QUARTO TROVÁRIO

 

 

 

DESFIO OS TRAÇOS DO QUE FOR ROSTO DE DEUS

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 373 e 492 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

                                               

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                373 – Desfio os traços do que for rosto de Deus

 

                                                Desfio os traços do que for rosto de Deus

                                                A toda a volta de meu lar, de meu enleio,

                                                Nos campos verdes, nas pessoas, casitéus,

                                                Nas mãos que lutam, organismos, nos plebeus,

                                                Na gente-bem, em tudo quanto me tem cheio…

 

                                                Identifico nestes versos assimétricos,

                                                Desencontrando cada ritmo na procura,

                                                Como os tenteios pelo escuro buscam tétricos

                                                Rimar na vida das vertentes a figura.

 

                                                Cada pendor um lado mostra de outro lado,

                                                Então meus pés trôpegos vão na rua escura

                                                Seguindo o fogo que entrevejo além ateado.

 

                                                A minha trilha é o saber mudo que há num mouco,

Se não é sol, ao menos luar alveja um pouco.

 

374 – Verdade

 

A verdade,

Um raio de luz coado

Por um vidro facetado,

É o esplendor

De mil estilhas de cor.

 

Apenas persuade

A evidência

Que me grade.

 

E, no derradeiro verso,

Com infatigável persistência

Incendeia o Universo.

 

 

375 – Todos

 

Todos nós

Criamos

(E carregamos

Após)

O inferno ou paraíso

Dentro de nós.

 

De morrer não preciso

Para que para um deles vá:

- Já moro lá!

 

 

376 – Hoje

 

Ontem é história,

Amanhã, mistério.

Hoje é a glória

A sério

Na dádiva evidente,

- Por isso lhe chamamos presente.

 

 

377 – Esquadrinhadores

 

Esquadrinhadores da informação

Deviemos,

Da salada mediática no cachão

Escolhemos,

Servimo-nos pavio a pavio,

Como miúdos com fastio:

De tão mal empanturrados,

Acabamos para aqui todos definhados.

 

 

378 – Fala

 

O inteligente fala de ideias,

De coisas fala o povo comum.

Além cheias,

Aqui meias,

Ambas são palavras boas

Para nosso desjejum.

 

O medíocre, porém, fala de pessoas

 

 

379 – Livros

 

Lugar

Sem livros é frio,

Seja idade, país ou lar.

É o afundar do navio,

A abismal quebrada na falésia,

O mudo cataclismo

Do tombo no abismo,

Recanto deserto como uma amnésia.

 

Lugar

Sem livros é frio:

Não há desafio

Que sonhar,

Nem de meta o esticado fio

Para enfrentar

E quebrar.

 

 

380 – Tentames

 

A democracia

É tal qual o movimento:

Nada no-la demonstraria

Senão o acto em que eu a invento,

Tentames de aperfeiçoamento

Fortalecendo-a à medida

Que progride,

Matando-a, se interrompida.

 

Como ao sarmento da vide,

Como à vida,

Ninguém pode implorar à democracia:

Fica mais um pouco, hiberna,

Finge que não vês a via,

Não bulas, põe-te mais terna,

Que melhor tempo virá,

 

- Porque ela então findará.

 

Não fraqueja meramente,

Morre logo no lugar,

Sem, definitivamente,

Jeito de ressuscitar.

 

 

381 – Tempo

 

O tempo vai passando,

Arrastando os pés silentes.

À medida que os olhos se vão acostumando

Às escuridões jacentes,

Examino os vestígios

Da civilização desaparecida,

Os fastígios

Da pretérita vida,

A aventura de anos-luz dos astros…

 

Como sou pequeno,

Aqui de rastros,

Como o são as actuais raças humanas

Quando com o Tempo as irmanas,

Dele no percurso interminável e pleno!

 

Que importância teria

Para alguém

Se um zé-ninguém

Perdido num insignificante planeta de periferia,

Grão de pó entre as estrelas,

Vivia ou morria

Do Tempo nas sequelas?

Se finda entre os restos mortais

Dum povo, dum continente, duma cultura

Que nada são doravante mais?

Em séculos distantes

Toda aquela pléiade de povos se há comprometido

Com ideias fascinantes,

Causas perdidas, um sonho esquecido,

Agora sem qualquer significado

Para ninguém.

Como também

Que importa se fiéis, honrados se hão conservado

Ou se perjuros hão morrido?

 

Do Tempo na vastidão

A quem importaria

Que eu seja ou não bem sucedido,

Se tropeço estendido no chão

Ou mesmo se hei vivido algum dia?

 

 

382 – Quão

 

Quão maior a igualdade,

Maior a diferença,

Quão maior a diferença,

Maior a igualdade.

 

Não somos feitos, na realidade,

Em modelos repetidos por sentença.

 

Se somos pronto-a-vestir

É que alguém por aí quer ir.

 

Podemos vestir geniais

Modelos únicos como os mais:

 

Então, quão mais igualdade,

Mais diverge de verdade.

 

De ser eu mesmo o direito

É o mesmo dos demais todos

E então todo o mundo a eito

São mil e um diversos modos.

 

 

383 – Navio

 

Neste navio da escola

Irás esquecer-me,

Como todos os passageiros me esqueceram.

Enquanto o mar da vida enrola,

Da memória o verme

Vai matando as aventuras que ocorreram.

Terá de ser assim.

 

Por mim,

Gostei de todos vós,

Dos que se uniram juntos até ao fim

Durante a travessia,

Do drama da vida repletos e sós,

Cheios

De receios

De falharem a  prova da viagem algum dia.

Todos belos, todos frágeis,

Como de meu barco a travessia,

Como as flores e as borboletas

Efémeras e ágeis

Que só vivem uma manhã de fantasia,

Como as vossas metas,

Taças de champanhe um nada após vazias,

Mas sobrevivendo num brilho dos olhos,

Num jeito da fala,

No trejeito de transpor escolhos,

De transpor a vida para outra escala.

 

E perene a reminiscência

Guarda o sabor destas vulneráveis travessias,

Destas vidas fugidias,

Da espuma de champanhe, florescência

Dum cintilar de olhos encantados.

