SÉTIMO  TROVÁRIO

 

 

NESTES DEGRAUS DOS ACTOS VAGOS, DIA A DIA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 580 e 627 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                580 – Nestes degraus dos actos vagos, dia a dia

 

                                                Nestes degraus dos actos vagos, dia a dia,

A norma, a regra, em verso ponho consistente,

Metro medido, rima como conviria

A cada gesto, a cada passo que anuncia,

No desconcerto, o concertado meu presente.

 

                                                De bem viver serão a lei a ter em conta

                                                Que regular a vida irá pondo a caminho

                                                No ritmo certo da palavra donde aponta

                                                Na rima a rima que na vida eu adivinho.

 

                                                Moral dos actos, atitudes e organismos,

                                                Não a da lei, mas do saber mais comezinho

                                                Que um eco ouviu e o acatou, voz dos abismos.

 

                                                Eis como vou tocando a grei em meu redor:

                                                Mais que moral ando a regar hortos de amor.

 

 


581 – Escuta

 

Escuta com atenção,

Doutrem a palavra acata,

Melhor vês teu rosto então

E o dos mais na mesma data.

E é uma prévia condição

De qualquer acção sensata.

 

 

582 – Deixámos

 

Deixámos que os violentos

Fizessem o que queriam

Durante tempo demais.

A furtar-lhes os intentos

Só os que frente lhes faziam

Sem tergiversar jamais.

 

Se quero a democracia

Pratico-a cada vez mais,

Senão perco-a qualquer dia.

É tempo de dizer basta

A quem for daquela casta.

 

 

583 – Sermos

 

Sermos nós e mais ninguém

Num mundo que, dia e noite,

Tenta o mais que lhe convém

Vir zurzir-nos com o açoite,

 

É no mais duro combate

Dum ser humano ter parte

Sem que jamais me desate,

Sem a pausa nem o aparte:

 

 

- Nunca parar de lutar  

É minha sina e lugar.

 

 

584 – Sonhos

 

É com imaginação

Que deveremos lutar,

Temos de saber guardar

Os nossos sonhos à mão.

 

Força para resistir

Aquele que não tiver

Não pode ter, a seguir,

O direito de vencer.

 

 

585 – Sofrimento

 

Sofrimento de se ver

Que não se é como os mais são

É lucidez a crescer,

É um passo de reflexão

Que a quenquer importa dar

Para ele próprio ser,

E acaba a determinar

O lusco-fusco ao prazer.

 

Como este é sempre minúsculo

Pouco importa tal crepúsculo.

 

 

586 – Riso

 

O riso é uma protecção

A discórdia a aproveitar

A fim de localizar

A matriz da dissensão

Ou o acordo a propugnar.

Os que, portanto, não riam

Na ruína é que confiam

 

E dão-lhe ditas fatais:

- Não há saídas reais!   

 

 

587 – Der

 

Se me dás a tua ideia

E mais eu te der a minha,

Cada um de nós na teia

Duas tem, como convinha.

 

E, em conjunto, nós os dois

Teremos quatro depois.

 

 

588 – Sentara

 

Por que se sentara o Buda

Debaixo duma figueira

Até que um alvor lhe acuda?

 

É que ele ouvira uma voz,

Voz cimeira e derradeira,

Funda a vir do coração,

Que lhe ordenou, muito a sós,

Que ali repouse no chão.

 

E ele não deu preferência

Nem à mortificação,

Sacrifícios, ablução,

Nem à prece, à reverência,

Nem à comida ou bebida,

Nem ao sono, nem aos sonhos:

- Obedece à voz ouvida   

Dos fundos vinda medonhos.

 

Portanto, não dar ouvidos

Às ordens, ritos externos,

Mas apenas a tal voz,

Prontos a tal os sentidos,

É que é o Bem: actos supernos

Dali derivam após.

 

E, por entre o mundo vário,

É o único necessário.

 

 

589 – Escritor

 

O escritor é um parasita

Da vida própria e dos mais,

Vive de empréstimo, imita,

Põe na palavra em que lida

O que, em vez de nos sinais,

Deveria pôr na vida.

