DESFIO OS TRAÇOS DO QUE FOR ROSTO DE DEUS
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um número aleatório entre 373 e 492 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
373 – Desfio os traços do que for rosto de Deus
Desfio os traços do que for rosto de Deus
A toda a volta de meu lar, de meu enleio,
Nos campos verdes, nas pessoas, casitéus,
Nas mãos que lutam, organismos, nos plebeus,
Na gente-bem, em tudo quanto me tem cheio…
Identifico nestes versos assimétricos,
Desencontrando cada ritmo na procura,
Como os tenteios pelo escuro buscam tétricos
Rimar na vida das vertentes a figura.
Cada pendor um lado mostra de outro lado,
Então meus pés trôpegos vão na rua escura
Seguindo o fogo que entrevejo além ateado.
A minha trilha é o saber mudo que há num mouco,
Se não é sol, ao menos luar
alveja um pouco.
374 – Verdade
A verdade,
Um raio de luz coado
Por um vidro facetado,
É o esplendor
De mil estilhas de cor.
Apenas persuade
A evidência
Que me grade.
E, no derradeiro verso,
Com infatigável persistência
Incendeia o Universo.
375 – Todos
Todos nós
Criamos
(E carregamos
Após)
O inferno ou paraíso
Dentro de nós.
De morrer não preciso
Para que para um deles vá:
- Já moro lá!
376 – Hoje
Ontem é história,
Amanhã, mistério.
Hoje é a glória
A sério
Na dádiva evidente,
- Por isso lhe chamamos presente.
377 – Esquadrinhadores
Esquadrinhadores da informação
Deviemos,
Da salada mediática no cachão
Escolhemos,
Servimo-nos pavio a pavio,
Como miúdos com fastio:
De tão mal empanturrados,
Acabamos para aqui todos definhados.
378 – Fala
O inteligente fala de ideias,
De coisas fala o povo comum.
Além cheias,
Aqui meias,
Ambas são palavras boas
Para nosso desjejum.
O medíocre, porém, fala de pessoas…
379 – Livros
Lugar
Sem livros é frio,
Seja idade, país ou lar.
É o afundar do navio,
A abismal quebrada na falésia,
O mudo cataclismo
Do tombo no abismo,
Recanto deserto como uma amnésia.
Lugar
Sem livros é frio:
Não há desafio
Que sonhar,
Nem de meta o esticado fio
Para enfrentar
E quebrar.
380 – Tentames
A democracia
É tal qual o movimento:
Nada no-la demonstraria
Senão o acto em que eu a invento,
Tentames de aperfeiçoamento
Fortalecendo-a à medida
Que progride,
Matando-a, se interrompida.
Como ao sarmento da vide,
Como à vida,
Ninguém pode implorar à democracia:
Fica mais um pouco, hiberna,
Finge que não vês a via,
Não bulas, põe-te mais terna,
Que melhor tempo virá,
- Porque ela então findará.
Não fraqueja meramente,
Morre logo no lugar,
Sem, definitivamente,
Jeito de ressuscitar.
381 – Tempo
O tempo vai passando,
Arrastando os pés silentes.
À medida que os olhos se vão acostumando
Às escuridões jacentes,
Examino os vestígios
Da civilização desaparecida,
Os fastígios
Da pretérita vida,
A aventura de anos-luz dos astros…
Como sou pequeno,
Aqui de rastros,
Como o são as actuais raças humanas
Quando com o Tempo as irmanas,
Dele no percurso interminável e pleno!
Que importância teria
Para alguém
Se um zé-ninguém
Perdido num insignificante planeta de periferia,
Grão de pó entre as estrelas,
Vivia ou morria
Do Tempo nas sequelas?
Se finda entre os restos mortais
Dum povo, dum continente, duma cultura
Que nada são doravante mais?
Em séculos distantes
Toda aquela pléiade de povos se há comprometido
Com ideias fascinantes,
Causas perdidas, um sonho esquecido,
Agora sem qualquer significado
Para ninguém.
Como também
Que importa se fiéis, honrados se hão conservado
Ou se perjuros hão morrido?
Do Tempo na vastidão
A quem importaria
Que eu seja ou não bem sucedido,
Se tropeço estendido no chão
Ou mesmo se hei vivido algum dia?
382 – Quão
Quão maior a igualdade,
Maior a diferença,
Quão maior a diferença,
Maior a igualdade.
Não somos feitos, na realidade,
Em modelos repetidos por sentença.
Se somos pronto-a-vestir
É que alguém por aí quer ir.
Podemos vestir geniais
Modelos únicos como os mais:
Então, quão mais igualdade,
Mais diverge de verdade.
De ser eu mesmo o direito
É o mesmo dos demais todos
E então todo o mundo a eito
São mil e um diversos modos.
383 – Navio
Neste navio da escola
Irás esquecer-me,
Como todos os passageiros me esqueceram.
Enquanto o mar da vida enrola,
Da memória o verme
Vai matando as aventuras que ocorreram.
Terá de ser assim.
Por mim,
Gostei de todos vós,
Dos que se uniram juntos até ao fim
Durante a travessia,
Do drama da vida repletos e sós,
Cheios
De receios
De falharem a prova da viagem algum dia.
Todos belos, todos frágeis,
Como de meu barco a travessia,
Como as flores e as borboletas
Efémeras e ágeis
Que só vivem uma manhã de fantasia,
Como as vossas metas,
Taças de champanhe um nada após vazias,
Mas sobrevivendo num brilho dos olhos,
Num jeito da fala,
No trejeito de transpor escolhos,
De transpor a vida para outra escala.
E perene a reminiscência
Guarda o sabor destas vulneráveis travessias,
Destas vidas fugidias,
Da espuma de champanhe, florescência
Dum cintilar de olhos encantados.
Tudo luzes, tudo,
No escuro de mares encapelados,
Vago alvor com que me escudo…
- Porque o que importa é a luz
Que foi sempre o que nos seduziu e me seduz.
