

E onde os sonhos nunca enraizavam.

 

Pus de lado a personalidade

Para um carácter adquirir:

Deste é que, de verdade,

O mundo gosta de fruir.

 

- E aqui vou até ao fim

Morrendo de saudades de mim.

 

 

361 – Mestre

 

O único mestre da existência,

Credível e verdadeiro,

É a nossa consciência.

 

Para a encontrarmos,

Só em silêncio por inteiro

E sozinhos na terra nua,

Nus, sem nada a que nos agarrarmos,

Abrindo caminho na rua,

Com passos direitos, com passos tortos,

Como se já estivéramos mortos.

 

Aí, sim,

Encontro-me depois a mim.

 

 

362 – Apesar

 

Todos sempre teremos medo.

Coragem

É fazermos, tarde ou cedo,

O que houver de se fazer,

Após cada triagem,

Apesar do medo que houver.

 

Se medo, de quando em vez,

Não tens um pouco,

Então és

Louco.

 

 

363 – Piores

 

Da vida nos piores momentos

Temos de tirar partido

Dos belos eventos

Que ao lado ocorrem do mal sentido.

 

Viver a vida

É disto a secreta medida.

 

 

364 – Foge

 

Quem é forte

Não foge de nada.

Seria jogar à sorte

Uma vida a ser levada.

 

Pode é fugir

Para uma alternativa qualquer,

Ao nela discernir

O melhor que puder ter.

 

Eis a lição,

Enfim:

Fugir de, não:

Fugir para, sim.

 

 

365 – Bom

 

Que bom conhecer apenas

A obra bela acabada

E não as origens e as penas

Nem as condicionantes de entrada,

As contracções do nascimento!

 

Das fontes o conhecimento

Donde jorra a inspiração

O público iria confundir

E anularia a seguir

A função

Que pelo mundo desdobra

A excelência duma obra.

 

 

366 – Cima

 

Nada podemos desvendar

De exterior

Por cima de nós próprios passando.

O Universo é o espelho onde contemplar

Podemos

Apenas, melhor ou pior,

Aquilo que aprendemos

A ir em nós próprios delineando.

Por cima de nós passando

Não há nada que amemos

De nós em lugar:

Não o lograremos sequer supor,

Quanto mais decifrar!

 

 

367 – Máquina

 

Quando a grande máquina nos reduz a animais,

Devir animais não deveremos.

Podemos sobreviver um pouco mais?

Importa que tal seja o que queremos,

Da iniquidade a testemunhar os sinais,

Importa salvar o esqueleto, os pilares

Da cultura no que resta dos lugares.

 

Escravos somos, de direito privados,

À injúria expostos,

À morte condenados?

Uma faculdade nos resta entre os desgostos,

A derradeira a defender elém do tormento:

O poder de negar o nosso consentimento.

 

Temos de caminhar direitos,

Sem arrastar as socas,

Para nos mantermos vivos, escorreitos,

Para não começarmos a morrer nas tocas.

 

 

368 – Talhá-la

 

Criar a beleza

É concebê-la,

Talhá-la na carne, do sangue na represa.

A dor ao êxtase se alinha, paralela,

Ambos na contradição

Que firme nos calceta o chão.

 

 

369 – Idênticos

 

Nascer e morrer idênticos são,

O meio, porém, sempre é diferente.

Épicos somos, com medo ao trovão,

Sempre a escapar do raio à tangente.

 

Um longo trajecto,

Um trilho sinuoso,

Precipício sem tecto,

Oceano brumoso,

Onde quer que estejamos,

Lutamos

E, se estamos aqui,

- É que tu venceste, é que eu venci!

 

 

370 – Creias

 

Não creias muito no dever,

Antes crê no entusiasmo.

A ilusão sempre há-de ser

Mais produtiva, de pasmo,

Que um dever qualquer.

 

 

371 – Sentir

 

O sentir do povo devemos procurar

Como os nautas o rumo dos ventos,

Que nos vejam comungar

Da cidade nos bons e maus eventos.

 

Não para, folha inerte na corrente,

Aos tombos a corrente ir trambulhar,

Antes para, aceitando-a, inteligente,

Ao invés, se for o caso, bolinar.

 

 

Uma chefia exigente

Tanto vai pela corrente

 

Como a altera, destemida,

Quando ao lado corre a vida.

 

 

372 – Primeiro

 

Não é questão, primeiro, de enricar o pobre,

Mas de restituir-lhe a honra que lhe sobre.

 

Forte nem fraco podem, evidentemente,

Sobreviver sem honra permanentemente.

 

O fraco, porém, requer

Mais honra que outro qualquer

Que a debilidade

Fecunda lhe grade.