 

 

590 – Novo

 

No novo mundo gerado

A meus pés espavoridos

Tudo muda em todo o lado.

Mal comecemos rendidos

 

A ficar de algo ou de alguém,

Eis a precariedade,

A separação advém:

Hoje é já duma outra idade.

 

Temos mesmo de aprender

No transitório a viver.

 

 

591 – Sério

 

De que vale lamentar

O que se não pode ter?

Mais vale valorizar

O que a sério se tiver

E tratar de aproveitá-lo

Como nos dê mais regalo.

 

 

592 – Viúva

 

Viúva dividida ao meio,

Dum lado uma viúva honesta,

Doutro viúva debochada,

De dia tudo o que presta,

De noite a sonhar a festa

De que, afinal, tem receio,

De que foi erradicada,

Quem recose o dividido

Tecido do quotidiano,

Quem reencontra marido

À viúva que há no recheio

Da vida com que me engano?

 

 

593 – Limite

 

O limite, habitualmente,

Pode tornar-nos mais fortes.

Se um travão se não consente,

Menos razões há de agir.

Da mediocridade os portes,

As tarefas sem porvir,

No coração revoltado

Despertam a independência.

Num viver não entravado

O acaso marca a existência,

Ao capricho do que é dado.

 

Se apenas, porém, tiver

Duas, três horas por dia

Para o que bem lhe aprouver,

A força tumultuaria

De tempo no curto espaço,

Entre rochedos torrente

A rasgar do rumo o traço

No bramido de ser gente.

Nas artes a disciplina

Condensa o esforço em limites

Implacáveis como a sina,

São os píncaros que fites.

É mestra a pobreza a sério

Do pensar como do estilo,

Do que é sóbrio sob o império,

Corpo-alma no mesmo filo.

 

Quando o tempo é limitado,

As palavras são medidas,

Nada inútil nem de enfado,

O cerne lhes toma as bridas.

 

 

594 – Cérebro

 

Não será metendo à força

No cérebro informação

Que as gentes aprenderão.

Tudo a um outro custo orça.

 

Pelo cérebro sugado

Todo o saber tem de ser,

Não para ele empurrado:

É o escuro que quer ver.

 

Primeiro requeiro o estado

Que cultivar o interesse,

Quem mergulhe na benesse

De admirar quase ofuscado.

 

Só podemos ensinar

Criada em quem queira saber

A vontade singular

De querer mesmo aprender.

 

 

595 – Criança

 

Toda a criança precisa

De se aborrecer às vezes

Se desenvolver-se visa

Com atitudes corteses

 

E de imaginário rico.

Então no adulto a vitória,

Se a vida lhe verifico,

É, no imo, satisfatória.

 

Ao contrário dos reveses

Do só prazer que lá prezes. 

 

 

596 – Caminho

 

Uma vida com sentido

Tem caminho sinuoso

E, por sinuoso ser,

Tem aquilo que é vivido

E cujas linhas não coso

Ao que andar a entretecer,

Que nem chego a perceber

No momento em que acontecem.

Só mais tarde compreendemos

A forma como se tecem

Ao plano que atrás vivemos.

 

É preciso respeitar

Inteiro o desconhecido

Que na vida tem lugar

E sagaz ser, no sentido

De seguir e de ligar

Estes fios de meada,

Para os nós lhes desatar,

Cada ponta libertada.

 

Estão lá todos os fios,

A memória nada perde.

De mim depende que os rios

Vão confluir ao que eu herde.

 

 

597 – Usam

 

Muitos usam o presente

Para servir o passado,

Para servir o futuro,

Tudo muito atarefado

A ruminar um ausente

Mês anterior que depuro,

A tentar manipular

A semana que vier

E a que a seguir tem lugar,

Ou outro tempo qualquer.

 

Se a História já foi passada,

Não pode ser alterada.

 

O futuro é tão incerto!

Não posso contar com ele

Nem de longe nem de perto

Sem que por fim me atropele.