384 – Imaginário
O imaginário dos quinze anos
Não cuida do presente, senão
Para julgá-lo importuno com tantos desenganos,
Contrário à ilusão
Que é mais preciosa, afinal,
Que quaisquer promessas da vida real.
Aos quinze anos, a alegria
Mora nos mil mantos da fantasia.
385 – Recreia
A varanda
Solta o olhar que avalia,
Recreia o enclausurado em demasia
E o que de freimas consumido ciranda.
Lugar de aprazível pausa,
Discreta, nem confessa
Quantas vezes refunda e começa
Nela a primeira causa.
386 – Ambições
De ambições a epidemia
Não se extingue jamais
Por inteiro nos corpos sociais.
É o que promoveu, pelos séculos volvidos,
A História, dia a dia,
Em todos os sentidos.
387 – Estado
A tristeza
Como os poetas são tristes
É um estado de riqueza.
Algumas crianças que vistes
Tristes
Têm imenso feitiço:
E quanta beleza há nisso!
É um estado de riqueza
Esta pobreza
Engendrada pela alquimia
Da poesia.
388 – Insignificantes
Sermos insignificantes é o que em nós borbota
Paixões que nem se imaginam!
Depois nada acontece de nota
Naquilo a que nos inclinam.
Então, como a insignificância não inculpa,
Serve-nos de desculpa.
389 – Ofício
O ofício aprende de mulhar,
Como uma telegrafista
Em todos os botões aprende a mexer
Que a tornam benquista,
Da comunidade em proveito.
Aprende, quer de risco como criatura,
Quer de boa reputação
Que maior risco figura
No escondido jeito
De inerme a terem todos à mão.
Aprende o ofício de mulher
Ou margem alguma terá de vir a ser.
390 – Nunca
Nunca uma mulher
Meia-mulher obrigada a viver
É capaz de admirar,
A não ser
Que se convença de então partilhar
O talento de quenquer.
De afecto meio servil,
Tem o desejo oculto de ver
Tudo a falhar rasteiro e vil.
Ver falhar é dela a volúpia favorita,
Por isso ama os tristes e mal encarados,
Vítimas da desdita,
Propensos a serem atropelados
Pela vida ou por qualquer piada maldita.
São os irmãos dela,
Irmanados numa vida à pisadela.
391 – Escritor
O escritor é um tronco morto
De árvore serrada,
Rebola-se das palavras pelo horto,
Ignora o sexo a jogar
À apanhada
Com as palavras, num contínuo rebolar.
É um castrado
Mas tem o mundo inteiro fecundado.
392 – Incólume
Do homem se a pequenez
Incólume não ficar,
Se, de vez,
Da transcendência a não delimitar,
Decompõe-se a fragilidade humana
E finda em depressão,
Ao vento desgarrada pragana
Soprada do chão.
É tão antiga esta guerra
Como a vida mental na terra.
Homem feito deus absoluto
É morte e luto.
393 – Catadupa
Ninguém suporta
A falta de significação.
A catadupa de palavras importa
Como aproximação
Do significado do real.
A técnica não substitui o pensamento,
O grito racional,
É, porém, mais calmante do tormento,
Torna-o discreto:
A técnica traz com ela o folheto
Com a significação;
- A pessoa, não!
394 – Cósmica
Na cósmica perspectiva
Cada qual é precioso
Porque único, sem alternativa.
De nós se discorda alguém,
Se no que afirma não me entroso,
Deixemo-lo viver, porém:
De galáxias em centenas de biliões
Como ele não há mesmo mais ninguém
Perdido nas infindas solidões.
395 – Igreja
Até uma igreja romana,
Rígida em ortodoxia,
Descobre que se dana,
Ao pretender sobreviver,
Se a língua do dia-a-dia
Não fala de quenquer.
Todavia,
A comunidade científica,
Máquina de muda radical,
Antiautoritária por natureza,
Castiga, beatífica,
Qualquer membro do rebanho processional
Quando aos não iniciados
Divulgar preza
Os mistérios revelados.
Um divulgador
Deixa logo de ser um digno cientista,
É um papagaio palrador
A quem servem alpista.
Eternamente Galileu
Há-de ver recusado o céu…
396 – Ecologia
A ecologia é subversiva:
Quando é feito um esforço sério
Logo uma teia esquiva
Dum incontornável império
De privilégios económico-sociais
Estabelecidos
Armadilha os pantanais
E acabamos perdidos.
Qualquer muda maior
Em algo que anda errado
Extravasa do cercado,
Espalha-se em redor,
Propaga-se à colectividade
Como um polvo que a invade.
É difícil isolar
Fragmentos da comunidade
E alterá-los sem provocar
Ondulações em todos os bairros da cidade.
Importa, porém, não desistir:
É o preço do porvir.
397 – Vista
A Terra vista do espaço:
Um mundo minúsculo,
Um ponto escasso,
Frágil e delicado
A desvanecer-se ao crepúsculo,
Tão vulnerável do homem à depredação!
Um ridículo prado
Dos céus em meio à imensidão.
398 – Vislumbram
O mundo, a vida, toda a gente,
Não se vislumbram iguais
Do campanário duma torre ingente,
Dum píncaro de serrania, perdidos nos pedregais,
Ou à nossa volta
Como grei à solta.
É precisa a lonjura
Para descobrir a vera dimensão
De cada figura
No contexto que lhe mede a pulsação.
399 – Preguiça
Maligna influência
De esgotar as energias
É a complacência:
O poder de reagir entorpece,
Gera preguiça mental, fantasias…
É primeiro síndroma a satisfação,
Entre tudo o que acontece,
Com as coisas tais quais são.
O segundo é tentar promover
O que poderia merecer
A rejeição.
“Tudo está bem como está”
É a palavra de ordem chã,
Onde quer que vá,
De hoje como de amanhã.
