Escolha um número aleatório entre
236 e 372 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
236 – O imperativo que o cotio brinda aos céus
O imperativo que o cotio brinda aos céus
Canto em meu verso de
pegadas desenvoltas
Rimando a vida nos degraus
que forem meus,
Termo com termo, acto com
acto, infante deus
Gerando um mundo destas mãos
à roda soltas.
Canto o bom senso do
equilíbrio dia a dia,
Sabedoria refinada tempo
além,
Das profundezas a luz pura
que alumia
Cada caminho de hora a hora
a abrir também.
São os meus actos e do bem
toda a peneira
Que rasgam terra nesta terra
de ninguém,
Nestas palavras verso a
verso abrindo a jeira.
Sabendo agir em qualquer
ponto, hausto qualquer,
É mais que agir, é ser
poema, enfim é
Ser.
37 - Preocupa
Quem faz a diferença
Não o faz pelas credenciais.
O que leva a que vença
E convença
É que se preocupa mais.
238 – Azedume
O azedume só convém
Se se perde por um triz:
Um passo além
E tudo fora doutro cariz.
A cortesia,
Quando a derrota fora
Aniquiladora,
É a única via.
239 – Muda
Quando te defrontas
Com o que não podes mudar,
Muda o modo de pensar.
Quando para tal apontas,
Mudar de mentalidade
Poderá significar
Que da vida a identidade
Mudaste em tudo o que aprontas.
240 – Formas
Quantas formas diversas de verdade!
Não é tão fácil assim:
Mesmo que eu a fale,
Podes não ser capaz de a escutar de mim.
Nesta corformidade,
O que quer que eu diga ou cale,
Por mais que o confira,
Para ti será sempre então mentira.
241 – Controlo
Controlo o animal
Que mora dentro de mim.
É meu parceiro vital,
Dele, porém, sou eu o amo
Até ao fim,
E não o escravo.
Ora, é assim
Que deveras o amo,
Conforme o açulo ou o travo
No porão de meu bergantim,
Enquanto as ondas do mar cavo
Corto da vida que conclamo
E deste modo lentamente desagravo.
242 – Mestre
És mestre e, por aqui,
Devieste humano:
Dominas o animal que há dentro de ti.
Toma, porém, sentido,
Não vás cair no engano:
- Dá-lhe aquilo que lhe é devido,
Ou frustrado, de ronha,
Logo ele te empeçonha.
243 – Hausto
O hausto da vida, ao nascer,
É comparado
Com enorme esforço e dor.
Quem de lutar tiver
Dele pelos brinquedos de agrado,
Como o recém-nado
Para à vida se impor,
Muito feliz há-de ser
E rico!
Como as facilidades por ora vão,
O que nelas verifico
É uma desilusão:
- Que pena a pobreza
De toda esta riqueza!
244 – Cidadania
Cidadania é atitude,
De espírito um estado,
A convicção emocional
Da virtude
Dum dado
Radical:
Um todo é maior do que uma parte.
E desta parte o dever
Será, destarte,
Humildemente se orgulhar
De se sacrificar
Para o todo poder viver.
245 – Lugar
Com que então, ser o primeiro!
Porque ele o foi, ela também,
Todos no lugar cimeiro,
Terei também de ser primeiro?
Aquilo que me convém,
Nem primeiro, nem segundo,
Nem sequer é o derradeiro.
Percorro o mundo,
Não me alinho com quenquer,
Não me presto ao rapapé,
Prefiro a minha medida:
- Quem si próprio quiser ser,
Único em sua libré,
Fora está de tal corrida.
246 – Vontade
Quando há vontade de agradar
Deverei ser indulgente,
Tanto bate o mar
Que um dia dá-me a praia de presente.
Quando um homem faz o que pode
Com os limitados pavios
E fios
Do que na vida lhe acode,
Vantagem tem alta
E merece mais elogios
Que o negligente a que nada falta.
247 – Jogar
Jogar com o sacrifício,
Jogar com a poesia,
É abordar o quotidiano com o resquício
Dum apelo à transcendência,
Para lhe suportar a agonia
Da falência.
248 – Fascina
O que fascina corrompe
E o que se ama,
Fracturada nossa trama
Pelo livre arbítrio que a rompe,
Bem nos pode destruir.
Todo o grande coração
Propende a uma irrealidade
Que, a seguir,
Como a peste, o furacão,
Se abate na Humanidade
Causando por todo o mundo
Um dano imenso e profundo.
Só enraizando-o no chão,
Comedido,
Se lhe logra estancar o sangue vertido.
249 – Prestes
A sabedoria,
Prestes sempre a evaporar-se,
Do desejo como é ténue fatia,
Só é veste que não se esgarce
Pelo pendor inarticulável:
De espírito a pobreza.
Ao materializar imaginário viável
Não abandones dos pés a ligeireza
Capaz de trocar as voltas,
Com breve leveza,
Aos desejos negros que de ti soltas.
250 – Devoradora
A morte,
A mais devoradora das paixões,
Remata a sorte:
Ponto final nas ilusões.
Esta impaciência
É entrar em profundidade,
Ante a própria decadência,
Da morte na identidade.
Privando-se do prazer da vida,
Não renuncia:
Descobre como a Natureza na Morte resumia
Do inteiro Universo a perdida
Magia
E então por inteiro se lhe entrega
Após a derradeira refrega.
251 – Desejável
Mesmo uma identificação
Com a espécie humana inteira
Não é a derradeira
Desejável condição.
Se vivemos um respeito profundo
Pelos demais humanos
Como recipientes de quatro biliões e meio de anos
De evolução da vida no mundo,
Por que não aplicá-lo além,
A todos os organismos,
Produtos também
Dos mesmos mecanismos?
Importamo-nos com uma ínfima fracção,
O gato, a vaca, a galinha, o cão,
- Porque úteis ou agradáveis.
Mas aranhas, cobras, salamandras, sáveis,
Mosquitos, achegãs…
- São, benéficos ou malsãos,
Por igual nossos irmãos
E irmãs.
252 – Humano
O ser humano apenas pode sobreviver
Matando qualquer outro ser.
Uma compensação ecológica pode, porém,
Tentar empreender,
Outros organismos cultivando também,
Protegendo florestas,
Evitando a matança indiscriminada,
Focas, baleias e outras bestas
Garantindo em reserva vigiada,
Banindo a caça destas,
Benéficas embora de entrada
Ou molestas…
- O ambiente da Terra deviria, como dantes,
Mais habitável a todos os habitantes.
253 – Ritmo
O ritmo da mudança
Não pode continuar indefinidamente
Mesmo se o limite o não alcança
Ainda o presente.
A velocidade de comunicação
Mostra e produz
Fronteiras que se nos imporão:
As da velocidade da luz.