 

A certeza coerente

É apenas a do presente.

 

Ama o acto de estar vivo

Em todo e qualquer momento

E minimizas, festivo,

O teu desgosto, o tormento

Que acabas por sentir quando

Tudo estiver acabando.

 

 

598 – Concentras

 

Se te concentras no voo

Do crepe da frigideira,

Já lhe ele não acertou.

Pode parecer asneira

Mas é sempre a distracção

Que do centro leva à beira,

Que conduz ao coração.

 

 

599 – Deriva

 

Em lugar de perguntar

Por que deverei fazer,

Que vantagem tem lugar,

Que perco se o não tiver,

É bem melhor actuar:

- A fecunda reflexão

Deriva apenas da acção.

 

 

600 – Ordem

 

Ordem, o desumano equívoco da rua,

Ordem dos vigilantes, prefeitos de escola:

Dois alunos perversos cravam uma pua

Disfarçada num outro e a ordem logo o imola:

 

Quando ele grita, é logo castigado,

Se ele protesta, aumenta para o dobro,

Se continua, finda da turma afastado…

- À falsidão quando é que o custo enfim lhe cobro?   

 

Quando ela é dum país, duma cultura,

Quando é que se lhe acaba com a usura?

 

 

601 – Sabre

 

De repente ergue o sabre e transpõe a trincheira

O herói que, solitário, vai contra a barragem

De metralha a gritar: “Para a frente, bandeira!”,

Enquanto os seus soldados, sem qualquer coragem,

 

Encolhidos no fundo da tricheira erguida,

Electrizados por tamanha valentia,

De lágrimas nos olhos louvam a surtida,

Aplaudem, mas ninguém lhe vai seguir a via.

 

O herói, o sábio, o santo sofrem a fraqueza

De quem lhes bate palmas mas o itinerário

Que aqueles todos seguem, no fundo o despreza,

Dele não há uma sombra em seu rumo diário.

 

Se seguiram o santo em lugar de aplaudir,

Não houvera Reforma, guerra religiosa,

Nem mesmo a Inquisição tivera onde surdir.

- É fácil aplaudir, a Via é que é custosa.   

 

 

602 – Suicídio

 

Do suicídio um incauto nunca arrancareis

Com labéus de acto anti-social do que propugna:

Pela morte se esquiva de agentes cruéis

Da colectividade que, enfim, lhe repugna.

 

Com tais argumentos

Confirmais intentos:

 

Melhor conseguir

Há-de onde quer ir.

 

Quem sempre se sentir um rejeitado

Com nova rejeição não é mudado.

 

 

603 – Bater

 

Por quê gastar energia

No que não pode mudar?

É bater na penedia

Até que a testa, algum dia,

Melhor veja que é parar.

 

Nada paga a pequenez

De gestos de tal jaez.

 

Melhor fora um bem maior:

Tirar da pedra o suor

 

E buscar aráveis jeiras

Para novas sementeiras.

 

 

604 – Glória

 

A glória, a deusa-cadela,

Rosnadora e protectora,

Ronda em redor da pegada

Humilde e provocadora.

 

Quem se prostitui a ela

Deusa-cadela danada?

 

Quem, afinal, se não rende,

Quem resiste, não se vende?

 

 

605 – Autocarro

 

Dos homens a maior parte

Que são realmente bons

Perde o autocarro que parte

Noutras linhas doutros tons.

 

A vida, sempre uma apenas,

Se se perder o autocarro,

Desgrenha à berma as melenas

Dos fracassos sob o escarro.

E sozinho no passeio

O inteiro fica ali meio.

 

 

606 – Partida

 

A partida significa

Um encontro em qualquer parte.

Ora, cada encontro implica

O cativeiro que acarte.

 

Mas que há de mais excitante

Do que isto de ir sempre avante?

 

Se calhar é o cativeiro

O libertador primeiro

 

Do Cosmos na dependência

De que temos a vivência.

 

E será no acolhimento

Que me solto e que me invento.

 

 

607 – Atitudes

 

Muita gente, vida fora,

Termo certo em hora certa

Ante quenquer elabora.