 

Tudo luzes, tudo,

No escuro de mares encapelados,

Vago alvor com que me escudo…

- Porque o que importa é a luz

Que foi sempre o que nos seduziu e me seduz.

 

 

384 – Imaginário

 

O imaginário dos quinze anos

Não cuida do presente, senão

Para julgá-lo importuno com tantos desenganos,

Contrário à ilusão

Que é mais preciosa, afinal,

Que quaisquer promessas da vida real.

 

Aos quinze anos, a alegria

Mora nos mil mantos da fantasia.

 

 

385 – Recreia

 

A varanda

Solta o olhar que avalia,

Recreia o enclausurado em demasia

E o que de freimas consumido ciranda.

 

Lugar de aprazível pausa,

Discreta, nem confessa

Quantas vezes refunda e começa

Nela a primeira causa.

 

 

386 – Ambições

 

De ambições a epidemia

Não se extingue jamais

Por inteiro nos corpos sociais.

É o que promoveu, pelos séculos volvidos,

A História, dia a dia,

Em todos os sentidos.

 

 

387 – Estado

 

A tristeza

Como os poetas são tristes

É um estado de riqueza.

Algumas crianças que vistes

Tristes

Têm imenso feitiço:

E quanta beleza há nisso!

 

É um estado de riqueza

Esta pobreza

Engendrada pela alquimia

Da poesia.

 

 

388 – Insignificantes

 

Sermos insignificantes é o que em nós borbota

Paixões que nem se imaginam!

Depois nada acontece de nota

Naquilo a que nos inclinam.

 

Então, como a insignificância não inculpa,

Serve-nos de desculpa.

 

 

389 – Ofício

 

O ofício aprende de mulhar,

Como uma telegrafista

Em todos os botões aprende a mexer

Que a tornam benquista,

Da comunidade em proveito.

Aprende, quer de risco como criatura,

Quer de boa reputação

Que maior risco figura

No escondido jeito

De inerme a terem todos à mão.

 

Aprende o ofício de mulher

Ou margem alguma terá de vir a ser.

 

 

390 – Nunca

 

Nunca uma mulher

Meia-mulher obrigada a viver

É capaz de admirar,

A não ser

Que se convença de então partilhar

O talento de quenquer.

 

De afecto meio servil,

Tem o desejo oculto de ver

Tudo a falhar rasteiro e vil.

Ver falhar é dela a volúpia favorita,

Por isso ama os tristes e mal encarados,

Vítimas da desdita,

Propensos a serem atropelados

Pela vida ou por qualquer piada maldita.

 

São os irmãos dela,

Irmanados numa vida à pisadela.

 

 

391 – Escritor

 

O escritor é um tronco morto

De árvore serrada,

Rebola-se das palavras pelo horto,

Ignora o sexo a jogar

À apanhada

Com as palavras, num contínuo rebolar.

 

É um castrado

Mas tem o mundo inteiro fecundado.

 

 

392 – Incólume

 

Do homem se a pequenez

Incólume não ficar,

Se, de vez,

Da transcendência a não delimitar,

Decompõe-se a fragilidade humana

E finda em depressão,

Ao vento desgarrada pragana

Soprada do chão.

 

É tão antiga esta guerra

Como a vida mental na terra.

 

Homem feito deus absoluto

É morte e luto.

 

 

393 – Catadupa

 

Ninguém suporta

A falta de significação.

A catadupa de palavras importa

Como aproximação

Do significado do real.

 

A técnica não substitui o pensamento,

O grito racional,

É, porém, mais calmante do tormento,

Torna-o discreto:

A técnica traz com ela o folheto

Com a significação;

- A pessoa, não!

 

 

394 – Cósmica

 

Na cósmica perspectiva

Cada qual é precioso

Porque único, sem alternativa.

 

De nós se discorda alguém,

Se no que afirma não me entroso,

Deixemo-lo viver, porém:

 

De galáxias em centenas de biliões

Como ele não há mesmo mais ninguém

Perdido nas infindas solidões.

 

 

395 – Igreja

 

Até uma igreja romana,

Rígida em ortodoxia,

Descobre que se dana,

Ao pretender sobreviver,

Se a língua do dia-a-dia

Não fala de quenquer.

 

Todavia,

A comunidade científica,

Máquina de muda radical,

Antiautoritária por natureza,

Castiga, beatífica,

Qualquer membro do rebanho processional

Quando aos não iniciados

Divulgar preza

Os mistérios revelados.

 

Um divulgador

Deixa logo de ser um digno cientista,

É um papagaio palrador

A quem servem alpista.

 

Eternamente Galileu

Há-de ver recusado o céu…

 

 

396 – Ecologia

 

A ecologia é subversiva:

Quando é feito um esforço sério

Logo uma teia esquiva

Dum incontornável império

De privilégios económico-sociais

Estabelecidos

Armadilha os pantanais

E acabamos perdidos.

 

Qualquer muda maior

Em algo que anda errado

Extravasa do cercado,

Espalha-se em redor,

Propaga-se à colectividade

Como um polvo que a invade.

 

É difícil isolar

Fragmentos da comunidade

E alterá-los sem provocar

Ondulações em todos os bairros da cidade.

 

Importa, porém, não desistir:

É o preço do porvir.

 

 

397 – Vista

 

A Terra vista do espaço:

Um mundo minúsculo,

Um ponto escasso,

Frágil e delicado

A desvanecer-se ao crepúsculo,

Tão vulnerável do homem à depredação!

Um ridículo prado

Dos céus em meio à imensidão.

 

 

398 – Vislumbram

 

O mundo, a vida, toda a gente,

Não se vislumbram iguais

Do campanário duma torre ingente,

Dum píncaro de serrania, perdidos nos pedregais,

Ou à nossa volta

Como grei à solta.

 

É precisa a lonjura

Para descobrir a vera dimensão

De cada figura

No contexto que lhe mede a pulsação.

 

 

399 – Preguiça

 

Maligna influência

De esgotar as energias

É a complacência:

O poder de reagir entorpece,

Gera preguiça mental, fantasias…

 

É primeiro síndroma a satisfação,

Entre tudo o que acontece,

Com as coisas tais quais são.

O segundo é tentar promover

O que poderia merecer

A rejeição.

 

“Tudo está bem como está”

É a palavra de ordem chã,

Onde quer que vá,

De hoje como de amanhã.