Ninguém mais depressa
Que ela atravessa.
População maior
Que a que pode ser mantida
Não é de supor
Que à Terra seja permitida.
O ritmo da mudança
Qualquer dia encrava a dança.
254 – Teoria
Quando a teoria não é adequada
A única abordagem realista
É a experimental.
Experiência contraprovada
É a pedra de toque do cientista,
De último recurso tribunal.
Do que precisamos, antes de mais,
É de comunidades experimentais.
Era o fim da crendice, da superstição,
Do dogma, do catecismo,
Era a sem-razão
Do fundamentalismo…
Sem mais alibi
Enraizados no chão,
Aqui, finalmente aqui
À mão!
255 – Diminuir
O maior nacionalista
Há-de reconsiderar
O ponto de vista
Quando reparar
Na Terra a dimunuir gradualmente,
De débil crescente
A minúsculo ponto luminoso
Perdido entre biliões de estrelas.
O espaço permite calibrar
O nada tão nada que nem falá-lo ouso
Deste Planeta perdido,
Sem bússola nem velas,
Num Universo imenso e desconhecido.
256 – Geocentrismo
Não é didáctico
Mas aquilo em que confio:
Há um geocentrismo prático
Em nossa vida de cotio:
Falamos de sol-nascente
E poente,
E não há no mundo moda
Que afirme que a Terra roda.
Ainda olhamos o Universo
Como se fora organizado
Em nosso proveito,
De tal jeito
Que, em inúmeras migalhas disperso,
Apenas por nós seria povoado.
A espacial exploração da infinidade
Trazer-nos-á também,
Como convém,
Um pouco de realística humildade.
257 – Suprir
Suprir o metal pode-o quenquer
Mas não a tecnologia,
Nem o apego ao trabalho que houver,
Nem o engenho subtil e o que anuncia…
Não há nada, não há nada,
Quando alguém isto esbanjar,
Que coloquemos na bancada
Em lugar.
258 – Dogmas
De dogmas arrepelam crinas,
Insultam de ritos o mau feitio…
Orgulho de teólogos cujas sinas
Contraditórias verdades
Detêm no mesmo rio.
E nunca os persuades
De que tais gotas e borrifos
Fazem parte das ondas, das vagas,
Não de seus estreitos cacifos
A que mutuamente rogam pragas,
- Fazem parte da mole imensa, do fulgor
Do mesmo mar do Criador!
259 – Carreiras
As carreiras profissionais,
Tal como os foguetões,
Nem sempre arrancam, leais,
Na hora marcada pelas pretensões.
Para lhes garantirmos os favores,
A melhor das soluções
É aperfeiçoar os motores.
260 – Frágil
A mais frágil criatura,
Ao concentrar energias
Num único ser ou objecto,
Vitoriosa muitas vezes apura,
Dela pelas débeis vias,
Seu projecto.
A mais forte,
Se espalhar a força,
Joga a sorte
Na estrada,
E ao fim, do muito que se esforça,
Não logra realizar nada.
261 – Natureza
Com a natureza colaborando
Sem, ao invés, a violentar,
Vamos a doença curar,
Tal qual como a economia:
É só dar-lhe um jeito brando
Que a ajude na própria via.
As desgraças
Vêm de trocar-lhe as traças.
262 – Anos
Quanto mais os anos morrerm
Mais me importa encontrar na vida
A Beleza
De que pareço troçar ou que me despreza
Nos objectos que das mãos me correm
Por medida.
Ao menos, encontrar a plenitude
Que fruir o Belo consigo
Deveria trazer,
Alguma beatitude,
A dar-me obrigo.
Encontramo-nos à deriva
Entre o que por dentro somos
E o que, obrigados por esta época furtiva,
Nela pomos.
263 – Escrevo
Quando escrevo, nego
O que o Estado quer fazer
Quando julga que escreve:
Dele pego
No dever
E revelo quanto deve.
Nego o que o Estado escreve
Quando julga que o faz:
Nego que se atreva ao que se atreve
Quando a um Povo jamais nos satisfaz.
264 – Meias
Aquele que tudo embeleza
Triunfalistamente
Ou tudo transfigura por piedade,
Como o que tudo despreza
Cinicamente
Em agressividade,
- Todos são meia verdade
E, portanto, meio erro,
Nenhum transpõe o fatigado cerro
Da seriedade.
Tanto o ódio como o amor
Podem ser clarividentes
Como também, entrementes,
Cegos nos poderão pôr.
No teso da serrania,
A meio de cada pendor,
Aí é que a verdade espia,
Da imensidão esplendor.
265 – Felicidade
Felicidade deveras
Tem pontas de sofrimento.
Não vem de extraordinárias
Esferas,
De lançar mão, a todo o momento,
De arbitrárias
Medidas artificiais,
Nem de cultivar perene bom humor
Com esforços sobre-humanais.
Ser feliz é me propor,
Para além da miséria sem fim
E da dor que exista,
Dar à vida um sim
Realista.
266 – Reparar
A cristandade esvaziou-se do cristianismo
Sem bem reparar em tal.
Para reparar o abismo
Cumpre-nos, afinal,
Reintroduzir o cristianismo de verdade
Na cristandade.
- E nisto quantas vezes o ateu
É o mais fiel mensageiro do céu!
267 – Meio
Meio brasileiro e meio português
Poderei ser,
Cidadão de dois países a que me irmano,
Apegado e cortês.
É, porém, difícil ver
Como ser meio cristão e meio muçulmano.
Não há perfil deste jaez:
- Não é vinda
Para assumi-lo quenquer
A hora ainda?
268 – Espírito
O espírito do Nazareno logrou romper,
Apesar das falhas de indivíduos, igrejas, reinos,
Quando os fiéis, descontentes da palavra mera,
Desataram a segui-lo na esfera
Dos tenteios, dos gestos, dos treinos
Ante quanto ocorrer:
A verdade cristã não é tanto para conhecer,
Nem é para olhar, à espera,
- É verdade para tratar de viver!
269 – Cobra
Como a cobra abandona a pele velha,
Já me não vejo
No que a vida aconselha
E a que a juventude inclina:
Nem de ter mestres me resta o desejo,
Nem de escutar doutrina.
Não, não é que tudo saiba:
É que bem menos ilusão há que em mim caiba.
270 – Convém
Eis o tom
Que convém a teu teor:
Escrever é bom,
Pensar é melhor.
E, para não agires à toa,
Convém-te supor:
A inteligência é boa,
A paciência é melhor.
271 – Caminho
Onde me conduzirá
Este meu caminho ainda?
Às curvas para aqui, para acolá,
É um caminho louco,
Onde à loucura sobrevinda
Me adiantarei decerto pouco,
Que ele andará, de vez,
Em círculos talvez.