A complacência teme o ignoto,
Desconfia do que não experimentou,
O novo abomina.
Como as águas da mina,
O cano roto,
Trilham o rego que se lhes deparou,
Cobre a complacência a via mais fácil a quenquer:
A que descer.
Busca falsa energia
Olhando para trás.
De seu,
Faz e refaz
O que havia
E já morreu.
400 – Humor
Humor não é pregada
Partida
Nem piada,
É forma de estar na vida,
É um dom, uma graça.
- Ilumina cada jornada
E todos nos congraça.
401 – Halo
O efeito de halo rodeia
Qualquer indivíduo ou objecto tidos
Por irremediavelmente perdidos.
Razão que ameia
Na veneração pelo passado:
Como já passou,
Ninguém mais o logrou
Haver recuperado.
Então, do que foi antes, o que diviso
É definitivamente um paraíso.
402 – Opinião
Porque a opinião é que manda,
Uma vez configurada a opinião
Raramente mudamos
O fio que nos comanda.
A não ser que sejamos
Subvertidos por outra razão
Com argumento mais convincente
Que o que nos cativa a mente.
Tendemos a mais ouvir
Aqueles que de poder
Ocuparem posições,
Não quem a cargos nem a empresas presidir,
Mas quem real o detiver:
Jornalistas das televisões,
De rádio apresentadores…
Há-de ter cada qual
As opiniões melhores,
Senão
Por que lhe dariam aquele pedestal,
Trono de comunicação
Sem rival?
403 – Político
Político não perdoa
Poder eu fazer o que ele faz
E ele não ser capaz
Do que quenquer apregoa.
Político não nos premeia,
Odeia.
E a nossa maior desgraça
É que, de maior sem deixar recordação,
O político passa
Mas isto, não.
404 – Fórmula
Não é uma fórmula a pessoa,
Delimitada,
Definitiva.
Nenhuma história pode, à toa,
Ser contada,
De mil ideias cativa
Abstractas.
E menos ainda a narrativa
Pode ser trocada
Pelas medidas exactas
Do conceito,
A imagem apelativa
Dissecada
Em proclamação ou interpelação
Do sujeito,
Morto o estremecimento e a emoção.
Jamais a vida inteira,
Mesmo no mais pequeno troço,
Fica da palavra prisioneira
Que lhe endosso.
405 – Perito
Sinais
Terrenos:
O perito sabe cada vez mais
Acerca de cada vez menos.
Não me iludo
No sentido da jornada:
No limite saberá tudo
Acerca de nada!
406 – Real
Não há como contar
Como o real acontece,
Que é já sempre interpretar.
Não há da messe
Descrição,
Por mais viva,
Não há narrativa
Sem interpretação.
O real, de mim a par,
É sempre um outro lugar.
407 – Sabor
Mercadores a negociar,
Príncipes rumo às caçadas,
Enlutados os mortos a chorar,
Prostitutas a ofertar-se nas estradas,
Médicos com os doentes,
Padres a abençoarem sementeiras,
Amantes a amarem, renitentes,
Mães a embalarem, fagueiras,
- Tudo isto nada vale,
Tudo mente no que anuncia,
Tudo cheira a ilusão visceral,
Tudo sentido e sorte e beleza fingia
Quando em podridão oculta,
Afinal, me sepulta.
Tudo o que tenho a cargo
Grita, no que invento,
Que o mundo tem sabor amargo,
A vida é sofrimento.
- Onde, onde a saída
No dédalo perdida?
408 – Todo
Com a Estrela Polar,
O azul é todo azul
À sonoite a me piscar,
Estendendo sobre o mundo o véu de tule.
O rio Tejo é muito rio
E, quando o uno divino de que me fio,
No azul e no rio oculto vive,
Então, justamente,
É a forma de o espírito divino com que eu prive
Ser ali azul, além amarelo,
Ser floresta e céu
E cabana e castelo
E semente
- E aqui ser Eu!
O Espírito, o Ser, Deus não vive
Algures das coisas por detrás.
Sempre que um vislumbre tive,
Estava nelas, eficaz,
Em todas elas,
Como, à luz do dia,
As estrelas lá estão,
As estrelas,
Que apenas o sol me apagaria
Da visão.
- Ora, esta ausência é que é ilusão,
Como a noite prenuncia.
409 – Tempo
Com o rio aprendeste
Este segredo,
Este:
O tempo não existe.
O rio é igual em toda a parte,
Saltitante ou quedo.
Na fonte e na foz idêntico persiste,
No molhe, na catarata,
No rápido, no lago que o reparte,
Na montanha onde um cachão desata…
- Perenemente igual,
Ele apenas é presente,
Nenhum passado o ensombra, ritual,
Nem o futuro, eterno ausente.
Quem na derradeira profundidade o vir
Há-de reparar
Que o presente contém lá todo o porvir
Como todo o passado que nele vem desaguar.
Assim é que no rio descobriste
Que o tempo não existe.
E dele nesta profundeza, aí,
Te descobriste como és em ti.
410 – Contrário
Para cada verdade
O contrário é verdade igualmente.
A verdade apenas se deixa exprimir,
Envolver das palavras na ambiguidade,
Quando é parcial e parcialmente
Mente.
Tudo o que ser pensado de mim exigir,
Com palavras dito,
É parcial e parcialidade
É tudo o que medito,
Sempre inelutável metade.
A tudo falta a totalidade,
Apenas pressinto o Uno universal,
A Unidade
Integral.
Serei sempre metade de mim
Até ao fim.
411 – Caminho
Não há outro caminho senão caminho meio
Para quem queira avançar.
Mas o mundo é a cheio,
O que me rodeia e de que me rodeio,
De mim a par
Ou por mim dentro, abismal,
Jamais é parcial.
O Todo,
Porém,
Nunca fica ao alcance a que se atém
O meu modo.
412 – Ilusão
A ilusão das ilusões
É a de que o tempo é real.