 

A complacência teme o ignoto,

Desconfia do que não experimentou,

O novo abomina.

Como as águas da mina,

O cano roto,

Trilham o rego que se lhes deparou,

Cobre a complacência a via mais fácil a quenquer:

A que descer.

 

Busca falsa energia

Olhando para trás.

De seu,

Faz e refaz

O que havia

E já morreu.

 

 

400 – Humor

 

Humor não é pregada

Partida

Nem piada,

É forma de estar na vida,

É um dom, uma graça.

- Ilumina cada jornada

E todos nos congraça.

 

 

401 – Halo

 

O efeito de halo rodeia

Qualquer indivíduo ou objecto tidos

Por irremediavelmente perdidos.

Razão que ameia

Na veneração pelo passado:

Como já passou,

Ninguém mais o logrou

Haver recuperado.

 

Então, do que foi antes, o que diviso

É definitivamente um paraíso.

 

 

402 – Opinião

 

Porque a opinião é que manda,

Uma vez configurada a opinião

Raramente mudamos

O fio que nos comanda.

A não ser que sejamos

Subvertidos por outra razão

Com argumento mais convincente

Que o que nos cativa a mente.

 

Tendemos a mais ouvir

Aqueles que de poder

Ocuparem posições,

Não quem a cargos nem a empresas presidir,

Mas quem real o detiver:

Jornalistas das televisões,

De rádio apresentadores…

 

Há-de ter cada qual

As opiniões melhores,

Senão

Por que lhe dariam aquele pedestal,

Trono de comunicação

Sem rival?

 

 

403 – Político

 

Político não perdoa

Poder eu fazer o que ele faz

E ele não ser capaz

Do que quenquer apregoa.

Político não nos premeia,

Odeia.

 

E a nossa maior desgraça

É que, de maior sem deixar recordação,

O político passa

Mas isto, não.

 

 

404 – Fórmula

 

Não é uma fórmula a pessoa,

Delimitada,

Definitiva.

Nenhuma história pode, à toa,

Ser contada,

De mil ideias cativa

Abstractas.

E menos ainda a narrativa

Pode ser trocada

Pelas medidas exactas

Do conceito,

A imagem apelativa

Dissecada

Em proclamação ou interpelação

Do sujeito,

Morto o estremecimento e a emoção.

 

Jamais a vida inteira,

Mesmo no mais pequeno troço,

Fica da palavra prisioneira

Que lhe endosso.

 

 

405 – Perito

 

Sinais

Terrenos:

O perito sabe cada vez mais

Acerca de cada vez menos.

 

Não me iludo

No sentido da jornada:

No limite saberá tudo

Acerca de nada!

 

 

406 – Real

 

Não há como contar

Como o real acontece,

Que é já sempre interpretar.

Não há da messe

Descrição,

Por mais viva,

Não há narrativa

Sem interpretação.

 

O real, de mim a par,

É sempre um outro lugar.

 

 

407 – Sabor

 

Mercadores a negociar,

Príncipes rumo às caçadas,

Enlutados os mortos a chorar,

Prostitutas a ofertar-se nas estradas,

Médicos com os doentes,

Padres a abençoarem sementeiras,

Amantes a amarem, renitentes,

Mães a embalarem, fagueiras,

- Tudo isto nada vale,

Tudo mente no que anuncia,

Tudo cheira a ilusão visceral,

Tudo sentido e sorte e beleza fingia

Quando em podridão oculta,

Afinal, me sepulta.

 

Tudo o que tenho a cargo

Grita, no que invento,

Que o mundo tem sabor amargo,

A vida é sofrimento.

 

- Onde, onde a saída

No dédalo perdida?

 

 

408 – Todo

 

Com a Estrela Polar,

O azul é todo azul

À sonoite a me piscar,

Estendendo sobre o mundo o véu de tule.

 

O rio Tejo é muito rio

E, quando o uno divino de que me fio,

No azul e no rio oculto vive,

Então, justamente,

É a forma de o espírito divino com que eu prive

Ser ali azul, além amarelo,

Ser floresta e céu

E cabana e castelo

E semente

- E aqui ser Eu!

 

O Espírito, o Ser, Deus não vive

Algures das coisas por detrás.

Sempre que um vislumbre tive,

Estava nelas, eficaz,

Em todas elas,

Como, à luz do dia,

As estrelas lá estão,

As estrelas,

Que apenas o sol me apagaria

Da visão.

- Ora, esta ausência é que é ilusão,

Como a noite prenuncia.

 

 

409 – Tempo

 

Com o rio aprendeste

Este segredo,

Este:

O tempo não existe.

O rio é igual em toda a parte,

Saltitante ou quedo.

Na fonte e na foz idêntico persiste,

No molhe, na catarata,

No rápido, no lago que o reparte,

Na montanha onde um cachão desata…

 

- Perenemente igual,

Ele apenas é presente,

Nenhum passado o ensombra, ritual,

Nem o futuro, eterno ausente.

 

Quem na derradeira profundidade o vir

Há-de reparar

Que o presente contém lá todo o porvir

Como todo o passado que nele vem desaguar.

 

Assim é que no rio descobriste

Que o tempo não existe.

 

E dele nesta profundeza, aí,

Te descobriste como és em ti.

 

 

410 – Contrário

 

Para cada verdade

O contrário é verdade igualmente.

A verdade apenas se deixa exprimir,

Envolver das palavras na ambiguidade,

Quando é parcial e parcialmente

Mente.

Tudo o que ser pensado de mim exigir,

Com palavras dito,

É parcial e parcialidade

É tudo o que medito,

Sempre inelutável metade.

 

A tudo falta a totalidade,

Apenas pressinto o Uno universal,

A Unidade

Integral.

 

Serei sempre metade de mim

Até ao fim.

  

 

411 – Caminho

 

Não há outro caminho senão caminho meio

Para quem queira avançar.

Mas o mundo é a cheio,

O que me rodeia e de que me rodeio,

De mim a par

Ou por mim dentro, abismal,

Jamais é parcial.

 

O Todo,

Porém,

Nunca fica ao alcance a que se atém

O meu modo.

 

 

412 – Ilusão

 

A ilusão das ilusões

É a de que o tempo é real.