Vá embora por onde quiser,
Minha lei
Não tem por onde escolher:
- Segui-lo-ei.
272 – Aprendi
Aprendi, quando criança,
Que os prazeres do mundo e a riqueza
Não são bons para o que os alcança
E preza.
Há muito o sabia,
Apenas agora, porém, o vivi:
Não é só memória e fantasia
Que tenho aqui,
Mas meus olhos, meu coração,
Meu estômago, cada mão…
Senão, em mim quem era rei?
- Ainda bem que agora sei!
273 – Retorno
O que até ao fim
Não é suportado e resolvido
Retorna então assim,
Procurando consumar o próprio sentido:
- Enfrentamos a todo o momento
Sempre o mesmo primitivo sofrimento.
274 – Meta
Quando alguém procura
Pode ocorrer que dele os olhos
Apenas o que procura vejam
E então de facto sejam
Escolhos
Em tal postura:
Não permitem encontrá-lo
Porque ele vive possuído
Pela meta do regalo,
Como objectivo
Obsessivo
Que lhe tapa vista e ouvido.
Procurar é ter um horizonte
E então encontrar é ser liberto,
Manter-se aberto
Para erguer a ponte
Onde aflorar um gesto vivo,
E nunca acabar a monte,
Prisioneiro dum objectivo.
275 – Partilhar
Podemos partilhar conhecimentos,
Não a sabedoria.
Podemos encontrá-la entre os eventos,
Vivê-la para além da fantasia,
Ganhar relevo com ela,
Com ela gerar maravilhas,
Que lhe não comunicamos nenhuma parcela,
Não a ensinamos, isoladas ilhas.
Convém pressenti-lo,
Cada qual um aprendiz,
Que colher dos mestres aquilo
É o que mestres gera de raiz.
276 – Meditação
Tem a meditação profunda
De abolir o tempo a possibilidade,
De ver simultânea, em procissão jucunda,
Toda a vida
Outrora acontecida,
A que hoje acontece
E a que há-de
Vir a acontecer.
E aí tudo é bom, tudo é perfeito,
Tudo é Ser.
Por isso o Todo a eito
Me parece
Bom:
Pecado e santidade,
Morte e vida,
Sensatez e loucura,
Toda a figura
É requerida
De fundo naquele tom
E só quer minha vontade
Afectuosa.
Então, sendo tudo bom para mim,
Apenas me pode encorajar,
Não molestar.
E quem o mundo goza,
Enfim,
É quem lhe permitir ser como for,
Para poder amá-lo
Com o devido fervor,
Sem nele introduzir o próprio abalo.
E feliz ser
Pelo milagre simples de lhe pertencer.
277 – Contado
A palavra não faz bem ao sentido oculto,
O igual devém um pouco diferente,
Mesmo contado em voz de culto
É um pouco falseado, louco, demente.
Mas é bom e agrada também
Que o que é para uns tesoiro e sabedoria,
A fonte da alegria,
Seja sempre uma loucura para alguém.
Assim se mantém perenemente vivo
O pendor do que é fatalmente esquivo.
278 – Verdade
A verdade desesperante
Prefira
Sempre a qualquer repugnante
Mentira.
A não ser que queira
Tombar, a prazo, na jeira.
279 – Silêncio
O silêncio dos páramos infinitos
Envolve o frenesim humano
Dissolvendo gestos e gritos,
Diluindo a mágoa
Da mancheia de pó que, no desengano,
Se esboroa dentro do infindo oceano
Como em água.
280 – Grande
Se um grande homem não tem moralidade,
É sinal
De que a moralidade pouco vale:
Importante,
Então, de verdade,
É devir tal
Grande homem adiante.
Tal é a lógica infantil,
Não lhe escapa um em mil.
281 – Músico
De músico para um coração
Tudo é música, tudo:
O que vibra, agita e pulsa no Verão,
As noites em que o vento apita agudo,
A luz a fluir, os astros a piscar,
A tempestade, das aves o canto,
Os insectos a zumbir,
As árvores a fremir,
A voz que amar ou detestar,
Ruídos familiares do lar,
A porta que range entretanto,
O silêncio a latejar
Numa qualquer noite de encanto…
É música tudo o que existe
De músico para um coração.
Através de tudo subsiste,
Veste de gala
O serão.
A questão
É dar-lhe a fala:
- É de vez interpretá-la.
282 – Cruel
É cruel para os pobres
Prenderem-se ao passado,
Que não têm direito, como os ricos,
A um passado que lhes cobres:
Não têm casa, nem monte, nem valado,
De jóias as arestas, de alfinetes os picos,
Onde as recordações guardar.
Deles a alegria
E o pesar,
A euforia
E o tormento
São cada dia
Em demasia
Dispersos ao vento.
Não deixam memória os pobres
Que algum dia lhes cobres.
283 – Maioria
A maioria morre
Dos vinte aos trinta anos.
O período decorre,
Depois tudo são enganos,
Nada mais do que um reflexo
Deles próprios vida fora,
Num inútil auto-amplexo
Que o que foram lhes rememora.
Imitam-se, repetindo,
Mecânica e caricaturalmente,
O que disseram, indo e vindo
De outrora até ao presente,
O que fizeram,
Pensaram,
- O que amaram
Nos tempos idos em que eram.
284 – Rumos
Ninguém faz o que quer,
São dois rumos divergentes
Querer e viver.
A tal importa se conformar,
Com as atitudes convenientes
A quenquer.
Fundamental, os pés assentes,
É não se cansar
De viver e querer.
O resto,
Após,
É todo o apresto
Que não depende de nós.
285 – Cuida
Cuida bem do dia de hoje,
Põe de parte as teorias,
Foge
Das fantasias!
Ideologias,
Mesmo as da virtude,
São tolas e fazem mal.
Não violentes a vida,
Vive o dia presente,
Único que não te ilude,
Real.
Ama a aurora que convida,
Florescente,
Não a macules nem impeças.
Mesmo quando tropeças
No que for cinzento e triste,
Não te inquietes!
O Inverno existe,
Tudo dorme e o que projectes
Vai fecundar terra boa.
Aguarda, paciente,
Que não há-de ser à toa
Que tudo correrá bem.
Se não triunfas, alguém
Te impede de andar contente?
O melhor é ser feliz.
Não tens poder para mais?
Por que então buscar fanais
Além de teus peitoris?
Não te entristeças
Do que não podes fazer,
Basta que meças
Aquilo que podes.
Se a tal acodes,
Aqui termina teu dever.
286 – Sol
Alegria,
Sol que ilumina
O que é e o que há-de germinar
Algum dia,
Alegria divina
De criar!