E bem prudente desperta

 

Para os actos que tiver,

As atitudes que apronta,

Que os actos que empreender

São o que deveras conta.

 

Tudo o mais, obra de acaso

Pouco vai contar a prazo.

 

 

608 – Livros

 

De livros a tonelada

Não será prazer de ler,

Antes um na emaranhada

Seara vir a escolher,

 

Como a um recém-nascido

No lar quente o recolher

E saber que o requerido

Tempo se tem para o ler,

 

Lento e lento, lento e lento,

Pesando cada palavra,

Saboreando o momento

Como quem colhe o que lavra. 

 

De livros a tonelada

Não será prazer de ler,

Antes um na emaranhada

Seara vir a escolher.

 

 

609 – Tombarei

 

Preciso algo de agarrar,

Ideal, religião,

Uma ilha onde aportar,

Qualquer ínfima ambição…

 

- Ou tombarei no vazio,   

De vida sem nenhum fio.

 

 

610 – Comum

 

Comum a todas as faltas

Decorre, em particular,

Cada homem inclinar,

Nas esperanças mais altas,

 

Os efeitos a ignorar

Que haja provocado outrora.

- Da liberdade ao gozar,   

Este é o erro que a devora.

 

Assim é que eternamente

Nunca além vai da semente.

 

 

611 – Árida

 

A mais árida atitude,

Pelo facto da aridez,

A fome da juventude

Vai concitar no entremez:

 

A fome de ser o herói,

De praticar, sobre-humano,

A epopeia de quem foi,

Sem ponta de desengano,

 

Quem jamais teve, afinal,

No mundo inteiro rival!

 

Assim é que o sacrifício

Atrai e traz benefício.

 

 

612 – Inertes

 

As coisas inertes, duras,

Que não foram escolhidas

Devem ser substituídas

Por opções em que as apuras.

 

Ao invés, não escolher

Fá-las a vida reger.

 

 

613 – Percebo

 

Percebo por todo o lado

Rastos de minha presença.

É praga que me hão lançado,

Cada gesto, uma sentença:

Ora esperança vital,

Ora perigo mortal.

 

E sempre este inevitável

Que me persegue, fatal:

- Faça ou não, sou responsável.   

 

 

614 – Ganham

 

Tempo não querem perder,

Nem perder os privilégios,

Nenhum dinheiro sequer…

Não perguntam tais egrégios

 

Que se ganha de assentada

Em nunca se perder nada.

 

 

615 – Personagem

 

O sacrifício do eu,

A dessacralização

Do personagem que é o meu,

Leva-me a tudo o que não

 

For eu no mundo em redor:

- Gero ética ao tal me impor.

 

 

616 – Narcisismo

 

O narcisismo, ocupado

De identidade e valor

Pessoal, mui refechado,

Bloqueia no corredor

 

Toda a sensibilidade

Para o que é moral e justo.

Ético é ter a acuidade

De envolver-se a todo o custo

A viver comunidade.

 

No inverso do narcisismo

Desafogo meu abismo.

  

 

617 – Era

 

Um espírito com alma,

Se dele uma era houver,

As instituições acalma:

Continuar vão poder

 

Mas mais que elas importância

As ideias e as imagens,

Vivências de amor e de ânsia,

Vão ter, de vida equipagens.

 

Confissão religiosa

Será poesia, não prosa.

 

 

618 – Inteligência

 

A inteligência germina

Quando deixo de tentar

Ser esperto: ela combina

Com saber-me abandonar.

 

O sentido do eu vem

Quando já necessidade

Não temos de ser alguém:

De ser enche a vacuidade.

 

A transcendência borbota

Quando abraço inteiro a vida,

Dando-me gratuito à quota

Que gratuita é oferecida.

 

 

619 – Busque

 

Há quem busque a religião

Contra os mistérios da vida.

E há quem lhe encontre o desvão

Para a vida pretendida.

 

Nem sempre identificar

É fácil a diferença.

A ansiedade tem lugar

No que à primeira pertença.