Ora, o tempo não existe,

No fundo de meus fundões:

O que é fundamental

Sempre lhe resiste,

Persistente

E fatal.

 

E, se o tempo não existe,

Também não existe a aparente

Diferença

Entre mundo e eternidade,

Dor e bem-aventurança,

Rejeição e bem-querença,

A bondade e a maldade…

 

- O que o saber ali alcança,

Após toda a divisão,

É também uma ilusão.

O que o coração invade

E o descansa

É a primordial Unidade.

 

 

413 – Tenta

 

A sabedoria

Não pode ser partilhada.

Quando o sábio o tenta, a procura

Atribulada,

A cada hora, em cada dia,

Soa permanentemente a loucura.

 

Ora, um sábio louco

Sabe sempre a pouco.

 

 

414 – Hábitos

 

Os hábitos se criam

E se perdem

Ou acaso se esvaziam,

Quantas vezes sem porquê!

Mas, enquanto nos herdem e deserdem,

São as andas que nos têm de pé.

 

 

415 – Significar

 

Um gesto, uma palavra, um nada

Podem significar muito

Ou então coisa nenhuma:

Depende a parada

Do que neles cada qual, gratuito,

Queira ver, em suma.

Em si, deles o potencial

É para tudo igual.

 

 

416 – Origem

 

De germe na fase,

As convicções

Têm por base

Humílimas emoções,

Por muito que isto mal nos case

E a revolta nos abrase

De tãos rasteiras certidões.

 

 

417 – Acerta

 

Entre do livro o saber

E o saber da vida,

Quem acerta, de seguida,

É a vida que ao fim vier:

A vida é que tem saber.

 

 

418 – Usura

 

O pior inimigo

Do que tem algum valor

Não é o mal que abrigo,

Que, aliás, custa um ror,

 

- É aquilo que é rotineiro.

Para além das fantasias,

O inimigo figadal e derradeiro

É a usura dos dias.

 

 

419 – Retorna

 

Ninguém retorna ao passado,

A sina

É retomar a jornada

Que nos destina.

E nada

Nem ninguém para trás voltado

Vale a pena,

A não ser para ver os lugares

De quando a vida era pequena,

O fumo longínquo dos lares

Onde dormimos outrora

A esfumar-se no horizonte,

Entre a bruma que demora

Das recordações na ponte.

 

E tudo logo se esvai

Quando a pancada do presente cai.

 

 

420 – Imagino

 

Ser herói

Sei lá bem a quem acode!

Não são coisas que se aprazem…

 

Mas imagino que foi

Quem fez o que pôde.

Os outros não o fazem.

 

 

421 – Intencionada

 

É frequente

Bem intencionada

Gente

Incapaz de apreciar uma obra nova,

Ficar encantada

Sinceramente

Quando a obra sobreviveu vinte anos à prova

Da existência.

 

Exala odor demasiado forte

Para as cabeças fracas

Da vida nova a excelência,

Precisam que o tempo corte

Os eflúvios das lacas,

Diluídos ao sopro do vento.

 

A obra de arte apenas lhes devém inteligível,

Sem inabordáveis arcanos,

No momento

Em que a recubra, visível,

A pátina dos anos.

 

 

422 – Dispõe

 

O homem dispõe de tão pouca força

Que, na primeira subida,

Estaca, ofegante, esgotada corça,

E poucos, no rebanho maninho,

A fronte erguida,

Retomam fôlego para retomar caminho.

 

 

423 – Alguns

 

Alguns permanecem admiráveis violinos

Eternamente nas caizas encerrados

De alguém à falta dos dedos finos

Que tocá-los saibam afinados.

 

E os feitos para lhes tirar os sons,

Ei-los a vida toda forçados,

Destituídos de dons,

A contentar-se, em noitadas pecas,

Com míseras e insuportáveis rabecas.

 

Os desencontros da vida

São nossa norma e medida.

 

 

424 – Valor

 

Para si um belo corpo

Não terá valor artístico,

Nem uma paixão que encorpo,

Místico?

 

Não suspeita

Quanto a beleza duma figura

Perfeita

Embeleza a pintura

Que a retrata

Como a duma grande alma transfigura

A da música que desata.

 

Apenas ao trabalho, obra bem feita,

Se aplica

E deixa à porta

O que, afinal, significa,

Tão pouco lhe importa?

 

Não ouve a mensagem do orador,

Apenas o som da voz,

Olha sem poder supor

O que o gesto aponta após:

Faz gala,

Porém,

De achar que ele fala

Tremendamente bem!

 

Sem admitir desdoiro

Nem perda,

É você um escrínio de oiro

Cheio de merda.

 

O nome lhe declino:

- Cretino!

 

 

425 – Crenças

 

Dos homens a maioria

Vive as vidas ancoradas

Em crenças, por empatia

Religiosa, moral, social

Ou prática, quando de obras comprovadas,

Como a crença laboral

Na profissional carreira

Ou numa urgência cimeira

Que tenha um papel na vida,

- Crenças em que cada qual,

De seguida,

Não crê deveras, afinal.

 

Não lhes importa, porém,

Pois, para viver, carecem

Dum simulacro de fé,

Dum culto oficial que lhes convém

Manter de pé

E de que todos sacerdotes parecem.

 

- Com saudades duma fé verdadeira

Que se lhes perdeu na carreira.

 

 

426 – Comove

 

Não vai ser a mais bela região

Nem aquela onde a vida é mais suave

Que mais comove o coração.

A que mais fundo nele se grave

É aquela onde é mais simples a terra,

Mais humilde, ao homem mais chegada,

Falando-lhe linguagem terra-a-terra

Na paz ou na guerra,

Íntima e familiar como uma namorada.

 

Esta que se me aferra

É que me agrada.

 

 

427 – Membros

 

Os membros da família habituados a ver-se,

Da semelhança nem vão aperceber-se.

 

O estranho, tocado pela semelhança,

Exagera-a e nada mais do que ela alcança.

 

Assim as artes presentes

Caricaturam os grandes antepassados

E estes, entrementes,

Aparecem apenas caricaturados:

Em ambos os lados,

Apenas ausentes.

 

Em tal contexto, é tão difícil ver

O tamanho de ser!