Além do que cria
Outro ser não há,
Que os outros sombras são
Pela terra a adejar,
Estranhos à vida que se dá
No amor, no génio, na acção,
Labaredas de força da mesma fogueira.
Mesmo os que não encontram lugar
Ao redor da grande lareira,
Os ambiciosos, egoístas, depravados,
No que auguram
Aquecer-se procuram
Dela nos reflexos descorados.
287 – Desgraçado
Desgraçado de quem não vive fecundo,
Pejado de vida e de amor,
Como na Primavera do mundo
Árvore em flor!
Cumulam-no de honrarias e verbenas?
- Um cadáver coroam apenas!
288 – Ideias
Quase sempre as ideias se revelam
Em estado bruto
E do caos onde melam
Urge retirá-las penosamente,
Com jeito arguto
E persistente.
Brotam as ideias sem continuidade,
Em bruscas explosões,
E, para as ligar,
À fina razão e à fria vontade
É imprescindível apelar,
A fim de com elas tecer
Os tendões
Dum novo ser.
Não, não é um dado
Gratuito,
É um dom muito,
Muito suado.
289 – Idade
Há uma idade na vida
Em que é de ousar ser injusto,
Fazer tábua rasa de admirações,
Da medida
E do custo,
Dos respeitos aprendidos
E negar mentiras e verdades,
Todas as razões
Em que a razão por ela mesma nem sentidos
Nem objectividades
Reconheça.
A criança,
Por toda a educação,
Por quanto a vista e o ouvido meça,
Por quanto alcança,
De mentiras e idiotices absorve tal aluvião,
Misturadas às pedras angulares da vida,
Que o primeiro dever do adolescente
Que homem quer ser de fronte erguida
É vomitar tudo, repentinamente.
290 – Ordem
A ordem, a ordem
E outra não conheceis que a da polícia,
Os caminhos trilhados que mordem
O génio com sevícia.
Ao invés de se deixar levar,
O génio a ordem cria,
Erige a vontade singular
Em lei onde tudo principia.
291 – Horror
Tenho horror aos rebanhos de carneiros
Que uns aos outros precisam de se encostar
Para berrarem juntos, todos muito ordeiros,
No lugar.
Gritem aos carneiros que eu sou lobo,
Tenho dentes de ferrar
Tudo o que deles vislumbro e englobo,
Que não fui feito para pastar!
292 – Medo
Que medo tens da luz intensa,
Da brutalidade dos gestos,
De termos de ofensa,
Das paixões da vida em teus aprestos!
Ora, a vida não é refinada,
Merenda a gosto pão e uvas
Da latada.
A vida não se agarra com luvas,
Ocorre de empreitada,
Ora à soalheira, ora às chuvas,
Tem de ser pelos cornos agarrada!
293 – Povo
Quando um povo envelhece,
Abdica da vontade, da fé, das razões de viver,
Depondo-as na mão refece
Da mulher dispensadora de prazer.
Do que investes cobras
O que os montantes somem:
Os homens fazem as obras,
As mulheres fazem o homem.
E, quando elas são de tal jaez,
Desfazem o que ele fez.
294 – Ébrios
Vivemos ébrios de liberdade
E, após delirar,
Cairemos em coma.
Quando cada um acordar,
Assoma
O que a cada qual ameia:
Há-de
Encontrar-se na cadeia.
295 – Escrever
Escrever por escrever?
Vê lá bem que é que apalavras,
Em que é que, enfim, repoisas:
- Ao dizer,
Não digas palavras,
Diz coisas!
296 – Importa-lhe
Importa-lhe com algo se ocupar,
Não lhe importa aquilo de que se ocupa?
Trabalho febril a tricotar
Da mulher, entre mãos, em catadupa,
As agulhas sem descanso a tilintar
Como se do mundo a salvação
Dependera de tão frenética laboração,
Para depois ninguém saber
De tudo aquilo, afinal, que fazer…
Além disto, em tal obreiro
Há uma vaidade de mulher honesta
A dar, com o exemplo cimeiro,
Uma lição ao mundo que não presta!
Nem vale a pena o aviso:
A pretensão
Da falta de siso
Não tem perdão.
297 – Cosmopolitas
Não trabalham para a razão
Da razão os paladinos,
Trabalham para um oportunista malsão:
O partido dos cosmopolitas ladinos
Que espezinham alegremente a tradição
Dos povos e do país
E cuja intenção
Não é, de raiz,
Destruir uma fé para implantar
Outra dela no lugar,
Mas antes, mal os outros não reparem,
- Para a eles próprios se instalarem.
298 – Fé
A fé será uma atitude
Das que a gente refinada menos perdoa
Pela razão de que a perdeu.
E, sem virtude,
Na hostilidade surda e irónica com que caçoa
Do sonho de céu
Da juventude,
Intervém, em grande parte,
A nota amarga de que eles próprios foram assim,
Com a ambição que entre os novos se reparte,
E a não realizaram por fim.
Os que as próprias almas renegaram,
Que neles traziam obras
Que não arroteiam nem aram,
Pensam, entre as migalhas das sobras:
“Já que não pude o que sonhei,
Por que o poderiam eles?
Não, não, jamais tolerarei…
Morte aos imbeles!”
299 – Ânimo
Jamais contemos o que obramos
Antes de o haver obrado,
Senão talvez não tenhamos
Ânimo de o levar a cabo:
Já não seria a própria ideia
Mas a doutrem, invocável,
De que finda a mente cheia
- E era alheia a terra arável.
300 – Público
O público comprara:
Suprema lei de qualquer arte!
E ninguém repara
Que deve ser posto de parte
O testemunho dum público depravado
Em proveito dos que o travam.
O artista tem o mandado
De farol ser dos que, perdidos, erravam,
Não são os errantes
Que podem ditar génios navegantes.
Do número a religião,
Dos milhares de leitores, do montante das
receitas,
Domina a artística razão
Nas democracias degeneradas,
Afeitas
A ser mercantilizadas.
O crítico, o autor
Docilmente irão decretar
Que da obra de arte a finalidade-mor
É de agradar.
O lucro é a lei.
Ora, enquanto o lucro dura,
Nada mais farei
Que inclinar-me à ditadura?
301 – Condenar-se
Quem é capaz de condenar-se, por dever,
Ao inferno?
A opinião geral ousar deter,
Combate eterno
Contra a pública imbecilidade,
Dos triunfadores do dia
Pôr a nu a mediocridade,
Defender a magia
Do artista desconhecido,
Sozinho entregue às feras,
Impor os espíritos-príncipes no olvido
Ao espírito-esmoler,
Feito em todas as eras
Para obedecer?
302 – Aguardar
Resta aguardar apenas
Que escoe a inundação.
Ela não corroerá o granito das empenas
Do Homem são
E, sob a lama que ela extravasar,
Havemos de tocá-lo.