Ora, o tempo não existe,
No fundo de meus fundões:
O que é fundamental
Sempre lhe resiste,
Persistente
E fatal.
E, se o tempo não existe,
Também não existe a aparente
Diferença
Entre mundo e eternidade,
Dor e bem-aventurança,
Rejeição e bem-querença,
A bondade e a maldade…
- O que o saber ali alcança,
Após toda a divisão,
É também uma ilusão.
O que o coração invade
E o descansa
É a primordial Unidade.
413 – Tenta
A sabedoria
Não pode ser partilhada.
Quando o sábio o tenta, a procura
Atribulada,
A cada hora, em cada dia,
Soa permanentemente a loucura.
Ora, um sábio louco
Sabe sempre a pouco.
414 – Hábitos
Os hábitos se criam
E se perdem
Ou acaso se esvaziam,
Quantas vezes sem porquê!
Mas, enquanto nos herdem e deserdem,
São as andas que nos têm de pé.
415 – Significar
Um gesto, uma palavra, um nada
Podem significar muito
Ou então coisa nenhuma:
Depende a parada
Do que neles cada qual, gratuito,
Queira ver, em suma.
Em si, deles o potencial
É para tudo igual.
416 – Origem
De germe na fase,
As convicções
Têm por base
Humílimas emoções,
Por muito que isto mal nos case
E a revolta nos abrase
De tãos rasteiras certidões.
417 – Acerta
Entre do livro o saber
E o saber da vida,
Quem acerta, de seguida,
É a vida que ao fim vier:
A vida é que tem saber.
418 – Usura
O pior inimigo
Do que tem algum valor
Não é o mal que abrigo,
Que, aliás, custa um ror,
- É aquilo que é rotineiro.
Para além das fantasias,
O inimigo figadal e derradeiro
É a usura dos dias.
419 – Retorna
Ninguém retorna ao passado,
A sina
É retomar a jornada
Que nos destina.
E nada
Nem ninguém para trás voltado
Vale a pena,
A não ser para ver os lugares
De quando a vida era pequena,
O fumo longínquo dos lares
Onde dormimos outrora
A esfumar-se no horizonte,
Entre a bruma que demora
Das recordações na ponte.
E tudo logo se esvai
Quando a pancada do presente cai.
420 – Imagino
Ser herói
Sei lá bem a quem acode!
Não são coisas que se aprazem…
Mas imagino que foi
Quem fez o que pôde.
Os outros não o fazem.
421 – Intencionada
É frequente
Bem intencionada
Gente
Incapaz de apreciar uma obra nova,
Ficar encantada
Sinceramente
Quando a obra sobreviveu vinte anos à prova
Da existência.
Exala odor demasiado forte
Para as cabeças fracas
Da vida nova a excelência,
Precisam que o tempo corte
Os eflúvios das lacas,
Diluídos ao sopro do vento.
A obra de arte apenas lhes devém inteligível,
Sem inabordáveis arcanos,
No momento
Em que a recubra, visível,
A pátina dos anos.
422 – Dispõe
O homem dispõe de tão pouca força
Que, na primeira subida,
Estaca, ofegante, esgotada corça,
E poucos, no rebanho maninho,
A fronte erguida,
Retomam fôlego para retomar caminho.
423 – Alguns
Alguns permanecem admiráveis violinos
Eternamente nas caizas encerrados
De alguém à falta dos dedos finos
Que tocá-los saibam afinados.
E os feitos para lhes tirar os sons,
Ei-los a vida toda forçados,
Destituídos de dons,
A contentar-se, em noitadas pecas,
Com míseras e insuportáveis rabecas.
Os desencontros da vida
São nossa norma e medida.
424 – Valor
Para si um belo corpo
Não terá valor artístico,
Nem uma paixão que encorpo,
Místico?
Não suspeita
Quanto a beleza duma figura
Perfeita
Embeleza a pintura
Que a retrata
Como a duma grande alma transfigura
A da música que desata.
Apenas ao trabalho, obra bem feita,
Se aplica
E deixa à porta
O que, afinal, significa,
Tão pouco lhe importa?
Não ouve a mensagem do orador,
Apenas o som da voz,
Olha sem poder supor
O que o gesto aponta após:
Faz gala,
Porém,
De achar que ele fala
Tremendamente bem!
Sem admitir desdoiro
Nem perda,
É você um escrínio de oiro
Cheio de merda.
O nome lhe declino:
- Cretino!
425 – Crenças
Dos homens a maioria
Vive as vidas ancoradas
Em crenças, por empatia
Religiosa, moral, social
Ou prática, quando de obras comprovadas,
Como a crença laboral
Na profissional carreira
Ou numa urgência cimeira
Que tenha um papel na vida,
- Crenças em que cada qual,
De seguida,
Não crê deveras, afinal.
Não lhes importa, porém,
Pois, para viver, carecem
Dum simulacro de fé,
Dum culto oficial que lhes convém
Manter de pé
E de que todos sacerdotes parecem.
- Com saudades duma fé verdadeira
Que se lhes perdeu na carreira.
426 – Comove
Não vai ser a mais bela região
Nem aquela onde a vida é mais suave
Que mais comove o coração.
A que mais fundo nele se grave
É aquela onde é mais simples a terra,
Mais humilde, ao homem mais chegada,
Falando-lhe linguagem terra-a-terra
Na paz ou na guerra,
Íntima e familiar como uma namorada.
Esta que se me aferra
É que me agrada.
427 – Membros
Os membros da família habituados a ver-se,
Da semelhança nem vão aperceber-se.
O estranho, tocado pela semelhança,
Exagera-a e nada mais do que ela alcança.
Assim as artes presentes
Caricaturam os grandes antepassados
E estes, entrementes,
Aparecem apenas caricaturados:
Em ambos os lados,
Apenas ausentes.
Em tal contexto, é tão difícil ver
O tamanho de ser!