 

 

428 – Única

 

Quando tanta gente afirme

Ser única detentora

Da única verdade,

Já ninguém neles crê firme

E, não demora,

Nem eles crêem em tal imbecilidade.

 

Saltam para o extremo oposto:

Depois de saberem tudo,

Agora aposto

Que jurarão não saber nada.

E deles volta a ser dever de honra, sobretudo,

Gritar a nova revelação sagrada.

 

- E sempre a mesma é a fatuidade

Que delira

Nestes filhos da inverdade

E da mentira.

 

 

429 – Fraco

 

Era fraco e, portanto,

Feito para agradar ao mundo

Que perdoa tanto

Todos os vícios, todas as virtudes

No rio da vida fecundo.

 

Todas, salvo aquela com que o não iludes,

O tição

Cujo lume os metais torça:

- A força, a Força,

De todas as outras virtudes condição.

 

 

430 – Enganam

 

Nunca se enganam, nunca, apenas

Os que nada operam,

Não sofrem glórias nem penas

Que os actos geram.

 

O erro que se esforça

Pela verdade viva,

Já que orça

Ao custo do que se lhe esquiva,

Triste ou jucundo

Na viela torta,

É, porém, mais fecundo

Que a verdade morta.

 

 

431 – Píncaros

 

Dos píncaros do pensamento,

Onde sonham espíritos por inteiro abertos à luz,

Olho a meus pés as encostas da montanha

Onde o escol heróico e lento

Luta pela fé viva que o infindo lhe traduz.

 

Seja qual for a fé tamanha,

Forceja e assume

Eternamente escalar o cume:

Lideram eles a luta contra a ignorância,

A moléstia, a miséria, a intolerância,

Numa febre de inventos,

Delírio ponderado de Prometeus, Ícaros modernos

À conquista do fogo, isentos,

Rompendo estradas pelos espaços supernos,

Combatendo, gigantescos, a perene surpresa

Do esforço da ciência contra a natureza.

 

Um pouco abaixo, a turba silenciosa,

Homens e mulheres de boa vontade,

Corações bravos e humildes de mão laboriosa,

Que de mil trabalhos arrostam com a grade,

Atingem a meia encosta

E não podem ir mais acima,

Duma vida mediana presos à aposta,

Queimando-se com secretos unguentos,

No clima

De obscuros devotamentos.

 

Mais fundo, no sopé da montanha,

No estreito desfiladeiro entre encostas escarpadas,

A batalha sem fim que ninguém ganha:

Os fanáticos de ideias dogmatizadas,

De instintos cegos,

Comprimindo-se, furiosos,

Sem suspeitarem que fora dos pegos,

Acima da muralha que os retém

De rochedos clamorosos,

Afinal, há um além.

 

Mais abaixo ainda, os pantanais

E o rebanho a espojar-se na própria imundície

Dos tremedais

Sempre à podre superfície.

 

E, ao longo dos flancos da montanha,

Por toda a parte, aqui e ali,

O marco de quem ganha

Em meio ao frenesi:

- Das artes as flores frescas,

Da música os morangueiros perfumados,

O canto das fontes de entalhe principescas,

Dos poetas de toda a fantasia

Os pássaros alados

Da Via.

 

 

432 – Livre

 

Livre, dono do próprio pensamento,

Mas eis-me arrastado contra vontade:

Outra vontade obscura alimento

Que contra a minha me invade.

 

Descubro então o dono ignoto,

A força invisível e sem engano

Cujas leis, noto,

Governam o mar humano.

 

Sou eu e não sou

Que pelos meus pés aqui vou.

 

 

433 – Destino

 

O destino deixa ir mil descuidados

Pelas malhas da rede

E vinga-se de prudentes e atilados

Que previnem o que ele pede.

 

É o eterno tropeço

Do mundo avesso.

 

 

434 – Embota

 

A alta roda debilita,

Embota as energias.

Nela, o carácter que foi original, ao invés, imita,

E às fantasias

A que este, ao germinar, se entrosa,

Com rapidez ela as apaga espantosa.

 

O jovem de seiva e génio pejado,

Pelo ópio da fama anulado,

Cuida apenas em respirar e fruir

Da bajulação

Com que alegremente o asfixiarão:

Apenas importa gozar e dormir…

 

Dentro de vinte anos

É como este velho mestre adulado,

Célebre, rico,

Membro de todas as academias de enganos,

Ao topo chegado,

Mas sempre a correr para o penico,

Medroso da opinião, do poder e da imprensa,

Não ousando murmurar o que pensa.

Aliás, já nem pensando,

Já não existindo,

Apenas se exibindo,

Brando,

Mero asno carregado,

O trote torto,

Com as próprias relíquias do passado

Morto.

 

 

435 – Cometeu

 

Vinte vezes quase

Cometeu as piores tolices.

Mudou de fase

Antes que as visses…

É o adolescente,

Animalzinho exasperado

Que todos já fomos,

Ao abismo ingente

Quase jogado,

Este um suicídio tendo em mente,

Aquele, se lhe apetece,

Nos braços prelibando os pomos

Da primeira que lhe aparece…

 

Felizmente, a fase

Termina, em regra, no quase.

 

 

436 – Verdes

 

Nos verdes anos ficamos lisonjeados

Com o presságio de desgraças mais tardias:

De longe, os horrores vêm aureolados

De poesias.

E nada tememos tanto, ao trepar pela subida,

Como a mediocridade da vida.

 

 

437 – Prática

 

Arte que não tem por contrapeso

Um ofício

E por base que prezo

Duma forte vida prática o benefício,

Arte que não sofre na carne o aguilhão

Da freima quotidiana,

Que não precisa de ganhar o pão,

Perde o melhor da realidade

E toda a gana

Com que a fade.

 

É do luxo a flor,

Já não é, como na grande arte,

O fruto aparte,

Sagrado, do humano suor.

 

 

438 – Língua

 

Não é uma língua universal

A música em todos e quaisquer modos:

O arco das palavras requer em geral

Para a flecha dos sons levar

A penetrar

No espírito de todos.

 

 

439 – Permanecem

 

Dentre todos, os maiores

Maiores permanecem, mas na posteridade.

Efeito do tempo e da distância,

As montanhas alteiam os pendores

Com majestade,

À medida que delas nos afastamos.