Agora já, por todo o lugar,
Andam os altos cumes a aflorar,
Emergindo firmes do abalo.
- O que importa é neles ancorar
A dor e o regalo.
303 – Coragem
A razão, a liberdade, a vida a desposar
Há padres admiráveis:
Têm a coragem de se fazer baptizar
Homens, Homens inteiros e fiáveis,
Reivindicando o direitro de tudo compreender,
De se unir a qualquer pensamento leal,
Pois o pensamento leal, todo e qualquer,
Mesmo quando é um desatino,
Quando se engana, parcial,
É, afinal,
Sagrado e divino.
304 – Brilho
Se o que dá brilho à existência
É a intensidade da luta
Que exalta todas as energias da vivência
Até ao sacrifício pelo mundo superior
De que ainda não desfruta,
Poucos combates mais honram da vida o vigor
Que a batalha pela razão ou contra ela.
E aos que lhe provaram o áspero sabor
A tolerância do irrazoável apática e servil
É uma sequela
Insulsa e pouco viril.
Das ideias no redil
Não há que tolerar a camuflagem velha
Do lobo com pele de ovelha,
Ou não haverá mal que se não perfile:
Das ideias fora da cerca,
Onde a tolerância entre pessoas deve ter lugar,
Tudo então será perca.
À tolerância
Entre nós não a logramos cultivar,
Uma vez solta a quadrilha da ganância,
A coberto da impunidade a campear
De qualquer errância.
305 – Fumador
Vossa alegria é um engodo,
Sonho dum fumador opiado.
Embriagais-vos de liberdade,
Como se ela fora o todo,
Pondes a vida de lado.
Liberdade absoluta é vacuidade:
Para o espírito é loucura,
Anarquia para o Estado.
Quem é que livre se apura?
Apenas o canalha.
O melhor é asfixiado,
Nada lhe resta na calha
Senão sonhar.
E em breve, pragana de palha
Que o vento leva,
Nem isto lhe irá restar
No meio da treva:
Não fica nada que valha.
306 – Satisfeitíssimo
Satisfeitíssimo com as páginas eloquentes
Que, de facto, não valem nada,
Nada lhe importam as auras da madrugada
Que forem excelentes.
Crê que assim é deveras grande
Com direito a que sobre tudo e todos mande.
E é, portanto, assim
Que a tudo o que é grande nos põe fim.
307 – Perdoar
Para perdoar aos patifes
Dizem que já são infelizes
Ou então irresponsáveis,
Não merecem os esquifes
Que lhes gizes,
Confiáveis.
Infelizes, é mentira,
Podem bem felizes ser.
Irresponsabilidade
Tolice é de quem delira,
Não quer ver
A realidade.
Um criminoso bem pode
Ser perfeitamente são.
A virtude não acode
Naturalmente no chão,
É um germe da humanidade
Edificado
Por um punhado
Dos mais nobres e mais fortes.
Que lhe defenda a sanidade
Contra as perdas e os cortes
É um prioritário dever.
Obra heróica e de brasão
Ameaçada sempre por tanta falha,
É de a não deixar corroer
Por qualquer alma de cão
Da canalha.
308 – Mortos
O caminho mais seguro
De nossos mortos para nos aproximarmos
Não é morrer mas viver com apuro,
Pois vivem com nossa vida e, se hesitarmos,
Ditamos-lhes a sorte:
- Morrem com a nossa morte.
309 – Favorecem
Sorte e génio favorecem apenas
Os povos que souberam merecê-los
Através de séculos de penas,
Pela fé, pelo trabalho, da paciência aos apelos
Sofridos e singelos.
Sorte e génio
Não se atingem por convénio.
É no sangue e no suor
Que o selo vêm apor.
310 – Tolerantes
Podemos e devemos
Ser tolerantes e humanos,
Mas o que bom e verdadeiro julguemos
Causa danos
Quando o suspendemos.
Aquilo em que cremos
Deve ser defendido.
Sejam quais forem as forças que temos,
Abdicar é proibido.
Tem neste mundo um dever
O menor como o maior.
E tem um poder.
Ninguém pode supor
Que a revolta isolada seja vã:
Uma consciência forte
Que ousa afirmar-se à barbacã
É uma potência e traça o norte.
311 – Contentar-nos
Devemos contentar-nos com o que temos.
Se nos ofertam algo, tanto melhor!
Senão, passar bem podemos
Sem tal supor.
Pelo facto de não ter bolo
Não há motivo para crer que o pão não presta,
Mormente se o pão duro foi meu colo
Com a fome a dormir em mim a sesta.
312 – Inteiro
Põe-te inteiro no que fazes,
Pensa o que pensas,
Sente o que sentes!
Contigo faz as pazes,
Vive-as, intensas,
Entrementes.
Que teu coração,
Reposta a calma,
A teus escritos imponha a demão:
O estilo é a alma.
313 – Rápido
Pobre de quem se acostuma
Tão rápido à felicidade!
Quando à felicidade se resuma
Da vida a única finalidade,
Em breve fica sem meta:
Hábito, intoxicação,
Que ninguém roube a chupeta
A este bebé-chorão.
E como é forçoso
Aprender a viver sem ela!
A felicidade é um momento de gozo
No ritmo universal,
Um dos pólos da sequela
Entre os quais oscila, fatal,
O pêndulo da vida.
Para o pêndulo deter,
Só se por quenquer
For a vida destruída.
314 – Felicidade
Quem a felicidade por dar-se
Não sentir nem entender
O mais que tem a fazer
É desistir sem disfarce,
Pois nem merece viver.
315 – Perseverar
Para perseverar em arte
Requeiro mais que um génio natural:
Acolho paixões, dores que encham a vida,
Por onde esta inteira se reparte,
Que a meu gesto dêem um sentido visceral.
Doutro modo, desconfio,
Escrevo livros por medida,
Não crio.
316 – Píncaro
De tão ocupados
Em atingir o píncaro da montanha,
Nem reparamos no líquen dos rochedos escarpados,
Nas flores alpinas que a encosta ganha,
Nos fósseis que, ao longo do caminho,
Do tempo disperso
Nos murmuram um segredo adivinho,
Nosso lugar a dispor-nos no Universo.
Do mundo toda a boniteza
Perde o significado
Se para ela não estiver preparado
Quem a preza.
Na viagem,
Como na vida,
O equilíbrio da equipagem
É que empresta uma saída.
317 – Jogo
Da vida o jogo de cartas
Perdeste já
Se te aqui não inicias:
Do princípio nunca partas
De que outrem nunca fará
O que tu nunca farias.
318 – Lusíadas
“Os Lusíadas” não valem um milhão,
Pois não há nenhuma relação
Entre dinheiro
E obra de arte.