428 – Única
Quando tanta gente afirme
Ser única detentora
Da única verdade,
Já ninguém neles crê firme
E, não demora,
Nem eles crêem em tal imbecilidade.
Saltam para o extremo oposto:
Depois de saberem tudo,
Agora aposto
Que jurarão não saber nada.
E deles volta a ser dever de honra, sobretudo,
Gritar a nova revelação sagrada.
- E sempre a mesma é a fatuidade
Que delira
Nestes filhos da inverdade
E da mentira.
429 – Fraco
Era fraco e, portanto,
Feito para agradar ao mundo
Que perdoa tanto
Todos os vícios, todas as virtudes
No rio da vida fecundo.
Todas, salvo aquela com que o não iludes,
O tição
Cujo lume os metais torça:
- A força, a Força,
De todas as outras virtudes condição.
430 – Enganam
Nunca se enganam, nunca, apenas
Os que nada operam,
Não sofrem glórias nem penas
Que os actos geram.
O erro que se esforça
Pela verdade viva,
Já que orça
Ao custo do que se lhe esquiva,
Triste ou jucundo
Na viela torta,
É, porém, mais fecundo
Que a verdade morta.
431 – Píncaros
Dos píncaros do pensamento,
Onde sonham espíritos por inteiro abertos à luz,
Olho a meus pés as encostas da montanha
Onde o escol heróico e lento
Luta pela fé viva que o infindo lhe traduz.
Seja qual for a fé tamanha,
Forceja e assume
Eternamente escalar o cume:
Lideram eles a luta contra a ignorância,
A moléstia, a miséria, a intolerância,
Numa febre de inventos,
Delírio ponderado de Prometeus, Ícaros modernos
À conquista do fogo, isentos,
Rompendo estradas pelos espaços supernos,
Combatendo, gigantescos, a perene surpresa
Do esforço da ciência contra a natureza.
Um pouco abaixo, a turba silenciosa,
Homens e mulheres de boa vontade,
Corações bravos e humildes de mão laboriosa,
Que de mil trabalhos arrostam com a grade,
Atingem a meia encosta
E não podem ir mais acima,
Duma vida mediana presos à aposta,
Queimando-se com secretos unguentos,
No clima
De obscuros devotamentos.
Mais fundo, no sopé da montanha,
No estreito desfiladeiro entre encostas
escarpadas,
A batalha sem fim que ninguém ganha:
Os fanáticos de ideias dogmatizadas,
De instintos cegos,
Comprimindo-se, furiosos,
Sem suspeitarem que fora dos pegos,
Acima da muralha que os retém
De rochedos clamorosos,
Afinal, há um além.
Mais abaixo ainda, os pantanais
E o rebanho a espojar-se na própria imundície
Dos tremedais
Sempre à podre superfície.
E, ao longo dos flancos da montanha,
Por toda a parte, aqui e ali,
O marco de quem ganha
Em meio ao frenesi:
- Das artes as flores frescas,
Da música os morangueiros perfumados,
O canto das fontes de entalhe principescas,
Dos poetas de toda a fantasia
Os pássaros alados
Da Via.
432 – Livre
Livre, dono do próprio pensamento,
Mas eis-me arrastado contra vontade:
Outra vontade obscura alimento
Que contra a minha me invade.
Descubro então o dono ignoto,
A força invisível e sem engano
Cujas leis, noto,
Governam o mar humano.
Sou eu e não sou
Que pelos meus pés aqui vou.
433 – Destino
O destino deixa ir mil descuidados
Pelas malhas da rede
E vinga-se de prudentes e atilados
Que previnem o que ele pede.
É o eterno tropeço
Do mundo avesso.
434 – Embota
A alta roda debilita,
Embota as energias.
Nela, o carácter que foi original, ao invés,
imita,
E às fantasias
A que este, ao germinar, se entrosa,
Com rapidez ela as apaga espantosa.
O jovem de seiva e génio pejado,
Pelo ópio da fama anulado,
Cuida apenas em respirar e fruir
Da bajulação
Com que alegremente o asfixiarão:
Apenas importa gozar e dormir…
Dentro de vinte anos
É como este velho mestre adulado,
Célebre, rico,
Membro de todas as academias de enganos,
Ao topo chegado,
Mas sempre a correr para o penico,
Medroso da opinião, do poder e da imprensa,
Não ousando murmurar o que pensa.
Aliás, já nem pensando,
Já não existindo,
Apenas se exibindo,
Brando,
Mero asno carregado,
O trote torto,
Com as próprias relíquias do passado
Morto.
435 – Cometeu
Vinte vezes quase
Cometeu as piores tolices.
Mudou de fase
Antes que as visses…
É o adolescente,
Animalzinho exasperado
Que todos já fomos,
Ao abismo ingente
Quase jogado,
Este um suicídio tendo em mente,
Aquele, se lhe apetece,
Nos braços prelibando os pomos
Da primeira que lhe aparece…
Felizmente, a fase
Termina, em regra, no quase.
436 – Verdes
Nos verdes anos ficamos lisonjeados
Com o presságio de desgraças mais tardias:
De longe, os horrores vêm aureolados
De poesias.
E nada tememos tanto, ao trepar pela subida,
Como a mediocridade da vida.
437 – Prática
Arte que não tem por contrapeso
Um ofício
E por base que prezo
Duma forte vida prática o benefício,
Arte que não sofre na carne o aguilhão
Da freima quotidiana,
Que não precisa de ganhar o pão,
Perde o melhor da realidade
E toda a gana
Com que a fade.
É do luxo a flor,
Já não é, como na grande arte,
O fruto aparte,
Sagrado, do humano suor.
438 – Língua
Não é uma língua universal
A música em todos e quaisquer modos:
O arco das palavras requer em geral
Para a flecha dos sons levar
A penetrar
No espírito de todos.
439 – Permanecem
Dentre todos, os maiores
Maiores permanecem, mas na posteridade.