Tal altura alcance-a

Da lonjura nosso olhar, logo a vemos melhor,

Mais longe, porém, nos encontramos.

 

E afinal, todavia, por trás do sol-pôr

Quem nos garante

Que da noite em meio ao negror

Não se implante

Outra montanha maior?

 

Eternamente brada cada Galileu

Por justiça em tempo dele ao céu.

 

 

440 – Tragédias

 

Tantos mundos ignotos!

Quantas tragédias ignoradas

Das vidas mais calmas nos fundos remotos,

Mesmo dos mais íntimos alheadas,

Vidas grandes, das mais medíocres na aparência!

Quanta angústia apaixonada

Para a eternidade refechada!

Quanta ausência! Quanta ausência!

 

Como viver o vivido

É isto de andar tão distraído!

 

 

441 – Salário

 

A diferença entre o salário

Dum bom jogador de futebol

E dum bom solista de orquestra

É o valor indiciário

Do nível cultural com que bole

A comunidade que os adestra.

 

Quando o solista morre à fome

É a comunidade de que se consome.

 

 

442 – Girar

 

A imitação

É que o mundo faz girar.

Representada, porém, a função,

Logo se há-de tornar

Na matéria-prima

De toda a comédia que nos redima.

 

 

443 – Pobre

 

Durante uma vida inteira

Vivi a vida à maneira

 

Do pobre petiz

Que tem colado o nariz

À montra da pastelaria

Vendo dos outros a alegria,

 

Dos outros, do que ele até mais tolos,

Lá dentro a comer os bolos!

 

- E tal é da vida a sina

Que a todos nos destina.

 

 

444 – Defeitos

 

Aos defeitos humanos atam-nos dois sacos

Que usamos um ao peito e outro às costas.

Doutrem os defeitos no da frente ensaco-os,

Os meus, no de trás, as más apostas.

 

Assim, ando a vida inteira

Os defeitos de outrem a ver

E nada jamais me inteira

Do que com os meus houver.

 

 

445 – Profundamente

 

Profundamente creio

Que é o Universo que se exprime como deve:

Leio,

Logo ele escreve.

 

E, quando escrevo,

A quem o devo?

 

Penso,

Logo existo:

- E donde me vem o senso

Em cujo fio de lâmina subsisto?

 

 

446 – Lenços

 

Os lenços acenando

Cada vez mais pequenos

Na lonjura,

Ante nada e ninguém se desfraldando,

Saudade pura,

Já quase mal terrenos,

São de toda a vida

A partida

Do derradeiro cais se desprendendo,

Sem alternativa de regresso,

O caminho absurdo desvanecendo,

Assim,

Do fim sem recomeço.

Do fim.

 

 

447 – Irrelevante

 

Há-de a verdade ser una, infragmentada,

Enquanto a realidade, senão explodiria,

Há-de ser dispersa, irrelevante, um quase nada,

Escorregando em nosso jejum,

Dia a dia,

Literalmente para lugar nenhum.

 

 

448 – Crença

 

Numa crença colectiva qualquer,

Religiosa ou social,

Raros são os que acabam por crer,

Que bem raros são os homens, afinal.

 

É a fé uma força heróica

E o fogo que dela emana

Queima apenas alguma rara tocha humana

E mesmo esta, quando estóica

Cintila,

Quantas vezes vacila!

 

 

449 – Acreditar

 

O prazer de acreditar que numa causa se acredita,

Que por ela se luta na dita e na desdita,

 

Ou então que se lutará um dia

Ou, pelo menos, que lutar se poderia!…

 

Não é mesmo mau pensar

Que algo andamos a arriscar.

 

- Como quando um actor, em meio às ilusões,

Desata a andar a quatro,

Tudo não são mais do que emoções

De teatro.

 

 

450 – Aristocrata

 

O aristocrata por mérito e vocação

Devém democrata acaso por despeito,

Só para encontrar de inferiores a multidão,

Dele pares pelo preceito.

 

Importa obrigar então o inferior

A reconhecer-se como tal:

Uma autoridade erigir para impor

A convencida supremacia do pedante escol

Oriundo de qualquer estrato social

Que fútil visa o pretenso sublime,

Do número contra o intérmino rol

Que pretensamente o oprime.

 

 

 

451 – Perfume

 

O perfume dos sonhos se evola

Logo que os queira fixar.

O melhor de mim não poderei nunca exprimi-lo,

Pois meu imo é um vale florido que se desenrola

Num lugar

Cujo recesso

É sigilo,

Ninguém lhe logra ter acesso.

E as flores, mal sejam colhidas,

Logo fanam, emurchecidas.

 

 

452 – Aparência

 

As verdadeiras mágoas

São, na aparência, tranquilas

No leito fundo de escavadas águas

Onde parecem dormir em ordenadas filas,

Mas onde, por trás da aparente calma,

Continuam a corroer a alma.

 

 

453 – Razão

 

A razão sacralizada

Que a frio afirma e nega

É um sol cru na dura estrada,

Ilumina mas cega.

 

Nesta luz seca,

Sem sombras nem nevoeiros,

As almas medram descoradas, fruta peca,

E o sangue escoa dos corações em avaros atoleiros.

 

 

454 – Maioria

 

A maioria não dispõe, não,

De vida bastante

Para alguém se entregar inteiro à grande paixão:

Com usura se poupará constante.

 

São de tudo um pouco, de entrada,

E completamente não são nada.

 

 

455 – Traz

 

O muito traz o pouco:

Não há pior doente,

Doente mais louco

Que aquele que se ilude

E acaba dependente

Após ter muita saúde.

 

 

456 – Vemos

 

Vemos o que somos,

Não o que poderíamos ter sido.

Então louvam-nos da fruta pelos gomos

Que são menos o efeito do que houvermos agido

Que dos eventos que nos impelem

E das energias que nos dirigem.

 

E quantas vezes nos repelem

Quando somos, afinal, apenas o que exigem!

 

 

457 – Berlindes

 

De cinco berlindes a vida é um jogo:

Trabalho,

Família, saúde, amigos, integridade.

 

Se no trabalho me afogo

E me perco do que valho,

Então jogo-o fora e, na verdade,

De novo este berlinde ressalta,

Que é de borracha.