Esta não fica acima nem abaixo,
Mas aparte
Por inteiro:
Ela fatalmente mora
Do preço que lhe encaixo
Definitivamente fora.
Não se trata de a pagar,
A verdade é mais furtiva:
O que nos deve importar
É que o artista viva.
319 – Injustiça
Antes de combater a injustiça distante
Urge a próxima combater,
A que nos cerca diante,
Pela qual havemos de responder.
Muitos se contentam com protestar
Contra o mal por outrem feito
Sem reparar
No que eles próprios levam a efeito.
320 – Inesgotável
O povo é o inesgotável reservatório
Onde se perdem os rios do passado
E donde borbotam os do futuro.
Acaso com outro envoltório,
São muitas vezes, no traslado,
Os mesmos que inauguro.
E, quando isto falho,
É que me não vingou o trabalho.
321 – Retiro
Um retiro temporário
Tem, para o espírito, valia,
Obriga ao recolhimento solitário
Desde que dali saia algum dia.
A solidão é nobre
Mas é mortal
Para o artista que, pobre,
Dela não possa arrancar-se no final.
Embora ruidosa e impura,
Importa viver a vida real,
A única que assegura
Dar e receber constantemente
O caldo que nos alimente.
322 – Menos
A maior atracção
Vem do que menos se nos assemelha,
Ao menos nalgum aspecto, nalgum instante,
Pois a refeição
Nos oferta e aconselha
Mais abundante.
323 – Ataquem
Que me ataquem, me desmotivem:
Ao menos vivem!
Tem a vitalidade tal virtude
Que quem dela é desprovido,
Mesmo quando com tudo o mais se ilude,
Jamais como homem de bem
Por inteiro é entendido,
Pois homem completamente
Também
Não é nunca nem se sente.
Que me ataquem, me desmotivem:
Ao menos vivem!
324 – Ídolos
A Humanidade
De alegria, despreocupação, audácia irreverente
Tem necessidade
Ante os ídolos, mesmo o mais santo, omnipotente.
Viva o sal que reaviva a terra!
Cepticismo e fé são ambos indispensáveis:
O cepticismo a fé rói em que se enterra,
A fé nos inviáveis,
No que já passou, não tem porvir,
E assim abre lugar à fé que há-de vir.
Como tudo se ilumina,
Da vida ao nos distanciarmos,
Como ante o belo quadro de luz divina,
Ao repararmos
Como se funde em harmoniosa magia
Cada cor contrastante
Que de perto as mais repelia
Quando delas me punha diante!
325 – Indulgente
Sê indulgente com a fraqueza cometida,
Não transijas com a que está por cometer!
Como duvidar alguém da fé por que viveu?
Era renunciar à vida…
Que importa tentar-se alguém ver
De modo diferente do que se viu,
Seja para outrem copiar,
Seja para o poupar?
Era a si se destruir
Sem aproveitar a ninguém,
Pois o primeiro dever é o de cada qual
Assumir
O que for, como convém,
Ousar afirmar que algo vai bem
Ou vai mal.
Maior ajuda aos fracos
Prestaremos quando fortes
Seguirmos rumo tal,
Do que quebrando-nos em cacos
Que nem deles as mil mortes.
Cada qual
Deveria
A si próprio ser igual:
Eis o projecto
Que a todos um dia
Nos augura, eventual,
Um tecto.
326 – Centelha
Se o animal tivera uma centelha de razão,
Que atroz era o mundo para ele!
Homens indiferentes, cada qual mais patrão,
O estripam, o esquartejam, arrancam-lhe a pele,
Cozinham-no vivo, alegres da dor à contorção…
Haverá horrores tais
Entre os canibais?
Senão, então,
Que é isto da civilização?
327 – Fias
Demais te fias em tua força vã,
Torrente de montanha,
Cheia hoje, seca amanhã.
Um artista captura sem disfarce
O génio que amanha,
Não lhe permite dispersar-se.
Canaliza tua força,
A bons hábitos a constrange,
A um trabalho de cotio que a torça,
Que horas fixas lhe arranje.
Tão incontornáveis para o artista
Tais hábitos serão
Como o ritual da revista
Para os militares que bater-se irão.
Nos momentos de crise
De ferro esta armadura
Impede que a moral caia
Ou que a queda se eternize.
Temos do colo a brandura
Segura
Desta aia.
328 – Centésima
Se confessáramos a centésima parte
Dos sonhos que sonha um homem de bem,
Que estranhos ardores o sonho reparte
Pelo corpo da casta mulher que os retém,
- De escândalo que brado
Mais grado!
Silêncio aos monstros, fechemos as grades!
Reconhece, porém, que os monstros existem
E que dos recém-nados, se os não persuades,
Estão prestes a sair quantos se listem.
329 – Escol
Apenas para o escol restrito
Da tela dos séculos são as palavras a voz.
Para os mais é o viver deles descrito
E o do grupo a que os atem laços e nós.
Certas palavras, gastas pelo escol,
Por ele desprezadas,
Fora do rol
Das conversadas,
São casas vazias
Onde, deles após a partida,
Se instalartam, de seguida,
Novas energias.
Quem quiser,
De mente limpa e rasa,
O novo hóspede conhecer,
É entrar em casa.
330 – Esconde
O desejo de ser senhor
Esconde uma fraqueza.
A força é do teor
Da luz: cega
O que a nega
E despreza.
Sede fortes tranquilamente,
Sem a teoria nem a violência que vos desmente,
E, como as plantas para a luz,
Logo após,
Porque isto seduz,
As almas dos fracos voltar-se-ão para vós.
331 – Nuvens
Dissolvidas as nuvens do desgosto,
Sorvi a luz.
Recomposto,
Reparo no que a cura me produz:
Minha enfermeira,
Em cuja casa devia
Ter morado a vida inteira,
É a Filosofia.
332 – Dura
A vida dura um momento,
A matéria é fluir perene,
A percepção é um grosseiro acolhimento,
O corpo é carne que o tempo condene,
A vivência é um turbilhão,
A fortuna, fugidia…
Onde pode um homem encontrar um guião?
- Apenas na Filosofia.
333 – Desejo
Se todo o desejo é logo satisfeito,
Morremos de tédio,
Enjoados a eito.
O termo justo
Paga o custo
De apostar num ponto médio:
A nossa equilibração
É sempre entre um já e um ainda não.
334 – Debaixo
Quem na Primavera estiver
Debaixo da macieira
Maçãs não logrará ver,
Nem que a abane com canseira
Algum fruto há-de colher.
Se for no Outono, porém,
Basta-lhe estender a mão
E logo maçãs obtém
Em profusão.