Efeito do tempo e da distância,
As montanhas alteiam os pendores
Com majestade,
À medida que delas nos afastamos.
Tal altura alcance-a
Da lonjura nosso olhar, logo a vemos melhor,
Mais longe, porém, nos encontramos.
E afinal, todavia, por trás do sol-pôr
Quem nos garante
Que da noite em meio ao negror
Não se implante
Outra montanha maior?
Eternamente brada cada Galileu
Por justiça em tempo dele ao céu.
440 – Tragédias
Tantos mundos ignotos!
Quantas tragédias ignoradas
Das vidas mais calmas nos fundos remotos,
Mesmo dos mais íntimos alheadas,
Vidas grandes, das mais medíocres na aparência!
Quanta angústia apaixonada
Para a eternidade refechada!
Quanta ausência! Quanta ausência!
Como viver o vivido
É isto de andar tão distraído!
441 – Salário
A diferença entre o salário
Dum bom jogador de futebol
E dum bom solista de orquestra
É o valor indiciário
Do nível cultural com que bole
A comunidade que os adestra.
Quando o solista morre à fome
É a comunidade de que se consome.
442 – Girar
A imitação
É que o mundo faz girar.
Representada, porém, a função,
Logo se há-de tornar
Na matéria-prima
De toda a comédia que nos redima.
443 – Pobre
Durante uma vida inteira
Vivi a vida à maneira
Do pobre petiz
Que tem colado o nariz
À montra da pastelaria
Vendo dos outros a alegria,
Dos outros, do que ele até mais tolos,
Lá dentro a comer os bolos!
- E tal é da vida a sina
Que a todos nos destina.
444 – Defeitos
Aos defeitos humanos atam-nos dois sacos
Que usamos um ao peito e outro às costas.
Doutrem os defeitos no da frente ensaco-os,
Os meus, no de trás, as más apostas.
Assim, ando a vida inteira
Os defeitos de outrem a ver
E nada jamais me inteira
Do que com os meus houver.
445 – Profundamente
Profundamente creio
Que é o Universo que se exprime como deve:
Leio,
Logo ele escreve.
E, quando escrevo,
A quem o devo?
Penso,
Logo existo:
- E donde me vem o senso
Em cujo fio de lâmina subsisto?
446 – Lenços
Os lenços acenando
Cada vez mais pequenos
Na lonjura,
Ante nada e ninguém se desfraldando,
Saudade pura,
Já quase mal terrenos,
São de toda a vida
A partida
Do derradeiro cais se desprendendo,
Sem alternativa de regresso,
O caminho absurdo desvanecendo,
Assim,
Do fim sem recomeço.
Do fim.
447 – Irrelevante
Há-de a verdade ser una, infragmentada,
Enquanto a realidade, senão explodiria,
Há-de ser dispersa, irrelevante, um quase nada,
Escorregando em nosso jejum,
Dia a dia,
Literalmente para lugar nenhum.
448 – Crença
Numa crença colectiva qualquer,
Religiosa ou social,
Raros são os que acabam por crer,
Que bem raros são os homens, afinal.
É a fé uma força heróica
E o fogo que dela emana
Queima apenas alguma rara tocha humana
E mesmo esta, quando estóica
Cintila,
Quantas vezes vacila!
449 – Acreditar
O prazer de acreditar que numa causa se acredita,
Que por ela se luta na dita e na desdita,
Ou então que se lutará um dia
Ou, pelo menos, que lutar se poderia!…
Não é mesmo mau pensar
Que algo andamos a arriscar.
- Como quando um actor, em meio às ilusões,
Desata a andar a quatro,
Tudo não são mais do que emoções
De teatro.
450 – Aristocrata
O aristocrata por mérito e vocação
Devém democrata acaso por despeito,
Só para encontrar de inferiores a multidão,
Dele pares pelo preceito.
Importa obrigar então o inferior
A reconhecer-se como tal:
Uma autoridade erigir para impor
A convencida supremacia do pedante escol
Oriundo de qualquer estrato social
Que fútil visa o pretenso sublime,
Do número contra o intérmino rol
Que pretensamente o oprime.
451 – Perfume
O perfume dos sonhos se evola
Logo que os queira fixar.
O melhor de mim não poderei nunca exprimi-lo,
Pois meu imo é um vale florido que se desenrola
Num lugar
Cujo recesso
É sigilo,
Ninguém lhe logra ter acesso.
E as flores, mal sejam colhidas,
Logo fanam, emurchecidas.
452 – Aparência
As verdadeiras mágoas
São, na aparência, tranquilas
No leito fundo de escavadas águas
Onde parecem dormir em ordenadas filas,
Mas onde, por trás da aparente calma,
Continuam a corroer a alma.
453 – Razão
A razão sacralizada
Que a frio afirma e nega
É um sol cru na dura estrada,
Ilumina mas cega.
Nesta luz seca,
Sem sombras nem nevoeiros,
As almas medram descoradas, fruta peca,
E o sangue escoa dos corações em avaros atoleiros.
454 – Maioria
A maioria não dispõe, não,
De vida bastante
Para alguém se entregar inteiro à grande paixão:
Com usura se poupará constante.
São de tudo um pouco, de entrada,
E completamente não são nada.
455 – Traz
O muito traz o pouco:
Não há pior doente,
Doente mais louco
Que aquele que se ilude
E acaba dependente
Após ter muita saúde.
456 – Vemos
Vemos o que somos,
Não o que poderíamos ter sido.
Então louvam-nos da fruta pelos gomos
Que são menos o efeito do que houvermos agido
Que dos eventos que nos impelem
E das energias que nos dirigem.
E quantas vezes nos repelem
Quando somos, afinal, apenas o que exigem!
457 – Berlindes
De cinco berlindes a vida é um jogo:
Trabalho,
Família, saúde, amigos, integridade.
Se no trabalho me afogo
E me perco do que valho,
Então jogo-o fora e, na verdade,
De novo este berlinde ressalta,
Que é de borracha.