 

Mas família, saúde, amigos, integridade,

Qualquer destoutros se lhe falta

A protecção

Onde encaixa

E cai no chão,

Porque de vidro são feitos,

Ficam em estilhas desfeitos.

 

E não há cola nem arte

Que refaça algum deles que se parte.

 

 

458 – Quartos

 

Na vida normal

As almas comuns são quartos fechados

E lá dentro estiolam guardados

Vícios e virtudes, forças em geral,

Cujo uso na praça

Nos embaraça.

 

A sábia razão prática

E o pusilânime bom senso

Guardam a chave automática

Deste quarto em que nem penso.

 

Apenas mostram, arrumados como convinha,

Alguns armários às escuras.

 

As artes, porém, trazem a mágica varinha

Que faz cair as fechaduras.

 

 

 

 

459 – Crês

 

Crês que teu pensamento

A outro pensamento pode comunicar-se?

Não há relacionamento

Senão entre palavras,

O mais é o engano dum disfarce.

Dizes e ouves termos e o sentido que lhes lavras,

Mesmo nos usos mais correntes,

Jamais é o mesmo em duas bocas diferentes.

 

Isto, aliás, ainda não é nada:

Nenhuma palavra, por mais bem compreendida,

Diz, além da fachada,

O sentido inteiro da vida.

 

As palavras desbordam da realidade existente:

Nelas ela acaba perdida definitivamente.

 

 

460 – Povo

 

Não é impunemente

Que pertencemos ao povo destruidor

Do Ocidente,

Ao que com todo o ardor,

Destrói para construir

E constrói para destruir,

Que brinca com as ideias e com a vida,

Que tábua rasa faz constantemente

De tudo com que lida

Para atear um fogo

Em que o que está em jogo, radical,

É, desde logo,

O próprio sangue vital.

 

- É um risco,

Mas somos deste aprisco.

 

 

461 – Direito

 

Antigamente, era o direito do mais forte,

Hoje é o do mais fraco.

Tiro à sorte

Qual o mais odioso, o mais velhaco.

É que este debilita o pensamento de hoje

E os fortes explora e tiraniza.

Eis dele a divisa:

Suga e foge!

 

É um mérito actualmente

Ser pobre, estúpido e doentio,

Um vencido definitivamente,

E é vício ser forte, triunfante e sadio.

 

Quando a inversão chega a este ponto,

Afinal, quam anda tonto?

 

 

462 – Modelar


O carpinteiro

Tem a pecha

De modelar o madeiro;

O frecheiro,

A flecha.

 

- O sábio, na sequela,

A si próprio se modela.

 

 

463 – Descobrir

 

Filosofar

É o pessoal temperamento

Sondar

E, a partir de tal

Momento,

A tentativa

De descobrir a verdade viva.

 

Individual

E colectiva

E universal.

 

 

464 – Governação

 

A governação do género humano

Vem de dois, não dum soberano:

A dor e o prazer.

Além de determinarem o que fazer

Sem dano,

Deliberam do dever.

 

O mais é derivação

Que, sem engano,

Tem por chão

De fundo este pano.

 

 

465 – Solidão

 

A solidão reduz a pó

O mais depurado ideal

Dos céus:

Para viver só

É preciso ser um animal

Ou um deus.

 

 

466 – Prisioneiros

 

Quando todos ficamos

Prisioneiros da uniformidade

Jamais enricamos

Com a diversidade

Que, harmoniosa,

Torna a vida gostosa.

A humanidade inteira

Mecanizada,

Que parada

Mais tonta

De soldados de brincadeira,

De gente de faz-de-conta!

 

 

467 – Facto

 

Nenhum facto existente

Pode ser descoberto

Sem uma razão suficiente

Para ser aquele facto certo

E não qualquer outro diferente.

 

 

468 – Ideia

 

O fogo queima por igual

Nos antípodas e aqui.

A ideia varia, por meu mal,

Conforme o lugar onde a recolhi:

A verdade aqui é um erro além

- E juiz supremo não é ninguém.

 

 

469 – Realista

 

Aos quinze anos queria aprender,

Aos trinta tinha os pés no chão,

Aos quarenta já não aderia a um dado qualquer,

Aos cinquenta sabia distinguir lei natural

De opinião,

Aos sessenta ouvia dócil aquela lei, a única fatal,

Aos setenta podia seguir o coração,

Então,

Que o que ele deseja de além,

Realista e visceral,

É apenas o que ficar na aldeia do bem.

 

- Eis o itinerário da via

Que trilha a sabedoria.

 

 

470 – Segue

 

Não existem acasos:

Uma coisa segue outra, após,

Por uma razão suficiente

Para não ser diferente,

Embora, na maioria dos casos,

Seja uma razão desconhecida por nós.

 

 

471 – Acerto

 

Sabedoria

Não é conhecimento.

E não compreender

O que andamos a fazer.

Jamais, portanto, implicaria,

Como argumento,

Que não estejamos, nem de longe nem de perto,

A fazer o que está certo.

 

Pelo contrário,

Tente-se o que se tente,

O acerto ou desacerto

É muitas vezes vário

E daquilo independente.

 

 

472 – Espreitar

 

Quando todo o mundo compreende e insiste

Que a beleza é bela,

Então a fealdade existe,

A espreitar pela janela.

Quando todos compreendem que é boa a bondade,

Então existe deveras a maldade.

 

Sem o contrapolo do contrário

Como reparar no ser primário?

 

 

473 – Salta

 

Ninguém salta para lugar algum

Vindo de nenhum lugar:

Sempre em qualquer um

Acabamos por estar.

 

Mesmo que não queiramos

Permanecer

Onde no momento estamos

Ou nem saibamos

Sequer

Onde nos encontramos,

Deixar de estar não vamos

Poder

Num determinado ponto concreto

De nosso trajecto.

 

 

474 – Olha

 

Olha o inevitável o sábio

E decide que não é inevitável.

 

O homem comum ao que não é inevitável

Olha-o, sabe-o

E decide que é inevitável.

 

Entre o livre e o fatal

Corre, irrefragável,

A fronteira real.