Tentamos demasiado,
Às vezes,
Ou no momento errado,
O que o coração deseja
Há muitos dias ou meses
E se não veja.
Tentemos desejar
Com intensidade menor
Mas, para contrabalançar,
Em altura melhor.
A fruta, serôdia ou temporã,
Apenas amadurece
Na manhã
Em que acontece.
335 – Procura
A procura de utópica excelência,
Num hábito tornada,
Transforma-se num vício, na demência
Da jornada.
A virtude não pode ser
Inatingível objectivo:
Este tem de estar, por mais esquivo,
Ao alcance de quenquer.
Ou devirá doença
O melhor de nossa querença.
336 – Melhor
Procurar a melhor via
Permite o melhor partido
Numa boa conjuntura.
E da má que haja vivido
Assegura
Retirar
A mais-valia
Que nela pode ter lugar.
Procurar a melhor via
Tem selo de garantia
De em qualquer alvo acertar.
337 – Contrário
O que está certo
Demora
Se o contrário, longe ou perto,
O não provoca lá fora:
- Quem o veria
Se o contrário não existia?
338 – Alimento
Reconhecer que alimento uma ideia
Falsa e destrutiva
Não é substituí-la, mal ameia,
Por outra verdadeira e construtiva.
A convicção fundamente enraizada
Prega-se à lapela,
Não é por ser intelectualizada
Que nos vemos livres dela.
A convicção negativa
É reforçada
A cada nova recidiva
Experimentada.
Invertê-la
É acumular actos diferentes,
Trocar o rumo ao barco e à vela
Direito a outras correntes,
Trocar o muro de auto-destruição,
Pedra a pedra,
Pela auto-afirmação
Que, hora a hora, um gesto de cada vez, medra.
339 – Estuda-os
Quando vários deveres
Entram em conflito,
Estuda-os até onde puderes
Com o fito
De por fim veres
Que um deles, razoavelmente,
É o mais premente.
Não hesites então mais:
- Abre-lhe os portais!
340 – Homem
O homem nada pode esperar
Sem começar por entender
Que com ninguém pode contar
Senão com ele próprio, no que ocorrer.
De raiz, é só,
Abandonado na Terra,
Carregando, sem dó,
A infinda responsabilidade que o aterra,
Sem ajuda,
Sem outros objectivos
Nem esperança de muda
Que não os que ele tornar vivos,
Sem outro destino
Que não o que ele traça
Por entre o desatino
Do mundo que passa.
341 – Vise
Que a tua motivação
Vise outro porvir
Que o pagamento duma acção!
Não te deixes seduzir
Pela preguiça, pela inacção!
Que o trabalho bem feito,
Com ou sem suor,
Seja o teu amor,
Seja o teu preceito!
342 – Satisfação
A satisfação do dever cumprido
Deveria ser
A força que nos faz mover,
Ao abrigo dum princípio-mor,
Mais ou menos consciente e definido,
Que nos é superior,
E nunca o pagamento interesseiro
Do labor,
Dividido às fatias,
Em dinheiro
E outras regalias.
O cerne do melhor porvir:
Age como gostarias
De ver
O mundo inteiro agir.
Isto teu lema deveria ser,
No marasmo dos dias,
Se a marca tivéramos do dever
Por detrás das agonias.
343 – Tarefa
Se desempenhas a tarefa que tens à mão
De acordo com os ditames da razão,
Com seriedade, com vigor, com calma,
Sem deixares que nada te distraia a alma,
Se manténs limpa de ti próprio a parte divina
Como se a tiveras de devolver a quem ta destina,
Sem esperar nada mas satisfeito
Por estares a cumprir da razão natural o preceito,
Dizendo a verdade em cada palavra que murmuras,
Viverás no imo feliz – te asseguras.
E nenhum homem te há-de
Roubar a felicidade.
344 – Experimentarmos
Se não experimentarmos, pode ocorrer
Que jamais cheguemos a saber.
Mas, se não pudermos reflectir
Sobre o evento de experiência,
Nunca iremos conseguir
Que ele concorra, afinal,
Com consistência,
Como convém,
Para o trilho individual
De ninguém.
345 – Melhor
Melhor é cumprir nosso dever,
Mesmo com falhas,
Que cumprir o doutro qualquer,
Embora melhor que ninguém
Dominemos as malhas
Para o cumprir como convém.
Deixemos a cada qual o espaço
De imprimir ou não no mundo o próprio traço.
346 – Preserva
Quem melhor preserva a vida
Foge do tigre e do rinoceronte,
Escapa a quem lhe aponte
A mira erguida,
Na batalha não se deixa
Ficar por qualquer queixa,
Antes vela por não o atingir
Qualquer arma que bulir.
A fera não encontra então
Onde marrar
Nem lugar
De rasgar músculo nem tendão,
As armas não encontrarão
Onde alvejar.
Tal é com bestas e lutas.
E o mesmo é com um chefe ou um patrão
Se com ele disputas.
347 – Manténs-te
Manténs-te a meditar
Noite e dia na montanha,
Sem nada encetar,
Cuidando que tal te ganha
A condição de bendito
Eleito.
Se num tijolo repito
Um polimento com jeito,
Nunca tal eu aconselho
A quem quer torná-lo espelho.
Como queres, aí sentado,
Ver-te num eleito transmudado?
- Faz pela vida,
Ou nunca atingirás tua medida!
348 – Multidão
A multidão humana
Vive no desespero silencioso.
A resignação emana,
Confirmado
Aquele desespero mórbido, viscoso.
Os actos
De quem age não desesperado
São os dísticos
Característicos
Dos sensatos.
349 – Perdido
Duas vezes pôr os pés
Nas águas do mesmo rio
É o perdido revés
Do desafio.
Mesmo assim é preferível
Os pés refrescar numa torrente
Que num charco estagnado.
Mais aprazível
É, certamente,
E de saúde é um predicado.
A água tem de continuar a correr
Para da turbulência, do fosco,
Limpa e fresca se manter.
- O mesmo ocorre connosco!
350 – Vaidade
É vaidade pretender
Que sabemos exactamente
O que estamos a fazer.
E é vaidade igualmente
Saber que não sabemos
Mas pensar que deveríamos saber.
Afloramos a verdade
Quando temos
A humildade
De respeitar o mistério radical do ser.
351 – Serenidade
Deus me dê serenidade para aceitar
O que eu não puder mudar,
Coragem para mudar as coisas erradas
Que podem ser mudadas
E a sabedoria
Para as diferenciar em cada dia.
352 – Desvendar
Mantém-te aberto
A desvendar as subjacentes camadas
De qualquer apresto:
Fazer o que está certo
Pelas razões erradas
Não torna ninguém honesto.
353 – Único
Aos outros faz
Como queres que te façam a ti
-Terás
O único verdadeiro alibi.