 

E apenas por este tique

Lhes desempato o despique.

 

 

620 – Plástica

 

A má imagem dá ilusão

Duma plástica comida,

Imita que nos dá pão,

Vicia nela em seguida.

 

Não as construímos bem

Nem usamos com cuidado,

A fome aumentam, ninguém

Nelas finda saciado.

 

De plástico a imagem farta

Mas mata à fome o que a acarta.

 

 

621 – Transcendente

 

O lado espiritual

Das éticas é a visão

Transcendente do real

Que leva à preocupação

Pelos outros, no final.

 

O diverso apreciamos,

Não apenas o que é igual

Com que nós nos confiramos.

E disto o melhor sinal

 

É imaginação crescente

A gerar comunidade.

Neste uno múltiplo assente,

Mais me alarga a identidade.

 

 

622 – Belo

 

Um espírito sem alma

É uma vida dividida,

O belo já não acalma,

Significação perdida.

 

Nem parece ter a ver

Nada com o espiritual

E uma heresia há-de ser

Sagrá-lo de sensual.

 

Mas a sensualidade,

Física mesmo em geral,

É sagrada de verdade,

É mesmo a estrada real

 

Para o espírito deveras

Como uma meditação,

Como a vida sã que esperas,

Como qualquer boa acção.

 

 

623 – Energia

 

Procurei ideias

Com as quais viver,

De energia cheias

No labor a ter.

  

Logo avassalado

De sexual desejo

Torto e desligado

Perdido me vejo.

 

Quando a coesão

Do caos brotou

E do intuito são

Que meu pé fundou,

 

Vejo que o que é meu

Tem menos de mim

Que o que me ocorreu

Quando lhe pus fim.

 

Sou mais nascimento,

Menos intenção;

Sou de alma um momento,

Pouco, vocação.

 

Reduzir irei

Os meus objectivos:

- E eis como serei  

Meus mortos, meus vivos..

 

 

624 – Virtuoso

 

Ser virtuoso não é

Agir com maturidade:

Perfeccionismo de pé,

Não tem generosidade.

 

Bem melhor é ser humano,

Muito vulgar, imperfeito,

Com a vocação do engano,

Disposto a ajudar com jeito.

 

E, nas horas de aflição,

Rezar qualquer oração,

 

Assim, desprendidamente,

Tal quem é um nada de gente.

 

 

625 – Muda

 

Muda em hábito o ritual,

Em dogma muda a doutrina.

Como ter o espiritual

Sem a rigidez que o mina?

 

Como encontrar companheiros,

Em meio à freima hesitante,

Sem criar os atoleiros

Duma rede sufocante?

 

 

 

Religião é limiar,

Não pára aqui nem ali,

Sempre à fronteira a espreitar

E a raiz nunca lhe eu vi.

 

Se entre duas posições,

Nem numa nem noutra nunca,

Logo então as devoções

À garra escapam adunca:

 

São paradoxo, não lógica,

A questão não é certeza,

Nem a crença é pedagógica

Se apenas a si se preza.

 

O melhor é uma estrutura

Gerar flexível e viva

Onde a reforma se apura

Sempre aberta e sempre esquiva.

 

 

626 – Fugir

 

Há muito quem acredite

Que importa fugir do mundo

Para atingir o desquite

Do espírito em que me inundo.

 

Mas o trabalho em madeira,

Em pedra, ferro ou cimento

Ensina doutra maneira:

Posso ali tomar assento

 

Na matéria e no trabalho

Tão íntimo que noviço

Me sinto, no que então valho,

Dum convento em que me enliço.

 

 

627 – Época

 

Gostaria de pensar

Que a época do teólogo

Já passou ou vai passar,

Limitado no monólogo

 

Duma confissão de fé,

Em lugar de simplesmente

Ser inspirado quem é

Dela uma viva corrente.

 

Incompleto o secular

Fica sem o espiritual

Se o suprimir, desprezar

Por vazio trivial.

 

A sectária teologia

Nos seculariza a vida,

Que de sagrado esvazia

O vulgar de nossa lida.