  

 

475 – Limites

 

Dentro dos limites de nossa língua

Somos cativos,

Enfronhados em nossa cultura vivemos à míngua

Dos quadros vivos

Das demais,

E da nossa experiência de vida,

Além do mais,

Vivemos na fronteira proibida.

 

De tudo o que vives e arquivas

Geras criaturas inevitavelmente cativas.

 

 

476 – Impensável

 

Impensável pensamento

Não existe e o argumento

É tentar

Pensar um pensamento

Que não possamos pensar.

 

 

477 – Junção

 

Construir as próprias opiniões

Pela junção das dos demais

É ficar a parecer-se com os tais,

Sem mais ilusões

De autonomia nem autenticidade reais.

Assim é que um autómato parece por inteiro

Um homem verdadeiro.

 

 

478 – Fio

 

Que fio de destino

Afinal se doba?

Cordel com que no labirinto atino

Ou cadeia que as pegadas me rouba?

 

Podê-lo-ei cortar,

Partir,

Torcer,

Ou, eterno a me enquadrar,

Perene meu porvir

Há-de envolver?

 

Os dois sentidos, afinal,

Ele em si reconcilia,

Por meu bem e por meu mal,

E deles teço o que me tece cada dia.

 

 

479 – Jardim

 

Um jardim é natureza domesticada,

Natureza-cão,

De ano para ano mais assemelhada

Ao dono, o patrão.

E, tal como um cão, precisa de cuidados

Constantemente renovados.

Ou morre abandonado,

Da doença presa,

Bocado de natureza

Asselvajado.

 

Um jardim,

Se o olhar desenganado,

É um pedaço de mim.

 

 

480 – Lanterna

 

A felicidade está para a alegria

Como a lanterna para o sol.

Depende a felicidade do objecto que a anuncia,

Sem ele, nada bole.

 

A alegria, não,

Não tem objecto.

Sem qualquer aparente razão,

É o sol a brilhar em meu tecto,

Arde em festa na gratuita combustão

De seu discreto

Coração.

 

 

481 – Galhos

 

Para o comum da gente

Resta o destino dos galhos ou das folhas

Que, de repente,

O vento joga ao leito do rio.

 

No calafrio

Das fatais molhas,

Em vez de ir ao fundo, flutuamos,

Pelo material de que somos feitos.

Já uma vitória isto julgamos

E deslizamos, à correnteza afeitos,

Velozes, para onde nos arrasta.

 

Às vezes, uma raiz, uma pedra obrigam a parar.

Ali retidos, nada nos afasta,

Até que a água trepe e volte a nos soltar.

 

Quando o curso é tranquilo,

À superfície vamos

E mergulhamos

Quando os rápidos bradam outro estilo.

Não sabemos para onde vamos,

E nunca ninguém pergunta.

Nos troços mais calmos, logramos

Ver a paisagem, diques, silvados…

As formas são o que se junta

Entre os despenhadeiros apressados.

 

 

Quando os diques correm baixo

E o rio vai alargando,

Pergunto “onde me encaixo,

Vou para onde, vou quando?”

 

Nesse instante,

À nossa frente, singular,

O infinito mar

Abre-se logo ali adiante.

 

- E é quando a aventura já está prestes a acabar.

 

 

482 – Mente

 

A mente usada demais

Da realidade que nos rodeia

Capta apenas uma parte restrita.

Impera ali então

Dos sinais

A confusão,

Porque de palavras fica cheia

E a palavra incita,

Não ao lugar mais amplo da realidade toda,

Mas a uma intérmina dança de roda.

 

 

483 – Pensamento

 

Todo o pensamento anda ocupado

No futuro ou no passado.

 

No presente não pensamos:

É só quando, a partir dele, o futuro encaminhamos.

 

Nunca o presente é o nosso fim:

Passado e presente, assim,

 

São meios com que asseguro

O fim – o futuro.

 

Nunca vivemos, pois, mas esperamos viver.

Preparando-nos interminavelmente para ser

 

Felizes, um dia, sempre em vão,

É fatal que nunca o sejamos então.

 

 

484 – Dignidade

 

A dignidade de alguém

Pode ser atacada, vandalizada,

Posta a ridículo também.

Mas não pode ser tirada,

A menos que ele renuncie à dignidade que tem.

 

 

485 – Vida

 

A vida não é uma coisa, um substantivo,

É uma acção,

Um verbo, um verbo transitivo,

É aquilo que alguém agir ou não.

 

Ou nem sequer,

Que a realidade o não consente:

Não há vida, há viver,

Tão somente.

 

 

486 – Original

 

Ao original a solidão o cria,

O belo ousado e estranho

Cria a poesia.

Mas cria também o distorcido,

O desproporcionado tamanho,

O absurdo e o proibido.

 

O génio emparceira

Na adivinha

Com a peneira

De triar o rolão da farinha.

 

 

487 – Lado

 

Do lado de lá da janela há mundo

E há mundo do lado de cá.

Talvez o eu mais não seja, no fundo,

Que a janela por onde o mundo olha o mundo

E é tudo, afinal, quanto haverá.

 

 

488 – Transforma

 

O desejo de ordem

Transforma o mundo humano

Num reino inorgânico onde os gritos não acordem,

Onde tudo funciona sem dano

Nem engano,

Bem regulado,

Onde por uma vontade impessoal

O todo é comandado

Num jeito fatal.

 

É um desejo de morte,

Porque a vida

É violação da ordem perpétua e desmedida,

É jogada à sorte.

 

E o pretexto da virtude mascararia

O ódio do homem contra o homem,

A justificar a malfeitoria

Dos letais intuitos que o consomem.

 

 

489 – Pregão

 

Há quem vista de pregão tonitruante

De dúvidas a nudez,

De ideias o vazio:

- É o fanatismo impante

Da pequenez,

À razão agrilhoada a esganar por um fio.

 

 

490 – Silêncio

 

Quando à verdade o silêncio a substituíra,

É o silêncio uma mentira.

 

 

491 – Demora

 

Muito nos demora a complexidade

A suspeitarmos da realidade,

Quanto mais quenquer

Lográ-la aprender!

 

Dura idades, gerações:

- Tacanhos somos aos milhões e milhões.

 

 

492 – Concerto

 

A vida um destino

Singular

Apura:

É um concerto de violuno

Que aprendo a tocar

Justamente enquanto dura.