Os restantes decorrentes itinerários
Serão meros corolários.
354 – Justiça
A equidade
É melhor
Que a justiça cega:
O grau de generalidade
Corrige do legislador,
Nega
Da lei a falha
No caso concreto que lhe calha.
355 – Apreciar
Se a vida não é mais que um acidente
Estranhamente imprevisível,
Mais motivos temos, é evidente,
Para apreciar algo tão incrível.
Se do nada viemos
E ao nada retornamos,
Então celebremos
A imprevisibilidade da vida que fruamos,
Literalmente
Insubstituível,
O tempo que no mundo passamos
É precioso, precioso, precioso!
Por isso, vivamos
Duma vida autêntica o desafio e o gozo:
Jamais com afastamento
Relativamente a ela,
Antes com todo o envolvimento
A que apela.
356 – Enfrentar
Cuidar que a morte não vai ocorrer
E depois ficar devastado
Quando ela advier,
Não é bem congeminado.
Enfrentar a mortalidade
É reconhecer a morte
Como parte da vida.
Por igual ela nos invade
De maus augúrios com a corte
E a dor da perda não há nada que a elida.
De acolher a morte como um dado natural,
Porém,
Algum poder advém,
Pois por dentro nos fortalecemos.
Ora, sendo igual
O final
Porto,
Com esta atitude atingiremos
Ao menos o viável conforto.
357 – Árvore
Árvore de pouca raiz e muita rama
É derrubada
Na lama
De vento à primeira rajada.
Com muita raiz e pouca ramagem,
A seiva custa a cumprir a viagem.
Raízes e ramaria
Devem crescer de igual modo.
Tens de mergulhar no real e saltar além-periferia.
Só então toda a sombra, o abrigo todo
Podes dar
E, na adequada estação,
Cobrir-te da floração
E frutificar.
358 – Dor
A dor faz-nos crescer,
Quando encarada de frente.
Quem fugir ou dele próprio se compadecer
Condenado consente
Em se perder.
359 – Compreender
Compreender donde vimos,
De nós o que houve atrás,
É o primeiro passo eficaz:
Em frente seguimos
Sem o que a mentira em nós desfaz.
360 – Noutro
Ao longo dos anos de mim me esqueci,
Da parte mais funda,
Para noutro me transformar e eis-me aqui
Na versão que meus maiores esperavam,
Que em redor abunda
E onde os sonhos nunca enraizavam.
Pus de lado a personalidade
Para um carácter adquirir:
Deste é que, de verdade,
O mundo gosta de fruir.
- E aqui vou até ao fim
Morrendo de saudades de mim.
361 – Mestre
O único mestre da existência,
Credível e verdadeiro,
É a nossa consciência.
Para a encontrarmos,
Só em silêncio por inteiro
E sozinhos na terra nua,
Nus, sem nada a que nos agarrarmos,
Abrindo caminho na rua,
Com passos direitos, com passos tortos,
Como se já estivéramos mortos.
Aí, sim,
Encontro-me depois a mim.
362 – Apesar
Todos sempre teremos medo.
Coragem
É fazermos, tarde ou cedo,
O que houver de se fazer,
Após cada triagem,
Apesar do medo que houver.
Se medo, de quando em vez,
Não tens um pouco,
Então és
Louco.
363 – Piores
Da vida nos piores momentos
Temos de tirar partido
Dos belos eventos
Que ao lado ocorrem do mal sentido.
Viver a vida
É disto a secreta medida.
364 – Foge
Quem é forte
Não foge de nada.
Seria jogar à sorte
Uma vida a ser levada.
Pode é fugir
Para uma alternativa qualquer,
Ao nela discernir
O melhor que puder ter.
Eis a lição,
Enfim:
Fugir de, não:
Fugir para, sim.
365 – Bom
Que bom conhecer apenas
A obra bela acabada
E não as origens e as penas
Nem as condicionantes de entrada,
As contracções do nascimento!
Das fontes o conhecimento
Donde jorra a inspiração
O público iria confundir
E anularia a seguir
A função
Que pelo mundo desdobra
A excelência duma obra.
366 – Cima
Nada podemos desvendar
De exterior
Por cima de nós próprios passando.
O Universo é o espelho onde contemplar
Podemos
Apenas, melhor ou pior,
Aquilo que aprendemos
A ir em nós próprios delineando.
Por cima de nós passando
Não há nada que amemos
De nós em lugar:
Não o lograremos sequer supor,
Quanto mais decifrar!
367 – Máquina
Quando a grande máquina nos reduz a animais,
Devir animais não deveremos.
Podemos sobreviver um pouco mais?
Importa que tal seja o que queremos,
Da iniquidade a testemunhar os sinais,
Importa salvar o esqueleto, os pilares
Da cultura no que resta dos lugares.
Escravos somos, de direito privados,
À injúria expostos,
À morte condenados?
Uma faculdade nos resta entre os desgostos,
A derradeira a defender elém do tormento:
O poder de negar o nosso consentimento.
Temos de caminhar direitos,
Sem arrastar as socas,
Para nos mantermos vivos, escorreitos,
Para não começarmos a morrer nas tocas.
368 – Talhá-la
Criar a beleza
É concebê-la,
Talhá-la na carne, do sangue na represa.
A dor ao êxtase se alinha, paralela,
Ambos na contradição
Que firme nos calceta o chão.
369 – Idênticos
Nascer e morrer idênticos são,
O meio, porém, sempre é diferente.
Épicos somos, com medo ao trovão,
Sempre a escapar do raio à tangente.
Um longo trajecto,
Um trilho sinuoso,
Precipício sem tecto,
Oceano brumoso,
Onde quer que estejamos,
Lutamos
E, se estamos aqui,
- É que tu venceste, é que eu venci!
370 – Creias
Não creias muito no dever,
Antes crê no entusiasmo.
A ilusão sempre há-de ser
Mais produtiva, de pasmo,
Que um dever qualquer.
371 – Sentir
O sentir do povo devemos procurar
Como os nautas o rumo dos ventos,
Que nos vejam comungar
Da cidade nos bons e maus eventos.
Não para, folha inerte na corrente,
Aos tombos a corrente ir trambulhar,
Antes para, aceitando-a, inteligente,
Ao invés, se for o caso, bolinar.
Uma chefia exigente
Tanto vai pela corrente
Como a altera, destemida,
Quando ao lado corre a vida.
372 – Primeiro
Não é questão, primeiro, de enricar o pobre,
Mas de restituir-lhe a honra que lhe sobre.
Forte nem fraco podem, evidentemente,
Sobreviver sem honra permanentemente.
O fraco, porém, requer
Mais honra que outro qualquer
Que a debilidade
Fecunda lhe grade.