Mas família, saúde, amigos, integridade,
Qualquer destoutros se lhe falta
A protecção
Onde encaixa
E cai no chão,
Porque de vidro são feitos,
Ficam em estilhas desfeitos.
E não há cola nem arte
Que refaça algum deles que se parte.
458 – Quartos
Na vida normal
As almas comuns são quartos fechados
E lá dentro estiolam guardados
Vícios e virtudes, forças em geral,
Cujo uso na praça
Nos embaraça.
A sábia razão prática
E o pusilânime bom senso
Guardam a chave automática
Deste quarto em que nem penso.
Apenas mostram, arrumados como convinha,
Alguns armários às escuras.
As artes, porém, trazem a mágica varinha
Que faz cair as fechaduras.
459 – Crês
Crês que teu pensamento
A outro pensamento pode comunicar-se?
Não há relacionamento
Senão entre palavras,
O mais é o engano dum disfarce.
Dizes e ouves termos e o sentido que lhes lavras,
Mesmo nos usos mais correntes,
Jamais é o mesmo em duas bocas diferentes.
Isto, aliás, ainda não é nada:
Nenhuma palavra, por mais bem compreendida,
Diz, além da fachada,
O sentido inteiro da vida.
As palavras desbordam da realidade existente:
Nelas ela acaba perdida definitivamente.
460 – Povo
Não é impunemente
Que pertencemos ao povo destruidor
Do Ocidente,
Ao que com todo o ardor,
Destrói para construir
E constrói para destruir,
Que brinca com as ideias e com a vida,
Que tábua rasa faz constantemente
De tudo com que lida
Para atear um fogo
Em que o que está em jogo, radical,
É, desde logo,
O próprio sangue vital.
- É um risco,
Mas somos deste aprisco.
461 – Direito
Antigamente, era o direito do mais forte,
Hoje é o do mais fraco.
Tiro à sorte
Qual o mais odioso, o mais velhaco.
É que este debilita o pensamento de hoje
E os fortes explora e tiraniza.
Eis dele a divisa:
Suga e foge!
É um mérito actualmente
Ser pobre, estúpido e doentio,
Um vencido definitivamente,
E é vício ser forte, triunfante e sadio.
Quando a inversão chega a este ponto,
Afinal, quam anda tonto?
462 – Modelar
O carpinteiro
Tem a pecha
De modelar o madeiro;
O frecheiro,
A flecha.
- O sábio, na sequela,
A si próprio se modela.
463 – Descobrir
Filosofar
É o pessoal temperamento
Sondar
E, a partir de tal
Momento,
A tentativa
De descobrir a verdade viva.
Individual
E colectiva
E universal.
464 – Governação
A governação do género humano
Vem de dois, não dum soberano:
A dor e o prazer.
Além de determinarem o que fazer
Sem dano,
Deliberam do dever.
O mais é derivação
Que, sem engano,
Tem por chão
De fundo este pano.
465 – Solidão
A solidão reduz a pó
O mais depurado ideal
Dos céus:
Para viver só
É preciso ser um animal
Ou um deus.
466 – Prisioneiros
Quando todos ficamos
Prisioneiros da uniformidade
Jamais enricamos
Com a diversidade
Que, harmoniosa,
Torna a vida gostosa.
A humanidade inteira
Mecanizada,
Que parada
Mais tonta
De soldados de brincadeira,
De gente de faz-de-conta!
467 – Facto
Nenhum facto existente
Pode ser descoberto
Sem uma razão suficiente
Para ser aquele facto certo
E não qualquer outro diferente.
468 – Ideia
O fogo queima por igual
Nos antípodas e aqui.
A ideia varia, por meu mal,
Conforme o lugar onde a recolhi:
A verdade aqui é um erro além
- E juiz supremo não é ninguém.
469 – Realista
Aos quinze anos queria aprender,
Aos trinta tinha os pés no chão,
Aos quarenta já não aderia a um dado qualquer,
Aos cinquenta sabia distinguir lei natural
De opinião,
Aos sessenta ouvia dócil aquela lei, a única
fatal,
Aos setenta podia seguir o coração,
Então,
Que o que ele deseja de além,
Realista e visceral,
É apenas o que ficar na aldeia do bem.
- Eis o itinerário da via
Que trilha a sabedoria.
470 – Segue
Não existem acasos:
Uma coisa segue outra, após,
Por uma razão suficiente
Para não ser diferente,
Embora, na maioria dos casos,
Seja uma razão desconhecida por nós.
471 – Acerto
Sabedoria
Não é conhecimento.
E não compreender
O que andamos a fazer.
Jamais, portanto, implicaria,
Como argumento,
Que não estejamos, nem de longe nem de perto,
A fazer o que está certo.
Pelo contrário,
Tente-se o que se tente,
O acerto ou desacerto
É muitas vezes vário
E daquilo independente.
472 – Espreitar
Quando todo o mundo compreende e insiste
Que a beleza é bela,
Então a fealdade existe,
A espreitar pela janela.
Quando todos compreendem que é boa a bondade,
Então existe deveras a maldade.
Sem o contrapolo do contrário
Como reparar no ser primário?
473 – Salta
Ninguém salta para lugar algum
Vindo de nenhum lugar:
Sempre em qualquer um
Acabamos por estar.
Mesmo que não queiramos
Permanecer
Onde no momento estamos
Ou nem saibamos
Sequer
Onde nos encontramos,
Deixar de estar não vamos
Poder
Num determinado ponto concreto
De nosso trajecto.
474 – Olha
Olha o inevitável o sábio
E decide que não é inevitável.
O homem comum ao que não é inevitável
Olha-o, sabe-o
E decide que é inevitável.
Entre o livre e o fatal
Corre, irrefragável,
A fronteira real.
475 – Limites
Dentro dos limites de nossa língua
Somos cativos,
Enfronhados em nossa cultura vivemos à míngua
Dos quadros vivos
Das demais,
E da nossa experiência de vida,
Além do mais,
Vivemos na fronteira proibida.
De tudo o que vives e arquivas
Geras criaturas inevitavelmente cativas.
476 – Impensável
Impensável pensamento
Não existe e o argumento
É tentar
Pensar um pensamento
Que não possamos pensar.
477 – Junção
Construir as próprias opiniões
Pela junção das dos demais
É ficar a parecer-se com os tais,
Sem mais ilusões
De autonomia nem autenticidade reais.
Assim é que um autómato parece por inteiro
Um homem verdadeiro.
478 – Fio
Que fio de destino
Afinal se doba?
Cordel com que no labirinto atino
Ou cadeia que as pegadas me rouba?
Podê-lo-ei cortar,
Partir,
Torcer,
Ou, eterno a me enquadrar,
Perene meu porvir
Há-de envolver?
Os dois sentidos, afinal,
Ele em si reconcilia,
Por meu bem e por meu mal,
E deles teço o que me tece cada dia.
479 – Jardim
Um jardim é natureza domesticada,
Natureza-cão,
De ano para ano mais assemelhada
Ao dono, o patrão.
E, tal como um cão, precisa de cuidados
Constantemente renovados.
Ou morre abandonado,
Da doença presa,
Bocado de natureza
Asselvajado.
Um jardim,
Se o olhar desenganado,
É um pedaço de mim.
480 – Lanterna
A felicidade está para a alegria
Como a lanterna para o sol.
Depende a felicidade do objecto que a anuncia,
Sem ele, nada bole.
A alegria, não,
Não tem objecto.
Sem qualquer aparente razão,
É o sol a brilhar em meu tecto,
Arde em festa na gratuita combustão
De seu discreto
Coração.
481 – Galhos
Para o comum da gente
Resta o destino dos galhos ou das folhas
Que, de repente,
O vento joga ao leito do rio.
No calafrio
Das fatais molhas,
Em vez de ir ao fundo, flutuamos,
Pelo material de que somos feitos.
Já uma vitória isto julgamos
E deslizamos, à correnteza afeitos,
Velozes, para onde nos arrasta.
Às vezes, uma raiz, uma pedra obrigam a parar.
Ali retidos, nada nos afasta,
Até que a água trepe e volte a nos soltar.
Quando o curso é tranquilo,
À superfície vamos
E mergulhamos
Quando os rápidos bradam outro estilo.
Não sabemos para onde vamos,
E nunca ninguém pergunta.
Nos troços mais calmos, logramos
Ver a paisagem, diques, silvados…
As formas são o que se junta
Entre os despenhadeiros apressados.
Quando os diques correm baixo
E o rio vai alargando,
Pergunto “onde me encaixo,
Vou para onde, vou quando?”
Nesse instante,
À nossa frente, singular,
O infinito mar
Abre-se logo ali adiante.
- E é quando a aventura já está prestes a acabar.
482 – Mente
A mente usada demais
Da realidade que nos rodeia
Capta apenas uma parte restrita.
Impera ali então
Dos sinais
A confusão,
Porque de palavras fica cheia
E a palavra incita,
Não ao lugar mais amplo da realidade toda,
Mas a uma intérmina dança de roda.
483 – Pensamento
Todo o pensamento anda ocupado
No futuro ou no passado.
No presente não pensamos:
É só quando, a partir dele, o futuro encaminhamos.
Nunca o presente é o nosso fim:
Passado e presente, assim,
São meios com que asseguro
O fim – o futuro.
Nunca vivemos, pois, mas esperamos viver.
Preparando-nos interminavelmente para ser
Felizes, um dia, sempre em vão,
É fatal que nunca o sejamos então.
484 – Dignidade
A dignidade de alguém
Pode ser atacada, vandalizada,
Posta a ridículo também.
Mas não pode ser tirada,
A menos que ele renuncie à dignidade que tem.
485 – Vida
A vida não é uma coisa, um substantivo,
É uma acção,
Um verbo, um verbo transitivo,
É aquilo que alguém agir ou não.
Ou nem sequer,
Que a realidade o não consente:
Não há vida, há viver,
Tão somente.
486 – Original
Ao original a solidão o cria,
O belo ousado e estranho
Cria a poesia.
Mas cria também o distorcido,
O desproporcionado tamanho,
O absurdo e o proibido.
O génio emparceira
Na adivinha
Com a peneira
De triar o rolão da farinha.
487 – Lado
Do lado de lá da janela há mundo
E há mundo do lado de cá.
Talvez o eu mais não seja, no fundo,
Que a janela por onde o mundo olha o mundo
E é tudo, afinal, quanto haverá.
488 – Transforma
O desejo de ordem
Transforma o mundo humano
Num reino inorgânico onde os gritos não acordem,
Onde tudo funciona sem dano
Nem engano,
Bem regulado,
Onde por uma vontade impessoal
O todo é comandado
Num jeito fatal.
É um desejo de morte,
Porque a vida
É violação da ordem perpétua e desmedida,
É jogada à sorte.
E o pretexto da virtude mascararia
O ódio do homem contra o homem,
A justificar a malfeitoria
Dos letais intuitos que o consomem.
489 – Pregão
Há quem vista de pregão tonitruante
De dúvidas a nudez,
De ideias o vazio:
- É o fanatismo impante
Da pequenez,
À razão agrilhoada a esganar por um fio.
490 – Silêncio
Quando à verdade o silêncio a substituíra,
É o silêncio uma mentira.
491 – Demora
Muito nos demora a complexidade
A suspeitarmos da realidade,
Quanto mais quenquer
Lográ-la aprender!
Dura idades, gerações:
- Tacanhos somos aos milhões e milhões.
492 – Concerto
A vida um destino
Singular
Apura:
É um concerto de violuno
Que aprendo a tocar
Justamente enquanto dura.